Processo nº 1006062-83.2020.4.01.4200
ID: 308833824
Tribunal: TRF1
Órgão: Gab. 16 - DESEMBARGADOR FEDERAL FLAVIO JARDIM
Classe: APELAçãO CíVEL
Nº Processo: 1006062-83.2020.4.01.4200
Data de Disponibilização:
26/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
FRANCISCO DAS CHAGAS BATISTA
OAB/RR XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1006062-83.2020.4.01.4200 PROCESSO REFERÊNCIA: 1006062-83.2020.4.01.4200 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) POLO ATIVO: UNIVERSIDADE FEDERAL…
JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1006062-83.2020.4.01.4200 PROCESSO REFERÊNCIA: 1006062-83.2020.4.01.4200 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) POLO ATIVO: UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA POLO PASSIVO:ALEXANDRE SOUZA DOS SANTOS REPRESENTANTES POLO PASSIVO: FRANCISCO DAS CHAGAS BATISTA - RR114-A RELATOR(A):FLAVIO JAIME DE MORAES JARDIM PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 1006062-83.2020.4.01.4200 RELATÓRIO Apelação interposta pela Universidade Federal de Roraima - UFRR, contra sentença proferida pelo Juízo da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária de Roraima, nos autos da ação n. 1006062-83.2020.4.01.4200, ajuizada por Alexandre Souza dos Santos, pela qual foi julgado procedente o pedido para anular o ato administrativo que cancelou a matrícula do autor no curso de medicina da universidade. Transcrevo o relatório da sentença: Trata-se de ação ordinária, com pedido de tutela de urgência, proposta por ALEXANDRE SOUZA DOS SANTOS em face da UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA – UFRR, objetivando a anulação do ato administrativo de cancelamento da sua matrícula no Curso de Medicina da Instituição Requerida. Narra a inicial: “O ora Requerente, após aproximadamente 4 (quatro) longos anos lutando para realizar seu sonho ingressar no disputadíssimo curso de Medicina, obteve êxito em ser aprovada no Vestibular promovido pela Requerida no final do ano de 2017 (Edital – DOC. 03), tendo iniciado sua carreira acadêmica no primeiro semestre letivo do ano de 2018. Destaque-se que o Autor, por suas características pessoais, de seus pais, irmãos e avós, autodeclarou-se pardo, tendo, à época do vestibular obtido 101,50 pontos, pontuação que garantiria sua aprovação até mesmo se não fosse autodeclarado pardo, inclusive, figurando nas primeiras cadeiras da cota destinada a alunos de baixa renda (renda inferior a 1,5 salários mínimos) – DOC. 04. Ora, regularmente aprovado no certame, o Requerente vinha desempenhando sua faina estudantil desde então, atividade marcada não só pelo comparecimento às aulas e aprovações nas matérias, mas também pela realização de projetos científicos de extrema relevância social e acadêmica, atuando inclusive como Coordenador local do Eixo Saúde Reprodutiva e Sexual, incluindo HIV e AIDS em educação médica, estando sua carreira acadêmica melhor explanada no item “c” do Tópico II desta exordial. Ocorre que, em vias de completar o terceiro ano da faculdade de medicina (metade do curso), para absoluta surpresa e assombro do Requerente, na tarde do dia 18 de novembro de 2.020 (quarta-feira), foi lhe enviado e-mail pela Instituição Requerida, no qual era comunicado o cancelamento de sua matrícula. Simples assim. O “processo administrativo” deflagrado no âmbito da UFRR após uma suposta denúncia anônima, como se vê, desenvolveu-se de forma incrivelmente desinteressada com a ampla defesa e o contraditório, constituindo um genuíno Tribunal Inquisitorial a posteriori (criado em 20201) e jamais previsto no Edital do Vestibular ao qual se submeteu a Requerente, e que passou a ter a palavra final sobre quem seria ou não pardo. Numa clara mudança das regras do jogo (saltando do critério da autodeclaração para o da heteroidentificação, olvidando de toda a subjetividade que orbita à identificação racial e ignorando a boa-fé da declaração do Requerente, de uma hora para outra, a Instituição de Ensino que passara 3 (três) anos num estado de total inércia, resolveu na média de 40 (quarenta) dias cancelar a matrícula do discente, sem minimamente lhe oportunizar, efetivamente, uma chance de se defender das infamantes acusações de fraude. (...)”