Processo nº 1008190-62.2022.8.11.0007
ID: 337548461
Tribunal: TJMT
Órgão: Terceira Câmara Criminal
Classe: APELAçãO CRIMINAL
Nº Processo: 1008190-62.2022.8.11.0007
Data de Disponibilização:
29/07/2025
Polo Passivo:
Advogados:
LEANDRO FELIX DE LIRA
OAB/MT XXXXXX
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JAIRO CEZAR DA SILVA
OAB/MT XXXXXX
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ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL Número Único: 1008190-62.2022.8.11.0007 Classe: APELAÇÃO CRIMINAL (417) Assunto: [Crimes de Tortura, Crimes do Sistema Nacional de Arma…
ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL Número Único: 1008190-62.2022.8.11.0007 Classe: APELAÇÃO CRIMINAL (417) Assunto: [Crimes de Tortura, Crimes do Sistema Nacional de Armas] Relator: Des(a). JONES GATTASS DIAS Turma Julgadora: [DES(A). JONES GATTASS DIAS, DES(A). CHRISTIANE DA COSTA MARQUES NEVES, DES(A). GILBERTO GIRALDELLI] Parte(s): [LUCAS CORREIA DE AZEVEDO - CPF: 048.105.681-56 (APELANTE), LEANDRO FELIX DE LIRA - CPF: 021.365.211-01 (ADVOGADO), PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA DA SILVA - CPF: 062.379.961-84 (APELANTE), DANIEL PEREIRA DA SILVA - CPF: 058.170.201-81 (APELANTE), JAIRO CEZAR DA SILVA - CPF: 932.655.651-49 (ADVOGADO), VILMA GERMANO DA SILVA - CPF: 026.153.371-14 (APELANTE), MINISTERIO PUBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO - CNPJ: 14.921.092/0001-57 (APELADO), EDILSON MARTINS DA SILVA - CPF: 003.959.231-66 (VÍTIMA), LEANDRO COELHO MACIEL - CPF: 061.045.341-63 (TERCEIRO INTERESSADO)] A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos os autos em epígrafe, a TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, sob a Presidência Des(a). GILBERTO GIRALDELLI, por meio da Turma Julgadora, proferiu a seguinte decisão: POR UNANIMIDADE, DESPROVEU O RECURSO. E M E N T A Ementa: DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÕES CRIMINAIS. TORTURA-CÁSTIGO MEDIANTE SEQUESTRO. PARTICIPAÇÃO EM ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA ARMADA. VÍNCULO FUNCIONAL COM FACÇÃO. REJEIÇÃO DAS PRELIMINARES DE INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL E NULIDADE DAS PROVAS PROFERIDAS POR JUÍZO INCOMPETENTE. MANUTENÇÃO DAS CONDENAÇÕES. REDIMENSIONAMENTO DE PENA PARA UM DOS RÉUS. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. I. CASO EM EXAME Apelações criminais interpostas por quatro réus contra sentença da 7.ª Vara Criminal da Comarca de Cuiabá/MT, que os condenou pelos crimes de tortura-castigo mediante sequestro (Lei n.º 9.455/1997, art. 1º, II, §4º, III) e participação em organização criminosa armada (Lei n.º 12.850/2013, art. 2º, §2º), em razão de episódio ocorrido em Alta Floresta/MT, em que a vítima foi sequestrada e espancada por determinação da facção Comando Vermelho, em represália a agressão cometida contra um de seus membros. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO Há seis questões em discussão: (i) reconhecer a nulidade da sentença por incompetência territorial da 7.ª Vara Criminal da Capital; (ii) declarar a nulidade das provas por suposta ausência de competência do juízo que as produziu; (iii) absolver os réus por ausência de prova de vinculação à organização criminosa; (iv) absolver os réus por insuficiência de provas quanto à tortura; (v) desclassificar a conduta de tortura para lesão corporal; (vi) revisar as penas fixadas, com readequação da dosimetria ou alteração do regime de cumprimento. III. RAZÕES DE DECIDIR A competência da 7.ª Vara Criminal de Cuiabá/MT, especializada em organização criminosa com jurisdição estadual, é válida e não fere o princípio do juiz natural, conforme jurisprudência do STF e STJ. A produção de provas pelo juízo especializado é legítima, inexistindo vícios formais ou demonstração de prejuízo, sendo inaplicável a teoria dos frutos da árvore envenenada. As provas documentais, testemunhais e audiovisuais evidenciam, de forma inequívoca, que os réus integravam a facção Comando Vermelho e participaram da organização da sessão de tortura, exercendo poder funcional típico da estrutura criminosa. A materialidade e autoria do crime de tortura mediante sequestro foram comprovadas por vídeos, depoimentos, laudos periciais e declarações da vítima, que descreveu o episódio de castigo interno (“salve”) como represália à agressão contra um membro da facção. A desclassificação para lesão corporal é inviável, pois a conduta se amolda ao tipo penal da tortura-castigo, caracterizado por imposição de sofrimento físico com finalidade disciplinar, exercida sob contexto de autoridade dentro da organização criminosa. A dosimetria da pena de Lucas Correia de Azevedo foi parcialmente reformada, com aplicação da fração agravante sobre a pena-base, sem reconhecimento de participação de menor importância. Mantidas as penas e regime inicial fechado dos demais réus, diante do concurso material e das penas superiores a 8 anos. IV. DISPOSITIVO E TESE Recursos conhecidos. Recurso de Lucas Correia de Azevedo parcialmente provido. Recursos dos demais apelantes desprovidos. Tese de julgamento: É constitucional a atribuição de competência estadual à vara criminal especializada em organização criminosa, ainda que os fatos tenham ocorrido em comarca diversa. A nulidade de provas exige demonstração concreta de prejuízo, sendo válida a produção por juízo competente nos termos da organização judiciária estadual. A participação funcional e voluntária de indivíduos em facção criminosa, com atuação no tráfico e em castigos internos, caracteriza o delito do art. 2º, §2º, da Lei 12.850/2013. A prática de “salve”, mediante espancamento preordenado e sequestro, constitui tortura-castigo, nos termos do art. 1º, II, §4º, III, da Lei 9.455/1997. A condição de autoridade exigida para o crime de tortura-castigo pode decorrer do poder informal exercido dentro de organização criminosa, não sendo restrita a vínculos jurídicos. A presença no local da tortura, com atuação de registro e vigilância, configura coautoria e impede o reconhecimento de participação de menor importância. A fixação do regime inicial fechado é obrigatória para penas superiores a 8 anos, nos termos do art. 33, §2º, alínea “a”, do Código Penal. Dispositivos relevantes citados: CF/1988, art. 5º, LIII e art. 125; CP, arts. 29, §1º, 59, 69, 129 e 33, §2º; CPP, arts. 563, 564, I e 593, I; Lei 9.455/1997, art. 1º, II, §4º, III; Lei 12.850/2013, art. 2º, §2º. Jurisprudência relevante citada: STF, ADI 4414/AL; STJ, AgRg no HC 613.170/SC, Rel. Min. Felix Fischer, DJe 12/11/2020; TJMT, HC NU 1018752-88.2021.8.11.0000; TJMT, N.U 1001565-42.2023.8.11.0018, rel. Des. Gilberto Giraldelli, j. 04/04/2025; TJMT, N.U 1024962-78.2023.8.11.0003, rel. Des. Luiz Ferreira da Silva, j. 01/02/2025. R E L A T Ó R I O Egrégia Câmara: Cuida-se de apelação criminal interposta por Paulo Henrique de Oliveira da Silva, Lucas Correia de Azevedo, Daniel Pereira da Silva e Vilma Germano da Silva, contra sentença proferida pela Juíza de Direito da 7.ª Vara Criminal da Comarca de Cuiabá/MT, nos autos da Ação Penal n.º 1008190-62.2022.8.11.0007, que os condenou pela prática dos delitos previstos no art. 1º, inciso II, § 4º, inciso III, da Lei n.º 9.455/1997, em concurso material com o art. 2º, § 2º, da Lei n.