Processo nº 0003835-30.2024.8.26.0624
ID: 276883638
Tribunal: TJSP
Órgão: Foro de Tatuí - Vara do Juizado Especial Cível e Criminal
Classe: Procedimento do Juizado Especial da Fazenda Pública
Nº Processo: 0003835-30.2024.8.26.0624
Data de Disponibilização:
23/05/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
NARRIMAN RAQUEL MUZEL MARTOS
OAB/SP XXXXXX
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ADV: Narriman Raquel Muzel Martos (OAB 417237/SP) Processo 0003835-30.2024.8.26.0624 - Procedimento do Juizado Especial da Fazenda Pública - Reqdo: Adilson Gerin Fonseca - Vistos. Relatório dispensad…
ADV: Narriman Raquel Muzel Martos (OAB 417237/SP) Processo 0003835-30.2024.8.26.0624 - Procedimento do Juizado Especial da Fazenda Pública - Reqdo: Adilson Gerin Fonseca - Vistos. Relatório dispensado nos termos do artigo 38, in fine, da Lei nº 9.099/95. Fundamento e DECIDO. Conveniente e oportuno o julgamento no estado em que se encontra o presente processo uma vez que a questão versa sobre matérias exclusivamente de Direito, havendo prova documental, o que dispensa a produção de perícia ou a designação de audiência para tomada dos depoimentos pessoais e inquirição de testemunhas, nos termos do artigo 355, inciso I, do Código de Processo Civil. Conforme já decidiu o Colendo Supremo Tribunal Federal: "A necessidade de produção de prova há de ficar evidenciada para que o julgamento antecipado da lide implique em cerceamento de defesa. A antecipação é legítima se os aspectos decisivos estão suficientemente líquidos para embasar o convencimento do Magistrado" (RE 101.171-8-SP). A demanda em comento versa sobre a pretensão deduzida, em Juízo, pela Autora, para que seu irmão, aqui como Primeiro Réu, seja compulsoriamente internado em clínica especializada e receba o devido tratamento, a fim de que se veja livre do uso de substâncias entorpecentes, ou, ao menos, para que obtenha auxílio no controle do vício. Conforme fls. 06, o Primeiro Réu possui histórico de problemas relacionados ao uso de substâncias químicas e entorpecentes, necessitando, pois, da internação pleiteada. Em assim sendo, claro está que a dependência química de que sofre o Primeiro Réu chegou a tal estágio que o impede de, conscientemente, submeter-se voluntariamente ao tratamento, e, assim, o Primeiro Réu, ao consumir compulsivamente devastadoras substâncias entorpecentes, adotou comportamento autodestrutivo, que pode levar a óbito. Pois bem. A questão sobre a qual se versa no seio da presente demanda impõe a apreciação de duas importantes discussões jurídicas. 1. Eficácia e efetividade dos direitos fundamentais de segunda geração e a possibilidade de serem pleiteados perante o Poder Judiciário A primeira delas há algum tempo vem suscitando o debate da doutrina e da jurisprudência. E a controvérsia se dá em um campo mais amplo que abrange também este direito a receber tratamento médico-hospitalar por parte do Poder Público , e diz respeito justamente à eficácia e à efetividade dos direitos fundamentais de segunda geração, ditos sociais, inclusive no que tange ao instrumental jurídico disponível a lhes outorgar realização, bem como, à possibilidade de serem pleiteados perante o Poder Judiciário. E o que ora pretende a Autora é a garantia do direito fundamental à saúde em prol de seu irmão. Tal direito fundamental social está positivado no caput, do artigo 6º, e recebe regulamentação pormenorizada nos artigos 196 a 200, todos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A problemática que envolve a efetividade dos direitos sociais de segunda geração remonta à sua própria natureza. Isto porque, exigem, para concretização, realizações materiais que envolvem elevados investimentos por parte do Poder Público. E tal exigência os coloca em posição diametralmente oposta à dos direitos fundamentais de primeira geração, já que estes, ligados ao valor liberdade, impõe ao Estado simples atitude de abstenção, visando à garantia da esfera de autonomia dos indivíduos. Em assim sendo, alguns óbices são levantados por parte da doutrina e da jurisprudência no que tange à possibilidade de concretização dos direitos sociais a partir do repertório técnico-jurídico, os quais passo a expor em apertada síntese. O primeiro ponto que se coloca é o princípio da separação de Poderes. Argumenta-se que o Poder Judiciário, ao determinar prestação positiva a ser cumprida pelo Poder Executivo, estaria exercendo