1. Defensoria Pública Do Estado De São Paulo (Impetrante) x 2. Tribunal De Justiça Do Estado De São Paulo (Impetrado)
ID: 333752627
Tribunal: STJ
Órgão: SPF COORDENADORIA DE PROCESSAMENTO DE FEITOS DE DIREITO PENAL
Classe: HABEAS CORPUS
Nº Processo: 0154425-54.2025.3.00.0000
Data de Disponibilização:
24/07/2025
Advogados:
HC 1000352/SP (2025/0154425-6)
RELATOR
:
MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ
IMPETRANTE
:
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ADVOGADO
:
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
IMPETRADO
:
TRIBUNA…
HC 1000352/SP (2025/0154425-6)
RELATOR
:
MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ
IMPETRANTE
:
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ADVOGADO
:
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
IMPETRADO
:
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
PACIENTE
:
RAFAEL ANATOLIO DE OLIVEIRA
INTERESSADO
:
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
DECISÃO
RAFAEL ANATOLIO DE OLIVEIRA alega ser vítima de coação ilegal em decorrência de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo na Apelação Criminal n. 1501499-66.2025.8.26.0228.
Consta dos autos que o paciente foi condenado pelo crime de tráfico de drogas.
A defesa aduz, em síntese, (i) a ilicitude das provas derivadas da busca pessoal e, subsidiariamente, (ii) o cabimento da aplicação da atenuante da confissão espontânea em razão da confissão informal expressamente reconhecida na sentença condenatória. Requer a absolvição do acusado. Subsidiariamente, requer a aplicação da atenuante.
O Ministério Público Federal opinou pela denegação da ordem (fls. 123-129).
Decido.
I. Busca pessoal
Segundo o disposto no art. 244 do Código de Processo Penal, "A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar".
Em julgamento sobre o tema, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça estabeleceu, interpretando o referido dispositivo legal, alguns critérios para a realização de tal medida. Confiram-se:
1. Exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) – baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto – de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência.
2. Entretanto, a normativa constante do art. 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à “posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”. Vale dizer, há uma necessária referibilidade da medida, vinculada à sua finalidade legal probatória, a fim de que não se converta em salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto que constitua corpo de delito de uma infração penal. O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como “rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata.
3. Não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições/impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, baseadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de “fundada suspeita” exigido pelo art. 244 do CPP.
4. O fato de haverem sido encontrados objetos ilícitos – independentemente da quantidade – após a revista não convalida a ilegalidade prévia, pois é necessário que o elemento “fundada suspeita” seja aferido com base no que se tinha antes da diligência. Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida.
5. A violação dessas regras e condições legais para busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.
(RHC n. 158.580/BA, Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., DJe 25/4/2022, grifos no original)
Conforme ensina Gisela Aguiar Wanderley, “A conclusão alcançada no RHC 158.580/BA se alinha ao entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no caso Fernández Prieto & Tumbeiro v. Argentina (2020), no sentido de que ‘a suspeita baseada no estado emocional ou na idoneidade ou não da reação ou forma de vestir [...] constitui uma apreciação subjetiva que, ante a ausência de elementos objetivos, de nenhum modo demonstra a necessidade da medida [busca pessoal]’” (WANDERLEY, Gisela Aguiar. Quando é fundada a suspeita? O standard probatório para a busca pessoal. In: Homenagem ao Ministro Rogerio Schietti – 10 anos de STJ. BORGES, Ademar; SICILIANO, Benedito; VERANO, Cristiano (Org.), Ribeirão Preto: Migalhas, 2023, p. 397-409).
No mencionado precedente, a Corte Interamericana assentou ser necessário para uma busca pessoal:
(a) que a polícia indique as circunstâncias objetivas pelas quais se promove uma detenção ou busca sem ordem judicial e sempre com relação concreta com a prática de uma infração penal; (b) que tais circunstâncias devem ser prévias a todo o procedimento e de interpretação restritiva; (c) que devem se dar em uma situação de urgência que impeça o requerimento de uma ordem judicial; (d) que as forças de segurança devem registrar exaustivamente nas atas do procedimento os motivos que deram origem à detenção ou à busca; (e) a não utilização de critérios discriminatórios para a realização de uma detenção.
(Corte IDH, Caso Fernández Prieto e Tumbeiro v. Argentina. Sentença de 1.9.2020. Mérito e reparações, § 68 e seguintes. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_411_esp.pdf, acesso em: fev. 2022)
Em 11/4/2024, o Plenário do Supremo Tribunal Federal reforçou essa compreensão quanto à necessidade de elementos objetivos para a busca, ao firmar a tese, no HC n. 208.240/SP, de que "A busca pessoal, independente de mandado judicial, deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida, ou de objetos ou papeis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele, ou aparência física".
