Miguel Fedorowicz Rodrigues x Ingrid Fedorowicz Almeida Ribeiro
ID: 335640449
Tribunal: TRF2
Órgão: 5ª Turma Recursal do Rio de Janeiro
Classe: RECURSO INOMINADO CíVEL
Nº Processo: 5072015-04.2023.4.02.5101
Data de Disponibilização:
28/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
VANESSA MEIRELES CUNHA
OAB/RJ XXXXXX
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ALANA CARNEIRO LEIRA
OAB/RJ XXXXXX
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RECURSO CÍVEL Nº 5072015-04.2023.4.02.5101/RJ
RECORRENTE
: MIGUEL FEDOROWICZ RODRIGUES (Absolutamente Incapaz (Art. 3º CC)) (AUTOR)
ADVOGADO(A)
: VANESSA MEIRELES CUNHA (OAB RJ168312)
ADVOGADO(A)
: …
RECURSO CÍVEL Nº 5072015-04.2023.4.02.5101/RJ
RECORRENTE
: MIGUEL FEDOROWICZ RODRIGUES (Absolutamente Incapaz (Art. 3º CC)) (AUTOR)
ADVOGADO(A)
: VANESSA MEIRELES CUNHA (OAB RJ168312)
ADVOGADO(A)
: ALANA CARNEIRO LEIRA (OAB RJ147047)
INTERESSADO
: INGRID FEDOROWICZ ALMEIDA RIBEIRO (Pais) (AUTOR)
ADVOGADO(A)
: VANESSA MEIRELES CUNHA
ADVOGADO(A)
: ALANA CARNEIRO LEIRA
DESPACHO/DECISÃO
DECISÃO MONOCRÁTICA
ASSISTÊNCIA SOCIAL. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO CONTINUADA.
A SENTENÇA JULGOU O PEDIDO IMPROCEDENTE.
FAMÍLIA INTEGRADA PELO AUTOR (11 ANOS, SEM RENDA), SEUS IRMÃOS (7, 10 E 13 ANOS, SEM RENDA), SUA MÃE (31 ANOS, RENDA DE R$ 908,00, DECORRENTE DO BOLSA FAMÍLIA) E SEU PADRASTO (33 ANOS, RENDA DE R$ 1.462,09 NA DER).
EM ALGUNS PERÍODOS, A RENDA
PER CAPITA
FOI INFERIOR AO PARÂMETRO LEGAL DE 1/4 DO SALÁRIO-MÍNIMO.
RECURSO INTERPOSTO PELA PARTE AUTORA PARCIALMENTE PROVIDO.
1. Trata-se de recurso interposto contra a seguinte sentença (
evento 67, SENT1
):
Dito isso, no caso concreto tem-se que o autor alega sua hipossuficiência ao ponto da miserabilidade e a condição de pessoa com deficiência, o que passo a examinar.
Quanto à condição socioeconômica, foi cumprido mandado de verificação (evento 22) e o oficial de justiça apurou que o autor reside com irmão, mãe e o companheiro desta, o qual recebia salário decorrente de emprego formal, sendo esta a fonte de subsistência do casal, juntamente com Bolsa Família e auxílio gás. Com relação ao imóvel, não está situado em área de risco, possui bom estado de conservação e está guarnecido com móveis e eletrodomésticos de boa qualidade, conforme fotografias que acompanham a certidão. Além disso, conforme CNIS do genitor juntado pelo INSS, este atualmente recebe
remuneração que varia entre R$ 1.500,00 a 1.800,00
(evento 59, OUT4).
Assim, não vislumbro ilegalidade aparente na atuação do INSS, tendo em vista que a parte autora
não atende ao requisito de miserabilidade
exigido pela legislação de regência, pois a diligência realizada evidencia que o núcleo familiar não encontra-se no que pode ser conceituado como vulnerabilidade social, especialmente porque a renda mensal
per capita
supera ¼ do salário mínimo vigente.
A norma constitucional dispõe que o benefício assistencial será destinado àqueles que não possuam condições de prover seu próprio sustento ou de ser amparado pela família, enquanto que há informação de salário obtido pelo pai do autor através de emprego formal. Não há dúvidas de que se trata de uma família humilde, mas o benefício assistencial é devido às situações de maior vulnerabilidade, de forma que a percepção do BPC-LOAS depende da conjugação dos requisitos legais.
Nesse contexto, o benefício pleiteado possui caráter excepcional e deve ser direcionado àqueles que realmente se enquadram no conceito de miserabilidade, a ser interpretado com base nos parâmetros legais estabelecidos e também na realidade social brasileira, ou seja,
não se presta a complementar renda que já garante a dignidade da família
. Assim, a prova produzida é incompatível com a alegação de vulnerabilidade social que possa permitir a concessão do benefício assistencial,
mesmo em eventual interpretação mais abrangente
do conceito de miserabilidade, como chancelou o STF no julgamento da Reclamação 4374.
A intervenção judicial é cabível somente em casos de configuração de evidente ilegalidade ou desvio de finalidade, aqui não demonstrados. Fixados tais limites, não cabe ao Judiciário transpor as fronteiras de sua competência estabelecida pela Constituição, para ingressar de maneira ilegítima nos aspectos inerentes aos demais Poderes instituídos, os quais possuem a atribuição constitucional de estabelecer os parâmetros para a efetivação das políticas públicas, em atenção ao princípio da justeza/conformidade funcional.