interferência indevida no âmbito deste. Ademais, fala-se também sobre a "reserva do possível", segundo a qual, em resumo, as prioridades sociais são muitas e, os recursos públicos, limitados. Assim, uma vez que a efetivação dos direitos sociais exige gastos públicos, cujo numerário provém do orçamento, a decisão acerca das prioridades a serem atingidas neste campo deveria ficar a cargo dos agentes políticos que foram eleitos para o comando dos Poderes Executivo e Legislativo. Seriam estes a ostentar legitimidade democrática, já que eleitos pelo voto da maioria da população, que, por sua vez, os escolheu com base em projetos político-partidários, os quais pretende ver implementados. Todavia, tais argumentos de ordem jurídico-formal já não mais se sustentam, mormente levando-se em conta as reais falhas na prestação dos serviços sociais que sobremaneira atingem as bases e, até mesmo, a existência da Democracia, o que reclama interpretação material das normas constitucionais, exegese esta voltada à realização de valores permeados na Carta Maior por intermédio da alta abstração dos seus princípios, que assim o permite. A diferenciação supramencionada entre os direitos fundamentais de primeira e de segunda geração vem sendo mitigada, uma vez que se percebeu que mesmo aqueles primeiros demandam prestações positivas por parte do Estado, não se bastando tão-somente na contenção da interferência estatal. Assim, por exemplo, a vida, a integridade física e a liberdade do cidadão dependem, em grande parte, de altos investimentos em segurança pública e saúde. E é tal simbiose que se observa no caso sub judice, uma vez que a prestação positiva estatal no fornecimento de tratamento adequado à drogadição juridicamente embasada no direito social à saúde mostra-se fundamental à preservação da própria vida, que se trata de liberdade individual prevista no caput do artigo 5º, da CF/88. Com relação à suposta ofensa da separação de Poderes, deve-se frisar que o dogma criado no entorno deste princípio, desde a sua elaboração por Montesquieu, não vem permitindo que cumpra a finalidade à qual foi desenvolvido, qual seja, a proteção dos direitos fundamentais. De fato, basta olhar para os diferentes modelos adotados pelas nações democráticas, cada qual desenvolvido de acordo com as circunstâncias históricas do respectivo País, para que se conclua pela não existência de uma regra absoluta. A separação de Poderes não é um fim em si mesmo, tampouco um conceito absoluto. Tem a conformação que a Constituição de cada nação lhe der e serve ao fim precípuo de defesa dos direitos dos cidadãos, a partir da divisão das três principais tarefas estatais entre órgãos distintos e independentes, que reciprocamente controlam uns aos outros pelo sistema de "freios e contrapesos". Desta feita, não há que se falar em violação à separação de Poderes quando o Poder Judiciário determina ao Poder Executivo uma determinada prestação positiva relativa à efetivação de direitos fundamentais, pois, desta forma, está-se preservando a finalidade precípua do sistema elaborado no seio da Revolução Francesa, já que tal atuação da Justiça garante a realização de direito fundamental. Por outro lado, no que tange à limitação dos recursos, é certo que as políticas públicas devem ficar a cargo da Administração Pública e dos Parlamentos, uma vez que estes possuem legitimidade democrática e foram eleitos por conta de ideologias e projetos políticos que devem ser implementados, pois assim é da vontade da maioria. Ocorre, todavia, que se reconhece no âmbito da moderna doutrina do Direito Constitucional a questão do "mínimo existencial". Trata-se de um conjunto de prestações materiais mínimas, a garantir a satisfação das necessidades básicas da pessoa, ou seja, uma "rede de proteção" abaixo da qual ninguém passa, pois esta transposição significaria a própria aniquilação do indivíduo. Note-se que a garantia destas prestações essenciais está na base da própria Democracia, pois, sem elas, é impossível que o indivíduo exerça qualquer direito individual de liberdade, ou mesmo, político, até porque está em risco a sua própria vida. E, é a garantia da prestação deste "mínimo existencial", por meio da imposição de ações materiais por parte do Poder Público, que justifica a legitimidade do Poder Judiciário a intervir, já que, em última análise, trata-se da garantia da própria Democracia. Como ensina Andreas J. Krell: "No entanto, as