Ronaldo Costa De Souza x Instituto Quadrix
ID: 293855257
Tribunal: TRF2
Órgão: SECRETARIA DA 5ª TURMA ESPECIALIZADA
Classe: AGRAVO DE INSTRUMENTO
Nº Processo: 5006851-98.2025.4.02.0000
Data de Disponibilização:
10/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
CELSO RUBENS PEREIRA PORTO
OAB/DF XXXXXX
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GUSTAVO PAES OLIVEIRA
OAB/MG XXXXXX
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Agravo de Instrumento Nº 5006851-98.2025.4.02.0000/ES
AGRAVANTE
: RONALDO COSTA DE SOUZA
ADVOGADO(A)
: GUSTAVO PAES OLIVEIRA (OAB MG214461)
AGRAVADO
: INSTITUTO QUADRIX
ADVOGADO(A)
: CELSO RUBENS PE…
Agravo de Instrumento Nº 5006851-98.2025.4.02.0000/ES
AGRAVANTE
: RONALDO COSTA DE SOUZA
ADVOGADO(A)
: GUSTAVO PAES OLIVEIRA (OAB MG214461)
AGRAVADO
: INSTITUTO QUADRIX
ADVOGADO(A)
: CELSO RUBENS PEREIRA PORTO (OAB DF021919)
DESPACHO/DECISÃO
Indeferida a tutela recursal vindicada, tendo em vista que se não verifica a probabilidade do direito invocado.
I – Trata-se de agravo interposto por
RONALDO COSTA DE SOUZA
, de decisão proferida pelo Juízo da 5ª Vara Federal Cível de Vitória – ES, que, nos autos do processo nº 5007347-62.2025.4.02.5001, indeferiu a tutela de urgência requerida, nos seguintes termos,
verbis:
(...)
É o relatório.
DECIDO
.
O Autor se inscreveu para participar do concurso público deflagrado pelo Conselho Regional de Odontologia do Estado do Espírito Santo - CRO/ES, concorrendo ao cargo de Assistente Administrativo.
Afirma ter realizado a sua inscrição para concorrer às vagas destinadas aos candidatos autodeclarados pretos/pardos, embora tenha sido excluído da referida lista após a etapa de heteroidentificação racial, o que considera se tratar de ato nulo, tendo em vista que "não houve justificativa da ré no sentido de tornar plausível o indeferimento do candidato, visto que fora extremamente generalista, sem qualquer especificidade quanto ao requerente em questão, desprezando totalmente a autodeclaração do mesmo".
Prossegue dizendo que "os critérios utilizados pela Comissão examinadora para identificação dos candidatos negros são manifestamente ilegais por carregarem nítida omissão, subjetividade e inconsistência, haja vista que resultam em decisões totalmente contrárias ao princípio da motivação do ato administrativo previsto na norma do art. 50, inc. III, da Lei Federal n.º 9.784/99". Além disso, afirma que "desde sempre se auto identifica como pardo", pois, "em consideração ao que se tem por base das características étnico-raciais de pessoas pretas/pardas, como cabelos naturalmente escuros e cacheados, narinas de base larga com ponta arredondada, lábios volumosos de coloração acentuada e pele morena, o autor possui todos estes requisitos".
Os Réus, por sua vez, defendem a regularidade do procedimento realizado, porquanto amparado nas regras previstas no edital do certame, e que não cabe ao Poder Judiciário substituir a banca examinadora.
O CRO/ES, além disso, afirma que, ao contrário do alegado, os fundamentos que embasaram a decisão recursal, ao confirmar a decisão da comissão de heteroridentificação, que indeferiu a autodeclaração do Autor, foram devidamente disponibilizados aos candidatos.
Pois bem. Convém registrar, inicialmente, que a jurisprudência se firmou pela constitucionalidade desse tipo de ação afirmativa como forma de prestigiar o princípio da igualdade material, sobretudo levando-se em conta as desigualdades decorrentes das situações históricas de que foram vítimas os grupos vulneráveis e beneficiários do sistema de reserva de vagas.
No caso concreto, no entanto, o que se está a questionar não é a constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014, mas sim, se os instrumentos utilizados para a sua efetivação o foram de forma equânime, diante da subjetividade atrelada aos critérios de verificação.
Quanto à avaliação étnico-racial, o Edital nº 1/2024 prevê o seguinte (anexo 24 do evento 1):
"
10.8 DO PROCEDIMENTO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO COMPLEMENTAR À AUTODECLARAÇÃO DOS CANDIDATOS NEGROS
10.8.1 O candidato que se autodeclarou negro, caso aprovado e classificado em todas as fases do processo seletivo público, será submetido ao procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros, a ser realizado na cidade de prova escolhida no ato de inscrição, promovido por uma comissão designada para tal fim, sob responsabilidade do INSTITUTO QUADRIX e do CRO-ES.
10.8.1.1 O procedimento de heteroidentificação será promovido sob a forma presencial ou, excepcionalmente e a critério do INSTITUTO QUADRIX, na forma telepresencial, mediante utilização de recursos de tecnologia de comunicação.
10.8.1.2 Em nenhuma hipótese será permitida a solicitação de alteração da forma definida de realização, de local, de data ou de horário estabelecidos na convocação para realização do procedimento de heteroidentificação.
10.8.1.3 Será convocada para o procedimento de heteroidentificação, no mínimo, a quantidade de candidatos equivalente a três vezes o número de vagas reservadas às pessoas negras previstas neste edital, ou dez candidatos, o que for maior, resguardadas as condições de aprovação estabelecidas neste edital.
(...)
10.8.3 C
onsidera-se procedimento de heteroidentificação a identificação por terceiros da condição autodeclarada.
10.8.4 Para o procedimento de heteroidentificação, o candidato que se autodeclarou negro deverá se apresentar à comissão de heteroidentificação, munido de documento de identidade original, na forma definida no subitem 13.11 deste edital.
