Processo nº 5028112-17.2025.4.04.7000
ID: 290662531
Tribunal: TRF4
Órgão: 11ª Vara Federal de Curitiba
Classe: PROCEDIMENTO COMUM CíVEL
Nº Processo: 5028112-17.2025.4.04.7000
Data de Disponibilização:
06/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
LUCAS DONIZETE DE LIRA
OAB/PR XXXXXX
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JOAO GABRIEL PEREIRA TRATWEIN
OAB/PR XXXXXX
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PROCEDIMENTO COMUM Nº 5028112-17.2025.4.04.7000/PR
AUTOR
: MARCIA DA LUZ SILVA
ADVOGADO(A)
: LUCAS DONIZETE DE LIRA (OAB PR111626)
ADVOGADO(A)
: JOAO GABRIEL PEREIRA TRATWEIN (OAB PR102418)
AUTOR
: …
PROCEDIMENTO COMUM Nº 5028112-17.2025.4.04.7000/PR
AUTOR
: MARCIA DA LUZ SILVA
ADVOGADO(A)
: LUCAS DONIZETE DE LIRA (OAB PR111626)
ADVOGADO(A)
: JOAO GABRIEL PEREIRA TRATWEIN (OAB PR102418)
AUTOR
: SANTIAGO CARDOSO DA SILVA
ADVOGADO(A)
: LUCAS DONIZETE DE LIRA (OAB PR111626)
ADVOGADO(A)
: JOAO GABRIEL PEREIRA TRATWEIN (OAB PR102418)
DESPACHO/DECISÃO
I - RELATÓRIO
Em 26/05/2025,
MARCIA DA LUZ SILVA
e
SANTIAGO CARDOSO DA SILVA
deflagraram a presente demanda, sob rito comum, em face do INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA - INCRA, pretendendo a condenação do requerido a promover os atos necessários à demarcação do imóvel em que assentados os autores e a lhes outorgar o título de domínio pertinente.
Os autores sustentaram ser beneficiários de programa de reforma agrária e que se encontrariam assentados desde 2017 no lote n. 230 do projeto de assentamento Libertação Camponesa no Município de Ortigueira/PR. Disseram ter cumprido todos os requisitos contratuais para obtenção da titulação definitiva. Alegaram que o INCRA estaria inadimplindo seu compromisso, quanto à individualização dos lotes e entrega do título de domínio aos autores, o que lhes causaria transtornos de toda ordem, tais como impossibilidade de obter fomentos e financiamentos para o desenvolvimento de sua atividade agrária.
Eles postularam a assistência judiciária gratuita e a antecipação de tutela. Detalharam seus demais pedidos, juntaram documentos e atribuíram à causa o valor de R$ 3.508.243,74.
II - FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Competência da Justiça Federal:
Na medida em que a pretensão da parte autora foi endereçada em face do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA
- autarquia federal criada com força no decreto nº 1.110, de 9 de julho de 1970, a presente causa submete-se à alçada da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, CF/88 e art. 10, da lei n. 5.010/66.
2.2. Submissão do caso à alçada desta Subseção:
Cogita-se da aplicação do art. 53, III, "a" e "d", CPC/15, que define como sendo competente o Juízo do local em que a aventada obrigação deva ser cumprida ou no local de sede da pessoa jurídica demandada.
Por outro lado, anoto que o STF tem aplicado o art. 109, §2º, CF, também quando em causa pretensões endereçadas às autarquias e empresas públicas federais.
CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA. CAUSAS AJUIZADAS CONTRA A UNIÃO. ART. 109, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CRITÉRIO DE FIXAÇÃO DO FORO COMPETENTE. APLICABILIDADE ÀS AUTARQUIAS FEDERAIS, INCLUSIVE AO CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA - CADE. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. I - A faculdade atribuída ao autor quanto à escolha do foro competente entre os indicados no art. 109, § 2º, da Constituição Federal para julgar as ações propostas contra a União tem por escopo facilitar o acesso ao Poder Judiciário àqueles que se encontram afastados das sedes das autarquias. II –
Em situação semelhante à da União, as autarquias federais possuem representação em todo o território nacional. III - As autarquias federais gozam, de maneira geral, dos mesmos privilégios e vantagens processuais concedidos ao ente político a que pertencem. IV - A pretendida fixação do foro competente com base no art. 100, IV, a, do CPC nas ações propostas contra as autarquias federais resultaria na concessão de vantagem processual não estabelecida para a União, ente maior, que possui foro privilegiado limitado pelo referido dispositivo constitucional. V - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem decidido pela incidência do disposto no art. 109, § 2º, da Constituição Federal às autarquias federais. Precedentes. VI - Recurso extraordinário conhecido e improvido
. (STF - RE: 627709 DF, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 20/08/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO)
Nesse mesmo sentido, convergem os julgados: RE 499.093-AgR-segundo/PR e AI 793.409/RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski; RE 234.059/AL, Rel. Min. Menezes Direito; RE 484.235-AgR/MG, Rel. Min. Ellen Gracie; RE 488.704/RJ, RE 527.498/SC e RE 603.311/RS, Rel. Min. Marco Aurélio; RE 590.649/RJ, RE 474.691/SC e RE 491.331/SC, Rel. Min. Cármen Lúcia; RE 474.825/PR, Rel. Min. Dias Toffoli.
Além do mais, eventual declinação de competência territorial dependeria de prévia exceção, pelos interessados, conforme art. 55, §1, CPC e súmula 33, STJ, dado cuidar-se de competência relativa.
2.3. Competência desta 11.VF:
Acrescento que a presente 11ª VF da Subseção de Curitiba foi especializada na temática ambiental e nos direitos das nações nativas, por meio da
Resolução 39, de 05 de abril de 2005
(Vara Ambiental de Curitiba), sendo renomeada por meio da Resolução 99, de 11 de junho de 2013, também do TRF4. A competência foi modificada por meio da Resolução 23, de 13 de abril de 2016, com regionalização promovida pela Resolução 63, de 25, de julho de 2018, e pela Resolução 43, de 26 de abril de 2019, TRF4.
Por força da
resolução nº 23, de 13 de abril de 2016
, do TRF4, a presente unidade passou a deter competência para apreciar questões pertinentes ao meio ambiente, natural ou urbano, conflitos minerários, desapropriação, questões concernentes às comunidades remanescentes de quilombolas, terrenos de marinha,
situados no litoral paranaense
, dentre outros temas.
Assim, a presente unidade jurisdicional é competente para a causa.
2.4. Competência do presente Juízo:
Além disso, dentre os dois Juízos desta VF - Titular e Substituto - a causa foi distribuída para o presente Juízo Substituto, mediante sorteio, o que atendeu à garantia do Juízo Natural, na forma do
art. 5, LIII, Constituição.
2.5. Eventual conexão processual:
O processualista Bruno Silveira Dantas enfatiza que
"com o início de vigência do CPC/2015, será considerado
prevento o juízo perante o qual houver ocorrido o registro ou a distribuição (conforme o caso) da primeira de uma série de demandas conexas, ainda que tal registro ou distribuição tenha ocorrido durante a vigência do CPC/1973
. Desde que a prevenção, ela própria, não se tenha consumado sob a égide do CPC/1973 (por um dos alternativos critérios previstos nos seus arts. 106 e 2019), incidirá de plano o disposto no art. 59 da codificação de 2015 definindo-se o juízo prevento para um conjunto de demandas conexas pela anterioridade dos registros ou das distribuições (conforme o caso) das mesmas. Os arts. 60 e 61 do CPC/2015, por sua vez, praticamente repetem os arts. 107 e 108 do CPC/1973, dispensando, por tal razão, maiores comentários a respeito nesta oportunidade."
(DANTAS, B. S.
in
WAMBIER, Teresa A. Alvim et al.
Breves comentários ao novo código de processo civil.
SP: RT, 2015, p. 229).
Convém ter em conta a lição de Araken de Assis, sobre o tema:
"(...)
O art. 55, caput, definiu a conexão como a identidade de pedido ou de causa inspirado no propósito de erradicar as tergiversações constatadas na vigência do CPC de 1939. A proposição legislativa, excepcional no direito estrangeiro, porque prepondera a tendência de encarregar o órgão judicial de indicar os casos do fenômeno, consonante controvérsia haurida do direito comum, e feita em sentido oposto à do CPC de 1939, em todo caso revela-se incompleta e insuficiente. Não abrange a totalidade das hipóteses de conexão
. O art. 55, § 3.º (“… mesmo sem conexão entre eles”) alude à conexão em sentido estrito do art. 55, caput. Ao nosso ver, os vínculos que geram o risco da prolação de “decisões conflitantes ou contraditórias”, a teor do art. 55, § 3.º, inserem-se na rubrica da conexão em sentido amplo. Não há outro sítio adequado para situar o liame entre os objetos litigiosos
O art. 113 do NCPC, arrolando os casos em que se admite a demanda conjunta, ou litisconsórcio, demonstra que existem outros laços, mais tênues e distantes, que autorizam o processo cumulativo. E a outro juízo não se chega ao avaliar o nexo exigido pelo art. 343 na reconvenção, como ocorria no direito anterior. Retira-se, daí, segura conclusão
. As duas hipóteses descritas no art. 55, caput – identidade de causa ou identidade de pedido – constituem “uma, entre as várias em que ocorre a conexão”. Por isso, antes do CPC de 1939, descreveu-se a conexão como “laço envolvente, que se insinua por entre as relações jurídicas, ora prendendo-as de um modo indissolúvel, por forma a exigir uma única decisão; ora criando entre elas pontos de contato mais ou menos íntimo, que aconselham a reunião em um só processo, ainda quando possam ser decididas separadamente, sem maior dano, a não ser a lentidão e o gravame de maiores despesas”.
Exemplos de causas conexas, segundo a literalidade do art. 55, caput: (a) A reivindica o imóvel x perante B, e, paralelamente, C também reivindica o imóvel x, do mesmo réu, hipótese em que a identidade recai sobre o pedido (objeto) mediato; (b) o locatário A propõe consignatória dos aluguéis perante o locador B, o qual, de seu turno, propõe ação de despejo, fundada no inadimplemento dos aluguéis, perante o inquilino.
Para os efeitos da modificação da competência, as hipóteses contempladas no art. 55, caput – identidade de causa de pedir ou identidade de pedido –, então, ainda consideram-se exemplificativas. Um laço menos intenso já serve para reunir os processos. O objetivo da regra reside em evitar decisões conflitantes, “por isso a indagação sobre o objeto ou a causa de pedir, que o artigo por primeiro quer que seja comum, deve ser entendida em termos, não se exigindo a perfeita identidade, senão que haja um liame que os faça passíveis de decisão unificada”. Em outra oportunidade, reiterou-se que “não é necessário que se cuide de causas idênticas (quanto aos fundamentos e ao objeto {rectius: pedido})”, bastando “que as ações sejam análogas, semelhantes”, insistiu no “escopo da junção das demandas para um único julgamento é a mera possibilidade da superveniência de julgamentos discrepantes
”.
Por conseguinte, a jurisprudência, atendendo às finalidades da modificação da competência, em que a derrogação das regras gerais se justifica pela economia de atividade e pela erradicação do risco de julgamentos conflitantes, rejeita a exigência de identidade absoluta de causa ou de pedido, aceitando simples analogia entre as ações
. Porém, preocupa-se com o risco de julgamentos contraditórios, evento apurado caso a caso, mas verificado em todas as hipóteses do art. 113, inclusive na afinidade de ponto comum de direito ou de fato (inc. III). Ora, parece difícil visualizar semelhante risco no cúmulo simples de pedidos, em que há total autonomia das pretensões deduzidas, no mesmo processo, contra o réu. Por isso, o intuito de erradicar pronunciamentos conflitantes não oferece a única e constante justificativa para o processo cumulativo e, muito menos, a prorrogação da competência. Ao menos na conexão subjetiva, no caso da cumulação simples de pedidos, impera o princípio da economia processual. E, de toda sorte, as finalidades visadas no processo cumulativo, e na reunião de causas inicialmente autônomas, mostram-se estranhas à verdadeira causa desses fenômenos, que residiria no vínculo entre partes, causa e pedido." (ASSIS, Araken.
Processo civil brasileiro.
Volume I. São Paulo: RT, 2015, tópico 302)
No presente caso, não há informações a respeito de eventual conexão processual, suscetível de ensejar eventual necessidade de declinação de competência para solução conjunta das demandas, observadas as regras da súmula 235, STJ e art. 55, §1,CPC/15.
Sendo o caso, a questão há de ser apreciada no curso da demanda.
2.6. Singularidade da causa:
Não diviso sinais de litispendência, conforme definição do art. 337, §2, CPC,
não havendo indicativos de outra causa,
com mesmas partes, mesma causa de pedir e mesmo pedido que os discutidos nesta demanda. Tampouco vislumbro violação à
garantia da coisa julgada
, porquanto não há elementos que evidenciem que esta causa seja reiteração de alguma demanda já solucionada em definitivo - art. 508, CPC/15 e art. 5. XXXV, Constituição/88.
2.7. Submissão da demanda ao rito comum:
A parte autora atribuiu à causa o valor correspondente ao imóvel -R$ 3.508.243,74 -, montante superior a 60 salários mínimos, conforme
decreto n. 11.864, de 27 de dezembro de 2023
. Logo, não restou atendido o requisito do art. 3º,
caput,
da lei n. 10.259/2001, de modo que a causa não se submete à alçada dos Juizados Especiais. Ademais, o processo versa sobre demarcação de imóvel, de modo que seu processamento no rito dos juizados esbarra no art. 3, §1, lei n. 10.259/2001.
2.8. Pertinência subjetiva - considerações gerais:
Em alguma medida, as questões alusivas à pertinência subjetiva tangenciam o próprio mérito da causa. Nosso sistema ainda se vincula à concepção eclética do professor Túlio Liebmann, quem distinguia entre pressupostos processuais, condições para o válido exercício do direito de ação e, por fim, as questões de mérito. O problema é que, não raro, os temas próprios ao mérito (procedência/improcedência da pretensão) e os temas próprios às condições da ação (legitimidade/ilegitimidade, possibilidade do pedido) não podem ser distinguidos de uma forma absolutamente clara.