questões ligadas ao cumprimento das tarefas sociais como a formulação das respectivas políticas, no Estado Social de Direito não estão relegadas somente ao governo e à administração, mas têm o seu fundamento nas próprias normas constitucionais sobre direitos sociais; a sua observação pelo Poder Executivo pode e deve ser controlada pelo Poder Judiciário. A essência de qualquer política pública é distinguir e diferenciar, realizando a distribuição dos recursos disponíveis na sociedade. Essas políticas expressam escolhas realizadas pelos vários centros de decisão estatal, sendo limitadas pelas normas programáticas constitucionais. Onde o processo político (Legislativo, Executivo) falha ou se omite na implementação de políticas públicas e dos objetivos sociais nela implicados, cabe ao Poder Judiciário tomar uma atitude ativa na realização desses fins sociais através da correição da prestação de serviços sociais básicos". O "mínimo existencial" está diretamente ligado a uma das dimensões do princípio central da dignidade da pessoa humana, positivado no inciso III, do artigo 1º, da CF/88. Pode-se extrair uma dupla acepção do princípio da dignidade, ou seja, uma dimensão defensiva e, uma outra, protetiva/promocional. Pela primeira, impõe-se ao Estado e à sociedade um limite, ou seja, o respeito à dignidade existente em cada indivíduo. A tal aspecto liga-se a autonomia da vontade, garantida pelas liberdades individuais. A segunda dimensão consubstancia-se em tarefa imposta ao Estado e à coletividade no sentido de preservar e promover a dignidade, especialmente criando condições que possibilitem seu exercício e sua fruição. É a esta esfera protetiva/promocional do princípio maior que se liga o "mínimo existencial" e os direitos fundamentais sociais. E, neste passo, faz-se especialmente necessária a atuação positiva estatal, inclusive do Poder Judiciário, no sentido de promover a dignidade humana, principalmente quando da omissão dos demais Poderes. Somente assim pode-se preservar a sobrevivência da Democracia, com a garantia aos indivíduos de condições materiais mínimas essenciais para o exercício de qualquer outro direito. E o direito social à saúde, por estar diretamente ligado à preservação dos direitos fundamentais individuais à vida e à integridade física, integra o "mínimo existencial". Como bem ressalta o grande constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet, "a denegação dos serviços essenciais de saúde acaba por se equiparar à aplicação de uma pena de morte". Os diversos princípios constitucionais citados demonstram à saciedade a obrigação do Estado amparar integralmente, com os meios e recursos existentes, toda e qualquer pessoa que necessite de assistência médica e/ou medicamentosa, desde que não possam arcar com tais necessidades sem prejuízo de sua própria subsistência, prestação esta ínsita ao "mínimo existencial", pois, sem ela, estaria o cidadão condenado à morte. A Lei Magna, em seu artigo 6° dispõe: Art. 6°. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Por outro lado, traz o artigo 196, da CF/88: Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Ainda, os incisos I e V, da Constituição do Estado de São Paulo, estabelecem competir ao Sistema Único de Saúde a assistência integral à saúde, bem como, a distribuição de medicamentos e de equipamentos de interesse para a saúde, facilitando à população o acesso a eles. Art. 223. Compete ao sistema único de saúde, nos termos da lei, além de outras atribuições: I - a assistência integral à saúde, respeitadas as necessidades específicas de todos os seguimentos da população; () V - a organização, fiscalização e controle da produção e distribuição dos componentes farmacêuticos básicos, medicamentos, produtos químicos, biotecnológicos, imunobiológicos, hemoderivados e outros de interesse para a saúde, facilitando à população o acesso a eles. Regulamentando tal dispositivo constitucional, que pelo seu conteúdo e extensão, já revela se tratar de norma de eficácia plena, a Lei n° 8.080/90, em seu artigo 6°, veio a dispor que: Art. 6°. Estão incluídos ainda no campo de atuação do Sistema Únicos de Saúde - SUS: I - a execução de ações: () d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica. Importa salientar que a distribuição de medicamentos a que alude o texto da Carta Política Estadual, conforme artigo 223, inciso V, não significa o fornecimento de medicamentos e de equipamentos