10.8.4.1 A comissão de heteroidentificação será composta por, no mínimo, cinco integrantes e seus suplentes, que não terão seus nomes divulgados, e terá seus integrantes distribuídos por gênero, cor e, preferencialmente, naturalidade.
10.8.5 O procedimento de heteroidentificação poderá ser filmado e/ou fotografado pelo INSTITUTO QUADRIX para fins de registro de avaliação para uso da comissão de heteroidentificação.
10.8.5.1 O candidato que recusar a realização da filmagem e/ou fotografia do procedimento para fins de heteroidentificação será eliminado do processo seletivo público.
10.8.6
A comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato
.
10.8.6.1
Serão consideradas as características fenotípicas do candidato ao tempo de realização do procedimento de heteroidentificação
.
10.8.6.2
Não serão considerados, para fins do disposto no subitem 10.8.6 deste edital, quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados, inclusive imagem e certidões referentes à confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em concursos públicos federais, estaduais, distritais e municipais.
10.8.7
A comissão de heteroidentificação deliberará pela maioria de seus membros, sob forma de parecer motivado
.
10.8.7.1 As deliberações da comissão de heteroidentificação terão validade apenas para este processo seletivo público.
10.8.7.2 É vedado à comissão de heteroidentificação deliberar na presença dos candidatos.
10.8.7.3 O teor do parecer motivado será de acesso restrito, nos termos do art. 31 da Lei nº 12.527/2011.
(...)
10.8.17.1 O candidato que desejar interpor recurso contra o resultado preliminar do procedimento de heteroidentificação deverá observar os procedimentos disciplinados no respectivo resultado preliminar e o disposto no item 16 deste edital.
10.8.17.2 O julgamento do recurso será realizado por comissão recursal, que será composta de três integrantes distintos dos membros da comissão de heteroidentificação, nos termos do respectivo edital. Das decisões da comissão recursal não caberá recurso.
(...)"
O edital é claro ao dispor que
a confirmação da autodeclaração está condicionada ao seu acolhimento pela comissão de heteroidentificação.
Na presente hipótese,
a condição declarada pelo Autor foi rejeitada.
Quanto à seleção étnico-racial, a banca examinadora adotou dois critérios de avaliação, a saber: em um primeiro momento, colheu a declaração dos candidatos quanto à identificação da cor da sua pele (autoidentificação); e, após, procedeu à avaliação dos candidatos para a confirmação dessas declarações (heteroidentificação).
O candidato-Autor, após a avaliação realizada, teve a sua "autodeclaração recusada", sob o argumento de que "não apresenta fenótipo de uma pessoa negra, conforme determinado pela Portaria n
o
04/2018" (anexo 1 do evento 17).
A decisão foi adotada pela comissão de heteroidentificação,
por unanimidade
.
O recurso interposto pelo candidato foi, do mesmo modo, indeferido. De acordo com os CRO/ES, eis os fundamentos que embasaram a decisão da comissão recursal (fls. 4/7 do evento 22):
“
INDEFERIMENTO
:
A comissão recursal de heteroidentificação composta por três integrantes distintos dos membros da comissão de heteroidentificação inicial, considerando a filmagem e fotografia do procedimento de heteroidentificação, o parecer emitido pela comissão preliminar e a argumentação do recurso apresentado o, por unanimidade, ratifica a decisão inicial. Assim, fornece parecer desfavorável ao enquadramento do(a) candidato(a) como pessoa negra (preto ou pardo) para fins de reserva de vaga em concurso, por não apresentar conjunto de características fenotípicas suficientes, de acordo com os critérios estabelecidos na legislação vigente aplicável. Para reconhecer uma pessoa socialmente como negra (preta ou parda), a comissão recursal de heteroidentificação utilizou o conceito de "raça social". Este conceito, explicado pelo antropólogo Kabengele Munanga (graduado pela Universidade de Lubumbashi e doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo), é uma categoria construída a partir de um conjunto de características fenotípicas visivelmente identificáveis, tais como cor da pele, textura do cabelo (encarapinhado ou crespo), formato do nariz (com dorso largo), lábios grandes e carnudos, sobrancelhas grossas, entre outros critérios morfológicos. Estes aspectos são historicamente propiciadores de estigmas, estereótipos, preconceitos e discriminações, aludindo às origens pretensamente "raciais" das pessoas. Assim, não foram consideradas características biológicas e genéticas, descendência ou ancestralidade. A identidade racial não depende apenas da percepção individual sobre si, mas também da confirmação pelo grupo ao qual se declara fazer parte e pela definição dada pelos outros. Os traços fenotípicos, por serem aqueles que induzem à discri minação, são, portanto, o conjunto de regras que presidem a medida das identificações dos(as) candidatos(as) para legitimar o acesso à política de cotas para negros (pretos ou pardos).Com relação a avaliação realizada, basta a leitura da legislação vigente aplicável para confirmar e ter ciência que a comissão de heteroidentificação utilizou exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato, tendo seu parecer de forma unânime. Portanto, está claro que a aferição está fundamentada exclusivamente no critério fenotípico, em cumprimento à legislação vigente aplicável. Logo, a decisão da comissão de heteroidentificação foi motivada conforme legislação vigente aplicável , considerando a utilização do único critério legal a ser avaliado (fenotípico) e, em sua avaliação, não identificou nenhum traço fenotípico que possa considerá lo pessoa negra (preto ou pardo). Com relação a alegação de que está com “anemia leve ” e que este fato pode ter alterado a cor da sua pele, esclarecemos que a avaliação não leva em conta exclusivamente a cor da pele. Informamos ainda que foram cumpridos todos os procedimentos definidos pela legislação vigente aplicável, e, de acordo com o edital do concurso público. Com relação ao parecer emitido, de acordo com a legislação vigente aplicável , o teor do parecer motivado será de acesso restrito, nos termos do art. 31 da Lei nº 