Processo nº 1024073-24.2023.4.01.3500
ID: 290878153
Tribunal: TRF1
Órgão: 4ª Vara Federal Cível da SJGO
Classe: PROCEDIMENTO COMUM CíVEL
Nº Processo: 1024073-24.2023.4.01.3500
Data de Disponibilização:
06/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
NARAIENE CRISTINA MARQUES
OAB/GO XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Seção Judiciária de Goiás 4ª Vara Federal Cível da SJGO SENTENÇA TIPO "A" 1024073-24.2023.4.01.3500 PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7) AUTOR: JOSE ARNALDO PEREIRA, NANCY OL…
PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Seção Judiciária de Goiás 4ª Vara Federal Cível da SJGO SENTENÇA TIPO "A" 1024073-24.2023.4.01.3500 PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7) AUTOR: JOSE ARNALDO PEREIRA, NANCY OLIVEIRA RIBEIRO Advogado do(a) AUTOR: NARAIENE CRISTINA MARQUES - GO51371 REU: UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIAS, MUNICIPIO DE GOIANIA SENTENÇA I - RELATÓRIO Nancy Oliveira Ribeiro e José Arnaldo Pereira ajuizaram ação ordinária contra a Universidade Federal de Goiás - UFG e o Município de Goiânia, objetivando: a) anulação do resultado do concurso público municipal (Edital 001/2020) para o cargo de "Profissional de Educação II - Artes"; b) novo cômputo de notas com candidatos que fizeram provas iguais dentro de suas especialidades; c) reclassificação de José Arnaldo Pereira nas vagas destinadas às cotas raciais. Fundamentaram a inicial em: a) violação ao princípio da isonomia pela unificação de notas entre candidatos de diferentes especialidades artísticas submetidos a provas distintas; b) inconsistência no procedimento de heteroidentificação de José Arnaldo, que havia sido aprovado anteriormente pela mesma UFG em outros processos seletivos utilizando cotas raciais. Juntaram documentos comprobatórios, incluindo denúncia ao TCM-GO (ID 1590052875), briefing sobre professores de artes (ID 1590052874), histórico acadêmico de José Arnaldo demonstrando aprovações anteriores em cotas raciais na UFG. Por decisão de 25/08/2023 (ID 1760451111): a) foi extinto sem julgamento de mérito o pedido de "novo cômputo de notas" por inexistência de narração lógica entre fatos e conclusão (art. 330, §1º, III, CPC); b) foi deferida parcialmente a tutela de urgência determinando à UFG a reclassificação de José Arnaldo Pereira nas vagas para negros. A UFG apresentou contestação (ID 1651003457) alegando: princípio da vinculação ao edital, ato discricionário da banca examinadora, autonomia universitária e impossibilidade de substituição da banca pelo Judiciário. O Município de Goiânia apresentou contestação (ID 1893689172) arguindo preliminares de revelia, ilegitimidade passiva, incompetência da Justiça Federal e ausência de procedimento administrativo prévio. No mérito, defendeu o princípio da vinculação ao edital e ato discricionário da banca. A UFG requereu reconsideração da tutela (ID 1794098190), indeferida por decisão de 20/10/2023 (ID 1870229684). Em manifestações sobre instrução probatória, a UFG (ID 2042320666) e o Município (ID 2100192660) requereram julgamento antecipado, declarando não ter outras provas a produzir. Em 27/05/2024, os autores alegaram descumprimento da decisão liminar (ID 2129489041). A UFG comprovou o cumprimento da decisão (IDs 2165946586 e 2165946947), demonstrando que José Arnaldo foi reclassificado em 2º lugar nas vagas para negros, conforme boletim atualizado (Doc. SEI 5018326) e convocado pelo Município por meio do Edital 015/2024. É o relatório. Decido. II - FUNDAMENTAÇÃO 1. Questões Preliminares Rejeito as preliminares arguidas pelo Município. A competência da Justiça Federal decorre da presença da UFG no polo passivo. A legitimidade passiva de ambos os réus é evidente: UFG como organizadora e Município como realizador do certame. Não há necessidade de prévio esgotamento da via administrativa para questionar irregularidades em concurso público. 2. Mérito 2.1 Do pedido de novo cômputo de notas Este pedido já foi extinto sem julgamento de mérito por decisão anterior que transitou em julgado, não havendo o que decidir. 