º 12.850/2013. Conforme narra a denúncia, no dia 16 de outubro de 2022, por volta das 00h30min, a vítima Edilson Martins da Silva foi abordada por três dos denunciados em frente a um estabelecimento comercial situado na cidade de Alta Floresta/MT, sendo um deles portador de arma de fogo. A vítima foi então constrangida a ingressar em um veículo Fiat Strada. Durante o trajeto, outros dois indivíduos adentraram o automóvel. Em seguida, o grupo dirigiu-se a uma região de mata, onde a vítima passou a ser agredida fisicamente com socos, chutes e cerca de 150 golpes desferidos com uma mangueira, enquanto dois dos denunciados portavam armas de fogo. As agressões foram gravadas em vídeo e divulgadas posteriormente, sendo evidente que o ato se destinava à aplicação de castigo pessoal (“salve”), em razão de suposto desrespeito às normas internas da organização criminosa denominada Comando Vermelho. Concluída a instrução processual, sobreveio sentença condenatória nos seguintes termos: Paulo Henrique de Oliveira da Silva: condenado à pena de 10 (dez) anos, 5 (cinco) meses e 13 (treze) dias de reclusão, em regime inicial fechado, e ao pagamento de 169 (cento e sessenta e nove) dias-multa; Lucas Correia de Azevedo: condenado à pena de 11 (onze) anos, 2 (dois) meses e 5 (cinco) dias de reclusão, em regime inicial fechado, e ao pagamento de 212 (duzentos e doze) dias-multa; Daniel Pereira da Silva e Vilma Germano da Silva: condenados, cada um, à pena de 8 (oito) anos, 3 (três) meses e 23 (vinte e três) dias de reclusão, em regime inicial fechado, e ao pagamento de 111 (cento e onze) dias-multa. Irresignados, os réus interpuseram recurso de apelação. Nas razões recursais, Paulo Henrique de Oliveira da Silva, assistido pela Defensoria Pública, suscitou preliminar de nulidade da competência da 7.ª Vara Criminal da Capital, sob o argumento de inconstitucionalidade da Resolução n.º 11/2017/TP do TJMT, pleiteando a remessa dos autos à Comarca de Alta Floresta/MT e a nulidade das provas produzidas. No mérito, pugnou por absolvição por insuficiência de provas ou, subsidiariamente, pela desclassificação da conduta para o crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal). Lucas Correia de Azevedo, por sua vez, alegou ausência de provas capazes de comprovar sua participação nos delitos, invocando o princípio do in dubio pro reo. Sustentou que as identificações foram baseadas em vídeos de baixa qualidade, que não permitiriam sua individualização, rechaçando a validade da associação por meio de tatuagens e apelido supostamente utilizados. Daniel Pereira da Silva e Vilma Germano da Silva, representados por defensor constituído, também sustentaram a inexistência de provas suficientes para a condenação, destacando que a própria vítima, em juízo, afirmou não reconhecer a participação de ambos nos fatos. Requereram, assim, a absolvição com fundamento nos incisos I e VII do art. 386 do Código de Processo Penal. O Ministério Público, em suas contrarrazões, pugnou pela manutenção integral da sentença, defendendo a legalidade da competência da 7.ª Vara Criminal de Cuiabá/MT, bem como a regularidade e suficiência do conjunto probatório para a condenação dos recorrentes. A Procuradoria-Geral de Justiça, por meio de parecer elaborado pelo Procurador de Justiça João Augusto Veras Gadelha, opinou pelo não acolhimento das preliminares e, no mérito, pelo desprovimento dos recursos de Paulo Henrique de Oliveira da Silva, Daniel Pereira da Silva e Vilma Germano da Silva, manifestando-se, quanto ao recurso de Lucas Correia de Azevedo, pelo seu parcial provimento, tão somente para o redimensionamento da pena na segunda fase da dosimetria, mediante aplicação da fração de 1/6 sobre a pena-base. É o relatório. À douta revisão. V O T O R E L A T O R VOTO Verifica-se que o recurso de apelação interposto pelos réus preenche os requisitos de admissibilidade previstos no art. 593, inciso I, do Código de Processo Penal, uma vez que foi apresentado por parte legitimada, no prazo legal, perante juízo competente, além de revestir-se de regularidade formal e demonstrar inequívoco interesse recursal. Dessa forma, impõe-se o conhecimento do recurso. V O T O (PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA POR INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL DO JUÍZO A QUO) Egrégia Câmara: A defesa técnica do apelante Paulo Henrique de Oliveira da Silva requer o reconhecimento da nulidade da sentença, ao argumento de incompetência territorial da 7ª Vara Criminal da Comarca de Cuiabá/MT, com fundamento na inconstitucionalidade parcial da Resolução n.º 11/2017/TP do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. Contudo, a tese defensiva deve ser rejeitada. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça firmaram entendimento de que os Tribunais de Justiça podem, no exercício da autonomia organizacional prevista no art. 125 da Constituição Federal, instituir varas especializadas com competência em razão da matéria, inclusive com extensão territorial que abranja todo o Estado, sem que isso importe violação ao princípio do juiz natural. Confira-se: É competente a 7ª Vara Criminal de Cuiabá para processar e julgar a ação penal em que se apurar crime de organização criminosa, supostamente cometido na Comarca de Alto Garças, por força do que dispõe a Resolução nº 11/2017, do Tribunal Pleno. Precedentes desta Corte e do STJ. (TJMT, NU 1014759-71.2020.8.11.0000); Não há ilegalidade na tramitação de ação penal deflagrada inicialmente no interior e, depois, remetida para o Juízo da 7ª Vara Criminal da Comarca de Cuiabá-MT, já que este é especializado quanto à matéria, e prevalece sobre os demais juízos, conforme regulamentação administrativa do tribunal. (TJMT, HC NU 1018752-88.2021.8.11.0000); O princípio do juiz natural não resta violado na competência territorial abrangente de todo o território da unidade federada, com fundamento no art. 125 da Constituição, porquanto o tema gravita em torno da organização judiciária, inexistindo afronta aos princípios da territorialidade e do Juiz natural. (STF, ADI 4414/AL). Além disso, no julgamento do HC 113018, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a validade da competência material definida por resolução interna dos tribunais estaduais, desde que voltada à especialização jurisdicional. No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça reconhece a legitimidade da especialização com competência estadual em matéria de organização criminosa, como consta nos seguintes julgados: AgRg no REsp nº 1.611.615/MT e AgRg no RHC nº 115.811/ES. Assim, é legítima a atribuição de competência à 7ª Vara Criminal da Comarca de Cuiabá/MT para o julgamento de crimes relacionados a organização criminosa, mesmo quando os fatos ocorrerem em outras comarcas do Estado. Rejeito, portanto, a preliminar de incompetência territorial. V O T O (PRELIMINAR DE NULIDADE DE PROVAS POR ORDEM DE JUÍZO INCOMPETENTE) Egrégia Câmara: No que se refere ao pedido de declaração de nulidade das provas produzidas por autoridade judicial supostamente incompetente — inclusive aquelas oriundas da extração de dados de aparelhos celulares —, sob alegação de violação aos artigos 157, caput e §1º, c/c art. 564, inciso I, ambos do Código de Processo Penal, igualmente não merece acolhida à defesa. No caso concreto, a 7.ª Vara Criminal da Comarca de Cuiabá/MT é competente para o processamento e julgamento da presente ação penal, em virtude da especialização jurisdicional conferida pela Resolução n.º 11/2017/TP do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. Trata-se de norma de organização judiciária regularmente editada, com presunção de constitucionalidade, de modo que não há que se cogitar da existência de autoridade judicial incompetente para autorizar diligências ou proferir decisões no curso da instrução processual. Inexistem, portanto, vícios de legalidade ou ilicitude nas provas colhidas sob a supervisão daquele juízo. Ainda que assim não fosse, é pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a incompetência relativa não enseja, por si só, a nulidade dos atos anteriormente praticados, desde que ratificados — ainda que de forma tácita — pelo juízo competente. Ademais, conforme orientação consolidada daquela Corte, a decretação de nulidade exige demonstração concreta de prejuízo (pas de nullité sans grief), o que não se verifica na hipótese dos autos. A esse respeito, colhe-se o seguinte precedente: A declaração de nulidade exige a comprovação de prejuízo, em consonância com o princípio pas de nullité sans grief, consagrado no art. 563 do CPP e no enunciado n. 523 da Súmula do STF.” (STJ, AgRg no HC 613.170/SC, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 12/11/2020) STJ - AgRg no HC: 524283 MG 2019/0223518-0, Relatora: Ministra Laurita Vaz, Julgado em 09/02/2021, DJe 22/02/2021. Na espécie, além de estar validamente estabelecida a competência da 7.