Em conclusão, embora a perícia médica tenha constatado a condição de pessoa com deficiência (evento 52), diante dos fatos narrados e do acervo probatório evidenciado nos autos, não considero reconhecida a vulnerabilidade socioeconômica, sobretudo quando comparada com o padrão de vida médio dos reais beneficiários do BPC/LOAS com os quais este juízo se depara diariamente, a quem efetivamente é destinada a política pública de assistência social.
DISPOSITIVO
Diante do exposto,
JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO
, com resolução do mérito, nos termos do artigo 487, I, do Código de Processo Civil.
A parte autora, em recurso (
evento 72, RECLNO1
), alega que a sentença não considerou todos os integrantes do grupo familiar e que atende ao requisito de miserabilidade.
2. OS CRITÉRIOS PARA O DEFERIMENTO DO BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DE PRESTAÇÃO CONTINUADA DEVEM SER AQUELES PREVISTOS EM LEI.
O art. 203, V, da CRFB/1988 estabelece o direito a benefício assistencial de prestação continuada, nos termos da lei.
Cabe ao Poder Legislativo quantificar os recursos financeiros disponíveis e, no exercício de opção política, escolher quais necessidades sociais serão priorizadas, mediante critérios uniformes para racionalizar a distribuição de renda.
O critério do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 para a aferição de miserabilidade para fins de recebimento do benefício assistencial de prestação continuada – renda
per capita
inferior a um quarto do salário mínimo – foi reafirmado sucessivamente pelas Leis 9.720/1998, 10.741/2003, 12.435/2011 e 12.470/2011. As Leis 13.982/2020 e 14.176/2021 promoveram sutil alteração, para admitir renda
per capita
inferior OU IGUAL a um quarto do salário mínimo.
Registre-se que a Lei 13.981/2020, publicada em 24/03/2020, pretendeu alterar o critério para renda
per capita
inferior a 1/2 salário mínimo. Ocorre que
(i)
o Ministro Gilmar Mendes do STF, em 03/04/2020, deferiu liminar na ADPF 662, para suspender a eficácia dessa alteração
"enquanto não sobrevier a implementação de todas as condições previstas no art. 195, § 5°, da CF, art. 113 do ADCT, bem como nos arts. 17 e 24 da LRF e ainda do art. 114 da LDO"
e
(ii)
a Lei 13.982/2020, publicada em 02/04/2020, resgatou, pelo menos até 31/12/2020, o parâmetro de renda
per capita
inferior ou igual a 1/4 do salário mínimo.
Em 22/04/2020, o Senado aprovou o PL 873/2020, que alteraria novamente o § 3º do art. 20 da LOAS para adotar o parâmetro de renda
per capita
inferior ou igual a 1/2 salário mínimo. Todavia, ao sancionar a Lei 13.998/2020, esse dispositivo recebeu veto do Presidente da República, com as seguintes razões:
"A propositura legislativa, ao manter de forma objetiva o valor do critério para a percepção do Benefício de Prestação Continuada (BPC) no valor de 1/2 salário mínimo, a partir de 1º de janeiro de 2021, extrapola a decisão liminar exarada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 6357 e institui obrigação ao Poder Executivo, além de criar despesa obrigatória ao Poder Público, sem que se tenha indicado a respectiva fonte de custeio, ausente ainda o demonstrativo do respectivo impacto orçamentário e financeiro no exercício corrente e nos dois subsequentes, violando assim, as regras do art. 113 do ADCT, bem como do arts. 16 e 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal e ainda do art. 116 da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2020 (Lei 13.898, de 2019). Ademais, o dispositivo contraria o interesse público ao não se permitir a determinação de critérios para a adequada focalização do benefício."
A MP 1.023, de 31/12/2000, convertida na Lei 14.176/2021, ratificou o parâmetro de 1/4 do salário mínimo no § 3º do art. 20 da Lei 9.742/1993 e inseriu nova regra no § 11-A, segundo o qual
"O regulamento de que trata o § 11 deste artigo poderá ampliar o limite de renda mensal familiar per capita previsto no § 3º deste artigo para até 1/2 (meio) salário-mínimo, observado o disposto no art. 20-B desta Lei."
3. O CRITÉRIO PREVISTO NO ART. 20, § 3º, DA LEI 8.742/1993 (RENDA
PER CAPITA
IGUAL OU INFERIOR A 1/4 DO SALÁRIO MÍNIMO) É ADEQUADO, COMO NORMA GERAL E ABSTRATA, PARA A PROTEÇÃO DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE MISERABILIDADE.
O parâmetro legal de miserabilidade não é um valor fixo em reais, e sim um percentual do salário mínimo (25%).
Como na última década o valor do salário mínimo tem sido majorado anualmente em patamar igual ou superior aos índices oficiais de inflação, o programa assistencial se torna progressivamente mais abrangente e inclusivo sempre que o reajuste do SM excede a inflação. Em 2006, o SM atingiu US$ 160.00 e nunca caiu aquém desse patamar; desde 2009, equivale a no mínimo US$ 200.00 (de 2016 a 2019, equivaleu a US$ 250.00).