2.2 Da reclassificação de José Arnaldo Pereira nas cotas raciais A questão central refere-se à inconsistência do procedimento de heteroidentificação realizado pela UFG. Os documentos demonstram que José Arnaldo foi aprovado anteriormente pela mesma UFG em diversos processos seletivos utilizando cotas raciais: graduação em Dança (UFG-SISU-L4, 2020), mestrado em Performances Culturais (UFG-cotas, 2021), e processo seletivo para mestrado em Psicologia (UFG-cotas, PPI, 2022). A mesma instituição que o reconheceu como negro em processos anteriores o rejeitou no presente concurso, baseando-se em critérios fenotípicos que resultaram na conclusão de que possuía "cor de pele clara e boca afilada", não possuindo "traços fenotípicos que o habilitem para política de cota étnico-racial". Esta inconsistência compromete a segurança jurídica e viola o princípio da boa-fé administrativa. Embora o procedimento de heteroidentificação seja discricionário técnico, deve observar critérios objetivos e coerência institucional. A tutela de urgência foi corretamente deferida e integralmente cumprida. A UFG procedeu à reclassificação determinada judicialmente, posicionando José Arnaldo em 2º lugar nas vagas para negros, conforme boletim de desempenho atualizado (Doc. SEI 5018326). O candidato foi regularmente convocado pelo Município por intermédio do Edital 015/2024. Ao ser apreciada a liminar, foi proferida a seguinte decisão: Os Autores inscreveram-se em concurso público para provimento de vagas no cargo de Professor, disciplina Artes, regido pelo Edital nº 1/2020, do Município de Goiânia. Sustentam que a "disciplina de Artes" é subdividida em quatro subespecialidades diferentes (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro) e o edital previu a exigência de conhecimentos específicos e a aplicação de provas distintas para cada uma delas. Assim, embora aplicadas provas distintas para avaliar os "conhecimentos específicos" em relação a cada uma das quatro subespecialidades diferentes (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), as notas correspondentes foram unificadas para todos os candidatos, sem considerar a subespecialidade de cada um. Dessarte, o Município de Goiânia e a banca organizadora não teriam respeitado "a isonomia e as regras do edital, criando distinção entre candidatas e candidatos, que concorriam as mesmas vagas, quais sejam, vagas para o cargo de 'ARTE'." Pois bem. De fato, segundo se lê no trecho do Edital transcrito na Inicial (confirmado no sítio da Prefeitura de Goiânia - https://www.goiania.go.gov.br/sistemas/sicon/download/Administracao/Concurso _ 001 - 2020 _ Retomado/Anexo_ IV- Programa _de_Provas - 3o _ Aditivo.pdf; pesquisa feita aos 24~08-23, às 17h30), foram cobrados conteúdos diversos a título de conhecimentos específicos para cada subdivisão do cargo/função de Profissional de Educação II/Artes, quais sejam: Artes Visuais, Dança, Música e Teatro. Confira-se: CARGO/FUNÇÃO: PROFISSIONAL DE EDUCAÇÃO II/ARTES(ARTES VISUAIS) – 20 QUESTÕES 1. História das artes visuais. 2. Fundamentos e metodologias para o ensino das artes visuais. 3. As mídias contemporâneas no campo da Arte e do ensino. 4. História do ensino das artes visuais no Brasil. 5. Currículo e avaliação em Arte-educação. 6. Arte contemporânea e contextos educativos. 7. Conceitos fundamentais da História da Arte. 8. As poéticas visuais contemporâneas e o ensino de arte na escola. 9. Diversidade étnicocultural e suas implicações no contexto escolar. 10. Técnicas e materiais das artes visuais. 11. Visualidades no espaço escolar. 12. Escola, cultura visual e ensino de arte. CARGO/FUNÇÃO: PROFISSIONAL DE EDUCAÇÃO II/ARTES(MÚSICA) – 20 QUESTÕES 1. Estruturas e Formas Musicais. 1.1. Elementos da linguagem musical: intervalos; compassos, acento métrico, síncope, contratempo e quiálteras; andamentos; ornamentos; sinais de abreviação e repetição; escalas maiores, menores, cromática, de tons inteiros, e modais; tonalidades; transposição; acordes de 3, 4 e 5 sons; funções; modulação; fraseologia musical e cadências; textura; contraponto; formas musicais; leitura rítmica; solfejo. 2. História da Música Ocidental. 2.1. Principais gêneros, estilos, compositores e características socioculturais dos diferentes períodos da História da Música Ocidental – da Renascença ao Século XX. 2.2. Correntes da produção musical brasileira e contextos sócios históricos que a geraram. 2.3. Abordagens analítica, estética e sociocultural da música popular e folclórica nacional e internacional. 