12.527/2011. Por fim, o argumento de que a autodeclaração deve prevalecer sobre o julgamento da comissão de heteroidentificação não procede. Conforme estabelece a legislação vigente, a autodeclaração é revestida de presunção de veracidade para fins exclusivos de participação nas primeiras etapas do certame. No entanto, essa presunção não é absoluta e cede diante do julgamento da comissão de heteroidentificação, que tem a responsabilidade de realizar uma avaliação objetiva e detalhada das características fenotípicas dos(as) candidatos(as). A fundamentação jurídica para a atuação da comissão de heteroidentificação encontra respaldo em diversos instrumentos normativos e jurisprudenciais. A Lei nº 12.990/2014, que reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos, prevê expressamente a possibilidade de verificação da veracidade da autodeclaração. Ademais, a legislação vigente aplicável regulamenta a atuação das comissões de heteroidentificação o, estabelecendo os procedimentos e critérios para a confirmação da autodeclaração. O Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento histórico da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41, reconheceu a constitucionalidade das políticas de cotas raciais e, por consequência, a validade dos mecanismos de verificação da autodeclaração. O Tribunal entendeu que a comissão de heteroidentificação atua como um instrumento essencial para assegurar a efetividade e a justiça das políticas de ação afirmativa, prevenindo fraudes e garantindo que os benefícios sejam direcionados aos verdadeiros destinatários. Além disso, a própria Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) destaca a importância da heteroidentificação como forma de coibir abusos e garantir a correta aplicação das políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade racial. A avaliação fenotípica realizada pela comissão é criteriosa e objetiva, baseada em características visíveis e socialmente identificáveis, como cor da pe le, textura do cabelo, entre outras. Portanto, a prevalência do julgamento da comissão de heteroidentificação sobre a autodeclaração é não apenas legal, mas também necessária para a eficácia das políticas de ação afirmativa, assegurando que os objetivos de inclusão e reparação histórica sejam plenamente alcançados."
Os fundamentos utilizados são suficientes a justificar a decisão dos membros, não havendo que se falar em nulidade do ato.
Ressalte-se que, nos termos do edital, o Instituto-Réu designou uma comissão de verificação para o procedimento de heteroidentificação da autodeclaração étnico-racial, com poder deliberativo, a qual,
por unanimidade
,
chegou à conclusão sobre a condição ora verificada
. E essa condição, como visto,
foi confirmada, também,
pela comissão recursal,
conforme os extensos fundamentos ora transcritos
.
Oportuno ressaltar que ao Poder Judiciário é permitido, apenas, avaliar a legalidade do ato administrativo e a observância às regras contidas no respectivo edital e,
quanto a este aspecto (motivação)
, não há ilegalidade a ser combatida.
Isso porque, na ADPF nº 186/DF
1
, que versou sobre a instituição do sistema de cotas para ingresso em instituições públicas de ensino superior, o Relator do processo, o então Ministro Ricardo Lewandowski, acompanhado por unanimidade,
reconheceu a legalidade da adoção, tanto do sistema de autoidentificação, como de heteroidentificação, para fins de aferição de cor e raça
, observadas as seguintes premissas:
“
A identificação deve ocorrer primariamente pelo próprio individuo
, no intuito de evitar identificações externas votadas à discriminação negativa e de fortalecer o reconhecimento da diferença.
Contudo,
tendo em vista o grau mediano de mestiçagem (por fenótipo) e as incertezas por ela geradas
- há (...) um grau de consistência entre autoidentificação e identificação por terceiros no patamar de 79% -,
essa identificação não precisa ser feita exclusivamente pelo próprio indivíduo
. Para se coibir possíveis fraudes na identificação no que se refere à obtenção de benefícios e no intuito de delinear o direito à redistribuição da forma mais estreita possível (...),
alguns mecanismos adicionais podem ser utilizados como: (a) a elaboração de formulários com múltiplas questões sobre a raça (para se averiguar a coerência da autoclassificação); (2) o requerimento de declarações assinadas; (3) o uso de entrevistas (...); (4) a exigência de fotos; e (5) a formação de comitês posteriores à autoidentificação pelo candidato
."
2
Portanto, a heteroatribuição, desde que precedida da autodeclaração dos postulantes e respaldada em critérios identificáveis,
constitui, em verdade, medida indispensável para assegurar a efetividade do sistema de cotas raciais
, beneficiando seus reais destinatários e evitando abusos que subvertam a função social perseguida.
Não bastasse o entendimento da Suprema Corte, a própria lei que rege a matéria (Lei nº 12.990/2014) prevê a existência de um procedimento administrativo de verificação racial, de acordo com a exegese do seu art. 2º, parágrafo único, ao consignar que, “na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público (...)”. Com isso, conferiu-se, à Administração, o direito de apurar as autodeclarações, de maneira a evitar possíveis pretensões indevidas, em respeito à legitimidade do sistema.
Trilhando esse mesmo raciocínio, o IBGE, cujo quesito de cor ou raça é utilizado como parâmetro para as autodeclarações, já deixou claro, em alguns estudos, que
não se utiliza única e exclusivamente do critério de autoatribuição, mas, também, da heteroatribuição (ou heteroclassificação)
. Cite-se, por exemplo, o documento nominado "Características Étnico-raciais da População - Um Estudo das Categorias de Classificação de Cor ou Raça, 2008"
3
, de onde se extrai o seguinte trecho, sobre esse ponto específico:
“Cabe sinalizar finalmente que, apoiados na fundamentação de diversos pesquisadores e especialistas na área de relações raciais no Brasil,
foi incluído na pesquisa o quesito 3.00, no qual o entrevistador procede à classificação do entrevistado segundo a cor ou raça, o que se conhece como heteroatribuição da pessoa entrevistada, de forma aberta ou sem pré-codificação
.”