O objetivo do benefício assistencial de prestação continuada é amparar pessoas em situação de miserabilidade (menos de US$ 1.25 por dia – US$ 37.50 por mês) e de pobreza extrema (menos de US$ 2.00 por dia – US$ 60.00 por mês), dando-lhes condições mínimas de alimentação e moradia, e não propiciar acréscimo de recursos financeiros a pessoas em situação de pobreza moderada ou classe média baixa.
Como o salário mínimo manteve-se igual ou acima de US$ 200.00 na última década, o critério legal de miserabilidade (1/4 do SM) tem assegurado pelo menos US$ 50.00 mensais por pessoa. Logo, dentro da realidade orçamentária brasileira, é uma parâmetro adequado para a finalidade específica de abarcar as pessoas em situação social e financeira extrema; as demais pessoas carentes são destinatárias de outros programas assistenciais.
4. A IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO SUFICIENTE AOS DESTINATÁRIOS DA NORMA DO ART. 203, V, DA CRFB/1988 AUTORIZA OS MAGISTRADOS, EM SITUAÇÕES DE FATO EXCEPCIONAIS, AFERIDAS EM LAUDO DE CONSTATAÇÃO DE CONDIÇÕES SÓCIO-ECONÔMICAS, A SE DISTANCIAREM UM POUCO DO CRITÉRIO LEGAL (STF, RE 567.985 E RE 580.963). ART. 20, §§ 11 E 11-A C/C ART. 20-B
DA LEI 8.742/1993.
O STF, no julgamento do RE 567.985, declarou a inconstitucionalidade da redação do § 3º do art. 20 da Lei 8.742/1993 sem nulidade da norma, por considerar que o uso isolado do critério “renda” é imperfeito e, em algumas situações específicas, a serem aferidas caso a caso, acarreta proteção insuficiente a alguns dos destinatários da norma do art. 203, V, da CRFB/1988. Consequentemente, o STF permitiu que, por outros critérios (que não exclusivamente a renda), os magistrados possam aferir se existe a alegada imprescindibilidade do benefício assistencial para a sobrevivência da parte que o requereu. Essa interpretação do STF foi incluída pela Lei 13.146/2015 no § 11 do art. 20 da Lei 8.742/1993:
“Para concessão do benefício de que trata o caput deste artigo, poderão ser utilizados outros elementos probatórios da condição de miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnerabilidade, conforme regulamento”
(o regulamento ainda não foi editado).
O mesmo fundamento de proibição de proteção insuficiente levou o STF, ao julgar o RE 580.963, a declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso, sem nulidade da norma, de modo a permitir a sua interpretação extensiva para abranger também os idosos que recebem aposentadoria ou pensão por morte, reservando-lhe um salário mínimo (a parte do benefício que exceder esse montante pode ser considerada renda dos demais familiares). O STJ, ao julgar, em março de 2015, o REsp 1.355.052, definiu, em interpretação extensiva do parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso, que, para fins de recebimento de benefício assistencial de prestação continuada, deve ser excluído do cálculo da renda da família o benefício de um salário mínimo que tenha sido concedido a idoso ou a pessoa com deficiência. Essa interpretação judicial foi incluída pela Lei 13.982/2020 no § 14 do art. 20 da Lei 8.742/1993:
"O benefício de prestação continuada ou o benefício previdenciário no valor de até 1 (um) salário-mínimo concedido a idoso acima de 65 (sessenta e cinco) anos de idade ou pessoa com deficiência não será computado, para fins de concessão do benefício de prestação continuada a outro idoso ou pessoa com deficiência da mesma família, no cálculo da renda a que se refere o § 3º deste artigo."
Regulamentando essa decisão, a Lei 14.176/2021, conversão da MP 1.023/2020, mediante introdução do §11-A no art. 20 da Lei 8.742/1993 (
"O regulamento de que trata o § 11 deste artigo poderá ampliar o limite de renda mensal familiar per capita previsto no § 3º deste artigo para até 1/2 (meio) salário-mínimo, observado o disposto no art. 20-B desta Lei."
) estabeleceu um "teto" para a flexibilização, segundo o caso concreto, do critério legal de aferição da miserabilidade: a renda igual ou superior a 1/2 salário mínimo necessariamente conduz à inexistência de direito ao benefício assistencial de prestação continuada. A flexibilização do critério de renda inferior ou igual a 1/4 do salário mínimo, por sua vez, deverá observar os critérios postos no art. 20-B da Lei 8.742/1993.
5. OS CRITÉRIOS DE DELIMITAÇÃO DOS BENEFICIÁRIOS DE OUTROS PROGRAMAS ASSISTENCIAIS NÃO PODEM SER EMPREGADOS EM SUBSTITUIÇÃO AO ART. 20, § 3º, DA LEI 8.742/1993.
Como cada benefício assistencial tem um foco específico, os critérios de delimitação dos beneficiários em função da renda familiar variam de um para outro.
O critério de renda
per capita
inferior a meio salário mínimo é próprio do Bolsa-Família (Lei 10.836/2004) e não pode, em hipótese alguma, ser estendido para o benefício de prestação continuada; tanto é assim que a Lei 12.435/2011, posterior à Lei do Bolsa-Família e ao Estatuto do Idoso, expressamente reafirmou o critério de renda
per capita
inferior a um quarto do salário mínimo.