3. Educação Musical no Brasil: história e perspectivas atuais. 4. Fundamentos e Metodologias no Ensino de Música. 4.1. O Ensino da Música e seus processos criativos. 4.2. A utilização de instrumentos musicais no contexto escolar. 4.3. Aspectos da regência para corais. 4.4. Arranjos para corais no contexto escolar. 4.5. Classificações vocais; 4.6. Saúde e higiene vocal. 4.7. Novas tecnologias no campo da música e do ensino. 4.8. Música e prática pedagógica no contexto escolar. 4.9. Avaliação em Educação Musical. 5. Instrumentos Musicais. 5.1. Acústica musical e organologia: geração e propriedades do som; claves, série harmônica; classificação dos instrumentos musicais. 5.2. Instrumentos transpositores. CARGO/FUNÇÃO: PROFISSIONAL DE EDUCAÇÃO II/ARTES(ARTES CÊNICAS) – 20 QUESTÕES 1. História do Teatro Universal. 2. Teatro - Educação. 3. O jogo e o domínio da linguagem teatral. 4. Teatro - Educação em um contexto sociopolítico. 5. Artes cênicas e o desenvolvimento infantil. 6. O Teatro - Educação e a pesquisa contemporânea de Teatro. 7. Processo e/ou produto em Teatro - Educação. 8. Improvisação, dramaturgia, encenação, interpretação. 9. A formação do espectador de teatro. 10. O figurino, o adereço, a maquiagem, a cenografia, a iluminação teatral e suas relações com a caracterização do ator e a construção da cena. 11. O Teatro de bonecos, de sombras, de objetos, de máscaras. CARGO/FUNÇÃO: PROFISSIONAL DE EDUCAÇÃO II/ARTES(DANÇA) – 20 QUESTÕES 1. O ensino da dança: contextualização e propostas didático-metodológicas para o ensino da dança no ensino formal e não formal. 2. Conhecimento das dimensões e aspectos históricos, sociais e estéticos constitutivos da dança e suas relações com a sociedade e a cultura. 3. Procedimentos e princípios dos processos composicionais e dos processos criativos. 4. Estudos sobre espaço, tempo, ritmo, corpo e movimento. 5. O ensino da dança na perspectiva da inclusão: perspectivas e desafios. 6. Estudo dos aspectos conceituais, técnicos e estéticos da dança e de sua influência na Educação e na cultura brasileira. 7. Os artistas e/ou grupos suas práticas autorais e suas implicações como formadores, criadores e pesquisadores em dança na contemporaneidade. 8. O panorama e as tendências da dança contemporânea no Brasil: perspectivas histórias e estéticas. 9. As concepções de corpo presentes na dança com base nas questões de gênero, sexualidade e raça: entre as tradições, as conquistas e as rupturas. 10. Fundamentos da arte-educação e as relações com o ensino da dança na educação brasileira. 11. Ensino de dança hoje e suas relações com as políticas públicas, educacionais e culturais. No entanto, a classificação final foi feita em listagem única, englobando os concorrentes das quatro subáreas como se fosse uma só (ARTES), a despeito da disparidade dos conteúdos específicos exigidos para cada uma delas. Esse o quadro, é evidente a ofensa ao princípio da isonomia, uma vez que não se pode computar, numa mesma classe, as notas obtidas por candidatos submetidos a diferentes tipos de avaliação. Afinal, embora não haja problema em se permitir a inscrição de candidatos com formação em áreas artísticas distintas na dispitua de um mesmo cargo, as provas do concurso teriam de ser as mesmas para todas as subespecialidades, o que não ocorreu. Nada obstante, o pedido do polo ativo consistiu numa determinação de "novo computo de notas com os candidatos que fizeram provas iguais dentro de sua especialidade, nos termos do próprio edital". Todavia, ainda que deferido esse pedido, o problema da quebra de tratamento isonômico remanesceria, pois, ainda que aglutinadas (em listas específicas) as notas auferidas por candidatos que tenham feito a mesma prova de "conhecimentos específicos", não haveria como, posteriormente, sem novamente vilipendiar o princípio da isonomia, extrair uma nova lista de classificação geral que servisse para estabelecer os candidatos com melhor desempenho, pois todos concorrem para um mesmo cargo. Afinal, o edital não prevê algum de lista paralela de aprovados para o cargo de Profissional da Educação II/Artes elaborada de acordo com o tipo de licenciatura de cada candidato. O edital trata de somente um cargo, de modo que não é juridicamente