. Indeferida a tutela de urgência e deferido o pedido de justiça gratuita (Id 398187934). Inconformado, o autor interpôs Agravo de Instrumento no qual foi indeferido o pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal (Id 438315393). A UFRR apresentou contestação onde defende a legalidade da comissão de heteroidentificação e sustenta a possibilidade de a Universidade, dentro da estrita legalidade e da sua autonomia, examinar a veracidade da declaração étnica feita por qualquer aluno. Intimado para especificação de provas, o autor requereu a juntada de decisões judiciais sobre casos idênticos, reconhecendo a ilegalidade perpetrada da requerida (Id 489178906). A UFRR não especificou provas. A parte autora requereu a reconsideração do pedido liminar (Id 493917864). Os autos vieram conclusos para sentença. É o relatório. A ação ordinária foi julgada procedente, como se depreende do dispositivo: Diante do exposto, julgo procedente o pedido para anular o ato administrativo que cancelou a matrícula de ALEXANDRE SOUZA DOS SANTOS no Curso de Medicina da UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA. Sob os mesmos fundamentos, concedo a antecipação da tutela para determinar a rematrícula do autor no aludido Curso de Medicina e possibilitar-lhe reposição das avaliações perdidas e abonar as faltas do período em que esteve afastado em razão do ato ora-anulado. Sem custas, face ao deferimento da justiça gratuita. Condeno a UFRR ao pagamento de honorários advocatícios que fixo em R$ 2.000,00 (dois mil reais). P.R.I. Boa Vista, 6 de abril de 2021. Helder Girão Barreto Juiz Federal A UFRR interpôs apelação, na qual requer a reforma da sentença impugnada, alegando, em síntese, (i) constitucionalidade do procedimento de heteroidentificação; (ii) o dever/poder da Administração anular seus próprios atos. As contrarrazões foram apresentadas aos autos. O Ministério Público Federal se manifestou pelo desprovimento da apelação (ID 132178532) Deferido pedido de efeito suspensivo à apelação (ID 135904531). Interposto agravo interno (ID 142473040) É o relatório. PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 1006062-83.2020.4.01.4200 VOTO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL FLÁVIO JARDIM - Relator: I. O recurso preenche os requisitos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade II. A sentença, no que interessa: [...] A Lei nº 12.711/2012 disciplina a reserva de vagas nos vestibulares promovidos pelas instituições federais de ensino superior, que assim dispõe: “Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita. [...] Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.” Verifico que o Edital que regulamentou o processo seletivo no qual o autor foi aprovado é o de nº 029/CPV-2017, conforme se depreende do procedimento administrativo acostado aos autos pelo impetrante. Em reação à reserva de vagas, o referido Edital estabeleceu o seguinte: “2.2 - Para os fins do presente Edital, os conceitos constantes no quadro acima devem ser entendidos da seguinte forma: 2.2.1 - (B) – Bacharelado (L) – Licenciatura 2.2.2 - Pessoa com deficiência (PCD): aquela que se enquadre na definição prevista no Art. 1º da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, conforme o Decreto Legislativo n.º 186, de 09 de julho de 2008. 2.2.3 - Ampla concorrência: vagas destinadas àqueles que não apresentam os requisitos legais específicos e/ou que não desejam participar da reserva legal de vagas. 2.2.4 - Escola pública: instituição de ensino criada ou incorporada, mantida e administrada pelo Poder Público, nos termos do inciso I do art. 19 da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996. 2.2.5 - Família: unidade nuclear composta por uma ou mais pessoas, eventualmente ampliada por outras pessoas que contribuam para o rendimento ou tenham suas despesas atendidas por aquela unidade familiar, todas moradoras em um mesmo domicílio. 2.2.6 - Renda familiar bruta mensal per capita: a razão entre a renda familiar bruta mensal e o total de pessoas da família, residentes no mesmo domicílio. (...) 