médico-hospitalares disponíveis exclusivamente no sistema de saúde brasileiro, mas daqueles que sejam capazes de debelar, ou mesmo minimizar, com relativo êxito, as causas e as conseqüências da doença apresentada pelo paciente. Se a Constituição e a lei obrigam o Estado a prestar assistência integral à saúde pública, inclusive farmacêutica, e se alguém dela necessita para a própria sobrevivência, incumbe ao sistema de saúde instituído providenciar, às suas expensas, o cumprimento da norma legal, sob pena de, assim, esvaziar o próprio Estado Social e Democrático de Direito, garantia fundamental do cidadão. Discorrendo sobre os modos pelos quais a lei pode se manifestar em relação à atividade administrativa, o eminente professor Vicente Ráo, assevera que: " a discricionariedade é produzida pela própria ordem jurídica (Merkl, Verwaltungsrecht, p. 144) e, por isso mesmo, dentro da ordem jurídica há de ser exercida, sem se confundir com a arbitrariedade. E para não se confundir com a arbitrariedade é (e neste ponto as duas doutrinas acima expostas se encontram e podem conciliar-se) que os atos discricionários tendam, efetivamente e honestamente, à realização dos fins legais que, ditando-os, os houverem determinado e, mais, que procedam de modo a não ferir qualquer direito subjetivo: 'bem é que saibam os administradores que, em todos os atos chamados discricionários, qualquer apreciação arbitrária, qualquer abuso de autoridade, seja em relação aos funcionários, sem a em relação aos cidadãos, é uma verdadeira injustiça que não difere, substancialmente, da violação ou infração de um direito'". A Constituição é o fundamento de validade de toda a ordem estatal e suas normas são dotadas de juridicidade, ou seja, são dever-ser aptas a conformar a realidade fenomênica. Em assim sendo, diante de normas constitucionais de infraconstitucionais, não pode deixar o Estado de cumprir para com suas obrigações no que tange à saúde sob a alegação de falta de recursos ou de programas públicos de saúde restritivos. Mister ressaltar que o artigo 198, da CF/88, organiza as ações e serviços públicos de saúde em um sistema único, financiado por todos os entes da federação. A responsabilidade pelas prestações relativas à saúde, portanto, é solidária, e incumbe à União, aos Estados, ao Distrito Federal e ao Município. Em assim sendo, pode o indivíduo eleger contra quem demandar aquilo de que necessita para o seu bem-estar. 2. Renúncia ao direito à integridade física e à vida pelo usuário de entorpecentes e legitimidade da intervenção estatal na esfera de autonomia da vontade Neste ponto, tem-se que o Primeiro Réu, ao querer inserir em seu organismo substâncias entorpecentes, para a obtenção de prazer bioquímico, o faz dentro da sua esfera de liberdade garantida pela autonomia da vontade. Cumpre aferir, assim, se o exercício de tal liberdade e a renúncia que o Primeiro Réu opera, com relação aos seus direitos de personalidade ligados à integridade física e à vida, quando chega a tal ponto do uso de entorpecentes em que a sua existência vem colocada em risco, é absoluta ou permite a intervenção estatal para fins de conte-la. E a conclusão de há muito formada por este Juízo dá-se no sentido de que, de fato, as renúncias a direitos de personalidade direitos fundamentais relacionados às dimensões física e moral da pessoa, em sua humanidade, individualidade e pessoalidade , encontram respaldo no direito de liberdade advindo da autonomia da vontade delineada pela própria Constituição. Todavia, o exercício de tal renúncia encontra limites na própria atuação da pessoa no sentido de se auto-aniquilar por completo, fazendo extinguir a sua personalidade e a sua dignidade, o que legitima a intervenção protetiva estatal. Atualmente, é inquestionável que a Constituição possui força jurídica, ou seja, seus preceitos, tanto os princípios quanto as regras, possuem imperatividade para produzir efeitos sobre o Estado e os cidadãos, o que Konrad Hesse chamou de "força normativa da Constituição". Não obstante, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por se tratar de Constituição rígida, toma posição de supremacia no âmbito do ordenamento jurídico, como fundamento de validade de todas as normas infraconstitucionais. É principalmente por meio de seus princípios, enquanto normas jurídicas abertas a conteúdos valorativos ligados ao ideal de justiça, que a Constituição irá penetrar no âmbito das