Posteriormente, no ano de 2013, o IBGE publicou o documento intitulado "Estudos & Análises - Informação Demográfica e Socieconômica 2 - Características Étnico-Raciais da População - Classificação e Identidades"
4
, do qual se extrai que:
"A referência às categorias de cor ou raça, no procedimento de autoclassificação aberta da PCERP 2008, permite o diálogo com as noções de identidade e de grupo étnico, nos termos propostos por Cunha (1987b),
em particular, no que tange à acepção da autora sobre grupo étnico: “ser é considerar-se como tal”.
Assim, ser branca, ser morena, ser parda, ser negra, ser preta, ser amarela, ser indígena – para citarmos apenas as sete categorias mais frequentes na pesquisa – representa sentir-se, ver-se, posicionar-se como tal. Embora este apontamento possa parecer simples,
o processo de definir-se é bastante complexo, pois envolve também a heteroclassificação. Desse modo, "considerar-se como tal" requer e ao mesmo tempo impõe "ser considerado como tal"
".
Em vista do exposto, conclui-se que,
na hipótese
,
o sistema de identificação racial utilizado pela banca examinadora está em plena consonância com a ordem jurídico-constitucional
, na medida em que:
1)
a avaliação da comissão (heteroidentificação) foi feita em momento posterior à autoidentificação do candidato, não ficando o enquadramento predominantemente nas mãos daquele;
2)
a comissão fez a avaliação do candidato segundo critérios fenotípicos de forma pessoal, e
não por ascendência
; e
3)
foram assegurados o contraditório e a ampla defesa
, haja vista a previsão de recurso administrativo contra o não enquadramento dos candidatos nas vagas reservadas às pessoas negras (pretos e pardos).
Desse modo, levando-se em conta que o propósito da classificação racial não é estabelecer com precisão um tipo “biológico”,
mas
se aproximar de uma caracterização sociocultural
, como forma de beneficiar uma população de negros (pretos ou pardos), que,
pelo seu fenótipo
, acaba marginalizada,
afigura-se legítima a conduta adotada pela parte-Ré, que, além da autodeclaração dos candidatos, realizou uma análise das suas condições físicas,
baseada na opinião dos membros das comissões avaliadora e recursal
, e concluíram que o Autor não se enquadra nas condições de pessoa negra.
E esse propósito foi, inclusive, confirmado nas justificativas apresentadas pela comissão recursal, ao dispor que:
"Para reconhecer uma pessoa socialmente como negra (preta ou parda), a comissão recursal de heteroidentificação utilizou o conceito de "raça social". Este conceito, explicado pelo antropólogo Kabengele Munanga (graduado pela Universidade de Lubumbashi e doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo), é uma categoria construída a partir de um conjunto de características fenotípicas visivelmente identificáveis, tais como cor da pele, textura do cabelo (encarapinhado ou crespo), formato do nariz (com dorso largo), lábios grandes e carnudos, sobrancelhas grossas, entre outros critérios morfológicos. Estes aspectos são historicamente propiciadores de estigmas, estereótipos, preconceitos e discriminações, aludindo às origens pretensamente "raciais" das pessoas. Assim, não foram consideradas características biológicas e genéticas, descendência ou ancestralidade. A identidade racial não depende apenas da percepção individual sobre si, mas também da confirmação pelo grupo ao qual se declara fazer parte e pela definição dada pelos outros. Os traços fenotípicos, por serem aqueles que induzem à discriminação, são, portanto, o conjunto de regras que presidem a medida das identificações dos(as) candidatos(as) para legitimar o acesso à política de cotas para negros (pretos ou pardos)."
Com efeito, a legislação brasileira é omissa no que diz respeito a
critérios objetivos específicos
. Desse modo, não poderia, o edital, fixar tais
critérios objetivos
.
Daí se conclui pela legitimidade da formação de comissões para a realização da heteroidentificação (avaliação fenotípica), confirmando-se, assim, a autodeclaração firmada pelos candidatos ou, como na presente hipótese, a desconstituindo.
Nesse passo, considerando que a deliberação da comissão de verificação foi no sentido de considerar o Autor
inapto
para concorrer ao sistema de cotas para negros - o que foi confirmado pela comissão recursal -
e que foram respeitadas as diretrizes do edital e da legislação de regência
, conclui-se que a substituição dos critérios utilizados por um outro qualquer escolhido pelo Juiz significaria, às claras, invasão do Poder Judiciário no mérito administrativo, o que, como se sabe, é vedado pelo ordenamento jurídico
5
.
Também por essa razão não cabe a este Juízo avaliar quaisquer características do Autor, como a cor da pele, a textura do cabelo ou outra. Como dito,
trata-se de critérios subjetivos
, baseados na
opinião de cada membro
e de acordo com a avaliação realizada.
Por isso, inclusive, são formadas comissões avaliadoras
em cada processo seletivo
, cuja análise
pode divergir
de outras formadas em certames distintos, e de documentos e informações emitidos por outras entidades, sejam elas públicas e/ou privadas.
Sobre esse aspecto, o Edital nº 1/2024 prevê:
"10.8.4.1 A comissão de heteroidentificação será composta por, no mínimo, cinco integrantes e seus suplentes, que não terão seus nomes divulgados, e terá seus integrantes distribuídos por gênero, cor e, preferencialmente, naturalidade.
(...)
10.8.6.2
Não serão considerados, para fins do disposto no subitem 10.8.6 deste edital, quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados, inclusive imagem e certidões referentes à confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em concursos públicos federais, estaduais, distritais e municipais.
(...)
10.8.7
A comissão de heteroidentificação deliberará pela maioria de seus membros, sob forma de parecer motivado
.