Como se infere do seu 'Tratado das ações', Pontes de Miranda promovia uma distinção entre ação em sentido material - como uma espécie de projeção do direito subjetivo - ainda vinculada à concepção imanentista do direito civil antigo e ação em sentido processual. Com base nessa diferenciação pontiana, é que o desembargador gaúcho Adroaldo Furtado Fabrício tem criticado a teoria eclética, ao enfatizar que as 'condições da ação' também tratam, no geral, do mérito da causa (saber se a parte é legítima é, de certa forma, um exame conexo ao mérito: saber se ela poderia ser demandada, se teria a obrigação de indenizar etc).
Confira-se com Adroaldo Furtado Fabrício. Extinção do Processo e Mérito da Causa, in OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de (org).
Saneamento do processo:
Estudos em homenagem ao Prof. Galeno Lacerda. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1990, p. 33. Em outras palavras, deve-se aferir a pertinência subjetiva dos requeridos, tendo-se em conta a causa de pedir detalhada na peça inicial. Na espécie, pelo que explicitei antes, a autora não estava obrigada a endereçar sua pretensão em face de todos os pretensos causadores do alegado dano.
Em sentido pontualmente distinto, Araken de Assis afirma que
"A legitimidade não condiciona a ação, como quer a opinião há pouco exposta, haja vista um motivo trivial: a sua falta jamais impedirá a formação do processo. A pessoa que toma a iniciativa de provocar o órgão judiciário, seja quem for, cria a relação processual, embora fadada a perecer através de juízo de admissibilidade negativo – item que constitui pressuposto lógico e cronológico do exame do mérito. Legitimidade é, descansando no direito material, problema distinto do juízo acerca do caráter fundado ou infundado da pretensão deduzida contra o réu. A demanda movida por alguém sem legitimidade é inadmissível, e, não, infundada. Sentença terminativa desse teor limita-se a repelir, a partir dos dados ministrados pelo direito material, sempre in status assertionis, a habilitação da parte para conduzir o processo, relativamente ao objeto litigioso alegado. Aos esquemas abstratos, traçados na lei, gerando tal capacidade, chamam-se de situações legitimadoras. Portanto, a dissociação entre o sujeito da lide e o do processo evidencia a verdadeira natureza da legitimidade e a situa no lugar próprio no conjunto das questões submetidas à apreciação do órgão judicial. É um pressuposto processual preenchido mediante a simples enunciação do autor. Ninguém se atreverá a reputar respeitante ao mérito eventual juízo quanto à inexistência, em determinado caso concreto, do título legal para alguém pleitear em juízo direito alheio. Descontada a errônea concepção que ilegitimidade do autor obsta à formação do processo, o art. 485, VI, houve-se com acerto ao situar o problema fora do mérito."
(ASSIS, Araken de.
Processo civil brasileiro.
Volume II. Tomo I. Parte geral: institutos fundamentais. SP: RT. 2015. p. 178).
2.9. Legitimidade das partes - caso em exame:
No caso em análise, os autores deduziram pretensão em nome próprio, quanto a interesses próprios, não incorrendo na vedação do art. 18, CPC. Sustentaram ter recebido a posse direta do imóvel mencionado na peça inicial, fazendo jus à sua titulação pelo demandado, no âmbito de projeto de assentamento.
O requisito de outorga uxória - art. 73, CPC - foi atendido.
Por outro lado, o procedimento de titulação definitiva de lote rural é promovido pelo INCRA, submetendo-se à normatização interna no âmbito da autarquia e à legislação federal vigente sobre o tema. Assim, atentando para a causa de pedir deduzida pelos autores na peça inicial, reputo que a autarquia demandada é parte legítima para o presente processo.
2.10. Possibilidade jurídica do pedido:
A respeito da impossibilidade jurídica, convém atentar para a lição de Marcelo Abelha Rodrigues:
"Presente no nosso ordenamento jurídico explicitamente no art. 295, III, e implicitamente quando este adotou o conceito abstrato de ação, a possibilidade jurídica do pedido diz respeito à previsão
in abstracto
daquilo que se pede, dentro do ordenamento jurídico.
A possibilidade jurídica do pedido é instituto processual, e significa que ninguém pode ajuizar uma ação sem que peça uma providência que esteja, em tese (abstratamente) prevista no ordenamento jurídico material (no direito alemão é usado o termo viabilidade, donde se abstrai o mesmo significado). Veja o exemplo: 'A' pede o despejo de 'B' por falta de pagamento
.
Basta ao juiz a análise superficial e ver se tal situação é prevista (despejo por falta de pagamento) no nosso ordenamento jurídico, sem adentrar contudo em considerações fático-jurídicas do problema. Veja que ele não vai dizer, naquele momento, se 'B' vai ser despejado, mas apenas se existe no nosso ordenamento jurídico a hipótese invocada.
Por isso mesmo é que esta condição é prejudicial das demais, ou seja, deve ser a primeira a ser analisada, à luz da logicidade e do princípio da economia processual.
Dizer que um pedido é juridicamente possível significa que o ordenamento não o proíbe expressamente
. Destarte, o vocábulo 'pedido', que faz parte da referida condição da ação, está disposto na sua acepção mais ampla, ou seja, não somente em seu sentido estrito de mérito, mas também conjugado com a causa de pedir.
Afinal, é lapidar a conceituação de Arruda Alvim: 'Verificação se o pedido é, abstrata ou idealmente, contemplado pelo ordenamento, senão vedado pelo mesmo.' Também é essencial a colocação feita por Nery, quando lembra que o termo 'pedido' (que integra a expressão 'possibilidade jurídica do...'), tem de ser entendido na sua acepção mais lata, ou seja, conjugado com a causa de pedir. Assim, embora o pedido de cobrança, estritamente considerado, seja admissível pela lei brasileira, não o será se tiver como causa petendi dívida de jogo (art. 1.477, caput, Código Civil)." (RODRIGUES, Marcelo
Abelha
.
Elementos de direito processual civil.
vol. 1. 2. ed. São Paulo: RT, 2000, p. 183-184)
Na espécie, a pretensão dos requerentes não esbarra na mencionada condição para válido exercício do direito de ação. Não há norma juridicamente válida que a impeça de deduzir em juízo a pretensão sob exame. Saber se tal pretensão merece acolhida é tema pertinente ao mérito.
2.11. Interesse processual - considerações gerais:
Por imposição constitucional, o Poder Judiciário está obrigado a apreciar a alegação de que haja lesão ou ameaça de lesão a direito (art. 5º, XXXV, CF), mecanismo indispensável para que haja efetivo império da lei, ao invés da prevalência dos poderes hegemônicos de ocasião. A prestação jurisdicional não se destina, todavia, a emitir meros pareceres ou cartas de intenções.
O ingresso em juízo deve estar fundado, tanto por isso, em uma situação de efetiva necessidade, de modo que o pedido - caso venha a ser acolhido - se traduza em uma utilidade para o demandante. O meio processual eleito deve ser adequado para tanto. Daí que os processualistas tratem do interesse processual em uma
troika:
a necessidade, a utilidade e a adequação. Por fim, o interesse processual deve persistir no curso da demanda, nos termos do art. 17 e art. 85, §10, CPC/15.
Ora,
"Mediante a força declaratória, a aspiração do autor consiste na extirpação da incerteza. Deseja tornar indiscutível, no presente e no futuro, graças à autoridade da coisa julgada, a existência ou a inexistência de relação jurídica, a autenticidade ou a falsidade de documento. É o que dispõe, fortemente inspirado no direito germânico e reproduzindo a regra anterior, o art. 19 do NCPC. Também comporta declaração a exegese de cláusula contratual (Súmula do STJ, n.º 181), ou seja, o modo de ser de uma relação jurídica. Na ação declarativa, ignora-se outra eficácia relevante que a de coisa julgada material. Neste sentido, a pretensão à declaração representa fonte autônoma de um bem valiosíssimo na vida social: a certeza. O autor que só pleiteia declaração ao juiz, e obtém êxito, dar-se-á por satisfeito, e cabalmente, desde o curso em julgado da sentença. Então apropria-se do que pedira ao órgão judicial – certeza –, carecendo a regra jurídica emitida de qualquer atividade complementar em juízo. Focalizando o ponto com preciosa exatidão, diz-se que a sentença declaratória é instrumento autossuficiente de
tutela
jurisdicional, pois assegura, de maneira plena e completa, a efetividade da situação jurídica substancial deduzida em juízo."
(ASSIS, Araken de.
Processo civil brasileiro:
volume I. Parte geral: fundamentos e distribuição de conflitos. São Paulo: RT. 2015. p. 675).
Ainda segundo Araken de Assis,
"
O provimento declaratório tem nítido caráter prescritivo. A parte adquire o direito incontestável de comportar-se em consonância ao comando sentencial, e, principalmente, não é dado àqueles que se vincularam à declaração impedi-la
. A finalidade da ação declaratória da inteligência e do alcance de cláusula contratual é a de prescrever aos parceiros do negócio, sucessivamente, determinada pauta de conduta, independentemente de execução alguma, de que não se cogita e de que não se pode cogitar."
(ASSIS, Araken de.
Obra citada.
p. 676).
Dado que o Poder Judiciário não é consultor jurídico das partes, impõe-se que haja uma situação de incerteza jurídica a justificar o ingresso com a ação declaratória:
"Impende recordar que a certeza implicará a vinculação futura das partes. O provimento exibirá caráter prescritivo para o futuro. O ato judicial legitima a prática (ou a abstenção) de atos jurídicos “ao abrigo e em conformidade com o conteúdo da sentença. Em geral, a antevisão desse problema provoca o nascimento do interesse. Por assim dizer, o provimento declarativo tem os pés no passado, mas olhar no futuro. É preciso aceitar com reservas, portanto, o julgado da 4.ª Turma do STJ, que assentou: Não é detentor de interesse processual justificador da pretensão declarativa quem não está exposto à possibilidade de dano imediato e concreto. Ora, imediato é o interesse, pois o dano, em sentido amplíssimo, pode ser futuro. Por exemplo, não cabe declarar a inteligência da cláusula contratual em tese; o autor necessitará expor a dificuldade na interpretação da cláusula, os reflexos que este ou aquele entendimento provocará no programa contratual."
(ASSIS, Araken de.
Obra citada.
p. 661).
2.12. Interesse processual - caso em exame:
Em primeiro exame - aferição de ofício, conforme art. 485, §3, CPC -, os autores atenderam aludidos requisitos. Eventual acolhimento da sua pretensão lhes será útil; a medida revela-se necessária para a otimização do processo administrativo de titulação; por fim, o processo em causa é adequado ao fim visado. Logo, o art. 17, CPC, restou satisfeito. Não há maiores sinais de que a pretensão dos requerentes seria satisfeita no âmbito administrativo.
Ademais, o exaurimento do debate, no âmbito administrativo, não é condição para a deflagração de demandas como a presente, em juízo. Os requerentes insurgem-se justamente em razão da demora no procedimento de titulação, de modo que não se pode condicionar a deflagração desse processo ao aguardo da solução da causa no âmbito extrajudicial.
2.13. Valor da causa - considerações gerais:
A toda causa deve ser atribuído algum valor econômico, por força do art. 291, CPC/2015 - projeção do art. 258, CPC/73 -, pois se cuida da base de cálculo da taxa judiciária. Referido valor pode influenciar, em muitos casos, a determinação da competência das unidades judiciais ou o procedimento aplicável, também surtindo reflexos sobre a definição de encargos sucumbenciais.
Trata-se, tanto por isso, de requisito para que a petição inicial seja válida - art. 319, CPC. Como explicita Araken de Assis,
"às vezes, na oportunidade da respectiva fixação (infra, 1.290),
o conteúdo econômico real e imediato da pretensão mostra-se inestimável, ou seja, não pode ser quantificado precisamente. Tal circunstância não constitui motivo bastante para eliminar o ônus atribuído ao autor nos arts. 319, V, e 292, caput
. É apenas causa de estimação voluntária do autor, pois o art. 291 dispõe expressamente que a toda causa será atribuído valor certo. Nada obstante, a indicação aproximar-se-á, tanto quanto possível, do conteúdo econômico mediato da pretensão. Não há incompatibilidade daquelas regras com a do art. 85, § 8.º. aludindo a causas de valor inestimável. Entende-se por tal as causas desprovidas de conteúdo econômico imediato, como é o caso da ação declaratória, e, por esse motivo, sujeitas à estimação do autor."
(ASSIS, Araken.
Processo
civil brasileiro.
Volume II - Tomo I: Institutos fundamentais. SP: RT. 2015. p. 1695)
Convém atentar, tanto por isso, para o art. 292, CPC/15:
"O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será: I - na ação de cobrança de dívida, a soma monetariamente corrigida do principal, dos juros de mora vencidos e de outras penalidades, se houver, até a data de propositura da ação; II -
na ação que tiver por objeto a existência, a validade, o cumprimento, a modificação, a resolução, a resilição ou a rescisão de ato jurídico, o valor do ato ou o de sua parte controvertida
; III - na ação de alimentos, a soma de 12 (doze) prestações mensais pedidas pelo autor; IV - na ação de divisão, de demarcação e de reivindicação, o valor de avaliação da área ou do bem objeto do pedido; V - na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido; VI - na ação em que há cumulação de pedidos, a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles; VII - na ação em que os pedidos são alternativos, o de maior valor; VIII - na ação em que houver pedido subsidiário, o valor do pedido principal. § 1º
Quando se pedirem prestações vencidas e vincendas, considerar-se-á o valor de umas e outras. § 2º O valor das prestações vincendas será igual a uma prestação anual, se a obrigação for por tempo indeterminado ou por tempo superior a 1 (um) ano, e, se por tempo inferior, será igual à soma das prestações
. § 3º O juiz corrigirá, de ofício e por arbitramento, o valor da causa quando verificar que não corresponde ao conteúdo patrimonial em discussão ou ao proveito econômico perseguido pelo autor, caso em que se procederá ao recolhimento das custas correspondentes."
Menciono novamente a análise promovida por Araken de Assis:
"
É exemplificativa a enumeração dos acessórios. Os juros compensatórios, por exemplo, dificilmente se quadram na figura de penalidade. A correção monetária integra o valor originário do crédito e, nesse aspecto, sua menção no art. 292, corrige o direito anterior
. Ressalva feita aos juros moratórios e à correção monetária, verbas implicitamente incluídas no pedido respeitante ao principal (art. 322, § 1.º), e, nada obstante, integrantes do valor da causa, quaisquer outras verbas devem ser objeto de pedido. É o caso, expressis verbis, da cláusula penal moratória ou compensatória e dos juros compensatórios. Omisso que seja o pedido, a respeito da cláusula penal (v.g., o autor quer evitar a controvérsia em torno da interpretação do contrato), tampouco conta-se o respectivo valor. Por óbvio, deixando o autor de pedir os juros moratórios, explicitamente, dificilmente realizará seu cômputo no valor da causa, ensejando a intervenção do órgão judiciário. E os juros vencidos posteriormente ao ajuizamento, automaticamente incluídos na condenação (art. 323), não entram na estimativa da causa.