É importante registrar que, no julgamento dos RE 567.985 e 580.963, nenhum dos Ministros do STF admitiu que o critério legal – renda
per capita
inferior a 1/4 do salário mínimo – cedesse vez ao critério de 1/2 salário mínimo; pelo contrário, a Corte Constitucional autorizou os juízes a flexibilizarem o critério legal (sem dele se distanciar significativamente) apenas como medida pontual, excepcional, à luz de elementos de fato que, no caso concreto, denunciem a miserabilidade (laudo detalhado que aponte moradia em condições sub-humanas, despesas extraordinárias e necessidades específicas), justamente porque renda não é um critério plenamente adequado. Como esclareceu o Ministro MARCO AURÉLIO, os juízes não estão autorizados a substituir o critério legal por outro parâmetro genérico baseado em renda (como, por exemplo, 1/2 salário mínimo): se a razão de decidir é a impossibilidade de aferir a miserabilidade única e exclusivamente a partir do critério de “renda”, a flexibilização da regra do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 depende de situação de fato alegada e comprovada pela parte autora.
6. DESPESAS ORDINÁRIAS DA FAMÍLIA NÃO ASSUMEM, EM REGRA, RELEVÂNCIA NA APURAÇÃO DA SUA SITUAÇÃO SOCIAL-ECONÔMICA. APENAS DESPESAS COM TRATAMENTOS DE SAÚDE, REMÉDIOS, FRALDAS, ALIMENTOS ESPECIAIS E SERVIÇOS NÃO FORNECIDOS PELO PODER PÚBLICO PODEM SER DEDUZIDAS DA RENDA FAMILIAR (ART. 20-B DA LEI 8.742/1993).
As despesas ordinárias (água, luz, gás, telefone, vestuário, alimentação e remédios fornecidos pelo SUS – que podem ser demandados judicialmente, em caso de omissão estatal), em regra, não podem ser descontadas para a apuração da renda familiar
per capita,
seja porque a lei não alude a “renda líquida”, seja porque o objetivo do tratamento assistencial aos idosos e pessoas com deficiência é justamente assegurar-lhes recursos financeiros para fazer frente a tais gastos.
Em casos excepcionais, despesas excessivas e justificáveis podem ser consideradas para a configuração da miserabilidade, como, por exemplo, quando a longa distância ou dificuldades geográficas impedem o acesso regular dos interessados a posto de saúde, ou quando o tratamento necessário não é sequer oferecido e integralmente custeado pela rede pública. O art. 20-B da Lei 8.742/1993, introduzido pela Lei 14.176/2021, conversão da MP 1.023/2020, admite a dedução, da renda familiar, de despesas com tratamentos de saúde, remédios, fraldas e alimentos especiais desde que não fornecidos pelo SUS ou com serviços não prestados pelo SUAS - o que reafirma que outras despesas não podem ser deduzidas.
7. O CRITÉRIO DE DELIMITAÇÃO DO NÚCLEO FAMILIAR PARA APURAÇÃO DA RENDA PREVISTO NO ART. 20, § 1º, DA LEI 8.742/1993 É CONSTITUCIONAL, COMO NORMA GERAL E ABSTRATA; ENTRETANTO, NÃO É APLICÁVEL AOS CASOS EM QUE HOUVER PARENTES COM RENDA SIGNIFICATIVA, MESMO QUE CASADOS E/OU RESIDINDO SOB OUTRO TETO, SITUAÇÃO NA QUAL PREVALECE O DEVER DE PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS ENTRE PARENTES.
A redação atual do art. 20, § 1º, da Lei 8.742/1993 (dada pela Lei 12.435/2011) delimita o núcleo familiar, para apuração da renda
per capita
, como o
“requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto"
.
Não há mais limite de idade para os filhos (e enteados) e irmãos, passando a ser relevante que sejam solteiros, e houve inclusão da madrasta e do padrasto. Não devem ser computados, para nenhum fim (nem para computar a renda nem para divisão da renda
per capita
), os tios, os irmãos casados (que já eram excluídos, por parte da jurisprudência, por constituírem núcleo familiar diverso) e os agregados.
Os irmãos, filhos e enteados que vivem em união estável não são solteiros e, ademais, constituíram núcleo familiar diverso (ainda que sob o mesmo teto).
A LOAS mitigou o princípio da atuação subsidiária do Estado e o dever de ajuda recíproca entre familiares, com a finalidade de excluir do cômputo de renda os parentes que constituíram novo núcleo familiar (parentes que vivem sob outro teto, filhos casados
etc
), pois, em regra, vinculá-los ao sustento do núcleo originário acarretaria ciclo de perpetuação da pobreza, subtraindo da nova célula os recursos financeiros imprescindíveis a garantir oportunidade de ascensão social das gerações futuras. Contudo, nos casos específicos em que houver um parente de renda significativa, mesmo que casado e sem residir sob o mesmo teto, a interpretação do art. 20, § 1º, da Lei 8.742/1993 conforme os arts. 226 a 230 da CRFB/1988 não autoriza a proteção excessiva, cedendo espaço ao dever de alimentos a que aludem os arts. 1.695 a 1.697 do Código Civil.
8.1. A RENDA FAMILIAR
PER CAPITA
IGUAL OU INFERIOR A 1/4 DO SALÁRIO MÍNIMO GERA PRESUNÇÃO RELATIVA DE QUE A FAMÍLIA É MISERÁVEL, EXTREMAMENTE POBRE OU EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE SOCIAL. SE O LAUDO SÓCIO-ECONÔMICO APONTAR EM SENTIDO CONTRÁRIO, O BPC NÃO SERÁ DEVIDO, POIS O ART. 203, V, DA CRFB/1988 NÃO AUTORIZA PROTEÇÃO EXCESSIVA QUE TRANSFIGURE BENEFÍCIO ASSISTENCIAL EM PROGRAMA DE RENDA MÍNIMA.