2.2.9 Autodeclarado: no sistema de cotas, a autodeclaração significa que uma pessoa se considera e se declara como sendo preto, pardo ou indígena, sem necessitar de nenhum documento de comprovação.” Como se vê, tanto a lei quanto o edital supracitado estabelecem que os candidatos podem concorrer às vagas da cota racial, desde que se autodeclarem pretos, pardos ou indígenas no ato da inscrição. Apesar de legítima a utilização de critérios subsidiários de heteroidentificação (ADC 41/STF), não houve previsão editalícia para submissão de todos os candidatos cotistas à avaliação de suas características fenotípicas por comissão designada para averiguar a veracidade da autodeclaração do candidato, com base em critérios de cor e raça definidos pelo IBGE, tendo sido privilegiada, no caso, a autodeclaração. Nada obstante, verifico que no Despacho nº 059/2020 – PROEG consta o seguinte: “À Comissão Institucional de Heteroidentificação. Encaminha-se o presente feito às seguintes providencias com vistas à apuração da denúncia erigida à aluna ALEXANDRE SOUZA DOS SANTOS, do curso de Medicina. Compulsam-se dos autos supostos fatos que, se confirmados, evidenciam fraude ao processo seletivo de vestibular. A denúncia contra a aluno aponta sobre esta não se afigurar como autodeclarada das vagas para preto, pardo ou indígena, logo não fazendo jus a concorrer às vagas destinadas a essa ação afirmativa. O instrumento convocatório regente do processo de ingresso da denunciada à UFRR e o Edital N.° 029/2017-CPV. E neste edital se clausula em relação a ação administrativa, em caso de comprovada má-fé ou irregularidade, in verbis. “2.2.9.1 – Em caso de declaração falsa ou manifestamente incongruente com os critérios de cor e reaça definidos pelo IBGE, poderá a UFRR proceder a verificação de sua veracidade. (...) “14.3 - O candidato poderá ser excluído do processo seletivo de que trata este Edital ou do curso, a qualquer momento, caso seja comprovada falsidade ideológica, informação ou documentação falsa ou a utilização de qualquer meio ilícito neste processo seletivo”. No caso do subitem 14.3, entende esta Assessoria pela possibilidade de nulidade, ab initio, do processo seletivo, portanto, legal a sua retroação. No mesmo sentido e a celebre doutrina do direito administrativo, José dos Santos Carvalho Filho, compartilhado por Hely Lopes Meirelles, entende que: [...] Ademais, é o que desposa a lei 9.784/199 em seu artigo 53. “A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revoga-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos”. E no que atine ao prazo de anulação, interpreta-se a aplicação do comando estabelecido no art. 54 do diploma supramencionado. “Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”. E, por conseguinte, reforça o entendimento sumulado pelo STF, no verbete nº. 473. “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”. Orienta-se que o referido aluno seja submetida à comissão, consoante o devido legal procedimento de heteroidentificação, resguardando-lhe o direito à ampla defesa, sob o escopo de cintilar os fatos apresentados e satisfazer o interesse público, no tocante ao dever de agir. Por esse exposto, orienta-se pela comunicação do referido aluno e do agendamento, à breve vista, do procedimento de heteroidentificação. Em caso de reprovação, e já vencidos todos os recursos e plenamente resguardado o direito à ampla defesa, é a orientação para que se proceda à remessa dos autos à Procuradoria Especializada junto à UFRR, para emissão de Parecer sobre desligamento da discente e ressarcimento ao erário. [...]” Considerando que o edital do processo seletivo em questão previu a autodeclaração como único requisito para participação na condição étnica, reputo ilegal e arbitrário o trâmite adotado no procedimento administrativo em questão, pois consubstancia ofensa ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório. Apesar de constar a cláusula 2.2.9.1 que “em caso de declaração falsa ou manifestadamente incongruente com os critérios de cor e raça definidos pelo IBGE, poderá a UFRR proceder a verificação de sua veracidade”, o Edital não estabeleceu objetivamente os critérios e métodos de heteroidentificação que viriam a ser utilizados posteriormente pela comissão avaliadora, tampouco permitiu a aferição de falsidade da auto declaração. Não pode a Administração inovar, criando uma Comissão de Heteroidentificação e estabelecendo critérios anos depois, sem que eles (inovação e critérios) tenham sido objetivamente fixados no Edital. Não que se há falar em prerrogativa da Administração de revisar o ato com efeitos retroativos, na medida em que tal solução atentaria contra o princípio da segurança jurídica, afetando atos jurídicos já perfectibilizados e constituídos em face de critérios até então aceitos pela instituição