O custo financeiro do processo (despesas processuais e honorários advocatícios), suportado pelo réu no caso de êxito do autor, não precisa ser computado para apurar o valor da causa. Tais verbas têm caráter eventual e decorrem da lei.
Em face do caráter imperativo do art. 292, I, mostra-se irrelevante a estimativa lançada pelo autor na petição inicial em desacordo com a regra. Prevalecerá o valor da importância reclamada no pedido.
O art. 292, I, aplica-se, por analogia, à pretensão a executar fundada em título judicial ou extrajudicial (infra, 1.292.2.2). O valor da causa é o total do crédito: o principal corrigido, os juros e os demais consectários legais ou contratuais, conforme, aliás, dispõe o art. 6.º, § 4.º, da Lei 6.830/1980. Esse valor constará na planilha aludida no art. 798, I, b, e parágrafo único
.
Também se poderia cogitar do enquadramento da pretensão a executar no art. 292, II, por que pretensão visando ao cumprimento do negócio jurídico, eventualmente consubstanciado em documento dotado de força executiva. O resultado final é idêntico, mas o art. 292, I, avantaja-se ao inciso precedente em ponto decisivo, ao impor um critério simples, direto e analítico ao valor da causa." (ARAKEN, Assis.
Obra citada.
p. 1698 e ss.)
Ora, não se pode perder de vista que o valor atribuído à causa deve corresponder, tanto quanto possível, ao conteúdo econômico da pretensão deduzida na peça inicial, como bem equaciona o art. 292, §3º, CPC/15:
"O juiz corrigirá, de
ofício e por arbitramento
, o valor da causa quando verificar que não corresponde ao conteúdo patrimonial em discussão ou
ao proveito econômico perseguido pelo autor
, caso em que se procederá ao recolhimento das custas correspondentes."
D'outro tanto, é assegurado ao requerido impugnar, em preliminar de contestação, o valor atribuído à causa pela autora (art. 293, CPC/15).
2.14.
Valor da causa
- preço do imóvel:
Em casos como o presente, o valor da causa - enquanto conteúdo econômico da pretensão da autora - deve corresponder à importância de mercado do imóvel em questão, na medida em que esse é a expressão financeira do que ele busca em Juízo.
Deve-se desbastar os valores concernentes ao uso do bem, dado que o demandante já se encontra no exercício da posse direta sobre o lote
.
Não raro, há algumas dificuldades no que toca à atribuição de conteúdo econômico para determinados objetos, na exata medida em que as coisas não possuem valores ínsitos ou ontológicos
. A precificação depende, por óbvio, de uma conhecida distinção entre
valor de uso e valor de troca
. Por vezes, algo pode ser muito apreciado pelo proprietário, mas sem correspondente apelo econômico junto ao mercado. Alguém pode guardar um conjunto de fotos ou estátuas, atribuindo-lhes expressivo valor por lhe recordar momentos da infância ou entes queridos; mas, dificilmente conseguiria comercializá-las no mercado pelo montante almejado. Por outro lado, o preço depende sempre de inúmeras variáveis, com destaque para a conhecida lei da oferta e da procura. Quanto maior a demanda e maior a escassez, maior o preço. Havendo excesso de oferta, ao contrário, o preço é reduzido.
Daí que a atribuição de conteúdo econômico para bens depende sempre do exame do contexto de mercado, diante da interação entre compradores e vendedores - depende, enfim, das
expectativas sociais envolvidas
. No âmbito das demandas judiciais ou das licitações, ademais, há questões burocráticas que acabam por condicionar a precificação, seja por força de uma limitação do mercado, seja por conta das peculiaridades com que as negociações se dão (arrematação, adjudicação, leilão).
Atente-se para a lição de Kiyoshi Harada, relacionada a bens imóveis - mas que, com as pertinentes adequações, pode servir como parâmetro também para a indenização dos prejuízos decorrentes da subtração de bens móveis:
"Vários são os métodos de avaliação. Na avaliação de terrenos loteados, normalmente, o método empregado é o comparativo, levando-se em conta os três fatores básicos: a área, a profundidade e a testada. .Basicamente, consiste na pesquisa de valores de preços com menos de dois anos em relação à data de avaliação, referentes a imóveis da mesma região geoeconômica, da idêntica zona e uso e ocupação de solo e do mesmo setor fiscal. Preço proveniente de oferta deverá sofrer redução de 10% para atender à natural elasticidade do mercado, ao passo que os preços a prazo devem ser transformados em preços à vista, mediante descontos com o auxílio da tabela Price. A somatória dos diferentes preços levantados e sua divisão pelo número de elementos pesquisados resultarão em um valor médio. Descartam-se os elementos que se situarem 30% abaixo ou acima dessa média. Extrair-se-á nova média com os elementos remanescentes, resultando na chamada média aritmética saneada, ou seja, o valor unitário médio que servirá de paradigma para a avaliação.
Na avaliação de glebas loteáveis, quando o emprego direto do método comparativo fica inviabilizado, por ausência de paradigmas, a avaliação é feita através do chamado método involutivo. Consiste na projeção de um loteamento imaginário com a divisão da área em quadras e em lotes-padrão, com exclusão das áreas destinadas a espaços livres, institucionais e áreas verdes. Levam-se em conta inúmeros fatores como despesas do loteamento, abarcando a implantação de infraestrutura, propaganda e corretagem, bem como o tempo de duração para o esgotamento das vendas, a valorização dos lotes no decorrer de vendas etc
. Enfim, é um método cuja avaliação é baseada em projeções que podem ocorrer ou não concretamente. Ultimamente, esse método vem ganhando elasticidade, comportando a avaliação em separado da chamada 'faixa frontal do loteamento', situada de frente para as vias públicas existentes, que seria diretamente desmembrável, destacando-se do miolo do loteamento imaginário."
(HARADA, Kiyoshi.
Desapropriação.
10. ed. São Paulo: Atlas. p. 135-136).
Quando se cuide de pedido de indenização, por exemplo, deve-se atentar para o valor de mercado dos bens perdidos ou destruídos, conforme art. 1.431 do Código Civil:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. SENTENÇA ISENTA DE ERROS IN PROCEDENDO. FURTO DE JOIAS ACAUTELADAS À RÉ, POR FORÇA DE CONTRATO DE PENHOR. RESPONSABILIDADE INDENIZATÓRIA. VALOR REAL DAS JOIAS. LAUDO PERICIAL. APELAÇÃO DESPROVIDA. 1. Não é nula a sentença que julga a demanda a salvo de erros in procedendo. 2. Responde a Caixa Econômica Federal - CEF pelos danos causados a cliente cujas joias, dadas como garantia em contrato de empréstimo e penhor, foram furtadas ao tempo em que estavam em poder da mutuante. 3.
Firmou-se a jurisprudência no sentido de que a indenização, em casos que tais, deve ser feita de acordo com o valor real das joias e não pelo quantum ajustado contratualmente
. 4. Na impossibilidade de realizar-se avaliação direta das joias, revela-se razoável e seguro o critério de estimativa do perito, que, apresentando-se como cliente interessado em celebrar contrato de penhor de joias, aferiu a desproporção entre a avaliação feita pela Caixa Econômica Federal - CEF e o valor real dos bens. 5. Apelação desprovida. (TRF-3 - Ap: 00220953820004036100 SP, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL NELTON DOS SANTOS, Data de Julgamento: 10/11/2009, SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: e-DJF3 Judicial 1 DATA:19/07/2012)
CIVIL. PENHOR. joias . ASSALTO À AGÊNCIA BANCÁRIA. PERDA DO BEM. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. RESSARCIMENTO DO PROPRIETÁRIO DO BEM. PAGAMENTO DO CREDOR. COMPENSAÇÃO. POSSIBILIDADE. EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO. ART. 1.092 DO CÓDIGO CIVIL/1916 E ART. 476, DO CÓDIGO CIVIL/2002. - O perecimento por completo da coisa empenhada não induz à extinção da obrigação principal, pois o penhor é apenas acessório desta, perdurando, por conseguinte, a obrigação do devedor, embora com caráter pessoal e não mais real. - Segundo o disposto no inciso IV do art. 774, do Código Civil/1916, o credor pignoratício é obrigado, como depositário, a ressarcir ao dono a perda ou deterioração, de que for culpado. - Havendo furto ou roubo do bem empenhado, o contrato de penhor fica resolvido, devolvendo-se ao devedor o valor do bem empenhado, cabendo ao credor pignoratício o recebimento do valor do mútuo, com a possibilidade de compensação entre ambos, de acordo com o art. 775, do Código Civil/1916. -
Na hipótese de roubo ou furto de joias que se encontravam depositadas em agência bancária, por força de contrato de penhor, o credor pignoratício, vale dizer, o banco, deve pagar ao proprietário das joias subtraídas a quantia equivalente ao valor de mercado das mesmas, descontando-se os valores dos mútuos referentes ao contrato de penhor
. Trata-se de aplicação, por via reflexa, do art. 1.092 do Código Civil/1916 (art. 476, do Código Civil atual). Recurso especial não conhecido. (STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Classe: RESP - RECURSO ESPECIAL - 730925 Processo: 200500366722 UF: RJ Órgão Julgador: TERCEIRA TURMA REL. NANCY ANDRIGHI DJ DATA:15/05/2006 PÁGINA:207).
2.15. Valor da causa -
processo
em exame:
No presente, caso, os autores postularam a condenação do requerido à titulação do imóvel em questão, atribuindo à causa o valor de
R$ 3.508.243,74
, correspondendo ao valor do bem. Em princípio, poder-se-ia cogitar da aplicação de algum redutor ao aludido montante atribuído à demanda, já que os autores sustentaram se encontrarem no exercício da posse do bem, uma das projeções do direito de propriedade.
De todo modo, ao menos por ora, mantenho o valor atribuído á demanda, até por força da dificuldade de se atribuir um conteúdo econômico acurado ao exercício da posse direta sobre o imóvel. Ressalvo novo exame do tema, caso a tanto instado na forma do art. 293, CPC.
2.16. Suspensão da demanda:
Não diviso a presença dos requisitos que ensejariam suspensão do processo, por conta de alguma questão prejudicial - art. 313, Código de Processo Civil/15: "
Suspende-se o processo: (...) V -
quando a sentença de mérito: a) depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente
; b) tiver de ser proferida somente após a verificação de determinado fato ou a produção de certa prova, requisitada a outro juízo. (...) § 4 O prazo de suspensão do processo nunca poderá exceder 1 (um) ano nas hipóteses do inciso V e 6 (seis) meses naquela prevista no inciso II. §5 O juiz determinará o prosseguimento do processo assim que esgotados os prazos previstos no §4."
A respeito dos aludidos preceitos, convém registrar aqui a análise detida promovida por Araken de Assis:
"Prejudicial externa civil – A hipótese mais frisante de suspensão do processo em razão de prejudicialidade externa homogênea é a prevista no art. 313, V, a, do NCPC.
Toda vez que o julgamento do mérito “depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente”, o juiz suspenderá o processo
. Derivações dessa regra avultam na possibilidade de o relator suspender os processos que dependam do julgamento da ação declaratória de constitucionalidade (art. 21 da Lei 9.868/1999) e da arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 5.º, § 3.º, da Lei 9.882/1999) – não, porém, a suspensão em decorrência do incidente de resolução das demandas repetitivas ou do julgamento do recurso extraordinário e do recurso especial repetitivos: a questão aí julgada é principal. O art. 313, V, a, trata da suspensão por causa prejudicial, que é a aptidão da prejudicial em tornar-se objeto litigioso em outro processo.
Fica evidente da redação da norma que a prejudicial é externa, porque há de consistir em “objeto principal de outro processo”. Não importa a circunstância de a questão prejudicial consistir no objeto originário do outro processo (v.g., A postula a invalidade do contrato firmado com B, mas B pleiteia o cumprimento da prestação devida por A) ou decorrer do alargamento desse objeto, por força de declaração incidente (v.g. B pleiteou de A, no primeiro processo, o principal da dívida, mas A reagiu pleiteando a declaração incidente da validade do contrato; no segundo processo, B pleiteia de A os juros da dívida). Importa a resolução da questão comum no outro processo, com autoridade de coisa julgada. E, nesse caso, o vínculo produzido na causa subordinante estender-se-á à causa subordinada ou, vencido o prazo máximo de suspensão – hipótese mais do que provável, vez que o interregno de um ano (art. 313, § 4.º) é muito curto, pressupondo-se elastério mais dilatado para o julgamento, por forçada ordem cronológica do art. 12, e o trânsito em julgado –, sobre a deliberação incidental na causa subordinada não recairá a coisa julgada (art. 503, § 1.º, III, in fine). Realmente, a questão comum não constitui o objeto principal da causa condicionada. Do contrário, configurar-se-ia um dos efeitos da litispendência, a proibição de renovação de causa idêntica. Cumprirá ao juiz julgá-la vencido o prazo hábil de espera, incidentalmente, apesar dos esforços de concatenação empreendidos pelo expediente da suspensão.
O exemplo ministrado, em que uma das partes pleiteia a decretação da invalidade do contrato e a outra reclama a prestação, releva que tampouco importa a diversidade da força da ação (declarativa, constitutiva, condenatória, executiva e mandamental) e a espécie de procedimento. A pretensão de A contra B para decretar a invalidade do contrato tem força constitutiva negativa, a de B contra A para realizar a prestação tem força condenatória. Nada obstante, o primeiro processo funciona como causa prejudicial relativamente à pretensão deduzida no segundo: decretada a invalidade do contrato naquele, fica predeterminado o desfecho deste (improcedência). Evidentemente, havendo a possibilidade de reunir os processos no mesmo juízo (retro, 305), para julgamento simultâneo, por força da conexão (retro, 303), inexiste a necessidade de suspender a causa condicionada, porque os processos conexos serão julgados simultaneamente (art. 55, § 1.º).