Os precedentes do STF e o § 11 do art. 20 da Lei 8.742/1993 deixam claro que os requisitos para o deferimento do benefício assistencial de prestação continuada à família do requerente idoso ou com deficiência são a miserabilidade ou pobreza extrema e a vulnerabilidade. A renda seria mero meio de prova do implemento desses requisitos.
Entretanto, assim como o meio de prova “renda familiar” não pode ser tomado de forma absoluta para evitar situações de proteção insuficiente (isto é, pode haver situações em que, mesmo com renda
per capita
superior a 1/4 do salário mínimo, estariam preenchidos os requisitos da miserabilidade e da vulnerabilidade), a renda
per capita
igual ou inferior a 1/4 do salário mínimo resulta em presunção
relativa
do implemento desse requisito para gozo do BPC:
PEDIDO NACIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. MISERABILIDADE. O CRITÉRIO OBJETIVO DE RENDA INFERIOR A ¼ DO SALÁRIO MÍNIMO NÃO EXCLUI A UTILIZAÇÃO DE OUTROS ELEMENTOS DE PROVA PARA AFERIÇÃO DA CONDIÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA DO REQUERENTE E DE SUA FAMÍLIA. INEXISTÊNCIA DE PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE MISERABILIDADE, NOS TERMOS DA MAIS RECENTE JURISPRUDÊNCIA DESTA TNU. APLICAÇÃO DA QUESTÃO DE ORDEM N.º 020 DESTE COLEGIADO. CONSECTÁRIOS LEGAIS. INCIDÊNCIA DO NOVO MANUAL DE CÁLCULOS DA JUSTIÇA FEDERAL. INCIDENTE FORMULADO PELO INSS CONHECIDO E PROVIDO EM PARTE. REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (art. 17, incisos I e II, do RITNU).
(TNU, PEDILEF 5000493-92.2014.4.04.7002, Relator Juiz Daniel Machado da Rocha, julgado em 14/04/2016)
Chega-se a este resultado mediante interpretação constitucionalmente adequada (a regra geral e abstrata é constitucional, mas, no caso concreto, incorre em inconstitucionalidade por desconformidade à finalidade do art. 203, V, da CRFB/1988), para evitar que a aplicação do texto literal da regra desnature o papel subsidiário e excepcional da Assistência Social e converta o BPC em programa de renda mínima para pessoas que, apesar de pobres, não são miseráveis, extremamente pobres nem especialmente vulneráveis.
8.2. QUANDO A RENDA FAMILIAR PER CAPITA É IGUAL OU INFERIOR A 1/4 DO SALÁRIO MÍNIMO POR APLICAÇÃO DO ART. 34, PARÁGRAFO ÚNICO, DO ESTATUTO DO IDOSO OU DO ART. 20, § 14, DA LEI 8.742/1993, HÁ FORTE PRESUNÇÃO (RELATIVA) DE DIREITO À PROTEÇÃO ASSISTENCIAL, QUE SÓ PODE SER ELIDIDA POR PROVA (LAUDO DE AVALIAÇÃO ECONÔMICO-SOCIAL, TESTEMUNHAS, REGISTRO DE BENS IMÓVEIS OU MÓVEIS
ETC
) QUE ATESTE PADRÃO DE VIDA MANIFESTAMENTE INCOMPATÍVEL COM A RENDA FAMILIAR DECLARADA.
O CÁLCULO DO ART. 34, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 10.741/2003 (ATUAL ART. 20, § 14, DA LEI 8.742/1993) DETERMINA QUE SE TOME A RENDA FAMILIAR TOTAL (DEDUZIDA A RENDA DE CADA IDOSO, ATÉ O LIMITE DE UM SALÁRIO MÍNIMO POR IDOSO), DIVIDIDA PELO NÚMERO DE INTEGRANTES NÃO IDOSOS. A PARTE DO BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO PERCEBIDO POR IDOSO QUE EXCEDER UM SALÁRIO MÍNIMO SERÁ COMPUTADA NA RENDA FAMILIAR.
O texto do art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) estabelece que
"O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas."
O STF, por proibição de proteção insuficiente, no julgamento do RE 580.963, declarou a inconstitucionalidade sem nulidade da norma, de modo a permitir a sua interpretação extensiva para abranger também os idosos que recebem aposentadoria ou pensão por morte, reservando-lhe um salário mínimo.
A TRU da 2ª Região, por ocasião do julgamento em 24/05/2018 do Pedido de Uniformização nº 0152075-11.2014.4.02.5151/01, relator juiz Iorio Siqueira D’Alessandri Forti, ponderou:
- Em média, idosos e pessoas com deficiência têm maiores despesas (principalmente com tratamento de saúde). Considerações sobre o aumento da expectativa de vida e sobre a qualidade de vida e das condições laborativas das pessoas idosas não devem ser feitas pelo Judiciário, e sim pelo Legislativo, no sentido de avaliar a conveniência de diminuir a abrangência da regra do art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003 para as pessoas com 70 anos ou mais.