de ensino superior (TRF 1, APELAÇÃO/REMESSA NECESSÁRIA Nº 500032807.2017.4.04.7110/RS - RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL CÂNDIDO ALFREDO SILVA LEAL JUNIOR). [...] Nesse diapasão, vislumbro a plausibilidade e probabilidade do direito invocado, ante a violação ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório. III – DISPOSITIVO Diante do exposto, julgo procedente o pedido para anular o ato administrativo que cancelou a matrícula de ALEXANDRE SOUZA DOS SANTOS no Curso de Medicina da UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA. Sob os mesmos fundamentos, concedo a antecipação da tutela para determinar a rematrícula do autor no aludido Curso de Medicina e possibilitar-lhe reposição das avaliações perdidas e abonar as faltas do período em que esteve afastado em razão do ato ora-anulado. Sem custas, face ao deferimento da justiça gratuita. Condeno a UFRR ao pagamento de honorários advocatícios que fixo em R$ 2.000,00 (dois mil reais). P.R.I. Boa Vista, 6 de abril de 2021. Helder Girão Barreto Juiz Federal III. A questão devolvida ao exame deste Tribunal versa sobre a legalidade da submissão de discente de Instituição Superior de Ensino a procedimento de heteroidentificação, não previsto em edital, para validar sua autodeclaração étnico racial, com objetivo de coibir fraudes ao sistema de cotas. Na espécie, o autor ingressou no curso de medicina da UFRR no ano de 2018, após aprovação no processo seletivo regido EDITAL N° 029/17 – CPV – Consolidado, que não previa aferição da autodeclaração dos candidatos como preto/pardo por comissão de heteroidentificação. Posteriormente, ao final do ano 2020, recebeu notificação de cancelamento da sua matrícula devido a processo administrativo instaurado para apurar denúncia anônima de fraude ao sistema de cotas no âmbito da universidade. Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADC 41, ao declarar a constitucionalidade da Lei n. 12.990/2014, decidiu ser “legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa “(STF, ADC 41, Rel. Ministro Luis Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe de 07/05/2018). No julgamento da ADPF 186, a Suprema Corte já havia igualmente se manifestado pela constitucionalidade dos programas de ações afirmativas que estabelecem um sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial (cotas) no processo de seleção para ingresso em instituição pública de ensino superior, decidindo que tanto a autoidentificação, quanto a heteroidentificação, ou ambos os sistemas de seleção combinados, são “plenamente aceitáveis do ponto de vista constitucional” (ADPF 186, Plenário, relator Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, julgado em 26/04/2012). Seguindo essa orientação, a jurisprudência consolidou-se no sentido da legitimidade do uso de critérios supletivos de identificação, a exemplo do procedimento de heteroidentificação para analisar o fenótipo do candidato. Nessa toada, embora seja inquestionável a possibilidade de uso de critérios de heteroidentificação, com a clara finalidade de evitar fraudes ou prejuízos ao sistema de cotas, é evidente que essa verificação suplementar à autodeclaração não pode ser realizada de forma indiscriminada, sem observar os princípios que regem as relações com a Administração, como, no caso de certames públicos, os da vinculação ao edital e da dignidade da pessoa humana. Assim, no âmbito das seleções públicas para ingresso no ensino superior, a realização do processo de heteroidentificação fenotípica deve estar condicionada à prévia previsão no edital, o qual, ao estabelecer as condições de ingresso na instituição, deve incluir esse critério de avaliação entre elas. Esse, contudo, não é o caso dos autos. O edital do processo seletivo da UFRR em análise (id. 123927029), de fato, não dispôs quanto à necessidade de verificação ou validação da autodeclaração dos candidatos como pessoas negras/pardas. Neste ponto, transcrevo trecho da sentença a fim de melhor elucidar os fatos: “Apesar de constar a cláusula 2.2.9.1 que “em caso de declaração falsa ou manifestadamente incongruente com os critérios de cor e raça definidos pelo IBGE, poderá a UFRR proceder a verificação de sua veracidade”, o Edital não estabeleceu objetivamente os critérios e métodos de heteroidentificação que viriam a ser utilizados posteriormente pela comissão avaliadora, tampouco