ª Vara Criminal da Comarca de Cuiabá/MT, houve regular ratificação dos atos instrutórios e decisórios anteriormente praticados, razão pela qual não subsiste qualquer ilicitude nas provas produzidas, tampouco contaminação das provas delas derivadas. Assim, revela-se inaplicável a teoria dos frutos da árvore envenenada, inexistindo fundamento jurídico para o acolhimento dos pedidos de desentranhamento probatório ou de arquivamento da ação penal. Rejeito, portanto, a preliminar de nulidade das provas. V O T O (MÉRITO) Egrégia Câmara: Consta dos autos que, em meados de outubro de 2022, na cidade de Alta Floresta/MT, a vítima Edilson Martins da Silva envolveu-se em uma briga com o denunciado Daniel Pereira da Silva, ocasião em que agrediu fisicamente este último. O episódio foi filmado por Vilma Germano da Silva, companheira de Daniel, com o objetivo de encaminhar a gravação à liderança da organização criminosa denominada Comando Vermelho, da qual ambos seriam integrantes, a fim de comunicar a suposta infração às normas internas do grupo por parte da vítima. Em represália, na madrugada do dia 16 de outubro de 2022, por volta das 00h30min, a vítima encontrava-se em frente ao estabelecimento comercial denominado “Mobu” quando foi abordada por três indivíduos, um deles portando arma de fogo, os quais a coagiram a ingressar em um veículo Fiat Strada, de cor branca. Após deixarem o local, outros dois indivíduos ingressaram no automóvel. O grupo dirigiu-se então a uma área de mata, onde a vítima foi retirada do veículo e, em seguida, submetida a intensas agressões físicas. Conforme narrado na denúncia, a vítima sofreu aproximadamente 150 golpes de mangueira, desferidos nas regiões dos braços, pernas e costas, além de socos e pontapés, enquanto dois dos agressores empunhavam armas de fogo — um revólver e uma pistola. As agressões foram registradas em vídeos, nos quais os autores afirmavam estar aplicando um “salve” autorizado por membro da facção identificado pelo apelido “Nike”, sob a alegação de que a vítima havia violado normas internas da organização ao agredir Daniel. Durante a sessão de tortura, foram proferidas expressões como “50 no braço, 50 na perna, 50 nas costas” e “o Nike falou”, evidenciando a motivação e a sistemática da punição imposta. A ampla divulgação dos vídeos em redes sociais desencadeou a atuação da Polícia Judiciária, que deu início a diligências investigativas. A partir dessas investigações, os autores foram identificados. Paulo Henrique de Oliveira da Silva foi referido pelo apelido “Pardo” durante a gravação; Lucas Correia de Azevedo foi reconhecido por suas características físicas e imagens; e Leandro Coelho Maciel também foi identificado como participante da ação. Além disso, Vilma Germano da Silva e Daniel Pereira da Silva foram apontados como instigadores do ato, por terem exigido da liderança do Comando Vermelho a aplicação da punição, supostamente com respaldo no estatuto interno da facção criminosa. A denúncia foi recebida em 26 de janeiro de 2023, pela 7.ª Vara Criminal da Comarca de Cuiabá/MT, após o declínio de competência anteriormente reconhecido pela 5.ª Vara da Comarca de Alta Floresta/MT. Concluída a instrução processual, os acusados foram condenados pela prática dos crimes de tortura-castigo e participação em organização criminosa, com a fixação de penas privativas de liberdade a serem cumpridas em regime inicial fechado, além da aplicação de sanções pecuniárias. Passo, agora, à análise do mérito recursal. I. DO PLEITO DE ABSOLVIÇÃO DO CRIME PREVISTO NO ART. 2º, § 2º, DA LEI 12.850/2013 A defesa técnica do apelante Paulo Henrique de Oliveira da Silva requer sua absolvição quanto ao crime de participação em organização criminosa, previsto no art. 2º da Lei n.º 12.850/2013, sob o argumento de ausência de provas robustas que demonstrem vínculo estável e permanente com o grupo denominado Comando Vermelho. Alega que não há nos autos qualquer elemento concreto que comprove sua adesão à estrutura organizacional da facção, tampouco indícios de atuação funcional com divisão de tarefas ou compartilhamento de finalidade delitiva comum. A defesa técnica do apelante Lucas Correia de Azevedo, por sua vez, também pleiteia sua absolvição, sustentando que não há prova da efetiva vinculação ao Comando Vermelho. Argumenta que o simples fato de responder a outro processo penal ou possuir suposto apelido mencionado em vídeo não se mostra suficiente para caracterizar sua adesão ao grupo criminoso. Ressalta, ainda, que não há interceptações telefônicas, registros investigativos ou comunicações que evidenciem atuação em prol da organização. No mesmo sentido, a defesa técnica dos apelantes Daniel Pereira da Silva e Vilma Germano da Silva pugna pela absolvição de ambos quanto ao crime de organização criminosa, sob o fundamento de que não há qualquer demonstração nos autos de que tenham aderido à estrutura do grupo de forma organizada, estável e com finalidade delitiva. Enfatizam que nenhum dos dois foi intimado durante a fase investigatória e que inexiste prova da participação de ambos em tarefas específicas, comandos ou na engrenagem funcional da facção criminosa. Os apelantes foram condenados pelo crime de integrar organização criminosa, fundamentado no art. 2, §2º da Lei n. 12.850/2013, cujo teor transcrevo a seguir: Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas. § 2º As penas aumentam-se até a metade se na atuação da organização criminosa houver emprego de arma de fogo. A materialidade do delito está configurada através do Boletim de Ocorrência (ID. 239640700); Termo de Declaração Edilson Martins da Silva (ID. 239640701); Vídeo da agressão que originou o “salve” (ID. 239640705); Vídeo Agressão (ID. 239640706); Vídeo Agressão 2 (ID. 239640708); Vídeo Agressão 3 (ID. 239640709); Relatório de Investigação (ID. 239640710); Interrogatório Leandro (ID. 239640719); Interrogatório Paulo Henrique (ID. 239640720); Autos PJe n. 1007547-07.2022.8.11.007: ID. 239640730; Denúncia (ID. 239640731); Laudo Pericial n. 214.2.16.9067.2023.99346-A01 (ID. 239640765); Relatório Análise de Celular (ID. 239640767); e Depoimentos prestados em juízo (ID. 239640854). Com base nas provas coligidas aos autos, especialmente os vídeos das agressões e os depoimentos prestados pelos Investigadores de Polícia Civil Paulo Cristiano de Souza e Joelton Venancio da Silva (ID. 239640854), é possível afirmar que a autoria delitiva quanto à participação dos acusados Vilma Germano da Silva, Paulo Henrique de Oliveira da Silva e Lucas Correia de Azevedo na organização criminosa denominada Comando Vermelho encontra-se devidamente comprovada. No tocante ao acusado Lucas Correia de Azevedo, conhecido como “Babão”, foi possível identificá-lo nitidamente nos vídeos das agressões, inclusive em um dos momentos em que aparece filmando com o celular a sessão de tortura. O Investigador de Polícia Civil Paulo Cristiano de Souza afirmou em juízo que: QUE EM ANÁLISE DOS VÍDEOS CONSTATARAM QUE TINHA ALGUNS QUE ERAM CONHECIDOS, POR EXEMPLO O LUCAS CORREIA CONHECIDO POR 'BABÃO', QUE O 'BABÃO' APARECE NÍTIDA A IMAGEM DELE FILMANDO COM O CELULAR, QUE NO VÍDEO DAS AGRESSÕES CONSEGUIU IDENTIFICAR OS ACUSADOS LUCAS 'BABÃO', QUE AS IMAGENS DE 'BABÃO' E LEANDRO É BEM NÍTIDA NO VÍDEO DAS AGRESSÕES, QUE O 'BABÃO' É MEMBRO DA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA A MUITO TEMPO E PARTICIPANTE ATIVO NA VENDA DE ENTORPECENTES, QUE A UM TEMPO ATRÁS ELE SERIA O 'GERENTE' DA BOA NOVA 1. No mesmo sentido foi o depoimento do Investigador Joelton Venancio da Silva, que afirmou: QUE COM OS VÍDEOS CONSEGUIRAM IDENTIFICAR ALGUMAS PESSOAS, QUE IDENTIFICOU LUCAS 'BABÃO', QUE 'BABÃO' ERA LOJISTA DA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E COMERCIALIZA DROGA. No que tange ao acusado Paulo Henrique de Oliveira da Silva, vulgo “Pardinho” ou “PH”, observa-se que há identificação visual direta nos vídeos, sobretudo pelo fato de, entre os minutos 00:06/00:08 do vídeo parte 2, uma pessoa que está gravando dizer: segura aí PARDINHO, deixa eu guardar os bagui, segura aí. Ademais, nos vídeos parte 2 (02:40) e parte 3 (00:09), é possível observar uma mão tatuada fazendo o sinal de “V” com os dedos, gesto associado à facção Comando Vermelho. Tal tatuagem foi reconhecida em audiência de instrução, quando