possível, sem intromissão nas regras do próprio edital, determinar uma reclassificação paralela segundo a subespecialidade de cada candidato. A rigor, portanto, seria o caso de anulação do concurso em relação ao cargo de Professor da disciplina Artes. Porém, o polo ativo não pediu isso, nem lhe seria possível pedir, ao menos na presente ação, sem incluir no polo passivo todos os candidatos classificados no concurso para esse cargo. Logo, em relação a tal pedido, a "narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão", razão por que dele não conheço, nos termos do art. 330, § 1º, III, do CPC. De outro lado, também questionam os Autores a existência de contratos temporários, que estariam interferindo na contratação dos concursados. No entanto, a Justiça Federal não é competente para examinar esse assunto. Ainda que assim não fosses, para saber se uma contratação temporária reveste-se ou não de legalidade é necessário identificar os motivos da contratação, o que não ficou devidamente esclarecido nos autos. Insurge-se um dos Autores, por fim, contra a decisão administrativa que não homologou sua auto-declaração como negro/pardo. A respeito do assunto, dispõe o Edital que rege o certame: “5.6 Antes do Resultado Preliminar do concurso, os candidatos inscritos para concorrer às vagas reservadas aos candidatos negros serão convocados para submeter-se ao procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração, realizado por comissão designada para esse fim. 5.6.1 A convocação para o procedimento de heteroidentificação será publicado no endereço eletrônico do concurso
, no período previsto nos Cronogramas A, B, C, D e E do Concurso (Anexo I), não sendo encaminhada aos candidatos correspondência individualizada acerca dessa convocação. 5.6.2 Serão convocados para o procedimento de heteroidentificação os candidatos autodeclarados negros aprovados em todas as etapas do cargo pleiteado e que estiverem posicionados dentro do limite de 5 (cinco) vezes o número de vagas ofertadas, para a opção de participação de negros, para cada cargo/função, classificados em ordem decrescente da nota obtida. Na ocorrência de empate na última colocação todos os candidatos que obtiveram essa mesma nota serão convocados. 5.6.2.1 No caso de cargo/função em que não há reserva de vaga para candidatos autodeclarados negros no Edital, serão convocados, 5 (cinco) candidatos inscritos nesta categoria para as vagas que porventura vierem a ser criadas durante a vigência do concurso. Na ocorrência de empate na última colocação todos os candidatos que obtiveram essa mesma nota serão convocados. 5.7 Os candidatos às vagas reservadas aos negros, ainda que tenham obtido nota suficiente para aprovação na ampla concorrência, e satisfizerem as condições de habilitação estabelecidas no Edital, deverão se submeter ao procedimento de heteroidentificação. 5.8 O não comparecimento do candidato ao procedimento de heteroidentificação ou a recusa filmagem do procedimento, acarretará para ele a perda do direito as vagas reservadas aos candidatos negros e a consequente eliminação do concurso, ainda que tenha obtido nota suficiente para aprovação na ampla concorrência e independentemente de alegação de boa-fé. 5.8.1 O candidato cuja autodeclaração não for confirmada em procedimento de heteroidentificação poderá continuar participando do certame concorrendo às vagas de ampla concorrência, caso tenha pontuação para figurar entre os classificados. 5.9 A perda do direito às vagas reservadas do candidato por não confirmação da autodeclaração não enseja o dever de convocar suplementarmente candidatos não convocados para o procedimento de heteroidentificação. 5.10 O Centro de Seleção da UFG designará uma Comissão para o procedimento de heteroidentificação da autodeclaração étnico-racial, com poder deliberativo, composta por 3 (três) membros e seus suplentes, e também designará uma comissão recursal composta por 3 (três) membros e seus suplentes, distintos dos membros da comissão de heteroidentificação. 