O objetivo da suspensão prevista no art. 313, V, a, consiste em evitar a emissão de provimentos conflitantes, logicamente incompatíveis, a respeito da questão prejudicial. Por esse motivo, causa prejudicial envolvendo partes distintas raramente constitui razão bastante para suspender outro processo, por mais relevante que seja a questão comum controvertida em ambos, ressalva feita às hipóteses de o julgamento da causa subordinante produzir efeitos erga omnes, como acontece na ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, § 2.º, da CF/1988). Aliás, essa é uma característica – a falta de identidade de partes – da prejudicial de constitucionalidade, objeto do controle concentrado, todavia alheio à incidência do art. 313, V, a. Em outras palavras, o juiz da causa condicionada não suspenderá o processo em que se controverta norma objeto de controle concentrado de constitucionalidade
. Em tal hipótese, ou o STF concedeu liminar, suspendendo a vigência da norma, e o juiz não poderá aplicá-la; ou não concedeu, e o juiz haverá de aplicá-la no julgamento do mérito, ou não, exercendo o controle difuso. A superveniência do julgamento do STF, pronunciando a inconstitucionalidade, será recepcionado no julgamento do mérito ou, havendo ocorrido o trânsito em julgado, a sentença se tornará inexequível, nas condições do art. 525, § 1.º, III, c/c § 12.
No tocante ao estágio do processo subordinado, a suspensão poderá ocorrer no primeiro e no segundo graus; em particular, “o fato de já ter sido proferida sentença no processo prejudicado não afasta, portanto, a possibilidade de sua suspensão”. Conforme deflui da cláusula final do art. 313, V, a, que alude a “outro processo pendente”, tampouco o estágio do processo subordinante se mostra relevante à suspensão, bastando que subsistam os efeitos da litispendência. Encontrando-se a causa prejudicial no tribunal, por força de apelação, admite-se a suspensão, hipótese em que, presumivelmente, o desfecho ocorrerá dentro do prazo de suspensão
.
Era particularmente difícil a interpretação da regra particular do direito anterior, declarando haver suspensão do processo que “tiver por pressuposto o julgamento de questão de estado, requerido como declaração incidente” (art. 265, IV, c, do CPC de 1973). A esse propósito, havia dois termos de alternativa: ou se cuidava de prejudicial externa, caracterizada pelo fato se tratar de questão de estado (v.g., na ação de divórcio, a validade do casamento), hipótese em que incorreria a lei em indesejável redundância; ou se tratava de prejudicial interna, caso em que ocorreria colisão com o sistema da declaração incidente, e, pior, nenhuma justificativa plausível para suspender o processo, pois o juiz da causa resolverá conjuntamente a questão prejudicial, e, conforme o teor da resolução, passando ou não à análise da questão prejudicada. Essa situação constitui simples subespécie da regra geral do art. 313, V, a, do NCPC. É digno de nota a possibilidade de o juízo não exibir competência em razão da matéria para julgar questões de estado em caráter principalmente, hipótese em que a resolução incidental porventura tomada não se revestirá de auctoritas rei iudicate, nos termos do art. 503, § 1.º, III." (ASSIS, Araken de.
Processo civil brasileiro:
volume II. Tomo II. Parte geral: institutos fundamentais. São Paulo: RT. 2015. p. 809 e ss.)
No caso em apreço, não diviso a presença de causas ensejadoras da suspensão desta demanda, a exemplo de cogitada necessidade de se aguardar a evolução de algum outro processo
.
2.17. Gratuidade de Justiça:
No que toca à gratuidade de Justiça, anoto que a Constituição da República dispôs, no seu art. 5º LXXIV, que
"
o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos
."
Essa mesma lógica eclode do art. 24, XIII e do art. 134, Constituição Federal/1988.
Ademais, a Constituição recepcionou a antiga lei 1060/1950, responsável por detalhar as hipóteses do que se convencionou chamar de justiça gratuita.
Registro que o CPC/15 manteve a vigência da norma veiculada no art. 13 da lei 1060/1950 (art. 1072, III,
a contrario senso
), ao tempo em que admitiu o deferimento parcial da gratuidade:
Araken de Assis assim analisa a questão:
"- Isenção total - Em princípio, ao litigante interessa forrar-se integralmente do custo financeiro do processo. A isenção total tem por objeto, portanto, o art. 98, §1º, I a IX, ficando suspensa a exigibilidade do dever de reembolsar as despesas suportadas pelo adversário, no todo ou em parte - a perícia requerida por ambas a partes tem seu custo repartido, a teor do art. 95, caput, e, portanto, competiria ao beneficiário reembolsar em parte o vencedor - o pagamento de honorários ao advogado do vencedor, pelo prazo de cinco anos, a teor do art. 98, §3º.
- Isenção parcial - Mantido pelo art. 1.072, III, NCPC, o art. 13 da lei 1060/1950 subentende a concessão parcial do benefício de gratuidade. Essa possibilidade encontra-se prevista de modo mais nítido no art. 98, §5º, segundo o qual o juiz concederá gratuidade em relação a algum ou a todos os atos processuais. Pode acontecer de o litigante, conduzindo-se segundo os ditames da boa-fé (art. 5º) alegar não dispor de recursos para adiantar, v.g., os honorários do perito, sem dúvida despesa de vulto. Em tal hipótese, o órgão judiciário concederá isenção parcial, provocando a incidência, nesse caso, do art. 95, §2º.
- Isenção remissória - O art. 98, §5º, in fine, autoriza o juiz a reduzir percentualmente as despesas processuais que incumbe à parte adiantar no curso do processo. O benefício não alivia a parte da antecipação quanto a um ato específico. Limita o benefício à parte da despesa; por exemplo, fixada a indenização da testemunha em 100, o beneficiário paga 50, ficando a parte remanescente postergada para o fim do processo. Saindo-se vencedor o beneficiário, a contraparte cumprirá o art. 492, quanto à parte isentada, e reembolsará o beneficiário da outra metade.
-
Isenção diferida - A isenção parcial do art. 13 da lei 1060/1950 inspirou duas modalidades de diferimento: (a) o pagamento ao final, embora vencido o beneficiário; (b) o pagamento parcelado da despesa, objeto de previsão no art. 98, §6º. Por exemplo a parte não dispõe da totalidade dos honorários do perito arbitrado pelo juiz e, nessa contingência, requer o pagamento em três ou mais parcelas mensais consecutivas. O pagamento ao fim do processo é mais radical. A parte aposta no sucesso, transferindo, secundum eventuam litis, todas as despesas ao adversário. E, não logrando êxito, ficará isenta pelo prazo legal
(art. 98, §3º)." (ASSIS, Araken de.
Processo civil brasileiro.
Volume II. Tomo I. Parte geral. Institutos fundamentais. São Paulo: RT, 2015, p. 535-536)
Quanto aos requisitos para a concessão, reporto-me à análise de Rafael Alexandria de Oliveira:
"Faz jus ao benefício da gratuidade de justiça aquela pessoa com insuficiência de recursos para pagar as custas, despesas processuais e honorários advocatícios (art. 98). Não se exige miserabilidade, nem estado de necessidade, nem tampouco se fala em renda familiar ou faturamento máximos. É possível que uma pessoa natural, mesmo com boa renda mensal, seja merecedora do benefício, e que também o seja aquele sujeito que é proprietário de bens imóveis, mas não dispõe de liquidez. A gratuidade judiciária é um dos mecanismos de viabilização do acesso à justiça; não se pode exigir que, para ter acesso à justiça, o sujeito tenha que comprometer significativamente a sua renda, ou tenha que se desfazer de seus bens, liquidando-os para angariar recursos e custear o processo."
(OLIVEIRA, Rafael Alexandria in WAMBIER, Teresa Alvim.
Breves comentários ao novo CPC.
São Paulo: RT, 2015, p. 359)
Convém atentar, ademais, para a precisa avaliação de Araken de Assis:
"À concessão do benefício, nos termos postos no art. 98, caput, fundamentalmente interessa não permitir a situação econômica da parte atender às despesas do processo. É irrelevante a renda da pessoa, porque as causas podem ser vultuosas e sem recursos para o interessado. Igualmente, nenhum é o relevo da existência de patrimônio. E, de fato, se mesmo tendo um bem imóvel, os rendimentos da parte não lhe são suficientes para arcar com custas e honorários sem prejuízo do sustenta, tal propriedade não é empecilho à concessão da gratuidade. Parece pouco razoável exigir que alguém se desfaça de seus bens para atender ás despesas do processo. Nada assegura, a fortiori, o retorno à situação patrimonial anterior, em virtude do desfecho vitorioso do processo. (...) Funda-se o benefício da gratuidade numa equação econômica: a noção da necessidade decorre da inexistência de recursos financeiros, apuradas entre a receita e a despesa, capazes de atender o custo da demanda. Considera-se a situação atual da pessoa, mostrando-se irrelevante a sua antiga fortuna, dissipada ou perdida nos azares da vida."
(ASSIS, Araken de.
Processo civil brasileiro.
Volume II. Tomo I. Parte geral. São Paulo: RT, 2015, p. 549)
Note-se também que o TRF4 consolidou seu entendimento de que a gratuidade de Justiça haveria de ser deferida a quem receba remuneração mensal líquida inferior ao teto de benefícios do RGPS:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. PROCESSUAL CIVIL. HIPÓTESES DE CABIMENTO. COMPLEMENTAÇÃO. NECESSIDADE. BENEFÍCIO DA JUSTIÇA GRATUITA. RENDIMENTOS SUPERIORES AO TETO DOS BENEFÍCIOS DO RGPS. REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS. REVOGAÇÃO MANTIDA. RESULTADO DO JULGAMENTO INALTERADO. 1. São cabíveis embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para esclarecer obscuridade ou eliminar contradição; suprir omissão ou corrigir erro material, consoante dispõe o artigo 1.022 do Código de Processo Civil. 2.
A Terceira Turma adota como critério de concessão/manutenção do benefício da gratuidade judiciária o fato de a parte auferir renda inferior ao teto dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social - RGPS, pois mostra-se razoável presumir a hipossuficiência nessas hipóteses. 3. Para o deferimento da mencionada benesse, devem ser apurados os rendimentos líquidos da parte interessada e considerados, para tal fim, apenas, os descontos obrigatórios/legais (tais como Importo de Renda, Contribuição Previdenciária e pensão) e, excepcionalmente, gastos com saúde (apurada a gravidade da doença no caso concreto e os gastos respectivos, ainda que não descontados em folha de pagamento)
. 4. Caso em que acolhidos, em parte, os embargos de declaração, para complementar o decisum no ponto referente à revogação do benefício da justiça gratuita, sem alteração de resultado. (TRF-4 - AC: 50021421220124047116 RS 5002142-12.2012.4.04.7116, Relator: VÂNIA HACK DE ALMEIDA, Data de Julgamento: 28/01/2020, TERCEIRA TURMA)
Aludido entendimento foi reiterado pelo TRF4, ao julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas nº 5036075-37.2019.4.04.0000.
INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS. ACESSO À JUSTIÇA. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. GRATUIDADE DE JUSTIÇA. DISTINÇÃO. CRITÉRIOS. 1. Conforme a Constituição brasileira, "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos". 2. Assistência jurídica integral configura gênero que abarca diferentes serviços gratuitos, a cargo do poder público, voltados a assegurar a orientação, a defesa e o exercício dos direitos. 3. A consultoria jurídica gratuita é prestada pelas Defensorias Públicas quando do acolhimento dos necessitados, implicando orientação até mesmo para fins extrajudiciais e que nem sempre redunda na sua representação em juízo. 4. A assistência judiciária gratuita é representação em juízo, por advogado não remunerado, realizada pelas defensorias públicas e também advogados conveniados com o Poder Público ou designados pelo juiz pro bono. 5. A gratuidade de justiça assegura a prestação jurisdicional independentemente da realização dos pagamentos normalmente exigidos para a instauração e o processamento de uma ação judicial, envolvendo, essencialmente, custas, despesas com perícias e diligências e honorários sucumbenciais. 6. Nos termos das Leis 9.099/95, 10.259/01 e 12.153/19, o acesso à primeira instância dos Juizados de pequenas causas é gratuito, o que aproveita a todos, indistintamente. 7. O acesso à segunda instância dos juizados, às Varas Federais e aos tribunais é oneroso, de modo que depende de pagamento ou da concessão do benefício da gratuidade de justiça. 8. A Corte Especial, por ampla maioria, definiu que faz jus à gratuidade de justiça o litigante cujo rendimento mensal não ultrapasse o valor do maior benefício do Regime Geral de Previdência Social, sendo suficiente, nessa hipótese, a presunção de veracidade da declaração de insuficiência de recursos, que pode ser afastada pela parte contrária mediante elementos que demonstrem a capacidade econômica do requerente. 9.
Rendimentos mensais acima do teto do Regime Geral de Previdência Social não comportam a concessão automática da gratuidade de justiça. A concessão, em tais casos, exige prova a cargo do requerente e só se justifica em face de impedimentos financeiros permanentes. A par disso, o magistrado deve dar preferência ao parcelamento ou à concessão parcial apenas para determinado ato ou mediante redução percentual
. (TRF4 5036075-37.2019.4.04.0000, Corte Especial, Relator Leandro Paulsen, juntado aos autos em 07/01/2022, destaquei)
D'outro tanto, o CPC/15 manteve a lógica do art. 12 da lei 1060/1950, de modo que a concessão do benefício não implica efetiva exoneração da obrigação de recolher despesas e pagar honorários sucumbenciais (incabíveis, porém, no rito do mandado de segurança), observado o prazo suspensivo previsto, agora, no art. 98, §2º, CPC/15 (05 anos).
O detalhe está no fato de que, como registrei acima, nos termos do art. 98, §5º, CPC/15,
"
A gratuidade poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais, ou consistir na redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento
."
Anote-se que a Constituição preconiza que o postulante demonstre a incapacidade para o pagamento (art. 5º, LXXIV, CF). Aliás, como bem expressa Araken de Assis,
"A dispensa de o postulante da gratuidade, cuidando-se de pessoa natural, produzir prova documental do seu estado de necessidade provocou efeito colateral de graves reflexos. Fica o respectivo adversário em situação claramente desvantajosa. É muito difícil, a mais das vezes, e na imensa maioria dos litígios civis, a parte contrária reunir prova hábil da equação entre receita e despesa que gera a figura do necessitado. Enfraqueceu-se, em suma, o controle judiciário desse dado. A concessão do benefício é automática, e, na prática, simultaneamente irreversível, por força da inutilidade dos esforços em provar o contrário."