permitiu a aferição de falsidade da auto declaração. Não pode a Administração inovar, criando uma Comissão de Heteroidentificação e estabelecendo critérios anos depois, sem que eles (inovação e critérios) tenham sido objetivamente fixados no Edital”. Desse modo, diante da ausência de regramento normativo prevendo a realização de verificação complementar à autodeclaração dos candidatos, bem como da inexistência de critérios objetivos previamente estabelecidos para fundamentar tal procedimento, a submissão do candidato à averiguação de heteroidentificação após o encerramento do processo seletivo configura ilegalidade, comprometendo eventual decisão administrativa dela decorrente, como o cancelamento da matrícula do estudante. Ademais, a conduta administrativa, além de não resguardar a segurança jurídica, por ter introduzido no processo seletivo uma fase de confirmação de autodeclaração não prevista no edital, revela-se desprovida de razoabilidade, pois causaria prejuízo injustificado ao estudante que, na ocasião da instauração do processo administrativo, já cursava o 5º semestre. Corroborando esse entendimento, confiram-se os julgados deste Tribunal, em casos semelhantes: APELAÇÃO. ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. COTAS RACIAIS. VAGAS DESTINADAS A CANDIDATOS PRETOS E PARDOS. INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO PARA VERIFICAÇÃO DA AUTODECLARAÇÃO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO EDITALÍCIA. PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO AO EDITAL. SEGURANÇA JURÍDICA. APELAÇÃO PROVIDA. 1. Após longo período matriculado, o apelante foi convocado, por meio de Edital publicado em 12/09/2022, para a realização de procedimento de heteroidentificação, cujo ato somente veio a se perfectibilizar em 20/03/2023. 2. A jurisprudência firmou entendimento no sentido de que a ausência de previsão editalícia e regulamentar impede a realização de heteroidentificação (AC 1000286-18.2018.4.01.3313, DESEMBARGADOR FEDERAL DANIELE MARANHAO COSTA, TRF1 - QUINTA TURMA, PJe 11/05/2023). 3. Sem a presença de critérios objetivos, devidamente estabelecidos no edital, e observado o procedimento autodeclaratório previsto à época, não se justifica, sob o ponto de vista jurídico, a realização posterior de heteroidentificação com base em atos normativos supervenientes. 4. Apelação provida. (AC 1051943-62.2023.4.01.3300, DESEMBARGADOR FEDERAL NEWTON PEREIRA RAMOS NETO, TRF1 - DÉCIMA-PRIMEIRA TURMA, PJe 01/10/2024 PAG.) [ grifos acrescidos] -.-.- ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENSINO. INGRESSO EM CURSO SUPERIOR. UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO - UFMA. COTAS RACIAIS. AUTODECLARAÇÃO DE CANDIDATO APROVADO. REAVALIAÇÃO. CRITÉRIO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO EDITALÍCIA. ELIMINAÇÃO EM FASE DE CONCLUSÃO DO CURSO. ILEGALIDADE. SEGURANÇA JURÍDICA. SENTENÇA REFORMADA. 1. Apelação interposta pela impetrante contra a sentença pela qual o juízo de primeiro grau denegou a segurança requerida com o objetivo de reconhecimento do direito à não submissão a procedimento de heteroidentificação sem previsão em edital. 2. Embora seja legítima a utilização da heteroidentificação como critério supletivo à autodeclaração racial do candidato (ADC 41, Relator Ministro. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2017, DJe-180 17-08-2017), a respectiva atuação administrativa deve estar pautada em critérios objetivos antecedentes à avaliação realizada, voltando-se ao impedimento de eventual tentativa de fraude ao sistema de cotas e valorizando, ainda, a relativa presunção de legitimidade da autodeclaração. Ademais, a possibilidade da realização da heteroidentificação do candidato não significa que a Administração pode se valer desse critério indistintamente, deixando de observar outros princípios norteadores das relações que por ela são mantidas, tais como, no caso de concursos públicos, o princípio da vinculação ao edital, ou mesmo o princípio da segurança jurídica. 3. Caso concreto em que o edital regrador do certame não previu a realização de avaliação heteroidentificadora, além de não estabelecer quaisquer critérios objetivos para eventual aferição de fraude na autodeclaração. 