10.8.7.1
As deliberações da comissão de heteroidentificação terão validade apenas para este processo seletivo público
."
Destaque-se, por oportuno, o posicionamento da Ministra Assusete Magalhães, no AREsp n
o
1965282-RS
6
. Ao deixar de conhecer do Recurso Especial interposto contra decisão do Tribunal Regional Federal da 4
a
Região sobre questão similar à tratada neste feito, aquela, citando, inicialmente, a manifestação do Ministro Roberto Barroso na ADC nº 41, na qual foram expendidas importantes considerações a respeito do tema, bem como sobre a constitucionalidade e fundamental importância da política instituída pela Lei n
o
12.990/14, ponderou o seguinte:
"(...) Especificamente sobre a autodeclaração, assim se pronunciou o Ministro Relator:
"Quanto à questão da autodeclaração, essa é uma das questões mais complexas e intrincadas em uma política de ação afirmativa, porque, evidentemente, você deve respeitar as pessoas tal como elas se autopercebem. Assim, pode ser que alguém que eu não perceba como negro se perceba como negro, ou vice-versa.
Essa é uma questão semelhante à que enfrentamos aqui na discussão sobre transgêneros e de acesso a banheiro público. Às vezes, a pessoa tem fisiologia masculina, mas um psiquismo feminino ou vice-versa. E, nesse caso, obrigar alguém que se perceba como mulher a frequentar um banheiro masculino é altamente lesivo à sua dignidade, ao seu direito fundamental. Assim, como regra geral, deve-se respeitar a autodeclaração, como a pessoa se percebe.
Porém, no mundo real, nem sempre as pessoas se comportam exemplarmente, e há casos - e, às vezes, eles se multiplicam - de fraude. Portanto, o que a Lei 12.990 faz? Ela estabelece, como critério principal, a autodeclaração, mas permite que, no caso de uso irregular, inveraz, desonesto da autodeclaração, haja algum tipo de controle. É o que diz o parágrafo único do artigo 2º:
"Art. 2º, Parágrafo único - Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis."
Assim, a meu ver, não é incompatível com a Constituição, respeitadas algumas cautelas, que se faça um controle heterônomo, sobretudo, nos casos em que haja fundadas razões para acreditar que houve abuso na autodeclaração.
A hipótese de controle de fraudes é para evitar, de um lado, que o candidato tente fraudar a reserva de vagas e, de outro lado, para evitar que a Administração tente fraudar a política, por exemplo, abrindo concursos sem reservar as vagas. (...)"
E mais:
"Dentre todas as opções, a que parece menos defensável é o exame do genótipo, uma vez que o preconceito no Brasil parece resultar, precipuamente, da percepção social, muito mais do que da origem genética. A partir desse ponto, porém, a eleição de determinado critério parece envolver avaliações de conveniência e oportunidade, sendo razoável que sejam levados em conta fatores inerentes à composição social e às percepções dominantes em cada localidade.
O sistema da autodeclaração, que tem sido adotado com maior frequência no país, apresenta algumas vantagens, sobretudo no que diz respeito à simplificação dos procedimentos e ao fato de se privilegiar a autopercepção, a partir do fenótipo - das características exteriores do organismo. Ela encoraja, ainda, os indivíduos a assumirem a sua raça, contribuindo para o reconhecimento dos negros na sociedade brasileira.
Há, todavia, problemas associados a esse modelo. Em especial, o risco de oportunismo e idiossincrasia, que poderia levar ao parcial desvirtuamento da política pública. Esse fato foi apontado pelo Professor Daniel Sarmento, que afirmou que "é evidente que a inexistência de mecanismos de controle abre espaço para autodeclarações oportunistas, da parte de pessoa s que não se consideram efetivamente pertencentes a grupos raciais historicamente discriminados".
Atenta aos méritos e deficiências do sistema de autodeclaração, a Lei nº 12.990/2014 definiu-o como critério principal para a definição dos beneficiários da política. Nos termos de seu artigo 2º, determinou que poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE". Porém, instituiu norma capaz de desestimular fraudes e punir aqueles que fizerem declarações falsas a respeito de sua cor. Nesse sentido, no parágrafo único do mesmo artigo 2º, estabeleceu que na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis". (...)
É possível perceber, portanto, que a Corte Constitucional fixou na dignidade humana o critério orientador à fiscalização pela administração. Por outro lado, o critério que norteia o Estatuto da Igualdade Racial, de fato, é o da fenotipia, e não o da ancestralidade. O que valida o amparo de ações afirmativas é a aparência afrodescendente e não uma alegada ascendência afrodescendente.
Assim, a autodeclaração não constitui critério absoluto da condição de ser negro ou pardo. Em interpretação teleológica, verifica-se que a finalidade do sistema de cotas raciais está relacionada ao combate, mediante ações afirmativas, do odioso preconceito racial. Porém, para se valer do benefício legal, é necessário ter fenótipo afrodescendente aos olhos do homem médio.
A autodeclaração, por si só e sem um mecanismo de controle de abusos, poderia acabar se prestando como porta aberta à fraude, em prejuízo daqueles a quem a lei visa a beneficiar. Por outro lado, a maneira científica de sindicar a ancestralidade africana seria o estudo completo do genoma de cada candidato, o que, por óbvio, seria inviável. Ademais,
a simples consideração do genótipo poderia não se prestar a identificar pessoas que de fato são vítimas de preconceito
.
Contudo, há que se atentar, conforme observado pelos Ministros quando do julgamento da referida ADC 41, que existem as "zonas cinzentas". Assim, "Nas zonas de certeza positiva e nas zonas de certeza negativa sobre a cor (branca ou negra) do candidato, não haverá maiores problemas. Porém, quando houver dúvida razoável sobre o seu fenótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial".