(ASSIS, Araken de.
Processo civil brasileiro.
Volume II. Tomo I. Parte geral. Institutos fundamentais. São Paulo: RT, 2015, p. 559).
No caso em exame
, a parte autora faz jus ao benefício, conforme art. 99, §2, CPC, o que defiro quanto às custas processuais, honorários periciais, e suspensão de eventuais encargos sucumbenciais, sem prejuízo de nova análise, na
forma do art. 100, CPC/15
.
2.18. C
onsiderações gerais sobre a antecipação de tutela:
Como sabido, a cláusula do devido processo envolve alguma aporia. Por um lado, o processo há de ser adequado: deve assegurar defesa, contraditório, ampla produção probatória. E isso consome tempo. Todavia, o processo também deve ser eficiente, ele deve assegurar ao titular de um direito uma situação jurídica idêntica àquela que ele teria caso o devedor houvesse satisfeito sua obrigação na época e forma devidas.
A demora pode contribuir para um debate mais qualificado entre as partes; todavia, também leva ao grande risco de ineficácia da prestação jurisdicional, caso o demandante tenha realmente razão em seus argumentos.
Daí a relevância do prudente emprego da tutela de urgência, prevista no art. 300 e ss. do CPC/15. Desde que a narrativa do demandante seja verossímil, seus argumentos sejam fundados e a intervenção imediata do Poder Judiciário seja necessária - isto é, desde que haja
fumus boni iuris
e
periculum in mora -
a antecipação da tutela deverá ser deferida.
Sem dúvida, porém, que o tema exige cautela, eis que tampouco soa compatível com o devido processo a conversão da antecipação em um expediente rotineiro, o que violentaria a cláusula do art. 5º, LIV e LV, CF. Ademais, o provimento de urgência não pode ser deferido quando ensejar prejuízos irreversíveis ao demandado (art. 300, §3º, CPC).
Daí o relevo da lição de Araken de Assis, como segue:
"A tutela de urgência e a tutela de evidência gravitam em torno de dois princípios fundamentais: (a) o princípio da necessidade; e (b) o princípio da menor ingerência.
- Princípio da necessidade - Segundo o art. 301, in fine, a par do arresto, sequestro, arrolamento de bens, e protesto contra a alienação de bens, o órgão judiciário poderá determinar qualquer outra medida idônea para asseguração do direito. Essa abertura aplica-se às medidas de urgência satisfativas (art. 303, caput): a composição do conflito entre os direitos fundamentais somente se mostrará legítima quando houver conflito real, hipótese em quase patenteia a necessidade de o juiz alterar o esquema ordinário de equilíbrio das partes perante o fator temporal do processo. A necessidade de o juiz conceder medida de urgência apura-se através da comparação dos interesses contrastantes dos litigantes. Dessa necessidade resulta a medida adequada à asseguração ou à satisfação antecipada em benefício do interesse mais provável de acolhimento em detrimento do interesse menos provável.
- Princípio do menor gravame - O princípio do menor gravame ou da adequação é intrínseco à necessidade. É preciso que a medida de urgência seja congruente e proporcional aos seus fins, respectivamente a asseguração ou a realização antecipada do suposto direito do autor. Por esse motivo, a medida de urgência cautelar prefere à medida de urgência satisfativa, sempre que adequada para evitar o perigo de dano iminente e irreparável, e, na órbita das medidas de urgência satisfativas, o órgão judiciário se cingirá ao estritamente necessário para a mesma finalidade." (ASSIS, Araken de.
Processo civil brasileiro.
volume II. Tomo II. Parge Geral: institutos fundamentais. São Paulo: RT, 2015, p. 370-371).
Quando se cuide
, ademais, de pedido em desfavor da Fazenda Pública, a lei 8.437/1992 veda a antecipação de tutela que implique compensação de créditos tributários ou previdenciários (art. 1º, §5º).
A lei do mandado de segurança veda a concessão de liminares com o fim de se promover a entrega de mercadorias, a reclassificação de servidores públicos e o aumento ou extensão de vantagens de qualquer natureza
(art. 7º, §2º, lei 12.016).
Registre-se que o STF já se manifestou sobre a constitucionalidade de algumas dessas limitações (lei 9.494), conforme se infere da conhecida ADC 04-6/DF, rel. Min. Sydnei Sanches (DJU de 21.05.1999), com os temperamentos reconhecidos no informativo 248, STF. No âmbito do Direito Administrativo militar, há restrições ao emprego do
writ
, por exemplo, diante do que preconiza o art. 51, §3º, lei n. 6.880/1980, ao exigir o exaurimento da via administrativa.
Por outro lado, como sabido, o juízo não pode antecipar a eficácia meramente declaratória de uma cogitada sentença de procedência. Afinal de contas, a contingência é inerente aos provimentos liminares; de modo que a certeza apenas advém do trânsito em julgado (aliás, em muitos casos, sequer depois disso, dadas as recentes discussões sobre a relativização da
res iudicata
): "
É impossível a antecipação da eficácia meramente declaratória, ou mesmo conferir antecipadamente ao autor o bem certeza jurídica, o qual somente é capaz de lhe ser atribuído pela sentença declaratória
. A cognição inerente ao juízo antecipatório é por sua natureza complemente inidônea para atribuir ao autor a declaração - ou a certeza jurídica por ele objetivada."
(MARINONI, Luiz Guilherme.
A antecipação da
tutela
.
7. ed. SP: Malheiros. p. 55)
2.19. Hipóteses de contraditório postergado:
Em regra, a antecipação de tutela apenas pode ser promovida quando assegurado prévio contraditório ao demandado, conforme art. 5, LIV e LV, CF e art. 7, parte final, CPC.
Isso não impede, todavia, que, em situações excepcionais, o contraditório seja postergado, em face da urgência documentada nos autos
.
PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR PARA DETERMINAR O PROCESSAMENTO DE RECURSO ESPECIAL. POSSIBILIDADE. EXISTÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS DO FUMUS BONI JURIS E DO PERICULUM IN MORA. 1. O Superior Tribunal de Justiça tem entendido que a regra de obstar o recurso especial retido deve ser obtemperada para que não esvazie a utilidade daquele apelo extremo. 2.
O poder geral de cautela há que ser entendido com uma amplitude compatível com a sua finalidade primeira, que é a de assegurar a perfeita eficácia da função jurisdicional. Insere-se aí a garantia da efetividade da decisão a ser proferida. A adoção de medidas cautelares (inclusive as liminares inaudita altera parte) é fundamental para o próprio exercício da função jurisdicional, que não deve encontrar obstáculos, salvo no ordenamento jurídico
. 3. O provimento cautelar tem pressupostos específicos para sua concessão. São eles: o risco de ineficácia do provimento principal e a plausibilidade do direito alegado (periculum in mora e fumus boni iuris), que, presentes, determinam a necessidade da tutela cautelar e a inexorabilidade de sua concessão, para que se protejam aqueles bens ou direitos de modo a se garantir a produção de efeitos concretos do provimento jurisdicional principal. 4. Em tais casos, pode ocorrer dano grave à parte, no período de tempo que mediar o julgamento no tribunal a quo e a decisão do recurso especial, dano de tal ordem que o eventual resultado favorável, ao final do processo, quando da decisão do recurso especial, tenha pouca ou nenhuma relevância. 5. Existência, em favor da requerente, da fumaça do bom direito e do perito da demora, em face da patente contrariedade ao art. 2º, da Lei nº 8.437/92, visto que, na hipótese dos autos, não há necessidade da prévia audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, vez que o ente Municipal sequer figura na relação processual. 6. Medida Cautelar procedente, para determinar o processamento do recurso especial. ..EMEN: (MC 200100113001, JOSÉ DELGADO, STJ - PRIMEIRA TURMA, DJ DATA:13/05/2002 PG:00150 ..DTPB:.)
Com efeito, citando novamente Araken de Assis, quando enfatiza o que transcrevo abaixo:
"
O processo constitucionalmente justo e equilibrado (faires Verfahren) exige a oportunidade de as partes influírem na atividade do órgão judiciário. O princípio do contraditório, na sua dimensão horizontal, assegura à parte a possibilidade de manifestação acerca das (a) razões de fato, (b) os meios de prova tendentes a demonstrar-lhes a veracidade, e (c) as razões de direito da contraparte
.
O processo criará inexoravelmente uma comunidade de trabalho, sem prejuízo da parcialidade das partes, e o contraditório assume dimensão vertical. Limitará a atuação do órgão judiciário no que concerne à matéria de direito, domínio que lhe toca na qualidade maître du droit -,79 impondo a manifestação prévia das partes sobre (a) a qualificação jurídica dos fatos afirmados, ou dos fatos não alegados, mas constantes dos autos, que o juiz possa considerar relevantes; (b) as normas legais que o juiz entenda aplicáveis à resolução da causa; e (c) as questões que se mostra lícito ao juiz conhecer sem alegação das partes (v.g., as “condições” da ação – legitimidade e interesse processual –, a teor do art. 485, § 3.º). O art. 357, IV, exige a delimitação das questões de direito na decisão de saneamento e de organização do processo para essas finalidades.
A urgência autoriza, entretanto, a postergação do contraditório em certas condições. É o que se infere do art. 300, § 2.º, segundo o qual “a tutela de urgência pode ser concedida liminarmente”. O art. 12, caput, da Lei 7.347/1985 determina o seguinte na ação civil pública: “Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo”. E o art. 7.º, III, da Lei 12.016/2009 estipula que o juiz, no mandado de segurança, ordenará a suspensão incontinenti do ato de autoridade “quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida
." (ASSIS, Araken de.
Processo civil brasileiro.
volume II. Tomo II. Parte Geral: institutos fundamentais. São Paulo: RT, 2015, tópico 1.425).
Outrossim,
"Duas situações autorizam o juiz à concessão de liminar sem a audiência do réu (inaudita altera parte): (a) sempre que o réu, tomando prévio conhecimento da medida, encontre-se em posição que lhe permita frustrar a medida de urgência; (b) sempre que a urgência em impedir a lesão revele-se incompatível com o tempo necessário à integração do réu à relação processual. Essa última hipótese é objeto do seguinte precedente do STJ: “Justifica-se a concessão de liminar inaudita altera parte, ainda que ausente a possibilidade de o promovido frustrar a sua eficácia, desde que a demora de sua concessão possa importar em prejuízo, mesmo que parcial, para o promovente."
(ASSIS, Araken.
Obra citada.
tópico 1.426).
Com efeito,
"
É constitucional a decisão antecipatória de tutela que, liminarmente e adiando a observância do contraditório para momento posterior, concede a antecipação dos efeitos da tutela para homenagear outro direito em voga, cuja preterição se revelar mais danosa
. 2. O perigo de irreversibilidade da medida, não obstante existente no presente caso, não subsiste quando encarado frente ao perigo da demora, o qual milita em favor da parte agravada."
(TJ-PE - AI: 2784312 PE, Relator: Roberto da Silva Maia, Data de Julgamento: 21/05/2013, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 29/05/2013).
Note-se, por exemplo, que a compreensão e aplicação do art. 2, da lei n. 8.437, de 1992, não podem implicar inexorável vedação à antecipação de tutela
inaudita altera parte
, sobremodo quando em causa perigo de danos ambientais, dado o alcance do art. 225, da Constituição e legislação correlata. Assim, "
O Superior Tribunal de Justiça tem flexibilizado o disposto no art. 2º da Lei n.º 8.437/92 a fim de impedir que a aparente rigidez de seu enunciado normativo obste a eficiência do poder geral de cautela do Judiciário
."
(REsp 1130031/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, 2.T. julgado em 22/06/2010, DJe 03/08/2010)
Por sinal, "
Excepcionalmente, é possível conceder liminar sem prévia oitiva da pessoa jurídica de direito público, desde que não ocorra prejuízo a seus bens e interesses ou quando presentes os requisitos legais para a concessão de medida liminar em ação civil pública. Hipótese que não configura ofensa ao art. 2º da Lei n. 8.437/1992
."
(AgRg no REsp 1.372.950/PB, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/6/2013, DJe 19/6/2013.)
Sabe-se, pois, que
"
a jurisprudência do STJ tem mitigado, em hipóteses excepcionais, a regra que exige a oitiva prévia da pessoa jurídica de direito público nos casos em que presentes os requisitos legais para a concessão de medida liminar em ação civil pública
(art. 2º da Lei 8.437/92). Precedentes do STJ."
(REsp 1.018.614/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/6/2008, DJe 6/8/2008).
2.20. Eventual prescrição da pretensão dos requerentes:
A pretensão deduzida na peça inicial submete-se à prescrição quinquenal, prevista no art. 1º, do
decreto 20.910, de 1932
. Note-se, contudo, que na espécie debate-se pretensão prospectiva, já que os requerentes insurgem-se contra a ausência de ultimação de processo administrativo demarcatório de imóveis, a cargo do INCRA.
Tanto por isso, considerando que - a vingar a narrativa promovida na peça inicial - a pretensão é renovada enquanto persistir a alegada mora administrativa, não se operou a prescrição no caso vertente. De resto, tal questão não chegou a ser suscitada pelo requerido.
Atente-se para a lógica do seguinte julgado:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL. PROGRESSÃO FUNCIONAL HORIZONTAL. NÃO OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO DO FUNDO DE DIREITO. INEXISTÊNCIA DE NEGATIVA DO DIREITO PELA ADMINISTRAÇÃO. OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO. PRESTAÇÃO DE TRATO SUCESSIVO. SÚMULA 85/STJ. SÚMULA 568/STJ.
No caso dos autos, não se discute violação do fundo de direito, mas sim o não pagamento de valores decorrentes de obrigação de trato sucessivo. Isso porque a servidora, ao não ser beneficiada com a progressão funcional garantida na legislação municipal, vê caracterizada uma omissão da Administração, renovada mês a mês, uma vez que não houve nenhum ato concreto negando o direito, mas uma inadimplência em relação jurídica de trato sucessivo
. Logo, somente as parcelas vencidas há mais de 5 anos da propositura da ação devem ser consideradas prescritas nos termos da Súmula 85 do STJ. Agravo interno improvido. (STJ - AgInt no AREsp: 875628 MG 2016/0054585-5, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 02/08/2016, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/08/2016)
Assim, a pretensão do requerente
não foi atingida pela prescrição
.