Paulo Henrique mostrou à magistrada as tatuagens em sua mão direita, permitindo a identificação. O Investigador Paulo Cristiano de Souza declarou: QUE EM ANÁLISE DOS VÍDEOS CONSTATARAM QUE TINHA ALGUNS QUE ERAM CONHECIDOS, POR EXEMPLO PAULO HENRIQUE CONHECIDO COMO 'PH' OU 'PARDINHO', QUE O 'PH' TEM A FUNÇÃO DE 'DISCIPLINA'. Na mesma linha, o Investigador Joelton Venancio da Silva afirmou: COM OS VÍDEOS CONSEGUIRAM IDENTIFICAR ALGUMAS PESSOAS; QUE IDENTIFICOU PAULO HENRIQUE 'PARDINHO', QUE CONSEGUE OUVIR NO AUDIO DO VÍDEO O VULGO 'PARDINHO' PAULO HENRIQUE, QUE PAULO HENRIQUE ERA DISCIPLINA. No que se refere aos acusados Daniel Pereira da Silva, vulgo “Fioti”, e Vilma Germano da Silva, vulgo “Amanda”, os vídeos demonstram que a sessão de tortura foi motivada por uma briga anterior entre Daniel e a vítima Edilson, conforme registrado pela própria Vilma. No vídeo em que a vítima agride Daniel, a pessoa que grava é Vilma “Amanda”, e diz entre os minutos: (00:03/00:08): “oia a situação do catra aqui ô, agredindo o mano aqui ô na frente do meu barraco, olha ai a situação ai ô” (00:10/00:16): “acabou de emburacar na minha loja, entendeu, meteu o loco, e agora ta aqui agredindo meu marido ô, o FIOTI” Logo depois, Daniel “Fioti” (00:16/00:23) ameaça: “cê ta fudido, ta fudido em, bate de novo, bate mais, bate, bate mais”. Durante o vídeo da tortura, várias falas dos envolvidos revelam o motivo da punição, deixando evidente o caráter disciplinar ordenado por facção criminosa. A vítima Edilson, por sua vez, confirmou em juízo: QUE TEVE UMA DISCUÇÃO COM O DANIEL; QUE A MENINA DELE ESTAVA GRAVANDO, QUE TAVA DANIEL E A ESPOSA DELE; QUE DISCUTIRAM E DEU UNS TAPAS NELE; QUE A MULHER DO DANIEL ESTAVA FILMANDO, QUE FALARAM QUE ERA POR CAUSA DA DISCUÇÃO QUE TEVE COM DANIEL. O Investigador Paulo Cristiano de Souza confirmou: APÓS ANÁLISE DE OUTRO VÍDEO O DANIEL CONHECIDO COMO 'FIOTI' É INTEGRANTE DO COMANDO VERMELHO E CONHECIDO PELA UNIDADE POLICIAL, QUE É CONVIVENTE DA VILMA, QUE O 'SALVE' TERIA SIDO FEITO POR CAUSA DA BRIGA, QUE NO VÍDEO MENCIONAM QUE EDILSON ESTARIA APANHANDO POR BATER NA CARA DE IRMÃO; QUE ESSE IRMÃO SERIA O DANIEL VULGO 'FIOTI', QUE A VILMA É CONHECIDA COMO 'AMANDA' É ESPOSA DO DANIEL; QUE ELA ESTARIA FILMANDO A BRIGA ENTRE EDILSON E DANIEL; QUE ATRAVÉS DESSA BRIGA CHEGOU O DECRETO DO 'SALVE'; QUE TANTO ELA QUANTO DANIEL TERIA PROVOCADA OS LÍDERES DA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA PARA APLICAR O 'SALVE' NO EDILSON, QUE DANIEL SERIA 'GERENTE DO TRÁFICO' DO BAIRRO CIDADE ALTA EM ALTA FLORESTA; QUE A VILMA PARTICIPAVA DA MERCANCIA DE ENTORPECENTES. O motivo foi confirmado pelo investigador Joelton Venancio da Silva: O 'SALVE' OCORREU PORQUE A VÍTIMA TINHA ENTRADO EM DISCUÇÃO COM UMA PESSOA DE NOME DANIEL 'FIOTI' QUE É INTEGRANTE DA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA, QUE A ESPOSA DELE VILMA 'AMANDA' É INTEGRANTE DA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA, QUE COMERCIALIZAM DROGAS NA CIDADE; QUE EM UM VÍDEO GRAVADO POR VILMA A VÍTIMA AGRIDE DANIEL E DIZ QUE ISSO NÃO IRIA FICAR ASSIM, QUE NÃO PODE BATER EM IRMÃO, QUE VILMA E DANIEL ERAM LOJISTAS DA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. Dessa forma, resta comprovado nos autos que os acusados Lucas Correia de Azevedo (vulgo "Babão"), Paulo Henrique de Oliveira da Silva (vulgo "Pardinho" ou "PH"), Daniel Pereira da Silva (vulgo "Fioti") e Vilma Germano da Silva (vulgo "Amanda") integram a organização criminosa armada denominada Comando Vermelho, atuando de forma coordenada no município de Alta Floresta/MT, com funções distintas e relevantes dentro da estrutura criminosa, inclusive com participação em atos de tortura e tráfico de entorpecentes. Destaco precedente desta Colenda Câmara Criminal que examinou situação análoga: Ementa: Direito penal e processual penal. Apelação criminal. Tentativa de homicídio qualificado. Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido. Participação emorganizaçãocriminosa armada. Parcial provimento do recurso. Reajuste da pena. I. Caso em exame 1. Apelação criminal interposta contra sentença que condenou o apelante pelos crimes de tentativa de homicídio qualificado pelo motivo torpe, porte ilegal de arma de fogo de uso permitido e participação emorganizaçãocriminosa armada, com fundamento no art. 121, § 2º, I, c/c art. 14, II, do Código Penal; art. 14 da Lei n. 10.826/03; e art. 2º, § 2º, da Lei n. 12.850/13. II. Questões em discussão 2. Há cinco questões em discussão: (i) verificar se a exasperação da pena-base em razão da culpabilidade, das circunstâncias e consequências do crime de tentativa de homicídio qualificado deve ser ajustada; (ii) analisar a fração de redução da pena em razão da tentativa; (iii) examinar o afastamento da análise desfavorável das consequências do crime de porte ilegal de arma de fogo; (iv) reduzir a fração da causa especial de aumento de pena do crime deorganizaçãocriminosa armada; e (v) a proporcionalidade da pena de multa. III. Razões de decidir 3. A culpabilidade do apelante, considerando a premeditação, a prática em via pública e o concurso de agentes, é mantida como circunstância judicial desfavorável, porém o quantitativo da pena imposta deve ser reduzido para quantum proporcional; 4. A fração de redução da tentativa deve ser fixada em ½, considerando o iter criminis percorrido e a pouca lesividade causada à vítima; 5. No crime de porte ilegal de arma de fogo, afasta-se a valoração negativa das consequências, por estar baseada em fundamentação inidônea; 6. Para o crime de participação emorganizaçãocriminosa armada, mantém-se a causa especial de aumento de ½, em razão da participação do recorrente na facção criminosaComandoVermelho; 7. A fixação da pena de multa deve guardar proporcionalidade com a pena privativa de liberdade. IV. Dispositivo e tese 8. Recurso parcialmente provido, pena definitiva reajustada. Tese de julgamento: [1]. A premeditação e o concurso de agentes justificam a exasperação da pena-base por maior culpabilidade na tentativa de homicídio qualificado, contudo o quantitativo de aumento deve ser fixado assegurando a proporcionalidade da pena. [2]. A fração de redução da pena pela tentativa deve considerar o iter criminis percorrido, sendo aplicada a fração de ½ em tentativa cruenta e imperfeita. [3]. O afastamento da valoração negativa das consequências do crime de porte ilegal de arma evita bis in idem quando a conduta já foi apenada em crime mais grave. [4]. Tendo em vista a identidade daorganizaçãocriminosa –ComandoVermelho –, a sua forma de atuação, bem como a aquisição e o modo extensivo do armamento pela referidaorganização, justificada a aplicação da fração máxima. [5]. A fixação da pena de multa deve observar duas etapas, sendo definida na primeira a quantidade de dias-multa, em patamar proporcional à pena privativa de liberdade e, na segunda, o montante do dia-multa, de acordo com a capacidade econômica do apenado. Dispositivos relevantes citados: CF/88, art. 93, IX; CP, arts. 14, II; 59; 68; 121, § 2º, I; Lei n. 10.826/03, art. 14; Lei n. 12.850/13, art. 2º, § 2º. Jurisprudência relevante citada: STJ, HC 760.576/GO, Rel. Min. Daniela Teixeira, Quinta Turma, DJe 29.10.2024; AgRg no HC 604.895/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 28.09.2020. (N.U 1024962-78.2023.8.11.0003, CÂMARAS ISOLADAS CRIMINAIS, LUIZ FERREIRA DA SILVA, Terceira Câmara Criminal, Julgado em 01/02/2025, Publicado no DJE 01/02/2025). Assim, rejeito o pleito absolutório formulado pelos apelantes quanto ao crime tipificado no art. 2º, § 2º, da Lei nº 12.850/2013. II. DO PLEITO DE ABSOLVIÇÃO DO CRIME DE TORTURA PREVISTO NO ART. 1º DA LEI 9.455/1997 A defesa técnica do apelante Paulo Henrique de Oliveira da Silva pleiteia sua absolvição quanto ao crime de tortura, sob o argumento de inexistência de provas seguras acerca de sua efetiva participação nos fatos. Sustenta que não foi reconhecido nas gravações que registraram as agressões e que inexiste nos autos elemento objetivo que o vincule diretamente à execução do ato delitivo. A defesa técnica do apelante Lucas Correia de Azevedo, por sua vez, requer sua absolvição, sob