II. O caso dos autos
Na hipótese dos autos, de acordo com a denúncia, os fatos transcorreram da seguinte forma (fl. 38):
Segundo o apurado, na data dos fatos, Policiais Civis em cumprimento a diligências decorrentes de investigação prévia, dirigiram-se em viatura descaracterizada à Comunidade Cruzeirinho, conhecida pela intensa atividade de tráfico de drogas. Realizada breve campana, observaram RAFAEL posicionado em área tipicamente associada à comercialização de entorpecentes, portando uma sacola preta em uma das mãos, motivo pelo qual optaram por efetuar a abordagem.
O Juízo singular, na sentença, assim afastou a nulidade da busca (fl. 43):
Não há irregularidade na abordagem, eis que motivada, estando o réu em local já conhecido de tráfico de drogas, olhando para os lados, na posse de uma sacola. A abordagem, portanto, é legal.
A Corte estadual considerou válida a medida com base nos fundamentos a seguir (fls. 14-20):
É consolidado o entendimento de que a busca pessoal somente se legitima diante de fundada suspeita, nos termos da jurisprudência pacífica. No caso em apreço, os policiais, durante diligência, em local já amplamente conhecido pelo tráfico de drogas, entraram na comunidade “Cruzeirinho” e avistaram o réu com uma sacola preta nas mãos. As circunstâncias do local e o comportamento do acusado gerou suspeita, o que motivou, acertadamente, sua abordagem.
Isso porque, o comportamento do réu, aliado com a circunstâncias do local, constitui elemento suficiente para configurar a fundada suspeita, legitimando, assim, a realização da busca pessoal pelos policiais.
[...]
Ademais, a fundada suspeita que ensejou a abordagem policial mostrou-se plenamente legitimada no instante em que os agentes de segurança pública lograram êxito em apreender expressiva quantidade de substâncias entorpecentes no interior da sacola que o réu trazia consigo.
[...]
Paulo Bezerra dos Santos, também policial militar, corroborou o relato anterior, informando que, na data dos fatos, encontrava-se em diligência na comunidade conhecida como "Cruzeirinho", onde já havia efetuado outras prisões por tráfico de drogas. Ao visualizarem o acusado na entrada de uma viela, segurando uma sacola preta, entenderam haver elementos suficientes para a abordagem. Nada de ilícito foi localizado em sua posse direta, contudo, no interior da sacola, foram encontradas aproximadamente trezentas porções de entorpecentes, acondicionadas individualmente. Narrou, ainda, que o réu, de maneira informal, teria admitido que aquele seria seu primeiro dia na prática do comércio ilícito de drogas. No mesmo sentido, Eliel dos Santos Nascimento, policial militar, declarou que o local onde ocorreram os fatos era notoriamente conhecido pela habitualidade do tráfico de entorpecentes. No exercício de diligência policial, avistou o acusado na entrada de uma viela, portando uma sacola, circunstância que lhe despertou fundada suspeita. Procedida a abordagem, localizaram-se, no interior da referida sacola, diversas porções de substâncias entorpecentes. Segundo o depoente, o réu, de forma informal, teria assumido a posse dos ilícitos, afirmando tratar-se de seu primeiro envolvimento com o tráfico. Ressaltou ainda não ter conhecimento prévio da identidade do acusado.
Segundo consta dos autos, policiais militares em patrulhamento ostensivo viram o acusado segurando uma sacola preta em ponto conhecido de tráfico, razão pela qual decidiram revistá-lo. Na oportunidade, localizaram com ele as porções de droga descritas na denúncia.
Verifico, portanto, que, a despeito da menção a campana no local da abordagem, não houve a visualização de nenhum ato aparente de comercialização de drogas.
A circunstância de alguém estar em um ponto alegadamente conhecido de tráfico, mas sem praticar nenhuma conduta visível que indique o porte ou a comercialização de drogas, é, por si só (isoladamente), insuficiente para justificar a busca pessoal.
Demais disso, no caso, embora se alegue que o local da abordagem é ponto conhecido de tráfico e que a abordagem ocorreu no contexto de investigação prévia, tais alegações não foram minimamente confirmadas por elementos externos de corroboração.