5.11 A avaliação da comissão quanto à condição de pessoa negra, será realizada presencialmente na cidade de Goiânia e(ou) Região Metropolitana. (...) Logo se vê, não há ilegalidade no simples ato de realizar a entrevista de confirmação da condição de pessoa negra. Isso porque – certamente para evitar fraudes e minorar os mencionados problemas da discriminação inversa subjacentes a esse tipo de ação afirmativa de caráter racial – o legislador teve o cuidado de prever a hipótese da “constatação de declaração falsa” do candidato que se autodeclarara negro ou pardo. Veja-se o parágrafo único do art. 2º da Lei Municipal 9.791/2016: “Art. 2º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia Estatística - IBGE. Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.” Daí por que, em tese, a política de ação afirmativa concebida no edital do concurso atende às disposições contidas na Lei Municipal 9.791/2016, na parte em que prevê a possibilidade de eliminação do candidato, se constatada a falsidade da declaração da condição de pessoa preta ou parda. Os problemas, porém, avançam para outro setor. Primeiro, a lei permite questionar não só a declaração em si, que pode ser formalmente verdadeira ou falsa, mas sim o próprio conteúdo da declaração, ou seja, a falsidade ideológica do que foi declarado. De modo que há aí uma inegável contradição: a lei permite que o candidato se autodeclare negro, porém permite que terceiros venham a refutar o conteúdo ideológico da “autodeclaração”? Sim. Essa é a curiosa sistemática da lei, que permite a inscrição por meio de autodeclaração do candidato, mas depois autoriza a aferição da “veracidade” da condição racial do candidato que se autodeclarara preto ou pardo. Quer dizer: a autodeclaração tem de ser “confirmada” a posteriori por terceiros!? Daí a necessidade de se definir, então, quais são os critérios que terceiros poderão usar para dizer se o conteúdo da autodeclaração é ou não verdadeira. Nesse sentido, pela lei, o benefício é destinado àqueles “que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE” (art. 2º, caput). À semelhança, o chamado Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) considera como população negra “o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga” (art. 1º, IV). Ocorre que o IBGE também deixa ao alvedrio da autodeclaração a definição da própria cor ou raça. O problema já foi alvo de julgamento do STF na ADPF 186/DF, quando se acolheu o voto do Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, entre cujos fundamentos está: “(...) Em outras palavras, tratando-se da utilização do critério étnico-racial para o ingresso no ensino superior, é preciso analisar ainda se os mecanismos empregados na identificação do componente étnico-racial estão ou não em conformidade com a ordem constitucional. Como se sabe, nesse processo de seleção, as universidades têm utilizado duas formas distintas de identificação, quais sejam: a autoidentificação e a heteroidentificação (identificação por terceiros). Essa questão foi estudada pela mencionada Daniela Ikawa, nos seguintes termos: “A identificação deve ocorrer primariamente pelo próprio indivíduo, no intuito de evitar identificações externas voltadas à discriminação negativa e de fortalecer o reconhecimento da diferença. Contudo, tendo em vista o grau mediano de mestiçagem (por fenótipo) e as incertezas por ela geradas – há (...) um grau de consistência entre autoidentificação e identificação por terceiros no patamar de 79% -, essa identificação não precisa ser feita exclusivamente pelo próprio indivíduo. Para se coibir possíveis fraudes na identificação no que se refere à obtenção de benefícios e no intuito de delinear o direito à redistribuição da forma mais estreita possível (...), alguns mecanismos adicionais podem ser utilizados como: (1) a elaboração de formulários com múltiplas questões sobre a raça (para se averiguar a coerência da autoclassificação); (2) o requerimento de declarações assinadas; (3) o uso de entrevistas (...); (4) a exigência de fotos; e (5) a formação de comitês posteriores à autoidentificação pelo candidato. A possibilidade de seleção por comitês é a alternativa mais controversa das apresentadas (...). Essa classificação pode ser aceita respeitadas as seguintes condições: (a) a classificação pelo comitê deve ser feita posteriormente à autoidentificação do candidato como negro (preto ou pardo), para se coibir a predominância de uma classificação por terceiros; (b) o julgamento deve ser realizado por fenótipo e não por ascendência; (c) o