4. A inexistência de previsão editalícia e regulamentar pela heteroidentificação complementar é impeditiva de sua realização em momento posterior, com o fim ordinário de validar a autodeclaração do candidato, sob pena de violação ao princípio da vinculação ao edital, excepcionando-se a hipótese de constatação de má-fé, hipótese na espécie não ocorrente. Precedentes. 5. A exclusão do estudante do quadro da universidade, quando já se encontrava no 4º ano do curso de medicina, viola o princípio da razoabilidade e desprestigia a segurança jurídica e a confiança que o discente depositou na instituição de ensino superior quando teve deferida sua matrícula, por ter preenchido as condições então vigentes. 6. Apelação provida para reconhecer a nulidade do processo administrativo instaurado pela UFMA para verificação da veracidade da autodeclaração étnica firmada pela impetrante, garantindo sua permanência no curso de medicina nas vagas destinadas ao provimento por cota racial. (AMS 1023703-95.2021.4.01.3700, DESEMBARGADORA FEDERAL KATIA BALBINO DE CARVALHO FERREIRA, TRF1 - SEXTA TURMA, PJe 26/09/2024 PAG.) [grifos acrescidos] -.-.- CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENSINO SUPERIOR. PROCESSO SELETIVO. COTAS RACIAIS. VAGAS DESTINADAS A CANDIDATOS PRETOS E PARDOS. INSTAURAÇÃO DE PROCESSO AMINISTRATIVO. VERIFICAÇÃO DA AUTODECLARAÇÃO POR COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PREVISÃO EDITALÍCIA OU REGULAMENTAR. VINCULAÇÃO AO EDITAL. SEGURANÇA JURÍDICA. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. DIREITO À MATRÍCULA. APELAÇÃO PROVIDA. SENTENÇA REFORMADA. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. Deferimento do pedido de gratuidade de justiça reformulado nesta instância, haja vista a condição do apelante - estudante de curso de graduação na modalidade integral, egresso de escola pública e com baixa renda familiar, sem renda própria - e a ausência de elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão do benefício, nos termos do art. 99, § 2º, do CPC. 2. Não obstante a legitimidade da adoção da heteroidentificação como critério supletivo à autodeclaração racial do candidato (ADC 41, Relator Ministro. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2017, DJe-180 17-08-2017), a atuação administrativa a ela referente deve estar pautada em critérios objetivos antecedentes à avaliação realizada, voltando-se ao impedimento de eventual tentativa de fraude ao sistema de cotas e valorizando, ainda, a relativa presunção de legitimidade da autodeclaração. 3. A possibilidade de realização de processo de heteroidentificação fenotípica em concursos vestibulares deve estar jungida à existência de prévia previsão editalícia, que, estabelecendo as condições de ingresso na instituição, também preveja a adoção do referido critério de avaliação, mostrando-se excepcionalmente possível apenas na hipótese em que, mediante processo administrativo timbrado pelo devido processo legal, vier a ser demonstrada e reconhecida, com base em critérios objetivos pré-fixados, a ocorrência da fraude imputada ao candidato. Nesse sentido: AC 1007571-06.2020.4.01.3600, Rel. Desembargador Federal Jamil Rosa de Jesus Oliveira, TRF1 Sexta Turma, PJe 19/10/2021. 4. Hipótese em que o apelante fora aprovado por meio do Sistema de Seleção Unificada SiSU 2018 para o curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão UFMA, em vaga reservada aos candidatos pretos e pardos, tendo sido notificado, em 22/05/2021, acerca da instauração de processo administrativo para fins de apuração de denúncia de fraude ao sistema de cotas, no qual foi intimado para apresentar defesa escrita e comunicado da necessidade de aferição de sua condição étnico-racial perante comissão de heteroidentificação. 5. Na espécie, o edital regrador do certame (Edital PROEN nº 113/2018, de 07/06/2018) padece de indicação de avaliação heteroidentificadora fenotípica durante ou após processo seletivo, sem indicação, também, de quaisquer critérios objetivos para eventual aferição de fraude na autodeclaração. 6. Inexistindo previsão editalícia e regulamentar pelo procedimento de heteroidentificação complementar, sem também a presença de quaisquer critérios objetivos prévios que possam embasar a investigação de eventual fraude, a reavaliação não poderia ser realizada, em momento posterior ao processo seletivo, com o fim ordinário de validar a autodeclaração. Nesse sentido, também o precedente: AMS 1005914-72.2020.4.01.4200, Rel. Desembargador Federal Souza Prudente, TRF1 - Quinta Turma, PJe 28/06/2021. 