relações de Direito Público, público-privadas e interprivadas, conformando-as segundo seus ditames. A doutrina constitucional contemporânea, que atravessa fase a qual vem sendo chamada de Pós-Positivismo, soa em uníssono ao fundamentar sua construção teórica conferindo aos princípios constitucionais a qualidade de normas jurídicas, dotados, portanto, de imperatividade, cujos mandamentos podem ser invocados autonomamente perante os Tribunais como fonte de direitos e obrigações. Para além dessa força normativa reconhecida aos princípios, atribui-se-lhes ainda, com exclusividade, o papel de centralidade no âmbito do ordenamento jurídico, enquanto repositórios axiológicos, dos quais derivam outros princípios, bem como as demais regras jurídicas, fundamentando e garantindo unidade a todo o sistema normativo. Como enfatiza Paulo Bonavides, as " novas constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais". Hodiernamente, quando as sociedades deram-se conta das particularmente perigosas tendências políticas levadas ao extremo pelos regimes fascista, nazista e comunista, que, cada qual a seu modo, ceifaram milhões de vidas humanas , bem como, dos progressos científicos e técnicos, ambos a desprestigiar o homem, mostra-se um consenso e uma sensibilidade gerais em reconhecer na pessoa humana o centro de toda a ordem estatal, enquanto fundamento de legitimidade e objetivo desta. A dignidade da pessoa humana, por conseguinte, passa a figurar como princípio maior do ordenamento jurídico, a orientá-lo e fundamentá-lo sob a tábua axiológica que decorre da ideia de homem, a ponto de Pietro Perlingieri afirmar que "a intensidade da tutela da pessoa humana indica o grau de civilidade de um ordenamento". Não é por outro motivo que a dignidade humana foi erigida pela Constituição Federal de 1988 à condição de princípio fundamental da República Federativa do Brasil, tendo em vista a posição topográfica em que se encontra expressamente prevista (artigo 1º, inciso III, da CF/88), no âmbito do Título I, que cuida "Dos Princípios Fundamentais", entre o Preâmbulo e o Título II, que trata "Dos Direitos e Garantias Fundamentais", de forma a se configurar como o princípio central e fundamental, não só da ordem constitucional, mas de todo o ordenamento jurídico pátrio. Com base nos ensinamentos filosóficos de Immanuel Kant, ao traçar o conceito de "imperativo categórico", é possível delinear a dignidade como o poder individual de se autodeterminar de acordo com a própria vontade no que tange às decisões essenciais a respeito da própria existência, agindo para consigo mesmo e para com os outros de modo a nunca se utilizar da humanidade, própria ou alheia, simplesmente como meio, mas sempre como fim absoluto, de forma que tal máxima possa ser alçada pela própria vontade do indivíduo à qualidade de lei universal da natureza, a qual esta mesma vontade legisladora estará, ao mesmo tempo, submetida. Como dito supra, observa-se uma dupla acepção do princípio da dignidade, consubstanciada em uma dimensão defensiva e uma dimensão prestacional, vez que se perfaz em limite e tarefa tanto do Poder Público quanto da comunidade em geral. Na primeira proposição, apresenta-se como dever de abstenção. Na segunda esfera, como tarefa imposta ao Estado e à sociedade, a dignidade da pessoa humana reclama que estes, principalmente no que toca ao Poder Público, guiem suas ações, tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando sua promoção, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade. Na lição de Ingo Wolfgang Sarlet: " fechado o parêntese e na perspectiva já sinalizada (dignidade como limite e tarefa), sustenta-se que uma dimensão dúplice da dignidade manifesta-se enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana (vinculada à idéia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência), bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada e até mesmo e principalmente quando ausente a capacidade de autodeterminação. Assim, a dignidade, na sua perspectiva assistencial (protetiva) da pessoa humana, poderá, dadas as circunstâncias, prevalecer em face da dimensão autonômica". É dentro desta óptica que se considera a dignidade da pessoa humana como princípio flexível o bastante para abarcar, em seu conteúdo, conceitos conflitantes como autonomia da vontade e o princípio da "não coisificação" do homem, a figurar em igual posição hierárquica enquanto abstratamente