A saber, não veio aos autos nenhum registro de qualquer investigação em curso no contexto da qual a abordagem haveria sido realizada. A própria campana que haveria sido realizada no dia não foi registrada ou gravada por qualquer meio. Tampouco veio aos autos nenhum indício sequer de que o local era um ponto conhecido de tráfico – a exemplo de boletins de ocorrência, relatórios de investigação, vídeos de monitoramento da região, reclamações de moradores, ou outros elementos que pudessem ratificar minimamente o alegado.
Por isso, sem elementos que ratifiquem essa afirmação, a genérica e isolada ilação de se tratar o local de um ponto conhecido de tráfico não pode por si só (isoladamente) dar suporte à busca pessoal:
PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO COM NUMERAÇÃO SUPRIMIDA . BUSCA PESSOAL. MERA SUSPEITA. LOCAL DE TRAFICÂNCIA. RÉU CONHECIDO NO MEIO POLICIAL. FUNDADAS RAZÕES NÃO COMPROVADAS. AGRAVO NÃO PROVIDO.
1. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior quanto à realização de busca pessoal, o próprio § 2º do art. 240 do CPP consagra que é necessária a presença de fundada suspeita para que seja autorizada a medida invasiva, padecendo de razoabilidade e de concretude a abordagem de indivíduo tão somente por ser conhecido pelo prévio envolvimento delitivo e pelo subjetivo argumento de estar em "atitude suspeita" ou em local conhecido como ponto de tráfico.
2. O Tribunal de origem destacou que os policiais abordaram o agravado na rua unicamente por conta dele estar em ponto conhecido de tráfico de drogas e por já ser conhecido no meio policial. Tais elementos, porém, não são suficientes para justificar da revista pessoal, ensejada por desconfiança baseada em intuição ou palpite, até porque, no caso, não foi citado qualquer outro elemento capaz de despertar suspeitas concretas dos agentes públicos. Portanto, constatada a ilegalidade da busca pessoal feita no agravado, sem prévia autorização judicial, devem ser declaradas ilícitas as provas colhidas na operação e as delas decorrentes.
3. Agravo Regimental não provido.
(AgRg no HC n. 804.669/RS, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 19/6/2023, DJe de 23/6/2023.)
De outro lado, noto ainda que a circunstância de alguém segurar uma sacola em via pública tampouco justifica a busca pessoal, já que, sem que outras circunstâncias configurem indícios de autoria ou participação delitiva, quaisquer objetos poderiam estar nela armazenados. Esse ato poderia, conjugado a outros indícios, configurar fundada suspeita de porte de corpo de delito. No entanto, isoladamente, não configura o mencionado requisito legal.
Ademais, por cautela, em consulta à integralidade dos autos do processo penal, verifico ainda que nem sequer houve a apreensão da suposta sacola que o acusado carregava, conforme auto de exibição e apreensão de fl. 13. A ausência de apreensão da sacola que haveria motivado a busca e na qual estariam armazenadas as drogas infirma a fiabilidade (externa) do relato policial, cujo teor foi refutado pelo acusado em sua autodefesa, conforme se extrai da transcrição de depoimentos constante do acórdão impugnado.
Logo, neste caso, constato que a busca pessoal não foi suficientemente motivada, pois (i) não houve mínima confirmação de que o local da abordagem se tratava de ponto conhecido de tráfico por quaisquer elementos disponíveis ao aparato policial para tanto, (ii) a simples conduta de segurar uma sacola em via pública, sem outras circunstâncias adicionais indicativas de autoria ou participação delitiva, não configura fundada suspeita de porte de corpo de delito e (iii) não houve apreensão da sacola que haveria motivado a busca e na qual estariam armazenadas as drogas, o que infirma a fiabilidade (externa) do relato policial.
No ponto, reputo pertinente relembrar que, em razão da presunção constitucional de inocência, cabe ao Estado-acusação produzir prova fiável e consistente quanto à hipótese acusatória.
Os depoimentos policiais devem ser coerentes e consistentes com as provas produzidas nos autos e com os elementos externos de corroboração disponíveis ao aparato policial, a fim de superar a presunção de inocência e demonstrar a culpa do acusado, à luz do rigoroso standard probatório aplicável ao processo penal (elevadíssima probabilidade ou, em outros termos, prova além da dúvida razoável – beyond a reasonable doubt).
Nesse sentido, menciono recente julgado desta Sexta Turma, no qual o ingresso no domicílio do acusado foi justificado com base na alegação dos policiais de que sentiram forte cheiro de maconha exalado da residência, mas cujas circunstâncias fáticas evidenciavam ser inverossímil a versão dos agentes de segurança. Confira-se:
[...]