2.21. Controle judicial dos atos administrativos:
Registro alguns tópicos concernentes ao controle jurisdicional da atividade administrativa
, tendo em conta a alegação dos requerimentos no tocante à pretensa invalidade do deferimento da enfiteuse administrativa em questão. Para esse fim, portanto, convém tecer algumas considerações sobre as condicionantes da atuação da Administração Pública.
Ora, vivemos o tempo da
superação do modelo de Estado meramente legislativo em prol de um efetivo Estado Constitucional
, conforme conhecida expressão de Peter Häberle.
Durante muitos anos, a teoria do Estado gravitou em torno do estudo das competências e da estrutura dos órgãos da Administração Pública. Atualmente, contudo, o eixo tem sido deslocado em direção à busca de efetividade dos direitos fundamentais. E isso é incompatível com a ideia de
legibus solutus
, própria ao Estado oitocentista.
Como explica Gustavo Binembojm,
"A palavra discricionariedade tem sua origem no antigo Estado europeu dos séculos XVI a XVIII, quando expressava a soberania decisória do monarca absoluto (
voluntas regis suprema lex
). Naquela época, do chamado Estado de polícia, em que o governo confundia-se integralmente com a Administração Pública, a sinonímia entre discricionariedade e arbitrariedade era total. Com efeito, se a vontade do soberano era a lei suprema, não fazia sentido cogitar de qualquer limite externo a ela. Por atavismo histórico, ainda nos dias de hoje encontra-se o adjetivo 'discricionário' empregado como sinônimo de arbitrário ou caprichoso, ou para significar uma decisão de cunho puramente subjetivo ou político, liberta de parâmetros jurídicos de controle."
(BINENBOJM, Gustavo.
Uma teoria do direito administrativo:
direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 195-196).
Posteriormente, essa noção de discricionariedade - até então compreendida como sinônimo de arbítrio - evoluiu em prol do reconhecimento da existência de distintas opções deliberativas, observados os limites estipulados pela própria lei. Em muitos casos, a lei imporia a finalidade, mas não estipularia os meios a serem escolhidos pelos administradores para a sua obtenção, de modo que distintos meios poderiam ser eleitos, desde que adequados aos fins visados.
Por fim, sob o Estado Constitucional, reconhece-se que o administrador público não pode decidir de qualquer forma, ao seu alvedrio.
"Em consequência, como assinala Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a discricionariedade deixa de ser compreendida como um campo externo ao direito - verdadeiro atavismo monárquico - passando a ser vista como um poder jurídico. É dizer: um espaço decisório peculiar à Administração, não de escolhas puramente subjetivas, mas definida pela prioridade das autoridades administrativas na fundamentação e legitimação dos atos e políticas públicas adotados, dentro de parâmetros jurídicos estabelecidos pela Constituição, pelas leis ou por atos normativos editados pelas próprias entidades da Administração."
(BINENBOJM, Gustavo.
Obra citada.
p. 199-200).
Desse modo, há muito tempo é sabido que o Poder Judiciário pode promover o controle de atos administrativos discricionários, quando menos para aferir eventual desvio de finalidade. O grande debate diz respeito, isso sim, à intensidade e aos critérios envolvidos no aludido controle judicial. Bandeira de Mello explica que
"Em despeito da discrição presumida na regra de direito, se o
administrador houver praticado ato discrepante do único cabível
, ou se tiver algum fim seguramente impróprio ante o confronto com a finalidade da norma, o Judiciário deverá prestar a adequada revisão jurisdicional, porquanto, em rigor, a Administração terá desbordado da esfera discricionária."
(BANDEIRA DE MELLO, Celso A.
Discricionariedade e controle jurisdicional.
São Paulo: Malheiros, 2001, p. 36).
Concordo, pois, com Binenbojm quando enfatiza que
"A emergência da noção de juridicidade administrativa, com a vinculação direta da Administração à Constituição, não mais permite falar, tecnicamente, numa autêntica dicotomia entre atos vinculados e atos discricionários, mas, isto sim, em diferentes graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade.
A discricionariedade não é, destarte, nem uma liberdade decisória externa ao direito, nem um campo imune ao controle jurisdicional
. Ao maior ou menor grau de vinculação do administrador à juridicidade corresponderá, via de regra, maior ou menor grau de controlabilidade judicial dos seus atos."
(BINENBOJM, Gustavo.
Obra citada.
p. 208). Semelhante é a análise promovida por Eduardo Jordão, ao tratar do controle judicial com deferência para soluções administrativas (JORDÃO, Eduardo.
Controle judicial de uma administração pública complexa:
a experiência estrangeira na adaptação da intensidade do controle. São Paulo: Malheiros. 2016. p. 285 e ss.).
Frente ao reconhecimento de efetividade aos princípios constitucionais da boa gestão pública (art. 37, CF), não há como imaginar que o Poder Executivo possa deliberar de qualquer modo, sem justificar suas escolhas e sem ter que prestar contas.
"O mérito - núcleo do ato -, antes intocável, passa a sofrer a incidência direta dos princípios constitucionais. Deste modo, ao invés de uma dicotomia tradicional (ato vinculado v. ato discricionário), já superada, passa-se a uma classificação em graus de vinculação à juridicidade, em uma escala decrescente de densidade normativa vinculativa."
(BINENBOJM, Gustavo.
Obra cit.
p. 209).
Convém atentar para a precisa síntese de Binenbojm:
"É interessante registrar que a aplicação da teoria do desvio de poder para o controle da finalidade dos atos administrativos discricionários não importa controle do mérito propriamente dito, mas como que um estreitamento do seu âmbito. Ou seja: não se trata de controlar o núcleo da apreciação ou da escolha, mas de diminuir mo espaço em que o administrador faz escolhas de acordo com a própria conveniência e oportunidade.
O mesmo pode ser afirmado com relação às outras formas, ditas, de controle do mérito do ato administrativo, como o controle da proporcionalidade, da moralidade e da eficiência. Neste sentido, por exemplo, não se controla o mérito do ato administrativo em descompasso com a proporcionalidade, mas apenas se reconhece que o conteúdo desproporcional do ato simplesmente não é mérito
.
Em outras palavras, não há conveniência e oportunidade possível fora dos limites estabelecidos pela proporcionalidade." (BINENBOJM, Gustavo.
Uma teoria do direito administrativo:
direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 210)
Sabe-se bem que, no mais das vezes, as questões alusivas à eficiência de determinadas soluções administrativas escapam do controle judicial, sob pena de se instituir um governo de juízes, inviabilizando-se a própria administração pública e comprometendo o sistema de pesos e contrapesos. Todavia, deve-se respeitar o detalhe: os juízos de mera conveniência e de mera oportunidade escapam, em regra, do controle jurisdicional, salvo quando se tratar de escolhas manifestamente desastrosas, desproporcionais, que comprometam a própria moralidade pública ou mesmo uma noção mínima de eficiência.
Colho a lição de Hans Wolff, Otto Bachof e Rolf Stober:
"
Enquanto a Administração está orientada para a multiplicidade e tem responsabilidade metajurídica, a jurisprudência é de tipo monodisciplinar-jurídico
(...). Por isso, o controlo jurisdicional circunscreve-se apenas ao controlo jurídico. Este controlo não se confunde com a vigilância completa (
Rundum-Beaufsichtigung
) da Administração. Por isso, o controle jurisdicional termina onde deixam de existir padrões jurídicos de controlo (...). Aqui a autonomia da Administração manifesta-se de forma particularmente clara. Em primeiro plano, está a auto-responsabilidade, que terá de ser respeitada pela jurisprudência, bem como a oportunidade, mas não a legalidade da actuação (...). A ideia nuclear é a de que o controlo jurisdicional não conduz a uma subalternização da Administração e os tribunais não devem substituir as apreciações (valorações) da Administração pelas suas próprias valorações.
Nesse contexto, devemos distinguir duas questões fundamentais. Por um lado, suscita-se a questão de saber se num Estado de direito que pratica a divisão de poderes haverá decisões 'livres do direito' para a Administração, no sentido de determinadas medidas estarem totalmente excluídas do controlo jurisdicional (os chamados actos de autoridade sem justiça). Esta questão suscitou-se quanto aos actos de governo e quanto aos actos de graça, mas que deve ser recusada na vigência da lei fundamental (...). Diferente é a questão de saber até que ponto o legislador exclui do controlo jurisdicional decisões administrativas por questões de celeridade e de eficiência administrativas, através da criação de normas de sanação e de preclusão (Heilungs- und Präklusionsvorschriften) (...)
Por outro lado, trata-se do problema de saber se e em que medida a Administração goza, quanto às decisões a tomar, de margens de conformação que apenas limitem a intensidade do controlo jurisdicional (a chamada densidade do controlo)
. Sejam aqui lembradas apenas as margens de discricionariedade, cujo exercício está subordinado a determinados limites jurídicos." (WOLFF, Hans J.; BACHOF, Otto; STOBER, Rolf.
Direito administrativo. volume I.
Tradução do alemão por António F. de Souza. Calouste Gulbenkian, 2006, p. 247-248)
Em muitos casos, todavia, deve-se ter em conta a teoria dos motivos determinantes, bem explicitada por Hely Lopes Meireles:
"A teoria dos motivos determinantes funda-se na consideração de que os atos administrativos, quando tiverem sua prática motivada, ficam vinculados aos motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos. Tais motivos é que determinam e justificam a realização do ato, e, por isso mesmo, deve haver perfeita correspondência entre eles e a realidade. Mesmo os atos discricionários, se forem motivados, ficam vinculados a esses motivos como causa determinante de seu cometimento e sujeitam-se ao confronto da existência e legitimidade dos motivos indicados. Havendo desconformidade entre os motivos determinantes e a realidade, o ato é inválido."
(MEIRELLES, Hely Lopes.
Direito Administrativo Brasileiro.
14ª Edição, Editora RT, p. 175)
É fato que, na contemporaneidade, alguns autores têm criticado referida teoria, como bem ilustra a seguinte lição de Marçal Justen Filho:
"A teoria dos motivos determinantes estabelece que o agente administrativo se vincula à motivação adotada, de modo que se presume que o motivo indicado foi o único a justificar a decisão adotada. Essa teoria deve ser reputada como ultrapassada, não se prestando mais ao controle de validade dos atos administrativos. Foi desenvolvida nos primórdios do direito administrativo, quando ainda não se delineara de modo perfeito a distinção entre autonomia de vontade privada e vontade funcionalizada própria do direito administrativo. Mais ainda, era um instrumento de controle construído em vista de certa concepção de discricionariedade.
A afirmação pelo agente de que atuou fundado em determinados motivos não produz efeitos vinculantes para fins de controle. Pode evidenciar-se a existência de motivos ocultos ou disfarçados. Mas não há impedimento a que a Administração Pública evidencie, posteriormente, que o ato se fundou em outros motivos, que justificavam adequadamente a decisão adotada. A equivocada indicação do motivo é uma falha, mas o grave reside na ausência de atuação orientada a satisfazer as necessidades coletivas, com a observância de um procedimento democrático
." (JUSTEN FILHO, Marçal.
Curso de direito administrativo.
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 264)
Em que pese a densidade da crítica de Marçal Justen Filho, essa teoria ainda exerce salutar função democrática, ao viabilizar, por vias oblíquas, o dever de fundamentação do ato administrativo. Compartilho, pois, da lição de José dos Santos Carvalho Filho quando argumenta:
"A teoria dos motivos determinantes baseia-se no princípio de que o motivo do ato administrativo deve sempre guardar compatibilidade com a situação de fato que gerou a manifestação da vontade. E não se afigura estranho que se chegue a essa conclusão: se o motivo se conceitua como a própria situação de fato que impele a vontade do administrador, a inexistência dessa situação provoca a invalidação do ato."
(CARVALHO F, José dos Santos.
Manual de direito administrativo.
24. ed. RJ: Lumen Juris, 2011, p. 109). Afinal de contas, conquanto o Poder Judiciário não possa invadir a esfera decisória que é própria do Poder Executivo - o que não se discute -, também é fato que se deve
"fortalecer o postulado da inafastabilidade de toda e qualquer fiscalização judicial. A progressiva redução e eliminação dos círculos de imunidade do poder há de gerar, como expressivo efeito consequencial, a interdição do seu exercício abusivo."
(FAGUNDES, Seabra.
O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário.
Atualizado por Gustavo Binenbojm. 7. ed. Rio de Jandiro: Forense, 2005, p. 191).
Conjugando-se todos esses elementos, vê-se que o Direito Administrativo contemporâneo não mais acolhe a premissa de que o mérito dos atos administrativos seriam sempre insuscetíveis de controle judicial. Isso não ocorre em um Estado Constitucional, dado que administrar é exercer função (é atuar em nome próprio, mas no interesse alheio). Também é possível o controle de decisões fundadas em fontes normativas que veiculam conceitos porosos, imprecisos, indeterminados (a respeito desse tema, leia-se CARRIÓ, Genaro R.
Notas sobre Derecho y lenguaje.
6. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2011). Isso significa que, diante da efetividade dos princípios constitucionais, o administrador público não pode decidir ao seu líbito, já que - mesmo em tais casos - há zonas de certeza positiva e negativas, suscetíveis de aferição judicial.
Atente-se para os seguintes julgados:
(...) 1.
De acordo com a doutrina mais autorizada, os conceitos jurídicos indeterminados, como, no caso, procedimento irrepreensível e idoneidade moral inatacável, sujeitam-se a controle judicial de sua configuração concreta. 2. Não é omissão de aplicação do disposto no art. 37, I, da Constituição e no art. 8o., I, do Dec.-Lei n. 2.320/87 a afirmação de que os fatos alegados - acontecidos há mais de dez anos e em razão dos quais, processado, o apelado restou absolvido - não justificam exclusão do Curso de Agente de Polícia Federal
. (EDAC 964030319994010000, DESEMBARGADOR FEDERAL JOAO BATISTA MOREIRA, TRF1 - QUINTA TURMA, DJ DATA:14/11/2002 PAGINA:207.)