considerados. Parte-se da premissa, portanto, de um entendimento dicotômico e aberto do princípio maior da dignidade da pessoa humana, previsto expressamente no inciso III, do artigo 1º, da CF/88, cujo conteúdo compõe-se por uma dimensão defensiva e outra protetiva/promocional, das quais são expressão, respectivamente, o interesse privado e o interesse público, a figurarem em pé de igualdade enquanto abstratamente considerados. A renúncia a direitos de personalidade fundamenta-se enquanto exercício lato sensu desses próprios direitos, como expressão legítima da autonomia da vontade e do livre desenvolvimento da personalidade de seu titular, princípios que, por sua vez, decorrem da dimensão defensiva da própria dignidade humana. Porém, há de se considerar que a renúncia também apresenta um aspecto limitativo da personalidade do homem. Assim, a autonomia da vontade há de ser ponderada com o princípio da "não coisificação" do homem que é sempre fim em si mesmo , este expressão da esfera protetiva da dignidade humana. Tal balanceamento de valores constitucionais deve ser pautado pelo princípio da proporcionalidade e pelo mesmo princípio da dignidade da pessoa humana. Este último garantirá um maior peso à sua dimensão protetiva quando o indivíduo atuar de modo a prejudicar sua própria existência e autodeterminação futura, pois acabaria, nesse caso, com sua própria condição de homem, enquanto valor central. Retomando a apreciação da hipótese sob julgamento, como dito, o Primeiro Réu, ao exercer a sua plena liberdade, de forma a usar compulsivamente substâncias entorpecentes, acaba por renunciar direitos próprios de personalidade, mas, neste atuar, coloca em risco a sua autodeterminação futura e ruma para a extinção da sua própria condição de ser humano. Nestes termos, legitima-se e impõe-se a intervenção estatal, com a internação compulsória, para fins de garantir ao Primeiro Réu, ao menos, uma chance de retomar sua consciência, a partir de tratamentos medicamentosos e terapêuticos que controlem o vício e as sofríveis sensações iniciais da abstenção, e, assim, preservar a própria condição humana do Primeiro Réu. Por óbvio, o tratamento dispensado deverá dar-se apenas pelo tempo necessário à desintoxicação do organismo do Primeiro Réu, observados os ditames da legislação pertinente e, ainda, o princípio da brevidade, para que não se incorra no risco da institucionalização do indivíduo, com graves riscos psíquicos. Portanto, caberá à clínica e ao Município Réu, nestes termos, informar a este Juízo, com periodicidade bimestral sobre a evolução do tratamento, nos termos do artigo 8º, da Lei nº 10.216/2001. Por tudo quanto exposto e pelo que mais dos autos consta, JULGO PROCEDENTE o pedido para condenar o Primeiro Réu (Adilson Gerin Fonseca) em obrigações de fazer e não fazer, para que se submeta a tratamento, ainda que compulsório, junto à clínica especializada, e, ainda, condenar o Município Segundo Réu em obrigação de fazer para que providencie e disponibilize, ao Primeiro Réu, tratamento para controle de dependência química em clínica especializada, providenciando a internação compulsória para o caso de resistência. Consigno, ainda, mormente tomando em conta a "política antimanicomial" vigente, que o Município Réu poderá optar pelo tratamento ambulatorial do Primeiro Réu, junto ao Centro de Atendimento Psicossocial CAPS , desde que tenha respaldo em avaliação médica que indique tal forma de tratamento como mais adequada à situação do Primeiro Réu. No mais, tendo em vista a informação de fls. 45/47, a obrigação já restou cumprida, estando o Réu Cleber apto a prosseguir com o tratamento ambulatorial. Por consequência, DECLARO EXTINTO O PROCESSO COM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, com fundamento no artigo 487, inciso I, do CPC. Nos termos dos artigos 54 e 55, da Lei nº 9.099/95, que se aplicam por analogia, não há condenação em custas e honorários advocatícios em primeiro grau de jurisdição. Após trânsito em julgado, expeça-se certidão de honorários em favor do Curador Especial nomeado. Após trânsito em julgado, procedidas as anotações necessárias, ARQUIVEM-SE os autos. Fica consignado que, nos termos do Provimento CG nº 16/2016 e Comunicado CG nº 1789/2017, eventual cumprimento de sentença deverá tramitar por meio de incidente digital vinculado a estes autos principais. P. R. I. e C.
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