3. A lógica da alegação dos policiais de que sentiram forte cheiro de drogas vindo do interior da residência é, de certa forma, revestida de alto grau de subjetivismo do agente estatal que irá realizar a busca e, sendo uma circunstância oriunda simplesmente do relato do próprio agente que realiza a medida invasiva, deve ser sujeito a rigoroso escrutínio a posteriori pelo Judiciário, mediante cuidadosa avaliação do contexto fático que circunscreveu a diligência.
4. Nos casos, por exemplo, em que os policiais responsáveis pelo ingresso em determinado domicílio afirmam haverem feito campanas no local, visto movimentação de pessoas na residência típica de comercialização de drogas ou visto alguém entregando algum objeto aparentemente ilícito para outrem, há descrição de elementos objetivos e com maior grau de sindicabilidade, de modo que, ainda que também dependam, de certa forma, da credibilidade do relato do policial, podem ser atestados - ou confrontados e infirmados - por outros meios, como a gravação audiovisual por câmeras. No entanto, quando o ingresso se baseia apenas na afirmação do policial de haver cheiro de drogas exalando da residência, o grau de subjetividade é tamanho que, mesmo se registrada toda a diligência em áudio-vídeo, não há como captar o odor mencionado a ponto de demonstrar objetivamente a fiabilidade da suspeita prévia.
5. Ao se analisar se havia ou não justa causa para a entrada dos policiais em domicílio alheio, é preciso avaliar - com escrutínio ainda mais rigoroso - o contexto de apreensão das drogas, a fim de verificar, com a segurança necessária, se realmente era verossímil a justificativa policial para o ingresso em domicílio, sob pena de se tornar praticamente incontrastável pela defesa - e também incontrolável pelo Judiciário - a afirmação do agente público. Vale dizer, é necessário aferir, a partir dos contornos objetivos do caso concreto - principalmente a natureza, a quantidade de drogas, o local e a forma em que estavam armazenadas dentro da residência - se era efetivamente possível que estivessem exalando forte cheiro, a ponto de ser perceptível por um agente situado na via pública.
6. A quantidade de drogas encontradas na residência do paciente (que não foi excessivamente elevada), somada ao fato de as substâncias estarem acondicionadas dentro de uma mochila, no interior de um guarda-roupas, e dentro de um plástico, no interior da geladeira, sugerem a falta de credibilidade da versão policial de que sentiram forte cheiro de maconha vindo do interior da casa.
7. Embora o réu, na delegacia, haja firmado que a droga apreendida se destinava ao seu consumo pessoal, e não obstante, em juízo, haja confessado não apenas a traficância, mas também o fato de ser usuário de maconha, certo é que não houve nenhum relato policial ou nenhuma outra prova produzida que eventualmente atestasse que, no momento em que os policiais ingressaram no domicílio do acusado, ele (ou qualquer outra pessoa que estivesse naquele local) estivesse consumindo droga, a fim de dar lastro à afirmação dos militares de que havia forte odor de maconha proveniente da casa.
8. O simples relato dos policiais de que sentiram forte cheiro de droga vindo do interior da residência, desprovido de qualquer outra justificativa mais elaborada, não configurou, especificamente na hipótese sub examine - em que o contexto fático retira a verossimilhança da narrativa dos militares -, o elemento "fundadas razões" necessário para o ingresso no domicílio do réu.
9. Conforme tem reiteradamente decidido esta Corte Superior de Justiça, atitude considerada suspeita e nervosismo do acusado ao avistar os policiais não constituem justa causa a autorizar o ingresso em domicílio alheio sem prévia autorização judicial. Precedentes.
[...]
(HC n. 697.057/SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., DJe 3/3/2022)
Assim, em exercício do especial escrutínio exigido sobre os depoimentos policiais – determinado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema n. 280 (“o ingresso forçado baseado em fatos presenciados pelo próprio policial que realiza a busca coloca o agente público em uma posição de grande poder e, por isso mesmo, deve merecer especial escrutínio”) e pela Terceira Seção deste Superior Tribunal no julgamento do HC n. 877.943/MS (“deve-se submetê-los a cuidadosa análise de coerência – interna e externa –, verossimilhança e consonância com as demais provas dos autos”).