Nos casos em que não demonstrada arbitrariedade na decisão da Comissão, que, seguindo os termos estritos do edital, procedeu à verificação dos aspectos de identificação com o grupo de afrodescendentes, reputando-os não preenchidos, a autodeclaração efetivamente não é suficiente.
Cumpre consignar, ainda, que
a Administração, no exercício dos seus poderes vinculado e discricionário, enquanto consectários da legalidade, não pode ser substituída pelo Judiciário, isto é, não pode o julgador se imiscuir no mérito do ato administrativo.
Não obstante, quando verificada ilicitude na postura da comissão, seja por ausência completa de fundamentação, fundamentação inadequada ou inconsistente, desrespeito à dignidade da pessoa humana do candidato, sob o aspecto material ou formal (como nos casos de inobservância do contraditório e da ampla defesa, ou ainda, na inexistência de comissão plural), ou mesmo nos casos de patente divergência entre o acervo probatório dos autos e a conclusão a que chegou o órgão de controle, possível que se tenha por prevalente a autodeclaração racial do candidato.
O controle da autodeclaração se presta como forma de ratificação da política pública de ação afirmativa.
Assim, possível se afirmar que ilegal o ato administrativo que desconsidere a autodeclaração firmada pelo candidato sem que comprovada, a partir da garantia do contraditório e da ampla defesa, a pretensão de utilização indevida do sistema de cotas. A autodeclaração, com efeito, representa não só a confirmação de um fenótipo, mas também a exteriorização do sentimento de pertencimento a um determinado grupo social estigmatizado pelo preconceito.
A miscigenação característica da sociedade brasileira há séculos, é certo,
dificulta o estabelecimento de parâmetros objetivos para que se possa definir com precisão a parcela da sociedade brasileira considerada preta e, principalmente, parda
. Disso não se pode inferir que pessoas que não podem ser qualificadas como brancas aos olhos do entendimento mediano sejam deixadas à margem dos conjuntos, mediante negação da autopercepção, pautada em critérios razoáveis, como pardo ou preto (os indígenas, pertinente lembrar, também têm direito à inclusão pelo sistema de cotas). Isso vale principalmente para os pardos. Se distinção foi feita pela lei, tendo ela reputado que aos pardos também é assegurada proteção mediante política afirmativa, isso não lhes pode ser negado. Assim,
mesmo que os traços fenótipos constituam critérios primordiais para a aferição da validade da autodeclaração, a autodeclaração de indivíduo que, mesmo aparentando detendo traços externos limítrofes, não se enquadra como branco, e que tenha experimentado os efeitos nefastos do preconceito racial durante seu desenvolvimento humano, ou viva em contexto de família multirracial, não pode ser desprezada. Não se está a afirmar que a hereditariedade seja critério subsidiário a tanto. Não obstante, em hipóteses nas quais os traços fenotípicos sejam objeto de controvérsia, é dizer, que a heteroidentificação realizada pela Administração vá de encontro ao conteúdo da autodeclaração do candidato, possível reconhecer a condição de pardo, a despeito da controvérsia concreta acerca da fenotipia, à luz da prova apresentada pelo interessado, justamente porque presente, nessa situação, "dúvida razoável sobre o seu fenótipo", situação que foi expressamente contemplada na decisão do Supremo Tribunal Federal.
(...)
No caso dos autos, contudo, a comissão de verificação, constituída por no mínimo três membros que se autodeclaram de modos diversos entre si em relação à raça/etnia, sexo, cargo e lotação, ao avaliar o fenótipo do candidato, além da cor da pele, considerou outras características fenotípicas, tais como tipo do cabelo, formato do nariz e lábios.
Após aferição presencial da autodeclaração étnico-racial em 01/02/2019, de acordo com o parecer disponibilizado no Portal do Candidato, o candidato não teve sua condição homologada pela Comissão de Verificação da Autodeclaração Étnico-Racial (evento 21).
No parecer foi, ainda, destacado que a análise da autodeclaração do Autor se deu em conformidade com as disposições da Decisão CONSUN n. º 268/2012, com redação dada pela Decisão CONSUN n.º 212/2017, e do Edital de regência do processo seletivo, que instituíram o fenótipo como critério de verificação, bem como da Nota Técnica constante no Termo de Audiência atinente à Ação de Reintegração/Manutenção de Posse sob n.º 5011193- 85.2018.4.04.7100. Não apresentando o Autor as características fenotípicas exigidas, obstada restou a homologação de sua autodeclaração. E foi esclarecida a análise feita: (...)
Assim, não verificada arbitrariedade ou ilegalidade na postura da comissão, não deve ser desconsiderada a decisão da comissão de validação de autodeclaração, instituída com essa finalidade, com base em simples análise das fotografias juntadas aos autos, o que representaria, parece-me, interferência indevida do Poder Judiciário.
(...)".
No mesmo sentido foi a decisão do Órgão Especial do Tribunal Superior do Trabalho, ao manter o ato que negou a inscrição de um candidato autodeclarado pardo em concurso do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ).
No RO-101662-28.2018.5.01.0000, o Relator, Ministro Ives Gandra, consignou que a autodeclaração do candidato, quanto ao seu fenótipo, não é absoluta e, portanto, goza de presunção relativa de veracidade, e que a Comissão de Heteroidentificação do concurso, ao analisar, conforme previsto no edital, os traços fenotípicos do candidato, concluiu, por unanimidade, que este não se enquadra nas condições de pessoa preta ou parda, nos termos da Lei n
o
12.990/2014.
O Relator afirmou que "a fixação do fenótipo como elemento caracterizador da diferenciação racial tem sua razão de ser,
na medida em que eventual discriminação adviria da aparência pessoal
". E, no seu entendimento, a política de cotas visa coibir esse tipo de discriminação, "
e não promover determinados seguimentos da sociedade em razão de sua ascendência racial, social ou cultural, eventualmente fundado no genótipo das pessoas
".