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DE PROFESSORES. EXISTÊNCIA DE CANDIDATOS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO DE PROVIMENTO EFETIVO. ILEGALIDADE. LEI ESTADUAL 6.915/2007. EXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 279 DESTA CORTE. ANÁLISE DE LEGISLAÇÃO LOCAL. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 280 DO STF. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO. POSSIBILIDADE DE CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS ADMINISTRATIVOS DISCRICIONÁRIOS ABUSIVOS E ILEGAIS. AGRAVO IMPROVIDO. I - Inviável o recurso extraordinário quando sua apreciação demanda o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, bem como da legislação infraconstitucional local aplicável à espécie. Incidência das Súmulas 279 e 280 do STF. Precedentes. II -
Esta Corte possui entendimento no sentido de que o exame pelo Poder Judiciário do ato administrativo tido por ilegal ou abusivo não viola o princípio da separação dos poderes
. Precedentes. III - Agravo regimental improvido. (RE-AgR 654170, RICARDO LEWANDOWSKI, STF.)
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. DEMISSÃO. PODER DISCIPLINAR. LIMITES DE ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. ATO DE IMPROBIDADE. 1. Servidor do DNER demitido por ato de improbidade administrativa e por se valer do cargo para obter proveito pessoal de outrem, em detrimento da dignidade da função pública, com base no art. 11, caput, e inciso I, da Lei n. 8.429/92 e art. 117, IX, da Lei n. 8.112/90. 2.
A autoridade administrativa está autorizada a praticar atos discricionários apenas quando norma jurídica válida expressamente a ela atribuir essa livre atuação. Os atos administrativos que envolvem a aplicação de "conceitos indeterminados" estão sujeitos ao exame e controle do Poder Judiciário. O controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato, à luz dos princípios que regem a atuação da Administração.
3. Processo disciplinar, no qual se discutiu a ocorrência de desídia --- art. 117, inciso XV da Lei n. 8.112/90. Aplicação da penalidade, com fundamento em preceito diverso do indicado pela comissão de inquérito. A capitulação do ilícito administrativo não pode ser aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa. De outra parte, o motivo apresentado afigurou-se inválido em face das provas coligidas aos autos. 4. Ato de improbidade: a aplicação das penalidades previstas na Lei n. 8.429/92 não incumbe à Administração, eis que privativa do Poder Judiciário. Verificada a prática de atos de improbidade no âmbito administrativo, caberia representação ao Ministério Público para ajuizamento da competente ação, não a aplicação da pena de demissão. Recurso ordinário provido. (RMS 24699, EROS GRAU, STF.)
Por conseguinte, é plenamente cabível o controle judicial dos atos administrativos, mesmo quando discricionários. Deve-se atuar com circunspeção, todavia, a fim de que o Poder Judiciário não se substitua ao Poder Executivo, no juízo de conveniência e oportunidade de determinadas políticas públicas, salvo quando manifestamente ineficientes, inadequadas ou abusivas.
2.22. Controle de
omissões
estatais:
Não raro, por meio da Constituição e legislação infraconstitucional, a comunidade política tem obrigado o Estado brasileiro a implementar direitos, em prol da construção de uma sociedade justa e solidária - art. 3º, CF/88.
Deve-se ter em conta, tanto por isso, o dever de efetivação progressiva dos
direitos prestacionais
, ainda que, sabidamente, isso também dependa da alocação de recursos orçamentários para tanto. Convém atentar para o art. 26 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, promulgada em solo brasileiro por meio do decreto 678, de 06 de novembro de 1992.
Art. 26. Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de
conseguir progressivamente a plena efetividade
dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.
Cuida-se de um tema afeto ao dever de legislar - no que toca ao Poder Legislativo da União - e quanto ao dever de efetivar normas jurídicas - no que toca ao Poder Executivo federal, tema versado por Jorge Pereira da Silva na obra
Dever de legislar
e protecção contra
omissões
legislativas
.
Lisboa: Universidade Católica Editora. 2003:
"O dever de actuação do legislador com que mais frequentemente se topa na doutrina e na jurisprudência nacionais é, sem dúvida alguma, o dever de concretização de normas constitucionais.
Na verdade, é pacificamente aceito que algumas disposições constitucionais impelem o legislador ordinário a actuar, solicitando a emanação de legislação sobre as mais diversas questões e fixando-lhe directivas materiais
. Sublinhe-se, entretanto, que hoje se rejeitam os modelos de relacionamento entre a Constituição e o legislador que tenham a reduzir a tarefa deste a algo de meramente executivo, em moldes semelhantes ao que sucede na relação entre a lei a Administração Pública.
De fato, a liberdade de conformação do legislador não é o correlato, a nível legislativo, do poder discricionário, no nível administrativo. Assim, só metaforicamente se pode falar de discricionariedade legislativa, porque, mesmo na presença de um dever de concretização de normas constitucionais, o legislador democraticamente legitimado, sem prejuízo das modulações decorrentes do grau de densidade da norma impositiva, nunca actua desprovido de sua liberdade de conformação ao ponto de a sua fuçnão perder a marca de decisão política e de se transformar numa função secundária ou meramente executiva
."
(SILVA, Jorge Pereira da S.
Obra citada.
p. 29-30).
Nesse âmbito, deve-se ter em conta os
"
mandatos legislativos permanentes, caracterizados pela sua dimensão prospectiva, estabelecendo deveres legislativos cujo preenchimento se prolonga necessariamente no tempo e, mais do que isso, se apresentam como uma tarefa sempre inacabada, exigindo um aperfeiçoamento contínuo. Estes mandatos encontram-se, essencialmente, nos direitos econômicos, sociais e culturais e, em especial, entre as incumbências do Estado que acompanham estes direitos e que são, antes de mais, incumbências do órgão legislativo
."
(SILVA, Jorge P
.
Obra citada.
p. 34).
Ademais, no âmbito do direito lusitano, Jorge Silva argumenta que
"Na busca dos remédios para as omissões inconstitucionais, importa ter a consciência de que a escolha certa depende de um profundo conhecimento do doente e da enfermidade que o afecta, mas deve igualmente ter-se presente que nem todos os remédios curam, podendo ser mais ou menos eficazes conforme a gravidade do diagnóstico.
Acresce que, nas omissões legislativas, como em qualquer doença, há sempre aqueles casos extremos em que não há sequer remédio disponível que possa valer ao paciente, restando ao julgador esperar por uma intervenção superior, que é como quem diz, por uma intervenção legislativa. Aliás, em matéria de omissões legislativas, só uma actuação do legislador em conformidade co mo seus deveres constitucionais tem a capacidade de curar verdadeiramente e em definitivo a enfermidade em causa
. Não devem, por isso, esperar-se dos tribunais respostas perfeitas para omissões legislativas. A pergunta a colocar perante cada caso concreto não deve ser 'qual o remédio para esta omissão?', mas sim 'há remédio para esta omissão?' Só em caso de resposta afirmativa a esta última questão se poderá perguntar, em função das características da omissão em causa, qual o grau de eficácia do remédio em apreço. Em todo o caso, mesmo quando é possível atacar a enfermidade com sucesso e recuperar um doente isso não é suficiente para irradiar a doença."
(SILVA, Jorge Pereira da Silva
.
Obra citada.
p. 195).
O tema envolve algumas complexidades, como notório, eis que o Judiciário, não se encontrando submetido ao sufrágio periódico e universal para escolha dos seus membros e avaliação da sua atuação, não possui a necessária legitimidade para promover escolhas em caráter originário, criando normas que devem regrar a generalidade dos casos. Por outro lado, tampouco é adequado contemporizar com omissões legislativas ou administrativas, suscetíveis de converterem mandamentos constitucionais em meras cartas de intenções ou recomendações, destituídas de eficácia.
No direito pátrio, como notório, no que toca a omissões legislativas, a Constituição preconizou a adoção dos instrumentos do mandado de injunção (art. 5º, LXXI) e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, §2º)
. Aludidos mecanismos processuais sofreram razoável alteração ao longo dos anos, no âmbito da jurisprudência da Suprema Corte pátria. Quanto ao mandado de injunção, ao apreciar o MI 107, relatado pelo Min. Moreira Alves, a Suprema Corte concluiu que aludido instrumento processual não permitiria ao Poder Judiciário substituir-se ao Congresso, elaborando a norma efetivadora do comando constitucional. O controle jurisdicional estaria limitado à mera declaração do estado de coisas inconstitucional, mas, sem maior efetividade imediata. Ao apreciar, contudo, o M 283, relatado pelo Min. Sepúlveda Pertence, o STF alterou significativamente aquele entendimento, reconhecendo que, persistindo a mora legislativa, o demandante poderia exercer diretamente o direito assegurado pela Constituição.
"Mandado de injunção: mora legislativa na edição da lei necessária ao gozo do direito a reparação econômica contra a União, outorgado pelo art. 8., par. 3., ADCT: deferimento parcial, com estabelecimento de prazo para a purgação da mora e, caso subsista a lacuna, facultando o titular do direito obstado a obter, em juízo, contra a União, sentença liquida de indenização por perdas e danos. 1. O STF admite - não obstante a natureza mandamental do mandado de injunção (MI 107 - QO) - que, no pedido constitutivo ou condenatório, formulado pelo impetrante, mas, de atendimento impossível, se contem o pedido, de atendimento possível, de declaração de inconstitucionalidade da omissão normativa, com ciência ao órgão competente para que a supra (cf. Mandados de Injunção 168, 107 e 232). 2. A norma constitucional invocada (ADCT, art. 8., par. 3. - "Aos cidadãos que foram impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional especifica, em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica n. S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e n. S-285-GM5 será concedida reparação econômica, na forma que dispuser lei de iniciativa do Congresso Nacional e a entrar em vigor no prazo de doze meses a contar da promulgação da Constituição" - vencido o prazo nela previsto, legitima o beneficiário da reparação mandada conceder a impetrar mandado de injunção, dada a existência, no caso, de um direito subjetivo constitucional de exercício obstado pela omissão legislativa denunciada. 3.
Se o sujeito passivo do direito constitucional obstado e a entidade estatal a qual igualmente se deva imputar a mora legislativa que obsta ao seu exercício, e dado ao Judiciário, ao deferir a injunção, somar, aos seus efeitos mandamentais típicos, o provimento necessário a acautelar o interessado contra a eventualidade de não se ultimar o processo legislativo, no prazo razoável que fixar, de modo a facultar-lhe, quanto possível, a satisfação provisoria do seu direito. 4. Premissas, de que resultam, na espécie, o deferimento do mandado de injunção para: a) declarar em mora o legislador com relação a ordem de legislar contida no art. 8., par. 3., ADCT, comunicando-o ao Congresso Nacional e a Presidência da Republica; b) assinar o prazo de 45 dias, mais 15 dias para a sanção presidencial, a fim de que se ultime o processo legislativo da lei reclamada
; c) se ultrapassado o prazo acima, sem que esteja promulgada a lei, reconhecer ao impetrante a faculdade de obter, contra a União, pela via processual adequada, sentença liquida de condenação a reparação constitucional devida, pelas perdas e danos que se arbitrem; d) declarar que, prolatada a condenação, a superveniência de lei não prejudicara a coisa julgada, que, entretanto, não impedira o impetrante de obter os benefícios da lei posterior, nos pontos em que lhe for mais favorável.::Após o Relatório e os debates o Ministro Relator indicou adiamento. Falou pelo impte. o Dr. Wilson Afonso K. Santos. Plenário, 6.3.91. Decisão: Preliminarmente, o Tribunal rejeitou a proposta de conversão do julgamento em diligência, vencidos os Srs. Ministros Carlos Velloso e Marco Aurélio. No mérito, o Tribunal, pelo voto médio deferiu, em parte, o Mandado de Injunção nos termos do voto do Ministro Relator, no que foi acompanhado integralmente pelos Ministros Célio Borja, Octávio Gallotti, vencidos, em parte, na sua extensão os Srs. Ministros Sydney Sanches, Moreira Alves e Presidente e ainda em parte, os Ministros Carlos Velloso, Celso de Mello e Néri da Silveira e vencido o Min. Marco Aurélio que entendia q ue desde logo deveriam ser fixados os limites da reparação pecuniária. Plenário , 20.3.91." ( STF, MI 283 - MANDADO DE INJUNÇÃO, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, j. 20/03/1991, P. DJ 14/11/1991.)
Essa nova compreensão do alcance do mandado de injunção também é ilustrada pelo voto proferido pelo Min. Gilmar Mendes, ao julgar o
MI 708, em 25 de outubro de 20078
, como notório:
"Em observância aos ditames da segurança jurídica e à evolução jurisprudencial na interpretação da omissão legislativa sobre o direito de greve dos servidores públicos civis, fixação do prazo de sessenta dias para que o Congresso Nacional legisle sobre a matéria. Mandado de injunção deferido para determinar a aplicação das Leis 7.701/1988 e 7.783/1989. Sinais de evolução da garantia fundamental do mandado de injunção na jurisprudência do STF. No julgamento do MI 107/DF, rel. min. Moreira Alves,
DJ
de
21-9-1990, o Plenário do STF consolidou entendimento que conferiu ao mandado de injunção os seguintes elementos operacionais: i) os direitos constitucionalmente garantidos por meio de mandado de injunção apresentam-se como direitos à expedição de um ato normativo, os quais, via de regra, não poderiam ser diretamente satisfeitos por meio de provimento jurisdicional do STF; ii) a decisão judicial que declara a existência de uma omissão inconstitucional constata, igualmente, a mora do órgão ou poder legiferante, insta-o a editar a norma requerida; iii) a omissão inconstitucional tanto pode referir-se a uma omissão total do legislador quanto a uma omissão parcial; iv) a decisão proferida em sede do controle abstrato de normas acerca da existência, ou não, de omissão é dotada de eficácia
erga omnes
, e não apresenta diferença significativa em relação a atos decisórios proferidos no contexto de mandado de injunção; v) o STF possui competência constitucional para, na ação de mandado de injunção, determinar a suspensão de processos administrativos ou judiciais, com o intuito de assegurar ao interessado a possibilidade de ser contemplado por norma mais benéfica, ou que lhe assegure o direito constitucional invocado; vi) por fim, esse plexo de poderes institucionais legitima que o STF determine a edição de outras medidas que garantam a posição do impetrante até a oportuna expedição de normas pelo legislador.