Nesse sentido, menciono o recente julgamento dos HCs n. 768.440/SP, 831.416/RS e 846.645/GO (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., julgados em 20/8/2024), nos quais contradições e inverossimilhanças na versão policial levaram à anulação da diligência, por falta de comprovação suficiente da alegada justa causa para a busca. Ilustrativamente, cito a ementa do HC n. 846.645/GO, no que interessa:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. AUSÊNCIA DE FUNDADAS RAZÕES. CONTRADIÇÕES E FALTA DE VEROSSIMILHANÇA DOS DEPOIMENTOS POLICIAIS. DÚVIDAS RELEVANTES. IN DUBIO PRO REO. PROVAS ILÍCITAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. ABSOLVIÇÃO. ORDEM CONCEDIDA.
1. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema 280), que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo – a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno – quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito.
2. A discussão, em geral, gira em torno de saber se, dada a narrativa fática trazida pelos policiais sobre os elementos que tinham antes de realizar a medida invasiva, ela foi válida ou não. Todavia, a jurisprudência deste Superior Tribunal, pontualmente, vem avançando para analisar também, à luz das regras de direito probatório, a suficiência da versão policial, sobretudo quando se trata de versão inverossímil, incoerente ou infirmada por algum elemento dos autos.
3. Tomando como experiência estrangeira sobre a temática ora em julgamento, vale mencionar que, nos Estados Unidos da América, depois do julgamento do caso Mapp v. Ohio (1961) – no qual a Suprema Corte expandiu a regra de exclusão das provas ilícitas (exclusionary rule) aos tribunais estaduais –, observou-se que, em muitas ocasiões, em vez de adequar sua conduta para respeitar as regras sobre a legalidade de medidas invasivas, a polícia passou a burlar a proibição por meio da alteração das narrativas sobre as prisões. Por exemplo, o que antes era uma justificativa pouco comum começou a ser frequente nos depoimentos policiais: ao avistar a guarnição, o indivíduo supostamente haveria corrido e dispensado uma sacola com drogas, circunstâncias que tornavam a apreensão das substâncias válida.
4. Em um estudo empírico que analisou quase quatro mil autos de prisão em flagrante no distrito de Manhattan no período de seis meses antes e seis meses depois do julgamento do caso Mapp, constatou-se um aumento de até 85,5% desse tipo de descrição da ocorrência, fenômeno comportamental que ficou conhecido como “dropsy testimony”, em razão do verbo “to drop” (soltar/largar). Outro estudo realizado na cidade de Nova Iorque em período similar chegou a resultados parecidos e concluiu que "Mudanças suspeitas nos dados de prisões após o julgamento do caso Mapp indicam claramente que muitas alegações policiais foram alteradas para se adequarem aos requisitos de Mapp".
5. O dropsy testimony, naquele país, foi visto como parte de um fenômeno mais amplo, conhecido como “testilying”, mistura do verbo testify (testemunhar) com lying (mentindo), prática associada à conduta de distorcer os fatos em juízo para tentar legitimar uma ação policial ilegal, como, por exemplo, “fabricar” a justa causa para uma medida invasiva. No cenário brasileiro, esse fenômeno é conhecido, no jargão policial, por “arredondar a ocorrência”, ou seja, “tornar transparente uma situação embaraçosa” (MINANI, Ademir Antonio. Dicionário da Linguagem Castrense, São Paulo: Clube de Leitores, 2018, p. 34).
6. A situação fática em exame traz novamente à tona a discussão sobre o valor probatório do testemunho policial, meio de prova admitido e ainda visto como relevante por esta Corte, mas que gradativamente vem sofrendo importantes relativizações, sobretudo em contextos nos quais a narrativa dos agentes se mostra claramente inverossímil. Reforça-se, nessa conjuntura, a importância da corroboração do depoimento policial por outros elementos independentes, cujo principal e mais confiável exemplo é a filmagem por meio de câmeras corporais, na linha do que já se externou em outros julgamentos desta Corte.
7. Infelizmente, porém, ainda não se chegou ao desejado cenário em que todos os policiais de todas as polícias do Brasil estejam equipados com bodycams em tempo integral, o que não apenas ajudaria a evitar desvios de conduta, mas também protegeria os bons policiais de acusações injustas de abuso, com qualificação da prova produzida em todos os casos. Enquanto não se atinge esse patamar ideal, diante da possibilidade de que se criem discursos ou narrativas dos fatos para legitimar a diligência policial, deve-se, no mínimo, exigir que se exerça um “especial escrutínio” sobre o depoimento policial, na linha do que propôs o Ministro Gilmar Mendes por ocasião do julgamento do Tema de Repercussão Geral n. 280: “O policial pode invocar o próprio testemunho para justificar a medida. Claro que o ingresso forçado baseado em fatos presenciados pelo próprio policial que realiza a busca coloca o agente público em uma posição de grande poder e, por isso mesmo, deve merecer especial escrutínio”.