7. Frise-se ainda que o ato administrativo impugnado, além de não ter resguardado a segurança jurídica, afigura-se ainda desprovido de razoabilidade, haja vista a situação do estudante, que, em maio de 2021, na ocasião da instauração do processo administrativo, encontrava-se finalizando o 6º semestre do curso de Direito, evidentemente avançado em concluir o curso superior. No sentido da ausência de razoabilidade em casos que tais: AMS 1006483-77.2018.4.01.3801, Rel. Desembargador Federal Souza Prudente, TRF1 - Quinta Turma, PJe 01/07/2020. 8. Apelação a que se dá provimento para reformar a sentença e conceder a segurança, determinando que a autoridade administrativa se abstenha de praticar qualquer ato, relacionado ao procedimento de verificação da autodeclaração étnico-racial, que possa comprometer a matrícula do estudante no curso de Direito da UFMA. 9. Honorários advocatícios incabíveis na espécie (art. 25 da Lei nº 12.016/2009). (TRF-1 - AMS: 10273007220214013700, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL DANIELE MARANHÃO COSTA, Data de Julgamento: 15/03/2023, 5ª Turma, Data de Publicação: PJe 20/03/2023 PAG PJe 20/03/2023 PAG) [Grifos acrescidos] IV. Com essas considerações, nego provimento à apelação. Agravo interno prejudicado. Majoro em R$ 2.000,00 os honorários de sucumbência (art. 85, §§ 8º e 11, do CPC). É como voto. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 1006062-83.2020.4.01.4200 Processo Referência: 1006062-83.2020.4.01.4200 APELANTE: UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA APELADO: ALEXANDRE SOUZA DOS SANTOS EMENTA CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO ORDINÁRIA. ENSINO SUPERIOR. PROCESSO SELETIVO. COTAS RACIAIS. VAGAS DESTINADAS A CANDIDATOS PRETOS E PARDOS. INSTAURAÇÃO DE PROCESSO AMINISTRATIVO. VERIFICAÇÃO DA AUTODECLARAÇÃO POR COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PREVISÃO EDITALÍCIA OU REGULAMENTAR. VINCULAÇÃO AO EDITAL. SEGURANÇA JURÍDICA. APELAÇÃO DESPROVIDA. SENTENÇA MANTIDA. 1. Apelação interposta contra sentença que julgou procedente o pedido inicial para anular o ato administrativo que cancelou a matrícula do autor no curso de medicina da Universidade Federal de Roraima. 2. Na espécie, o autor ingressou no curso de medicina da UFRR no ano de 2018, após aprovação no processo seletivo regido EDITAL N° 029/17 – CPV – Consolidado, que não previa aferição da autodeclaração dos candidatos como preto/pardo por comissão de heteroidentificação. Posteriormente, ao final do ano 2020, recebeu notificação de cancelamento da sua matrícula devido a processo administrativo instaurado para apurar denúncia anônima de fraude ao sistema de cotas. 3. Sobre o tema, embora seja legítima a utilização da heteroidentificação como critério supletivo à autodeclaração racial do candidato (ADC 41, Relator Ministro. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2017, DJe-180 17-08-2017), a respectiva atuação administrativa deve estar pautada em critérios objetivos antecedentes à avaliação realizada, voltando-se ao impedimento de eventual tentativa de fraude ao sistema de cotas e valorizando, ainda, a relativa presunção de legitimidade da autodeclaração. Ademais, a possibilidade da realização da heteroidentificação do candidato não significa que a Administração pode se valer desse critério indistintamente, deixando de observar outros princípios norteadores das relações que por ela são mantidas, tais como, no caso de concursos públicos, o princípio da vinculação ao edital, ou mesmo o princípio da segurança jurídica. Precedentes TRF1 4. A exclusão do estudante do quadro da universidade, no presente caso, configura violação aos princípios da segurança jurídica e da vinculação ao edital, além de revelar a ausência de razoabilidade, considerando que o estudante já cursava o 5º semestre do curso e atendia às exigências vigentes à época da seleção para ingresso na instituição de ensino. 5. Apelação desprovida. Agravo interno prejudicado. Sentença mantida. Honorários recursais fixados. ACÓRDÃO Decide a Sexta Turma, à unanimidade, negar provimento à apelação e julgar prejudicado o agravo interno, nos termos do voto do Relator. Brasília/DF, data e assinatura eletrônicas. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator
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