a alegação de que não há nos autos qualquer prova inequívoca de sua presença na cena do crime. Aduz que a qualidade das imagens constantes dos vídeos é insuficiente para permitir sua identificação com segurança, e que os elementos considerados na sentença condenatória — como tatuagens e apelido — não passam de indícios frágeis, baseados em meras conjecturas. Por sua vez, a defesa técnica dos apelantes Daniel Pereira da Silva e Vilma Germano da Silva pugna pela absolvição de ambos, sob o fundamento de que a própria vítima, em juízo, declarou expressamente que eles não participaram das agressões físicas. Argumentam que a condenação se baseou exclusivamente em presunções relativas a uma eventual instigação da prática delitiva, sem que houvesse qualquer comprovação concreta de conduta material apta a caracterizar coautoria ou participação nos atos de tortura. Os apelantes foram condenados com fundamento no art. 1º, inciso II, c/c § 4º, inciso III, da Lei n. 9.455/1997, cujo teor transcrevo a seguir: Art. 1º Constitui crime de tortura: II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos. § 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço: III - se o crime é cometido mediante seqüestro. A materialidade delitiva restou devidamente demonstrada por meio do conjunto probatório constante dos autos, especialmente pelo Boletim de Ocorrência (ID 239640700), pelo Termo de Declaração da vítima Edilson Martins da Silva (ID 239640701), pelo Laudo Pericial n.º 510.1.02.2022.029738-01 (ID 239640703), bem como pelo documento contendo imagens das agressões (ID 239640704) e pelos vídeos que registram o sequestro e as sucessivas agressões físicas sofridas pela vítima (ID 239640706, ID 239640708 e ID 239640709). Também corroboram a existência do fato criminoso o Relatório de Investigação elaborado pela autoridade policial (ID 239640710), o Laudo Pericial n.º 214.2.16.9067.2023.99346-A01 (ID 239640765) e o Relatório de Análise de Dados Extraídos de Aparelho Celular (ID 239640767). A motivação do crime está diretamente vinculada ao desentendimento anterior entre a vítima e o acusado Daniel, fato registrado em vídeo gravado por sua companheira (ID. 239640705), Vilma Germano da Silva, vulgo “Amanda”. No referido registro, entre os segundos 00:03 e 00:08, Vilma afirma: “oia a situação do catra aqui ô, agredindo o mano aqui ô na frente do meu barraco, olha aí a situação aí ô”. Em seguida, entre os segundos 00:10 e 00:16, prossegue: “acabou de empuracar na minha loja, entendeu, meteu o loco, e agora tá aqui agredindo meu marido ô, o FIOTI”. Já no trecho de 00:16 a 00:23, é possível ouvir Daniel proferir ameaça direta: “cê tá fudido, tá fudido em, bate de novo, bate mais, bate, bate mais”. A conexão entre esse episódio e o “salve” posteriormente aplicado à vítima resta evidente nos vídeos da tortura. No vídeo identificado como Parte 1 (ID. 239640707), entre os segundos 02:07 e 02:10, ouve-se: “cê bateu na cara do FIOTI irmão, nosso irmãozin, cê tá ligado fi”. Em 02:41, a vítima responde: “eu não bati na cara de ninguém não”, sendo imediatamente contraditada, entre os segundos 02:45 e 02:48, por outra voz que afirma: “cê larga de mentir que tem o vídeo lá, cê larga de mentir”. Tais diálogos confirmam o nexo causal entre a agressão anterior e a aplicação da tortura. Em sede judicial, a vítima relatou que procurou Daniel para cobrar uma dívida, momento em que houve um desentendimento, tendo desferido tapas contra o acusado. Relatou, ainda, que Vilma registrava o ocorrido por meio de filmagem e que, posteriormente, foi informado de que o castigo sofrido estaria relacionado a esse episódio. Quanto à execução da tortura, a vítima relatou ter sido abordada por três indivíduos, sendo um deles armado, e coagida a ingressar em um veículo com a cabeça abaixada — circunstância devidamente registrada em vídeo acostado aos autos (ID. 239640706) — a fim de impedir a identificação do destino. No local de destino, constatou tratar-se de uma região de mata, onde foi submetida a espancamento brutal, mediante socos, pontapés e diversos golpes com mangueira. No vídeo Parte 1 (ID. 239640707), entre os segundos 00:27 e 00:33, um dos executores anuncia: “ô é 50 no braço, 50 na perna, 50 nas costas”, evidenciando a premeditação e a sistematização da violência, que resultou em aproximadamente 150 golpes com mangueira, conforme relatado pela vítima e confirmado pelo laudo pericial. Em audiência, Edilson afirmou: “que bateram em suas costas, braço, perna; que bateram com mangueira”. O investigador da Polícia Civil Paulo Cristiano de Souza também declarou, em juízo: “que inicialmente verificaram que Edilson estava muito machucado na região das costas, dos braços; que, em conversa informal com ele, ele teria informado que teria passado por um processo de ‘salve’”. No que tange à autoria, os elementos coligidos aos autos indicam, de forma clara e objetiva, a participação dos seguintes denunciados: LEANDRO COELHO MACIEL: confessou, em juízo, sua participação no “salve”, atribuindo a si a função de impedir a fuga da vítima, evidenciando adesão voluntária e consciente à empreitada criminosa; LUCAS CORREIA DE AZEVEDO, vulgo “Babão”: aparece nos vídeos das agressões, sendo nitidamente identificado enquanto realiza filmagens, o que demonstra sua atuação ativa e indispensável à consumação do delito; PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA DA SILVA, vulgo “Pardinho” ou “PH”: é nominalmente mencionado no vídeo Parte 2 (ID. 239640708), entre os segundos 00:06 e 00:08, no trecho em que se ouve: “segura aí PARDINHO, deixa eu guardar os bagui, segura aí”. Ademais, é possível identificá-lo pelas tatuagens na mão, com as quais realiza o sinal do “V”, representativo da facção Comando Vermelho, entre o segundo 02:40 do vídeo Parte 2 e o segundo 00:09 do vídeo Parte 3 (ID. 239640709). Foi reconhecido, ainda, como “disciplina” da organização criminosa; DANIEL PEREIRA DA SILVA, vulgo “Fioti”, e VILMA GERMANO DA SILVA, vulgo “Amanda”: embora não apareçam nos vídeos da tortura, foram os responsáveis diretos por sua provocação, instigando e dando causa ao “salve”, como amplamente demonstrado nos autos. As condutas dos denunciados foram determinantes para a prática do crime, ainda que nem todos tenham desferido diretamente os golpes contra a vítima, razão pela qual respondem na qualidade de coautores ou partícipes. Restou igualmente comprovado que todos os envolvidos integravam a organização criminosa Comando Vermelho, circunstância que confere robustez adicional às declarações das vítimas e testemunhas, sobretudo diante do modus operandi da facção, notoriamente caracterizado por sigilo, hierarquia rígida e disciplina interna acentuada. Diante de todo o conjunto probatório produzido, conclui-se que os acusados Leandro Coelho Maciel, Lucas Correia de Azevedo, Paulo Henrique de Oliveira Da Silva, Daniel Pereira da Silva e Vilma Germano da Silva, foram responsáveis pelo crime de tortura mediante sequestro, previsto no artigo 1º, inciso II, §4º, inciso III, da Lei nº 9.455/1997, praticado de forma consciente, coordenada e com clara divisão de tarefas entre os membros da organização criminosa. Nesse contexto, destaca-se o seguinte julgado desta Câmara Criminal: DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA.TORTURA-CASTIGO. TENTATIVA DE SEQUESTRO. CRIMES OCORRIDOS NO INTERIOR DO ESTADO. COMPETÊNCIA DA 7.ª VARA CRIMINAL DE CUIABÁ. PRELIMINAR REJEITADA. MÉRITO. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. CONDUTAS TÍPICAS. CONDENAÇÕES MANTIDAS. RECURSO DESPROVIDO. I. Caso em exame 1. Recurso de apelação criminal interposto por 6 réus contra sentença proferida pela 7.ª Vara Criminal de Cuiabá/MT, que os condenou por delitos de organização criminosa,tortura-castigo e tentativa de sequestro. II. Questão em discussão 2. As questões em discussão consistem em: (i) verificar se o Juízo Especializado da Capital possuía competência para julgar o feito, a despeito de os crimes terem ocorrido no interior do Estado; (ii) examinar se as provas são suficientes para manter as condenações; (iii) aferir a viabilidade de desclassificação do crime detortura-castigo para lesão corporal. III. Razões de decidir 3. Por força do Provimento n.