- O Estatuto do Idoso se afastou da questão da simples aferição de miserabilidade, para incentivar que as famílias acolham os seus idosos, para que para que a renda do idoso não impeça o deferimento de BPC a outro integrante idoso ou com deficiência (já que o custo social de amparar os idosos rejeitados por suas famílias seria muito mais elevado).
- A interpretação restritiva da regra do art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003, visando à redução da sua abrangência para evitar “proteção assistencial excessiva a famílias não miseráveis” caracterizaria controle de constitucionalidade à luz do art. 203, V, da Lei 10.741/2003 e a interferência do controle do Judiciário sobre a discricionariedade do legislador deve ser maior quando se destina a assegurar a “proteção adequada” (proteção não insuficiente) e mais restritiva quando se destina a evitar a “proteção assistencial excessiva”.
- A regra do art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003 concretiza de forma adequada e não excessiva o mandamento do art. 203, V, da CRFB/1988. Os filhos têm o dever de sustentar os pais (art. 229 da CRFB/1988) e, na falta destes, os idosos devem ser sustentados pelo Estado. Não cabe aos idosos de baixa renda o dever de sustentar a família (art. 203, V, da CRFB/1988).
Diante destas considerações, a TRU da 2ª Região firmou a seguinte tese:
“Para o deferimento do benefício assistencial de prestação continuada, o cálculo para a aferição do preenchimento do requisito de renda deve ser feito mediante conjugação necessária do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 com o art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003: toma-se a renda familiar total (deduzida a renda de cada idoso, até o limite de um salário mínimo por idoso), – dividida pelo número de integrantes não idosos. A parte do benefício previdenciário percebido por idoso que exceder um salário mínimo será considerada na renda familiar.”
Na mesma ocasião, a TRU concluiu que, nos casos em que incide a regra do art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003 (ou do art. 20, § 14, da LOAS), a renda
per capita
só é inferior a 1/4 do salário mínimo por uma ficção jurídica estabelecida pelo legislador (porque o salário mínimo inteiro do idoso não é computado). Logo, seria um contrassenso se a regra permitisse subtrair o salário mínimo do cálculo da renda
per capita
e, em seguida, o juiz pudesse julgar improcedente o pedido de BPC assistencial porque a moradia e as posses da família foram adquiridas com uma renda familiar que é integrada de fato por esse salário mínimo. Nesses casos, portanto, há forte presunção (ainda que continue a ser relativa) de direito à proteção assistencial, que só pode ser elidida por prova (laudo de avaliação econômico-social, testemunhas, registro de bens imóveis ou móveis
etc
) que ateste padrão de vida manifestamente incompatível com a renda familiar declarada.
Diante disto, convém frisar que ao juiz impõe-se um papel ativo para aferir não só a renda da família como também todos os demais elementos que possam confirmar ou infirmar a alegada miserabilidade/vulnerabilidade, o que leva à adoção do entendimento consagrado pela Súmula 80/TNU:
“Nas ações em que se postula benefício assistencial, é necessária a comprovação das condições socioeconômicas do autor por laudo de assistente social, por auto de constatação lavrado por oficial de justiça ou, sendo inviabilizados os referidos meios, por prova testemunhal.”
A determinação de elaboração do laudo de verificação econômico-social (análise da dimensão o patrimônio, inclusive do próprio imóvel onde a família reside, das condições de conservação da moradia e da disponibilidade ou não de rede de água, esgoto, eletricidade e coleta de lixo, da existência ou não de parentes com renda significativa, mesmo que em outra residência, despesas fixas com tratamento de saúde não oferecido pelo SUS
etc
) é obrigatória, sempre que possível.
8.3. ESTA 5ª TR-RJ RECONHECE (RECURSO 5001833-25.2021.4.02.5113/RJ, J. EM 23/12/2023, RELATOR JF IORIO D'ALESSANDRI; RECURSO 5069290-47.2020.4.02.5101/RJ, J. EM 21/06/2021, RELATOR JF JOÃO MARCELO OLIVEIRA ROCHA) A POSSIBILIDADE DE RENÚNCIA A UM BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO DE VALOR INFERIOR A UM SALÁRIO MÍNIMO (SEJA COTA DE PENSÃO ALIMENTÍCIA, SEJA AUXÍLIO-ACIDENTE, CONFORME TEMA 253/TNU), MEDIANTE CANCELAMENTO, QUANDO SEU VALOR FOR OBSTÁCULO À OBTENÇÃO DE BPC. É QUE O BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO OBTIDO POR CUMPRIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS NÃO PODE SER UM FARDO; SE O RECEBIMENTO DESSE BENEFÍCIO CAUSA PREJUÍZO AO SEU TITULAR, ELE TEM O INTERESSE DE CANCELÁ-LO E A POSSIBILIDADE JURÍDICA DE FAZÊ-LO (DIREITO À ESCOLHA DO MELHOR BENEFÍCIO DA SEGURIDADE SOCIAL).
CONTUDO, NO JULGAMENTO DO PROCESSO Nº 5000165-30.2023.4.02.5119 FIXOU O ENTENDIMENTO DE QUE NÃO SE ADMITE A REUNÚNCIA À PENSÃO ALIMENTÍCIA, PORQUE É OBRIGAÇÃO DECORRENTE DO DIREITO DE FAMÍLIA:
BPC EM FAVOR DE PESSOA IDOSA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA, PORQUE A AUTORA RECEBE PENSÃO ALIMENTÍCIA DE R$ 468,36 DO EX-MARIDO (0,35 SALÁRIO MÍNIMO).