grupo de candidatos a concorrer por vagas separadas deve ser composto por todos os que se tiverem classificado por uma banca também (por foto ou entrevista) como pardos ou pretos, nas combinações: pardo-pardo, pardo-preto ou preto-preto; (d) o comitê deve ser composto tomando-se em consideração a diversidade de raça, de classe econômica, de orientação sexual e de gênero e deve ter mandatos curtos”. Tanto a autoidentificação, quanto a heteroidentificação, ou ambos os sistemas de seleção combinados, desde que observem, o tanto quanto possível, os critérios acima explicitados e jamais deixem de respeitar a dignidade pessoal dos candidatos, são, a meu ver, plenamente aceitáveis do ponto de vista constitucional.” Logo, o imbróglio continua: a lei permite a terceiros aferir a veracidade da autodeclaração do candidato, mas não traça quais seriam os critérios para se lhe afirmar a falsidade. No caso, contudo, a Comissão Avaliadora do concurso excluiu o Autor das vagas reservadas aos candidatos pretos ou pardos, por considerar que ele não apresentava traços fenotípicos compatíveis de pessoa negra, em desatendimento ao edital. Nessa linha, o critério utilizado para excluir o Autor do concurso foi mesmo aquele norteado pelos “traços fenotípicos” do candidato, como previsto no edital (item 5). O Autor recorreu, administrativamente, mas a comissão manteve o posicionamento. Em linha de princípio, porém, à vista da indefinição dos parâmetros de conferência da veracidade da autodeclaração do candidato, afigura-se adequada a previsão do edital acerca do fator fenotípico, sem que se possa, em tese, considerá-lo desproporcional. Afinal, também foi a cor – i.e., uma das características fenotípicas que delimitam pessoas em função da raça e coloração da pele – o critério (igualmente fenotípico, diga-se novamente) eleito pelo legislador para, bem ou mal, promover discriminações positivas em favor de pretos e pardos, pelo que as características fenotípicas dos candidatos revelam-se igualmente aptas à verificação de que trata o parágrafo único do art. 2º da Lei municipal 9.791/2016. Ângulo diverso, alega o Autor já ter sido avaliado pela mesma instituição (UFG), quando fora considerado negro, para efeitos de pleitear pelas cotas. Nessa linha, argumentou que: "(...) teve oportunidade de adentrar, cursar graduação e pós-graduação pelas/com cotas, assim: Graduação em Psicologia (PUC-GO/PROUNI - 2015); Graduação em Dança (UFG- SISU –L4, 2020); Mestrado em Performances Culturais (declarando pelas políticas de cotas, 2021); Mestrando em Psicologia (UFG- por cotas, PPI, 2022). ". No entanto, de acordo com os esclarecimentos prestados pelo Presidente da Comissão de Heteroidentificação da UFG, "7. O candidato cita em seu e-mail processos seletivos anteriores em que utilizou as cotas em outros processos seletivos. Constatou-se que em alguns desses processos (Psicologia PUC-GO, Dança UFG) a Comissão Heteroidentificação não atuou. No primeiro caso, a Comissão não tem atuação nas Bancas desta Instituição, no segundo caso, o processo seletivo aconteceu em 2016, ano em que a Comissão ainda não atuava no momento do ingresso dos alunos na UFG. 8. Em resposta à indagação sobre os processos em que esta Comissão atuou e deferiu o referido candidato, a Portaria Normativa 04/2018 do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão Secretaria de Gestão de Pessoas que regulamenta a atuação da Comissão de Heteroidentificação nos concursos públicos, versa que: "Art. 12, § 1o - As deliberações da comissão de heteroidentificação terão validade apenas para o concurso público para o qual foi designada, não servindo para outras finalidades." 9. O Edital 01/2020 que regulamente o processo seletivo em questão também declara sobre o assunto que: "5.13.2 Não serão considerados para a avaliação quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados, inclusive imagem e certidões referentes à confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em concursos públicos federais, estaduais, distritais e municipais." 