º 004/2008/CM e da Resolução n.º 11/2017/TP, expedidos por este Tribunal de Justiça dentro da sua prerrogativa de auto-organização, compete ao Juízo da 7.ª Vara Criminal Especializada da Comarca de Cuiabá/MT processar e julgar infrações penais envolvendo organizações criminosas, com jurisdição em todo o território estadual, de modo que inexiste ilegalidade ou inconstitucionalidade na tramitação de persecução penal deflagrada inicialmente no interior do Estado e, depois, remetida para o Juízo Especializado, que prevalece sobre os demais. 4. As declarações da vítima, corroboradas que estão pelas confissões extrajudiciais dos acusados e pelos depoimentos prestados em juízo pelos investigadores que oficiaram no caso, atestam que os apelantes se agremiaram de forma estruturalmente ordenada e com divisão funcional de tarefas ao “ComandoVermelho”, visando objetivo comum de obter vantagem mediante a prática de infrações penais graves, inclusive aplicação de “salves”, enquanto método de punir outros faccionados desobedientes e devedores inadimplentes da organização criminosa, como ocorreu na espécie, em que a vítima foi salva pelos investigadores na iminência de ser sequestrada e após ser torturada pelos réus, impondo-se assim manter as condenações. 5. Uma vez demonstrado que o terror psicológico e agressões físicas perpetrados pelos apelantes consistiram em meio para submeter a vítima a intenso sofrimento físico e mental, com o fim de lhe aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, mostra-se inviável a desclassificação do crime detortura-castigo para o delito de lesão corporal, sob pena de ofensa ao princípio da especialidade. IV. Dispositivo e tese 6. Recurso desprovido. Teses de julgamento: “1. Compete ao Juízo da 7.ª Vara Criminal Especializada da Comarca de Cuiabá/MT processar e julgar infrações penais envolvendo organizações criminosas, com jurisdição em todo o território estadual. 2. As declarações da vítima, somadas às confissões extrajudiciais e aos depoimentos prestados em juízo pelos policiais que atuaram no caso, formam arcabouço probatório suficiente para manutenção da sentença condenatória. 3. Uma vez evidenciado o dolo de infligir intenso sofrimento físico ou mental à vítima, como forma de lhe aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, resta inviável a desclassificação do delito detorturapara lesão corporal.” Dispositivos relevantes citados: CF, art. 5.º, LIII; CPP, arts. 69, 70 e 83; CP, arts. 148, 14, II; Lei n.º 12.850/2013, art. 2.º, §§3.º e 4.º, I; Lei n.º 9.455/1997, art. 1.º, II, §4.º, II. Jurisprudência relevante citada: STJ, HC n. 237.956/MT, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 5/6/2014, AgInt no AREsp 784.107/DF, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 06/11/2018; TJ-MT, N.U 0010534-74.2012.8.11.0042, j. 26/5/2015. (N.U 1001565-42.2023.8.11.0018, CÂMARAS ISOLADAS CRIMINAIS, GILBERTO GIRALDELLI, Terceira Câmara Criminal, Julgado em 04/04/2025, Publicado no DJE 04/04/2025). Assim, refutam-se os argumentos defensivos que alegam ausência de autoria, pois os elementos constantes dos autos permitem afirmar, com segurança, o envolvimento direto de todos os denunciados na prática do delito. Portanto, rejeito o pleito absolutório formulado pelos apelantes quanto ao crime previsto no artigo 1º da Lei nº 9.455/1997. III. DO PLEITO DE DECLASSIFICAÇÃO FORMULADO PELO APELANTE PAULO HENRIQUE DE OLIVEIRA DA SILVA: DO CRIME DE TORTURA (art. 1º, II, §4º, III, da Lei 9.455/97) PARA O CRIME DE LESÃO CORPORAL (art. 129 do CP) A defesa técnica do apelante Paulo Henrique de Oliveira da Silva pleiteia a desclassificação do crime de tortura mediante sequestro para o delito de lesão corporal, previsto no art. 129 do Código Penal, sob a justificativa de que o tipo penal do art. 1º, inciso II, da Lei n.º 9.455/1997 exige que o agente tenha guarda, poder ou autoridade sobre a vítima, circunstância que, segundo sustenta, não se faz presente no caso concreto. A dinâmica dos fatos demonstrou que a vítima Edilson Martins da Silva foi abordada por indivíduos armados, levada à força para local ermo e, ali, submetida a espancamento com uso de mangueira, sofrendo golpes nas costas, pernas e braços. Tal agressão foi registrada em vídeos amplamente analisados nos autos, os quais evidenciam a existência de uma sessão de tortura organizada e previamente autorizada como castigo interno da facção criminosa Comando Vermelho. Durante os vídeos, é possível ouvir comandos como: “ô é 50 no braço, 50 na perna, 50 nas costas” (vídeo parte 1, 00:27/00:33), indicando a contagem e sistematização dos golpes. A motivação da agressão também é verbalizada: no vídeo parte 1 (02:07/02:10), um dos envolvidos afirma: “cê bateu na cara do FIOTI irmão, nosso irmãozin, cê tá ligado fi”; na sequência (02:45/02:48), outro completa: “cê larga de mentir que tem o vídeo lá, cê larga de mentir”. As circunstâncias evidenciam que a ação foi executada como punição interna da organização criminosa, método conhecido como “salve”. Essa prática possui nítido viés disciplinar dentro da facção e implica imposição de poder sobre a vítima por parte dos executores, ainda que não se trate de vínculo jurídico ou institucional. No caso de Paulo Henrique, ficou comprovado que participou ativamente do episódio. Nos vídeos das partes 2 e 3, há registro de sua mão tatuada exibindo sinal com os dedos, associado à organização criminosa, além de sua identificação por nome no momento da gravação, com menção direta: “segura aí Pardinho, deixa eu guardar os bagui, segura aí” (vídeo parte 2, 00:06/00:08). Tais elementos não apenas demonstram sua presença, mas indicam que contribuía ativamente para a manutenção da ordem durante a sessão de tortura. No contexto da prática do “salve”, esse comportamento reflete o exercício de autoridade circunstancial sobre a vítima. O entendimento jurisprudencial já se firmou no sentido de que o poder mencionado no art. 1º, II, da Lei 9.455/1997 não está restrito ao exercício de função pública, podendo decorrer de situações fáticas em que o agressor se coloca em posição de superioridade frente à vítima, como se dá nos castigos promovidos por facções criminosas. Conforme se extrai deste julgado desta Câmara Criminal: (...) Como se sabe,o art. 1.º da Lei n.º 9.455/1997pune a tortura em dois incisos. Oinciso Itipifica a denominada tortura-prova (alíneaa); a tortura para a prática de crime (alíneab); e a tortura discriminatória (alíneac). Já oinciso IItrata da chamadatortura-castigo, consistente em submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Sabe-se ainda que os crimes de tortura tipificados nasalíneas do inciso Ido aludido dispositivo legalsão de caráter comum, isto é,podem ser perpetrados por qualquer pessoa, desde que atendidas as elementares dos tipos penais. Mesmo porque, embora em boa parte do mundo o delito de tortura configure conduta própria de agentes estatais ou de pessoas no exercício de função pública, a própria Convenção Internacional Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984, promulgada no Brasil por meio do Decreto n.º 40/1991, prevê no seu art. 1.º, n.º 2, que o referido Pacto“não será interpretado de maneira a restringir qualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo”. Por outro lado, no que refere à conduta insculpida no art. 1.º, inciso II, da Lei n.º 9.455/97,trata-se de crime definido pela doutrina como de natureza própria, isto é, cujo tipo penalexige especiais atributos ou qualidades específicas do agente para que este possa figurar como sujeito ativo do delito. Por apego à clareza, impõe-se transcrever a redação do tipo penal em questão, o qual preceitua que incorrerá nas penas por ele cominadas quem“submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”. Issonão implica dizer que o autor do crime deva necessariamente ser policial ou mesmo se tratar de agente público, conclusão esta reforçada pela própria Lei n.º 9.455/97,no art. 1.º, §4.