8. Trata-se, portanto, de abandonar a cômoda e antiga prática de atribuir caráter quase inquestionável a depoimentos prestados por testemunhas policiais, como se fossem absolutamente imunes à possibilidade de desviar-se da verdade; do contrário, deve-se submetê-los a cuidadosa análise de coerência – interna e externa –, verossimilhança e consonância com as demais provas dos autos, conforme decidido pela Terceira Seção deste Superior Tribunal no HC n. 877.943/MS (Rel. Ministro Rogerio Schietti, DJe 14/5/2024). Para isso, é fundamental repensar práticas usuais e inadequadas que dificultam o exercício desse especial escrutínio sobre o testemunho policial, tais como o frequente "copia e cola" dos depoimentos dos agentes no inquérito e a leitura integral do boletim de ocorrência para os policiais em juízo a fim de que apenas confirmem o seu teor, em verdadeiro simulacro de depoimento.
9. No caso, de acordo com a versão acusatória, a entrada dos policiais na residência do acusado e a realização da busca veicular haveriam sido supostamente embasadas no seguinte contexto fático: a) os policiais receberam previamente as informações do serviço de inteligência da PMGO de que o paciente chegaria em casa em um veículo VW/Amarok com drogas; b) os policiais realizaram campana próximo ao endereço informado; c) o acusado chegou ao endereço conduzindo um veículo VW/Amarok; d) os policiais decidiram abordar o acusado, ocasião que este, ao avistar a guarnição, entrou apressadamente no imóvel; e) os policiais ingressaram na residência, realizaram buscas – pessoal e domiciliar –, mas nada encontraram; f) foi realizada busca no automóvel em que o paciente chegou (VW/Amarok), o qual estaria estacionado fora da casa, com a porta aberta, e nele foram encontradas as drogas.
10. Observa-se, no entanto, a existência de relevante conflito de versões e de importantes contradições nos depoimentos dos policiais envolvidos na ocorrência, tanto entre as versões de cada agente quanto entre as versões apresentadas por eles próprios na delegacia e em juízo. Cabe salientar, ainda, que não houve gravação audiovisual da ação policial, o que poderia haver dirimido as relevantes dúvidas existentes sobre a dinâmica fática, as quais, uma vez que persistem, devem favorecer o acusado, em conformidade com antigo brocardo jurídico (in dubio pro reo).
11. Assim, diante do conflito entre a versão acusatória e a do acusado (a qual está amparada no depoimento de duas testemunhas e de um informante) e das inúmeras contradições e incoerências nos depoimentos policiais (tanto entre eles quanto em relação ao que cada um disse na delegacia e em juízo), não há como considerar provada a existência da justificativa apresentada para a realização das buscas, de modo que se deve reconhecer a ilicitude das diligências e, por consequência, de todas as provas delas derivadas, o que conduz à absolvição do acusado.
12. Ordem concedida para absolver o paciente.
Diante de tais ponderações, considero que a descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de busca pessoal ilícita, em violação do art. 244 do CPP, o que torna imprestável, no caso concreto, a prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela decorrentes.
A propósito, lembro que o art. 5º, LVI, da Constituição Federal repudia as provas originalmente ilícitas, bem como as que delas derivarem, como parte de uma política criminal inibidora do uso, pelo Estado, de meios ilegais para a obtenção de provas incriminatórias.
Assim, não demonstrada a existência de fundada suspeita de posse de corpo de delito para a realização da busca pessoal, conforme exigido pelo art. 244 do Código de Processo Penal, deve-se reconhecer a ilicitude da apreensão das drogas e, por consequência, de todas as provas derivadas, o que conduz à absolvição.
III. Dispositivo
À vista do exposto, concedo a ordem de habeas corpus para reconhecer a ilicitude das provas obtidas a partir da busca pessoal realizada e, por conseguinte, absolver o acusado, com fundamento no art. 386, II, do CPP, da imputação objeto do Processo n. 1501499-66.2025.8.26.0228.
Determino a imediata expedição de alvará de soltura em favor do acusado, se por outro motivo não estiver preso.
Comunique-se, com urgência, o inteiro teor desta decisão às instâncias ordinárias para as providências cabíveis.
Publique-se e intimem-se.
Relator
ROGERIO SCHIETTI CRUZ
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