10. Sendo assim, as decisões tomadas pelas bancas são exclusivas do processo seletivo em que a Comissão está atuando naquele momento." Tais disposições, contudo, vão de encontro à própria essência da heteroidentificação. Com efeito, se a heteroidentificação é baseada no fenotipo do candidato, e a mesma instituição de ensino (UFG) já classificara o Autor como pardo/negro, é verossimilhante a tese da desproporcionalidade da negativa ora manifestada. No mesmo sentido, a ementa do julgado a seguir transcrito: ENSINO SUPERIOR. MATRÍCULA. VAGA DESTINADA A CANDIDATO NEGRO E PARDO. AUTODECLARAÇÃO. COMISSÃO DE VERIFICAÇÃO. INCOERÊNCIA. SENTENÇA CONFIRMADA. 1. Trata-se de apelação de sentença que deferiu o pedido deferido o pedido para matrícula do autor no curso de Engenharia Civil da Universidade Federal de Goiás (UFG), ao fundamento de que o comprovante de vínculo com a UFG acostado às fls. 28 (NUM: 43329501) bem como a lista de aprovados de fls. 29 (NUM: 43329501) revelam, conforme alegado pelo autor, que o mesmo já é aluno daquela instituição no curso de Ecologia e Análise Ambiental, e mais, que o seu ingresso em referido curso se deu através do sistema de cotas (RI PPI), ou seja, em vaga destinada a candidato preto, pardo ou indígena. Tal fato, por si só, demonstra a verossimilhança das alegações autorais. 2. De acordo com a jurisprudência deste Tribunal, se o aluno foi considerado negro em concurso vestibular pretérito para fins de concorrência pelo sistema de cotas raciais, faz jus a mesma conclusão no certame imediatamente seguinte, sob pena de irrazoabilidade ou existência de subjetivismo na avaliação do critério, mormente se há a comprovação de sua condição por fotografia. Precedente. (TRF1, REO 0029015-55.2010.4.01.3700, Rel. Desembargador Federal Jirair Aram Meguerian, 6T, e-DJF1 Data: 22/07/2014 Página:187). 3. Nesse mesmo sentido: TRF1, AMS 1022834-33.2019.4.01.3400, Rel. Juiz Federal Ilan Presser, 5T, PJe 07/08/2020 e TRF1, AC 1006570-77.2015.4.01.3400, Rel. Desembargador Federal Daniele Maranhao Costa, 5T, PJe 11/02/2019.5. 4. Negado provimento à apelação e ao reexame necessário. 5. Majorada a condenação da apelante em honorários advocatícios, de 10% para 12%, sobre o valor atualizado da causa, nos termos do art. 85, § 11, do Código de Processo Civil. (TRF1 - Acórdão Número 1002331-79.2019.4.01.3500; Classe Apelação Civel; Órgão julgador: Sexta Turma; Relator Desembargador Federal João Batista Moreira; Relator convocado Juiz Federal Glaucio Maciel; PJe 06/04/2021). Já a urgência se faz presente, haja vista que os candidatos aprovados já começaram a ser convocados. Pelo exposto: (1) JULGO EXTINTO O PROCESSO, SEM JULGAMENTO MÉRITO, quanto ao pedido "para que ocorra novo computo de notas com os candidatos que fizeram provas iguais dentro de sua especialidade"; e (2) defiro parcialmente a tutela de urgência, para determinar à UFG que proceda à reclassificação do candidato José Arnaldo Pereira dentro das vagas destinadas aos negros e pardos, com as consequências daí advindas Não tendo havido alteração da situação fática e/ou jurídica a justificar posicionamento diverso, adoto como razões de decidir, na presente sentença, os mesmos fundamentos da decisão ora transcrita. 2.3 Da situação de Nancy Oliveira Ribeiro Nancy participou do concurso na ampla concorrência, obtendo 30ª colocação na especialidade Dança, ficando em cadastro de reserva. Não demonstrou prejuízo concreto decorrente da alegada unificação irregular de notas, uma vez que sua colocação específica na modalidade Dança não foi alterada pela computação geral. 3. Conclusão O pedido principal de José Arnaldo Pereira foi integralmente atendido com o cumprimento da tutela de urgência. A reclassificação nas cotas raciais foi efetivada, resultando em sua aprovação e convocação. III - DISPOSITIVO Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE EM PARTE os pedidos para: a) CONFIRMAR a tutela de urgência anteriormente deferida e cumprida, mantendo a reclassificação de José Arnaldo Pereira nas vagas destinadas às cotas raciais; b) JULGAR IMPROCEDENTE o pedido quanto à autora Nancy Oliveira Ribeiro, por ausência de demonstração de prejuízo concreto. Em razão da sucumbência majoritária dos réus, condeno-os ao pagamento de honorários advocatícios, que fixo em R$ 1.000,00 (mil reais), pro rata, considerando os critérios do § 2º do artigo 85 do CPC. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Goiânia, data da assinatura eletrônica.
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