º, inc. I, que dispõe que a pena do crime deverá ser majorada caso a conduta seja praticada por agente público. Por outro lado, ainda assim, a exegese da redação legal leva a concluir que é necessário que o praticante do crime, antes de cometê-lo,tenha a vítima sob a sua guarda, poder ou autoridade. Aliás, na lição deGuilherme Nucci,o sujeito ativo équalificado,“exigindo atributos específicos.Somente comete essa forma de tortura quem detiver outra pessoa sob sua guarda, poder ou autoridade”.(NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. – 8. ed. rev., atual. e ampl. – vol. 2 – Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 814) – Grifei. (...) Com relação aopleito subsidiário de desclassificaçãoda conduta para o delito de lesão corporal (art. 129, Código Penal), o pedidotampouco comporta provimento. Isto porque, como já dito, os apelantes satisfazem o atributo específico para figurarem como sujeitos ativos do crime de tortura-castigo, consistente na qualidade pré-existente de terem a vítima sob o seu poder e autoridade, ao passo que o terror psicológico e as lesões infligidas ao ofendido Haliber, enquanto método de grave ameaça e violência utilizado para lhe causar intenso sofrimento físico e mental, tinham comofinalidade a aplicação de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, de modo quea presença de tal elemento especializante faz a conduta se amoldar ao tipo do art. 1º, II, da Lei n. 9.455/1997, em detrimento do tipo genérico do art. 129 do Código Penal, sob pena de ofensa aoprincípio da especialidade. (N.U 1001565-42.2023.8.11.0018, CÂMARAS ISOLADAS CRIMINAIS, GILBERTO GIRALDELLI, Terceira Câmara Criminal, Julgado em 04/04/2025, Publicado no DJE 04/04/2025). Dessa forma, restando presentes os requisitos do tipo penal da tortura mediante sequestro, e ausente qualquer causa de exclusão ou desclassificação, rejeita-se o pleito defensivo. IV. DO PLEITO DE REVISÃO DA DOSIMETRIA DA PENA FORMULADO PELO APELANTE LUCAS CORREIA DE AZEVEDO O apelante Lucas Correia de Azevedo pleiteia a revisão da dosimetria da pena sob o argumento de que sua participação nos fatos foi de menor importância, pois não teria praticado agressões físicas contra a vítima, limitando-se a estar presente no local do “salve”. Sustenta que, mesmo se reconhecida a sua participação, esta foi secundária, devendo ser aplicada a causa de diminuição prevista no art. 29, §1º, do Código Penal. Além disso, a defesa requer a redução da pena-base fixada na sentença, alegando que não existem elementos nos autos que justifiquem a valoração negativa das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal, e, por conseguinte, pugna pela fixação da pena no mínimo legal, com a eventual substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos. A Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer, manifestou-se favoravelmente à aplicação da fração de aumento da segunda fase da dosimetria sobre as penas-base, e não sobre o intervalo entre elas. a) Do Crime de Integrar Organização Criminosa (art. 2º, caput c/c §2º, da Lei 12.850/13) Na primeira fase da dosimetria, mantenho a valoração negativa da culpabilidade, considerando que o réu integrava a organização criminosa Comando Vermelho, de atuação nacional e conhecida por sua estrutura armada e atuação violenta, o que acentua a reprovabilidade da conduta. Também mantenho a valoração negativa dos antecedentes, diante da condenação criminal transitada em julgado em 03/05/2023, que, embora não configure reincidência, serve para caracterizar maus antecedentes. Assim, mantenho a pena-base em 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de reclusão, e 96 (noventa e seis) dias-multa. Na segunda fase, reconheço a agravante prevista no art. 61, I, do Código Penal, em razão de condenação definitiva anterior, e aplico a fração de 1/6 sobre a pena-base já fixada: Acréscimo de 1/6 sobre a pena-base: 4 anos e 3 meses ÷ 6 = 8 meses e 15 dias Pena intermediária: 4 anos e 11 meses e 15 dias de reclusão + 112 dias-multa. Na terceira fase, incide a causa de aumento prevista no §2º do art. 2º da Lei 12.850/13 (organização criminosa armada), razão pela qual majoro a pena em 1/6, resultando no acréscimo de 9 (nove) meses e 27 (vinte e sete) dias de reclusão e 18 (dezoito) dias-multa, fixando a pena definitiva em 5 (cinco) anos, 9 (nove) meses e 12 (doze) dias de reclusão, além do pagamento de 130 (cento e trinta) dias-multa, à razão de 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo vigente à época dos fatos. b) Do Crime de Tortura Mediante Sequestro (art. 1º, II, §4º, III da Lei 9.455/97) Na primeira fase, mantenho a valoração negativa da culpabilidade, pois a conduta do réu, integrante da organização criminosa, foi especialmente nociva à ordem pública, e das consequências do crime, tendo em vista a divulgação do vídeo do “salve” em redes sociais, submetendo a vítima a vexame público. Fixo a pena-base em 3 (três) anos e 6 (seis) meses de reclusão. Na segunda fase, reconheço a agravante do art. 61, I, do CP, já referida, e aplico a fração de 1/6 sobre a pena-base, o que corresponde a um acréscimo de 7 (sete) meses de reclusão, fixando a pena intermediária em 4 (quatro) anos e 1 (um) mês de reclusão. Na terceira fase, incide a causa de aumento prevista no art. 1º, §4º, III, da Lei 9.455/97 (sequestro da vítima), razão pela qual majoro a pena em 1/6, resultando no acréscimo de 8 (oito) meses e 5 (cinco) dias, fixando a pena definitiva em 4 (quatro) anos, 9 (nove) meses e 5 (cinco) dias de reclusão. c) Da Causa de Diminuição do Art. 29, §1º do Código Penal O apelante pleiteia o reconhecimento de participação de menor importância, nos termos do art. 29, §1º, do Código Penal, ao argumento de que sua atuação nos fatos teria sido limitada, não tendo praticado agressões físicas contra a vítima. Contudo, tal alegação não encontra respaldo no conjunto probatório. Como restou apurado nos autos, Lucas Correia de Azevedo não apenas estava presente no ambiente da sessão de tortura (o chamado “salve”), como também teve atuação direta e dolosa em sua execução, contribuindo para a coesão da ação delitiva praticada em nome da facção criminosa denominada Comando Vermelho. Sua presença no local, ao lado dos demais agentes, reforçou o poder de intimidação, o domínio do grupo criminoso e a humilhação da vítima, elementos centrais à consumação do delito de tortura com fins de disciplina interna da organização. Ademais, não se extrai dos autos qualquer elemento que comprove sua atuação secundária ou acessória. Ao contrário, o que se verifica é a adesão consciente e voluntária à empreitada criminosa, desempenhando papel funcional dentro da dinâmica do crime. A aplicação da causa de diminuição exige comprovação de efetiva irrelevância da conduta para o resultado final, o que não se vislumbra no caso concreto. Dessa forma, afasto a incidência da causa de diminuição do art. 29, §1º, do Código Penal, mantendo-se a pena fixada sem o redutor pleiteado. d) Do Concurso Material (art. 69 do CP) Reconhecido o concurso material entre os dois crimes, somo as penas fixadas para cada delito, resultando na pena total de 10 (dez) anos, 6 (seis) meses e 17 (dezessete) dias de reclusão, além de 130 (cento e trinta) dias-multa, mantida a proporção de 1/30 do salário mínimo vigente à época dos fatos. e) Do Regime Inicial de Cumprimento da Pena Privativa de Liberdade Nos termos do art. 33, § 2º, alínea "a", do Código Penal, as penas privativas de liberdade superiores a 8 (oito) anos devem ter início de cumprimento em regime fechado. O referido dispositivo legal dispõe: Art. 33 – A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto. A de detenção, em regime semiaberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado. § 2º – As penas privativas de liberdade deverão ser executadas de forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá iniciar o cumprimento da pena em regime fechado. Dessa forma, considerando que a pena imposta ao apelante foi fixada em 10 (dez) anos, 6 (seis) meses e 17 (dezessete) dias de reclusão, impõe-se, nos termos legais, o regime inicial fechado para o cumprimento da reprimenda. Conclusão Dessa forma, acolhe-se parcialmente o pleito recursal formulado por Lucas Correia de Azevedo, a fim de que a fração de exasperação da segunda