No presente caso, as comissões constituídas, seguindo os termos do edital, procederam à verificação dos aspectos de identificação do Autor em dois momentos distintos,
assegurando o contraditório e a ampla defesa
, haja vista a previsão de recurso administrativo contra o não enquadramento dos candidatos nas vagas reservadas às pessoas negras.
A fundamentação utilizada para o indeferimento da autodeclaração foi no sentido de que o Autor "
não apresenta
traços fenotípicos de uma pessoa negra"
, cuja avaliação foi realizada de acordo com os critérios descritos no edital, confirmados no parecer da comissão recursal.
Destaque-se que o ponto central da demanda cinge-se em aferir o
cumprimento das cláusulas do edital por ambas as partes
. Logo, por não constatar qualquer ilegalidade no ato atacado capaz de autorizar a intervenção do Poder Judiciário, não cabe a este Juízo proferir ordem contrária à questionada atuação administrativa, porquanto
em consonância com a legislação que rege a seleção em apreço.
Pelo exposto,
INDEFIRO
o pedido de tutela de urgência.
Intimem-se
sobre o que restou decidido e, inclusive,
o Autor
, para que,
no prazo de 15 (quinze) dias
, manifeste-se sobre as contestações dos eventos 16 e 22, conforme os arts. 350, 351 e 437, § 1º, todos do NCPC.
Oportunamente, venham os autos conclusos.
Em sua minuta (Evento 1), a parte agravante requer, ao fim, (i) “seja conhecido, porquanto presentes os pressupostos de admissibilidade, e seja deferida a antecipação de tutela recursal, liminarmente, para suspender o ato de eliminação do agravante na etapa de heteroidentificação, para que assim possa prosseguir nas demais etapas do certame, garantido sua nomeação e posse. Subsidiariamente, que seja reservada a sua vaga no cargo em que concorre, para resguardar a nomeação e posse, conforme sua classificação, após decisão de segunda instância.”.
É o relato. Decido.
O deferimento da tutela de urgência reclama a probabilidade do direito (
fumus boni iuris
) e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (
periculum in mora
), na forma do artigo 300,
caput
, do Código de Processo Civil.
Ab initio,
mister asseverar, por oportuno, que ao Poder Judiciário cabe apenas a análise da legalidade e constitucionalidade dos atos praticados pela Administração, sendo vedada a sua interferência quanto à análise dos critérios de oportunidade e conveniência.
Nesse passo, não verifico na argumentação do agravante a probabilidade do direito, tendo em vista que a parte alega:
Desta forma, os critérios utilizados pela Comissão examinadora para identificação dos candidatos negros são manifestamente ilegais por carregarem nítida omissão, subjetividade e inconsistência, haja vista que resultam em decisões totalmente contrárias ao princípio da motivação do ato administrativo previsto na norma do art. 50, inc. III, da Lei Federal n.º 9.784/99
Note-se que, no evento 22, o agravado demonstra a decisão fundamentada da comissão de heteroidentificação. Como bem disse o juízo
a quo
:
Os fundamentos utilizados são suficientes a justificar a decisão dos membros, não havendo que se falar em nulidade do ato.
Ressalte-se que, nos termos do edital, o Instituto-Réu designou uma comissão de verificação para o procedimento de heteroidentificação da autodeclaração étnico-racial, com poder deliberativo, a qual,
por unanimidade
,
chegou à conclusão sobre a condição ora verificada
. E essa condição, como visto,
foi confirmada, também,
pela comissão recursal,
conforme os extensos fundamentos ora transcritos
.
Oportuno ressaltar que ao Poder Judiciário é permitido, apenas, avaliar a legalidade do ato administrativo e a observância às regras contidas no respectivo edital e,
quanto a este aspecto (motivação)
, não há ilegalidade a ser combatida.
A parte menciona a necessidade de prevalecer o critério de autodeclaração quando houver dúvida sobre o fenótipo: “Diante disso, é evidente que a banca examinadora não levou em consideração um dos elementos mais relevantes, qual seja, a autodeclaração do recorrente, que foi a mesma durante toda a sua vida com aceitação plena em todos os momentos, ferindo assim o princípio da razoabilidade”.
Destaco que, a autodeclaração não possui presunção absoluta, devendo, necessariamente, ser acompanhada de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.
Logo, conquanto seja a autodeclaração um critério legal, dar-lhe
status
de absoluto, no intuito de garantir o acesso a vagas públicas pelo sistema de cotas, ensejaria o desvirtuamento da própria ação afirmativa, uma vez que permitiria o ingresso de pessoas não pertencentes, efetivamente, ao grupo étnico declarado em universidades públicas e em carreiras públicas, valendo-se das vagas reservadas a cotistas.
Veja-se, a propósito, os seguintes julgados desta Corte:
CONCURSO PÚBLICO FEDERAL - COTAS RACIAIS - VAGAS DESTINADAS A NEGROS E PARDOS - LEI Nº 12.990/2014 - AUTODECLARAÇÃO - COMISSÃO DE AVALIAÇÃO - HETEROIDENTIFICAÇÃO - AFERIÇÃO DO FENÓTIPO UNICAMENTE POR FOTOGRAFIA ENVIADA PELO CANDIDATO - NECESSIDADE DE AVALIAÇÃO PRESENCIAL - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
I - A constitucionalidade da previsão, em editais de concursos públicos, de comissões de verificação para ratificar a autodeclaração realizada por candidatos negros ou pardos, foi atestada pela Suprema Corte por ocasião do julgamento da ADC 41/DF, oportunidade em que firmada a seguinte tese: "É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa"
II - Não cabe ao Judiciário substituir-se à Administração para tecer considerações a respeito do mérito do ato expedido, emitindo juízo de valor acerca do acerto ou desacerto quanto ao enquadramento ou não do candidato na condição de beneficiário da política afirmativa de cotas raciais para negros e pardos. O que se averigua, apenas, são os contornos de legalidade/razoabilidade dos procedimentos e ações adotados pela parte ré no curso do processo seletivo.