A IRMÃ DA AUTORA TEM 89 ANOS E RECEBE UM SALÁRIO MÍNIMO (BPC) E O IRMÃO TEM 70 ANOS E RECEBE UM SALÁRIO MÍNIMO (BPC); CADA UM MORA EM SEU PRÓPRIO IMÓVEL, UM CONTÍGUO AO OUTRO, NO MESMO TERRENO. NA FORMA DO ART. 20, § 14, DA LEI 8.742/1991, ESSES IRMÃOS IDOSOS COM RENDA DE UM SALÁRIO MÍNIMO ESTÃO DISPENSADOS DE PRESTAR AUXÍLIO FINANCEIRO À AUTORA.
ESTA 5ª TR-RJ RECONHECE (RECURSO 5001833-25.2021.4.02.5113/RJ, J. EM 23/12/2023, RELATOR JF IORIO D'ALESSANDRI; RECURSO 5069290-47.2020.4.02.5101/RJ, J. EM 21/06/2021, RELATOR JF JOÃO MARCELO OLIVEIRA ROCHA) A POSSIBILIDADE DE RENÚNCIA A UM BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO DE VALOR INFERIOR A UM SALÁRIO MÍNIMO (SEJA COTA DE PENSÃO POR MORTE, SEJA AUXÍLIO-ACIDENTE, CONFORME TEMA 253/TNU), MEDIANTE CANCELAMENTO, QUANDO SEU VALOR FOR OBSTÁCULO À OBTENÇÃO DE BPC (DIREITO À ESCOLHA DO MELHOR BENEFÍCIO DA SEGURIDADE SOCIAL).
A PENSÃO ALIMENTÍCIA RECEBIDA PELA AUTORA DECORRE DE OBRIGAÇÃO FUNDADA NO DIREITO DE FAMÍLIA, ISTO É, NÃO SE TRATA DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. NÃO HÁ COMO ADMITIR A RENÚNCIA, POR PARTE DA AUTORA, À PENSÃO ALIMENTÍCIA PARA HABILITAR-SE AO RECEBIMENTO DO BPC, POIS A ASSISTÊNCIA SOCIAL É SUBSIDIÁRIA RELAÇÃO AOS MEIOS DE SUSTENTO FAMILIAR.
O PARÂMETRO LEGAL PARA A OBTENÇÃO DO BPC CONTINUA SENDO RENDA
PER CAPITA
IGUAL OU INFERIOR A 1/4 DO SALÁRIO MÍNIMO. NO CASO CONCRETO, A RENDA DECORRENTE DA PENSÃO ALIMENTÍCIA É DE 0,35 (POUCO MAIS DE 1/3) DO SALÁRIO MÍNIMO. NÃO HÁ RAZÃO PARA FLEXIBILIZAR O REQUISITO LEGAL ALÉM DESSE PARÂMETRO, VISTO QUE, COMO CONSTA DA AVALIAÇÃO SOCIAL, A AUTORA DECLAROU QUE O IMÓVEL EM QUE RESIDE É PRÓPRIO (NÃO PAGA ALUGUEL), NÃO TEM PROBLEMAS DE SAÚDE GRAVES, NÃO PRECISA DE REMÉDIOS NÃO FORNECIDOS PELO SUS NEM DE CUIDADOS ESPECIAIS.
RECURSO INTERPOSTO PELA AUTORA DESPROVIDO.
(Processo nº 5000165-30.2023.4.02.5119, de relatoria do Juiz Iorio Siqueira D'Alessandri Forti, julgado em 28/03/2025).
9. DA IMPRESCINDIBILIDADE DA INSCRIÇÃO NO CADÚNICO A PARTIR DA MP 871/2019
Desde 1998, o § 8º do art. 20 da Lei 8.742/1993 prevê que "A renda familiar mensal a que se refere o § 3º deverá ser declarada pelo requerente ou seu representante legal, sujeitando-se aos demais procedimentos previstos no regulamento para o deferimento do pedido".
Em atenção à delegação feita pelo § 8º do art. 20 da LOAS ao regulamento, o Decreto 8.805/2016 passou a exigir inscrição no CadÚnico. Contudo, como o requisito não constava da lei, a jurisprudência considera que a prova da miserabilidade poderia ser feita por outro meio.
A MP 871/2019 e a Lei 13.846/2019 incluíram a exigência de inscrição no cadastro no § 12 do art. 20 da Lei 8.742/1993. Por isso, de 18/01/2019 em diante, a regularidade cadastral passou a ser requisito essencial para a concessão e manutenção do BPC.
Acrescente-se que o art. 7º do Decreto 6.135/2007 estabelece que “as informações constantes do CadÚnico terão validade de dois anos, contados a partir da data da última atualização, sendo necessária, após este período, a sua atualização ou revalidação, na forma disciplinada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome”. Noutros termos, a atualização em intervalos não superiores a cada dois anos é imprescindível para a continuidade do pagamento do BPC pelo INSS.
10. O CASO CONCRETO.
10.1.1. O art. 20, § 2º, da Lei 8.742/1993, com redação dada pela Lei 13.146/2015 (que não é significativamente divergente da redação que já constava desde a Lei 12.470/2011), considera
“pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”
. O § 10 do mesmo artigo dispõe que “
Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2º deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos”
.