fase da dosimetria da pena seja aplicada sobre as penas-base, e não sobre o intervalo entre as penas mínima e máxima. Assim, a pena definitiva fica fixada em 10 (dez) anos, 6 (seis) meses e 17 (dezessete) dias de reclusão, a ser cumprida em regime inicial fechado, além de 130 (cento e trinta) dias-multa, mantida a proporção de 1/30 do salário mínimo vigente à época dos fatos. V. DO PLEITO DE REFORMA DA PENA FORMULADO PELOS APELANTES VILMA GERMANO DA SILVA E DANIEL PEREIRA DA SILVA Subsidiariamente, os apelantes Vilma Germano da Silva e Daniel Pereira da Silva pleiteiam a redução das penas que lhes foram impostas, sob o argumento de que as circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal não extrapolariam o padrão típico da infração penal, requerendo, por conseguinte, o afastamento da majoração da pena-base e o retorno ao mínimo legal. a) Quanto à apelante Vilma Germano da Silva A sentença reconheceu como desfavorável a circunstância da culpabilidade, destacando que a apelante não apenas esteve presente na sessão de tortura, como também foi responsável por filmar o “salve”, com o nítido propósito de divulgá-lo nas redes sociais e, assim, contribuir para o fortalecimento da imagem da organização criminosa. Tal conduta revela consciência plena da dinâmica delitiva, bem como adesão voluntária ao propósito de intimidação e dominação territorial exercido pela facção Comando Vermelho. As demais circunstâncias judiciais foram valoradas como neutras. Diante disso, não se verifica qualquer excesso ou ilegalidade na elevação da pena-base além do mínimo legal. Ao contrário, a fundamentação encontra respaldo no conjunto probatório e observa os critérios previstos no art. 59 do Código Penal, tendo sido a reprimenda adequadamente individualizada pelo Juízo sentenciante. b) Quanto ao apelante Daniel Germano da Silva No tocante ao apelante Daniel, a sentença foi ainda mais rigorosa, valorando negativamente três vetores do art. 59 do Código Penal: culpabilidade, antecedentes e consequências do crime. O julgador destacou que o réu era conhecido como gerente do tráfico no bairro Cidade Alta, circunstância que evidencia posição de liderança dentro da organização criminosa e justifica maior reprovabilidade de sua conduta. Ademais, Daniel possui condenações penais com trânsito em julgado, devidamente utilizadas como maus antecedentes na primeira fase da dosimetria, em conformidade com o entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça. Por fim, a sentença reconheceu como negativa a circunstância relativa às consequências do crime, tendo em vista a ampla repercussão do vídeo nas redes sociais, o constrangimento público imposto à vítima e o efeito intimidatório gerado na comunidade local. Diante desse conjunto, a majoração da pena-base para além do mínimo legal mostra-se justificada, proporcional e juridicamente escorreita, não havendo vício, nulidade ou erro material na fixação das reprimendas. Conclusão À vista da individualização das circunstâncias judiciais e da fundamentação adequada e suficiente apresentada na sentença, rejeita-se o pedido subsidiário de redução da pena-base formulado pelos apelantes, por inexistirem ilegalidades ou desproporcionalidades na dosimetria das penas fixadas na primeira fase. VI. DO PLEITO DE SUBSTITUIÇÃO DO REGIME FECHADO PELO REGIME SEMIABERTO FORMULADO PELOS APELANTES VILMA GERMANO DA SILVA E DANIEL PEREIRA DA SILVA Os apelantes Vilma Germano da Silva e Daniel Pereira da Silva postulam a alteração do regime inicial de cumprimento das penas privativas de liberdade, requerendo a fixação do regime semiaberto em substituição ao regime fechado que lhes foi imposto na sentença. Nos termos do art. 33, § 2º, do Código Penal: Art. 33, § 2º- As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto; c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto. No caso em exame, ambos os apelantes foram condenados a penas privativas de liberdade superiores a oito anos de reclusão – mais precisamente, 8 (oito) anos, 3 (três) meses e 23 (vinte e três) dias de reclusão –, em razão do concurso material entre os crimes de tortura e integração em organização criminosa armada. Dessa forma, nos termos da alínea “a” do § 2º do art. 33 do Código Penal, a imposição do regime inicial fechado é medida obrigatória, diante do quantum da reprimenda. Ressalte-se que situações análogas já foram objeto de apreciação por este Egrégio Tribunal, destacando-se, dentre elas, as seguintes decisões: REVISÃO CRIMINAL. ROUBO QUALIFICADO POR LESÃO CORPORAL GRAVE. ART. 157, §3º, PRIMEIRA PARTE, DO CÓDIGO PENAL. 1. PEDIDO DE REDIMENSIONAMENTO DA PENA. ALEGADO BIS IN IDEM NA DOSIMETRIA. INEXISTÊNCIA. CULPABILIDADE E CONSEQUÊNCIAS DO CRIME DEVIDAMENTE FUNDAMENTADAS EM ELEMENTOS DISTINTOS. 2. APLICAÇÃO DA AGRAVANTE DA REINCIDÊNCIA. CRIME PRATICADO DENTRO DO PERÍODO DEPURADOR. 3. MANUTENÇÃO DO REGIME INICIAL FECHADO. PENA SUPERIOR A 8 (OITO)ANOSDE RECLUSÃO. INTELIGÊNCIA DO ART. 33, § 3º, C/C O ART. 59 DO CÓDIGO PENAL. 4. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. Não há bis in idem na dosimetria da pena quando a culpabilidade e as consequências do crime são negativamente valoradas com base em fundamentos distintos. A culpabilidade foi agravada pela violência extrema e desnecessária aplicada às vítimas, enquanto as consequências foram avaliadas em função dos impactos psicológicos duradouros sofridos. 2. A agravante da reincidência foi corretamente aplicada, visto que o novo crime foi praticado pelo requerente antes de transcorrido o período depurador de 5 (cinco) anos, conforme o art. 64, I, do Código Penal. 3. Mantém-se o regime inicial fechado para cumprimento da pena, em razão da avaliação negativa das circunstâncias judiciais, quantum de pena e da reincidência do requerente, em conformidade com o artigo 33, §2º, a, do Código Penal. 4. Revisão criminal julgada improcedente. (N.U 1019001-34.2024.8.11.0000, CÂMARAS CRIMINAIS REUNIDAS, LUIZ FERREIRA DA SILVA, Turma de Câmaras Criminais Reunidas, Julgado em 09/10/2024, Publicado no DJE 09/10/2024) Diante disso, mantém-se o regime inicial fechado fixado na sentença para ambos os apelantes, rejeitando-se o pedido de substituição formulado em sede recursal. VII. DO PREQUESTIONAMENTO A título de prequestionamento, destaco que, muito embora “não se exige do julgador manifestação específica sobre cada um dos dispositivos legais invocados pelo recorrente, desde que a matéria tenha sido devidamente apreciada.” (N.U 1001781-80.2021.8.11.0015, CÂMARAS ISOLADAS CRIMINAIS, PEDRO SAKAMOTO, Segunda Câmara Criminal, Julgado em 07/11/2023, Publicado no DJE 09/11/2023), os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais referidos nas razões de apelação, relacionados que estão com as teses sustentadas neste recurso, foram devidamente observados e integrados à fundamentação deste voto, ficando, pois, expressamente prequestionados. DISPOSITIVO Ante o exposto, conheço dos recursos de apelação interpostos, rejeito as preliminares suscitadas pelo apelante Paulo Henrique de Oliveira da Silva – relativas à alegada incompetência territorial da 7ª Vara Criminal da Comarca de Cuiabá/MT e à nulidade das provas produzidas por juízo supostamente incompetente – e, no mérito, em consonância com o parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, NEGO PROVIMENTO aos recursos dos apelantes Paulo Henrique de Oliveira da Silva, Daniel Pereira da Silva e Vilma Germano da Silva. Dou, entretanto, parcial provimento ao recurso interposto por Lucas Correia de Azevedo, também em consonância com o parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, exclusivamente para determinar que a fração de exasperação da pena, na segunda fase da dosimetria, seja aplicada sobre as penas-base e não sobre o intervalo entre elas, fixando-se, assim, a pena definitiva em 10 (dez) anos, 6 (seis) meses e 17 (dezessete) dias de reclusão, a ser cumprida em regime inicial fechado, além de 130 (cento e trinta) dias-multa, à razão de 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo vigente à época dos fatos. É como voto. Data da sessão: Cuiabá-MT, 23/07/2025
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