III - Hipótese em que as decisões proferidas pela comissão de verificação constituída para ratificação da condição de negra ou parda da candidata escoram-se exclusivamente na análise de fotografia enviada via internet no ato de inscrição, o que, a toda evidência, se revela como procedimento incapaz de atingir o mesmo grau de certeza obtenível na hipótese de uma avaliação presencial oportunamente realizada, notadamente pelo fato de a qualidade da foto ser suscetível a interferências de natureza diversas, como luminosidade do ambiente, tipo do aparelho de captação da imagem, uso de maquiagem e manipulação digital com eventuais alterações de brilho e contraste.
IV - Diante da subjetividade inerente aos procedimentos de análise levados a efeito por comissões de verificação constituídas em inúmeros certames realizados por todo o território nacional, cabe à Administração se valer, sempre que possível, dos mecanismos mais seguros e eficazes ao seu alcance, tanto para evitar o êxito de atitudes fraudulentas de determinados candidatos como para afastar o cometimento de injustiças com aqueles legitimamente 1 agasalhados pela garantia veiculada pela Lei nº 12.990/2014. V - Recurso provido. (TRF2, 7ª Turma Especializada, AC nº 0171089-63.2016.4.02.5101, Rel. Des. Fed. Sergio Schwaitzer, publ. 2.7.2020)
.
DIREITO ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. IFES. CARGO DE PROFESSOR. COTAS RACIAIS. AUTODECLARAÇÃO. FENÓTIPO. AVALIAÇÃO. ELIMINAÇÃO. COMISSÃO ESPECÍFICA. PREVISÃO NO EDITAL. PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. AUSÊNCIA.
1. Mantém-se a sentença que extinguiu, sem resolução do mérito, por inadequação da via eleita, ação mandamental objetivando anular decisão que eliminou candidata do concurso público para o cargo de Professor do IFES - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, fundada em que a pretensão demandaria dilação probatória para aferir, de forma inequívoca, o fenótipo da impetrante e enquadrá-la, ou não, nas vagas destinadas aos candidatos negros.
2.O fenótipo da Impetrante gera dúvidas, o que, por certo, demanda a dilação probatória para se aferir se, de fato, o ato administrativo encontra-se, ou não, revestido de legalidade, conclusão esta que esvazia os fundamentos dispostos pela candidata [?]
3. O edital fixa o conjunto de regras que regem o concurso e como lei interna vincula aos seus termos tanto a Administração como os participantes do certame.
4. Em concurso público, a intervenção judicial restringe-se aos aspectos da legalidade do edital e dos procedimentos, sendo vedado o exame das questões e dos critérios utilizados na atribuição das notas, responsabilidade da banca examinadora, resguardando-se, assim, a discricionariedade administrativa e a isonomia entre os candidatos.
5. Há duas formas para identificação dos fenótipos: a autoidentificação e a heteroidentificação. Feita a identificação pelo próprio indivíduo, para coibir possíveis fraudes, podem ser utilizados mecanismos adicionais, dentre eles a formação de comitês de verificação posteriores à autoidentificação.
6. O instrumento convocatório estabeleceu, além da autodeclaração, subitem 4.6, a heteroidentificação no subitem 4.8.3, com base na Lei nº 12.990/2014, prevendo que a verificação da compatibilidade da autodeclaração seria realizada por comissão designada especificamente para este fim, composta por membros distribuídos por gênero, cor e naturalidade, por entrevista gravada em áudio e vídeo, considerando a condição fenotípica do candidato, conforme subitem 4.8.4.
7. As fotografias que instruem a inicial aliadas ao fato de a impetrante já ter sido considerada preta ou parda em outro certame semelhante suscitam dúvidas quanto ao enquadramento realizado pela 1 Comissão no âmbito da verificação da autodeclaração prestada, mas que não podem ser sanadas na seara mandamental.
8. "O Mandado de Segurança detém entre os seus requisitos a comprovação inequívoca de direito líquido e certo pela parte impetrante, por meio da chamada prova pré-constituída, inexistindo espaço para a dilação probatória na célere via do mandamus." (RMS 61.135/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 08/10/2019, DJe 18/10/2019).
9. A autodeclaração goza de presunção relativa e os critérios de verificação no edital levam em conta apenas o fenótipo do candidato e não o genótipo. A alegação de ancestralidade, com anexação de fotografias, como prova pré-constituída, é inapta a demonstrar no Poder Judiciário o fenótipo da candidata e afastar as conclusões administrativas, até porque a entrevista perante a Comissão de Verificação, gravada em áudio e vídeo, sequer foi juntada aos autos.
10. Apelação desprovida. (TRF2, 7ª Turma Especializada, AC nº 0018760-41.2017.4.02.5001, Rel. Des. Fed. Nizete Lobato Carmo, publ. 5.6.2020)
In casu
, a agravante não demonstrou, ao menos nesse momento processual, de maneira satisfatória, um conjunto probatório que evidencie o direito alegado. Assim, em razão da presunção de legitimidade dos atos administrativos, necessária a observância do contraditório, devendo ser a questão aferida após a completa instrução do feito.
Isso posto,
indefiro
a tutela recursal vindicada.
II - Dê-se imediata ciência do teor desta decisão ao MM. Juízo
a quo
.
III - Intime(m)-se o(s) agravado(s) para resposta, nos termos do artigo 1.019, II do Código de Processo Civil, em interpretação conjunta com o
caput
do artigo 183 do mesmo diploma.
IV - Decorrido o prazo, com ou sem contraminuta, intime-se o Ministério Público para emissão de parecer (1.019, III, do Código de Processo Civil).
V - Após, voltem-me os autos conclusos.
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