Basta um único fator de impedimento de longo prazo que – somado aos fatores idade, grau de instrução, local de residência – constitua óbice significativo à vida independente ou à inserção no mercado de trabalho, em comparação a outras pessoas da mesma localidade, mesma faixa etária, e com o mesmo grau de instrução. Não se exige, portanto, invalidez (incapacidade total e permanente), bastando que haja restrição significativa da capacidade por longo prazo.
10.1.2. O transtorno do espectro autista pode ser de nível 1 (autismo leve), 2 (autismo moderado) ou 3 (autismo severo) - e a Lei Orgânica de Assistência Social leva em conta (por exemplo, art. 20-A) o grau da deficiência (quanto mais grave, mais a pessoa demanda recursos para superar as limitações e mais é possível flexibilizar o requisito de renda).
O autista de nível 1 não tem necessariamente deficiência para fins de recebimento do benefício de prestação continuada, uma vez que as dificuldades que a doença impõe nem sempre são limitantes para a interação social.
10.1.3. No caso dos autos (
evento 52, LAUDO1
), o perito afirmou que o autor possui autismo infantil e epilepsia, podendo haver atraso cognitivo e redução de habilidades sociais e adaptativas, com impacto na maturidade e na escolaridade. Ainda, o perito afirmou que a patologia causa impedimentos de longo prazo, superiores a dois anos, situação que preenche o requisito do art. 20, § 2º, da Lei 8.742/1993.
10.2. Consta da verificação social (
evento 22, CERT1
) que a família é integrada pelo autor (11 anos, sem renda), seus irmãos (7, 10 e 13 anos, sem renda), sua mãe (31 anos, renda de R$ 908,00, decorrente do Bolsa Família) e seu padrasto (33 anos, renda de R$ 1.462,09 na DER).
A família reside em imóvel alugado pelo valor de R$ 1.300,00. No entanto, foi informado que a madrinha do autor arca com o valor de R$ 900,00. A casa e a mobília estão em razoável estado de conservação.
Em consulta ao SAT/EXTERNO/INSS, verifica-se que o padrasto do autor, JORGE LUIZ DIAS ESTEVES, na DER (21/10/2020), tinha uma renda de R$ 1.462,09. Até novembro de 2021, estava no mesmo emprego, sendo a sua última remuneração no valor de R$ 1.308,30.
Permaneceu desempregado de dezembro de 2021 a fevereiro de 2022. Assim, da DER até fevereiro de 2023, com exceção do mês de novembro de 2021, a renda
per capita
do grupo familiar foi de, aproximadamente, R$ 243,68, inferior ao parâmetro legal de 1/4 do salário-mínimo.
Em novembro de 2021, a mãe do autor recebeu o valor de R$ 1.003,03, o que fez com que a renda
per capita
do grupo familiar aumentasse para R$ 385,22, superior ao parâmetro legal.
De março de 2023 a outubro de 2024, com a única renda sendo proveniente do trabalho do padrasto do autor, a renda
per capita
manteve-se abaixo do parâmetro legal.
De novembro de 2024 a junho de 2025, a mãe do autor passou a auferir renda, de modo que a renda
per capita
foi superior ao parâmetro legal nos meses de novembro de 2024 a maio de 2025.
A partir de junho de 2025, com o desemprego do padrasto e da mãe do autor, a única renda passou a ser proveniente do Bolsa Família, no valor de R$ 908,00.
Até 24/06/2025, o valor proveniente do Bolsa Família não era considerado no cômputo da renda familiar. Em 25/06/2025, o Decreto 12.534/2025 alterou o Regulamento do Benefício de Prestação Continuada, disposto no anexo ao Decreto 6.214, de 26 de setembro de 2007, de modo que, a partir de 26/06/2025 (data de publicação do decreto), a aferição da renda familiar para fins de percepção do BPC deve considerar os valores oriundos de programas sociais de transferência de renda, inclusive o Bolsa Família.
Com o cômputo da renda proveniente do Bolsa família, a renda
per capita
passa a ser de R$ 151,33, inferior ao parâmetro legal de 1/4 do salário-mínimo.
Nesse contexto, configura-se quadro de miserabilidade, o que caracteriza o alegado direito ao recebimento do benefício assistencial, entre a DER e outubro de 2024 (com exceção do mês de novembro de 2012) e a partir de junho de 2025.
11. Decido DAR PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA PARTE AUTORA para condenar o INSS a implantar o BPC assistencial em favor dela no prazo de vinte dias úteis (deferindo-se, para tanto, tutela antecipada) e a pagar, após o trânsito em julgado, os atrasados devidos desde a DER até o mês de outubro de 2024 (com exceção do mês de novembro de 2021) e aqueles devidos a partir de junho de 2025, com correção monetária pelo IPCA-e (RE 870.947) e juros de mora, desde a citação, na forma do art. 1º-F da Lei 9.494/1997. Sem condenação em honorários, porque provido o recurso (art. 55 da Lei 9.099/1995).
Intimem-se as partes. Após o trânsito em julgado para o INSS, intime-se a União para tomar ciência desta decisão judicial e para que possa avaliar, na via administrativa, se o Bolsa Família continua sendo devido à família da parte autora de 26/06/2025 em diante. Após, remetam-se os autos ao juízo de origem.
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