Apesar dos avanços proporcionados por essa construção jurisprudencial inicial, o STF flexibilizou a interpretação constitucional primeiramente fixada para conferir uma compreensão mais abrangente à garantia fundamental do mandado de injunção. A partir de uma série de precedentes, o Tribunal passou a admitir soluções "normativas" para a decisão judicial como alternativa legítima de tornar a proteção judicial efetiva (CF, art. 5º, XXXV). Precedentes: MI 283, rel. min. Sepúlveda Pertence,
DJ
de 14-11-1991; MI 232/RJ, rel. min. Moreira Alves,
DJ
de 27-3-1992; MI 284, rel. min. Marco Aurélio, rel. p/ o ac. min. Celso de Mello,
DJ
de 26-6-1992; MI 543/DF, rel. min. Octavio Gallotti,
DJ
de 24-5-2002; MI 679/DF, rel. min. Celso de Mello,
DJ
de 17-12-2002; e MI 562/DF, rel. min. Ellen Gracie,
DJ
de 20-6-2003
. (...) Em razão da evolução jurisprudencial sobre o tema da interpretação da omissão legislativa do direito de greve dos servidores públicos civis e em respeito aos ditames de segurança jurídica, fixa-se o prazo de sessenta dias para que o Congresso Nacional legisle sobre a matéria. Mandado de injunção conhecido e, no mérito, deferido para, nos termos acima especificados, determinar a aplicação das Leis 7.701/1988 e 7.783/1989 aos conflitos e às ações judiciais que envolvam a interpretação do direito de greve dos servidores públicos civis." (STF, MI 708, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 25/10/2007, P.
DJE
31/10/2008.)
A tanto igualmente acorre a decisão do STF, prolatada no julgamento do
mandado de injunção 712
, relator Min. Eros Grau. Na medida em que é dado ao Poder Judiciário promover o controle de omissões do Poder Legislativo, solução semelhante aplica-se também quando em causa a omissão do Poder Executivo, atentando-se para as balizas já equacionadas em tópicos anteriores.
2.23. Controle da proporcionalidade:
Ademais, como notório, a atuação das entidades estatais deve respeitar ao postulado da proporcionalidade, questão verbalizada expressamente pelo art. 18 da Constituição de Portugal de 1976 e que remanesce implícita, na Lei Maior brasileira (art. 5º, LIV - enquanto projeção material da cláusula do devido processo).
Art. 18 - Constituição de Portugal. 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2.
A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos
. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
Reporto-me, tanto por isso, à lição de Bernal Pulido:
"1. Segundo o
subprincípio da idoneidade
, toda intervenção nos direitos fundamentais deve ser adequada para contribuir para a obtenção de um fim constitucionalmente legítimo. 2. Conforme o
subprincípio de necessidade
, toda medida de intervenção nos direitos fundamentais deve se a mais benigna com o direito no qual se interveio, dentre todas aquelas que revistam da mesma idoneidade para contribuir para alcançar o fim proposto. 3. No fim, conforme o
princípio da proporcionalidade em sentido estrito
, a importância dos objetivos perseguidos por toda intervenção nos direitos fundamentais deve guardar uma adequada relação com o significado do direito intervindo. Em outros termos, as vantagens que se obtém mediante a intervenção no direito devem compensar os sacrifícios que esta implica para seus titulares e para a sociedade em geral."
(PULIDO, Carlos Bernal.
El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales:
el principio de proporcionalidad como criterio para determinar el contenido de los derechos fundamentales vinculantes para el legislador. 3. ed. Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, p. 42)
Ou seja, as opções estatais não podem ser promovidas com excesso, eis que deve se conter ao mínimo indispensável para a salvaguarda dos interesses públicos que o justificam. Deve-se atentar para o conhecido postulado
odiosa sunt restringenda
(
Übermamaßverbot
).
A respeito do tema, menciono também a obra de Suzana de Toledo Barros.
O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das Leis restritivas de direitos fundamentais.
Brasília jurídica, 2ª ed., p. 69/82. Transcrevo, ademais, a análise de Canotilho e Vital Moreira:
"O terceiro pressuposto material para a restrição legítima de direitos, liberdades e garantias consiste naquilo que genericamente se designa por princípio da proporcionalidade.
Foi a LC 01/82 que deu expressa guarida constitucional a tal princípio (art. 18-2, 2ª parte), embora já antes, não obstante a ausência de texto expresso, ele fosse considerado um princípio material inerente ao regime dos direitos, liberdades e garantias.
O princípio da proporcionalidade (também chamado de princípio da proibição de excesso) desdobra-se em três subprincípios
: (a) princípio da adequação (também designado como princípio da idoneidade), isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade (também chamado de princípio de necessidade, ou da indispensabilidade), u seja, as medidas restritivas previstas na Lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela Lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (c) princípio da proporcionalidade em sentido estrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa justa medida, impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos.
Em qualquer caso, há um limite absoluto para a restrição de direitos, liberdades e garantias, que consiste no respeito ao conteúdo essencial dos respectivos preceitos."(CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital.
Constituição da República Portuguesa Anotada.
Volume 1: arts. 1º a 107. 1ª ed. brasileira. 4ª edição portuguesa. ST: RT, Coimbra: Coimbra Editora, p. 394-395)
Vale dizer: a restrição a direitos fundamentais deve ser graduada pelo critério da indispensabilidade; ela somente pode ser imposta quando - e no limite em que - se revelar indispensável. Do contrário, o chamado
núcleo essencial dos direitos fundamentais
(
Wesengehalt
) restaria atingido, como reconhecem expressamente o art. 18 da Constituição de Portugal/1976 e implicitamente a nossa Lei Maior.
2.24. Devido processo legal:
A garantia do devido processo legal - assegurada pelo art. 5, LIV e LV, da Constituição/1988 - preconiza que ninguém pode ser privado de algum bem ou direito sem que lhe seja facultada a defesa efetiva. Essa garantia compreende duas perspectivas, tanto a material quanto a procedimental, como explicita Romeu Felipe Bacellar Filho: "
A teoria do devido processo legal, construída na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, compreende duas perspectivas:
substantive
e
procedural due process.
A primeira é projeção do princípio no campo do direito material, enquanto a segunda funciona como garantia na esfera processual. O espectro da proteção é o trinômio vida, liberdade, propriedade."
(BACELLAR FILHO, Romeu Felipe.
Processo administrativo disciplinar.
São Paulo: Max Limonad. p. 223).
Desse modo,
"Quanto ao
procedural du process,
os dois interesses centrais podem ser identificados no caso Marschall versus Jerrico, inc. 446 US 238 (1980): o governo não deve privar uma pessoa de um interesse importante a menos que a correta compreensão dos fatos e a lei permita; mesmo se o governo puder legalmente privar alguém de um interesse importante, o indivíduo tem o direito de ser ouvido perante uma Corte neutra antes da privação. Enquanto a primeira regra prende-se à realidade da Justiça
('actuality of justice'),
a segunda envolve a aparência de justiça
('appearance of justice')" (
Obra citado.
p. 224).
Semelhante é a opinião de Joaquim Canotilho, quando argumenta
"
Processo devido em direito significa a obrigatoriedade da observância de um tipo de processo legalmente previsto antes de alguém ser privado da vida, da liberdade e da propriedade. Nestes termos, o processo devido é o processo previsto na lei para a aplicação de penas privativas da vida, da liberdade e da propriedade. Dito por outras palavras: due process equivalente ao processo justo definido por lei para se dizer o direito no momento jurisdicional de aplicação de sanções criminais particularmente graves
(...) o
due process of law
pressupõe que o processo legalmente previsto para a aplicação de penas seja ele próprio um processo devido, obedecendo aos trâmites procedimentais formalmente estabelecidos na Constituição ou plasmados em regras regimentais das assembléias legislativas."
(CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Direito constitucional e teoria da Constituição.
7. ed. Almedina. p. 493)
Tanto por isso, o Estado deve assegurar ao administrado o exercício efetivo da ampla defesa e do contraditório. Deve comunicar-lhe, ademais, as decisões administrativas ou judiciais, de modo a documentar a sua efetiva ciência. É o que se infere, por sinal, do Decreto 70.235 (art. 10, V c/ art. 23), e também lei 9784/1999
(arts. 26-28).
2.25. Boa-fé objetiva:
Deve-se ter em conta, ademais, o postulado da boa-fé objetiva, enquanto preceito que deve regular a relação entre os sujeitos, entre estes e o Poder Público, mesmo entre distintas unidades da Administração Pública.
Com efeito, "
ao impor sobre todos um dever de não se comportar de forma lesiva aos interesses e expectativas legítimas despertadas no outro, a tutela da confiança revela-se, em um plano axiológico-normativo, não apenas como principal integrante do conteúdo da boa-fé objetiva,
mas também como forte expressão da solidariedade social, e importante instrumento de reação ao voluntarismo e ao liberalismo ainda amalgamados no direito privado como um todo
."
(SCHREIBER, Anderson.
A proibição de comportamento contraditório:
tutela da confiança e
venire contra factum proprium.
Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 91).
Ademais,
"
Os princípios da segurança jurídica e da boa-fé objetiva, bem como a vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium), impedem que a parte, após praticar ato em determinado sentido, venha a adotar comportamento posterior e contraditório
."
(AGRESP 200802418505, ARNALDO ESTEVES LIMA, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA:29/03/2010).
Acrescento que
"
O Poder Público não é um poder irresponsável e arbitrário, ele se vincula e se limita pelos seus próprios atos
. Não se pode reservar o privilégio, que se resume na mais cínica das prerrogativas que se arrogava o poder absoluto, de surpreender a boa-fé dos que confiam na sua palavra ou nas suas promessas, violando aquela ou anulando essas, depois de haver conseguido, por causa de uma ou de outras, as prestações cuja execução havia sido feita na boa-fé, fundamental não só ao seu comércio jurídico, como à convivência moral, de que a ninguém é dado retirar a palavra empenhada ou desfazer a promessa mediante a qual obteve vantagem de outrem ou lhe causou ou infligiu sacrifício."
(CAMPOS, Francisco.
Direito administrativo.
vol. I. Livraria Freitas Bastos, 1958, p. 70-71)
O respeito à boa-fé objetiva corresponde a "
uma norma de conduta que impõe aos participantes de uma relação obrigacional um agir pautado pela lealdade, pela consideração dos interesses da contraparte. Indica, outrossim, um critério de interpretação dos negócios jurídicos e uma norma balizamento ao exercício de direitos subjetivos e poderes formativos."
(MARTINS-COSTA, Judith.
Comentários ao novo Código Civil.
RJ: Forense, 2005, p. 42).
Com as devidas adequações, essas regras também são oponíveis ao Estado. Nâo se pode reconhecer à Administração Pública a prerrogativa de surpreender os sujeitos, cobrando valores sem que lhes tenha comunicado anteriormente a causa dessa obrigaçã, ou modificando de inopino cláusulas contratuais.
"
Este Tribunal já decidiu que a frustração de expectativas legítimas criadas pelo poder público configura verdadeira afronta ao princípio da boa-fé objetiva, em seu postulado da proibição ao `venire contra factum proprium, que também deve ser respeitada pela Administração Pública
. Através da referida cláusula, vedam-se os comportamentos contraditórios que aviltam direitos e deveres previamente fixados entre as partes e quebram a relação de confiança que deveria prevalecer"
(TRF-1 - REOMS: 10056493420184013200, Relator: Desembargador Federal João Batista Moreira, Data de Julgamento: 06/07/2020, Sexta Turma, Data de Publicação: 07/07/2020).
A legislação processual civil trata do respeito à boa-fé objetiva no curso da demanda, conforme seus
arts. 7, 322, §2 e 489, §3, CPC/15
.
2.26. Autoexecutoridade administrativa:
O Estado de Direito impõe um plexo de garantias no que toca ao processo administrativo sancionador e outras medidas de restrição a direitos
. De partida, quem acusa deve provar; não se podendo transportar, sem mais, a pretensa inversão do ônus da prova (presunção de legitimidade) para o âmbito do processo administrativo:
"A presunção de veracidade inverte o ônus da prova; é errado afirmar que a presunção de legitimidade produz esse feito, uma vez que, quando se trata de confronto entre o ato e a lei, não há matéria de fato a ser produzida; nesse caso, o efeito é apenas o anterior, ou seja, o juiz só apreciará a nulidade se arguida pela parte."
(PIETRO, Maria S.
Direito administrativo.
18. ed. SP: Atlas, 2005, p. 192).
Com efeito, em regra, os atestados, certidões e afirmações de servidores do povo possuem, em seu favor, a presunção de autenticidade do que é declarado. Do contrário, a atividade administrativa se tornaria praticamente inviável, devendo-se juntar, a cada certidão, um vídeo, uma fotografia acompanhada de duas testemunhas etc. Deve-se atentar para as importantes ressalvas promovidas por Lúcia Vale Figueiredo, no que toca à transposição desses vetores para o âmbito do processo administrativo sancionador:
"Se os atos administrativos desde logo são
imperativos
e podem ser exigíveis (i.e., tornam-se obrigatórios e executáveis), há de militar em seu favor a presunção iuris tantum de legalidade. Todavia, como bem assinala Celso Antônio, a presunção se inverte quando os atos forem contestados em juízo ou, diríamos nós, também fora dele, quando contestados administrativamente.
Caberá à Administração provar a estrita conformidade do ato à lei, porque ela (Administração) é quem detém a comprovação de todos os atos e fatos que culminaram com a emanação do provimento administrativo contestado. Determinada, p.ex., a demolição de imóvel por ameaça à incolumidade pública, se houver contestação em juízo, deverá a administração provar (por meio de estudos técnicos ou pareceres, de profissionais competentes) que o imóvel ameaçava ruir e que desse fato resultava a periclitação da incolumidade pública.
De outra parte, se a regra de que a prova é de quem alega não fosse invertida, teríamos, muitas vezes, a determinação feita ao administrado de prova impossível, por exemplo, da inocorrência da situação de fato
.
A prerrogativa de tal importância - presunção de legalidade - deve necessariamente corresponder, se houver confronto, a inversão do onus probandi. Isso, é claro, em princípio
.
Trazemos agora a contexto a aplicação de sanções. Muita vez torna-se difícil - ou quase impossível - provar que o sancionado não incorreu nos pressupostos da sanção (a prova seria negativa). Caberá, destarte, à Administração provar cabalmente os fatos que a teriam conduzido à sanção, até mesmo porque, em face da atuação sancionatória, vige, em sua plenitude, o inciso LIV, art. 5º do texto constitucional.
Na verdade, quando os atos emanados forem decorrentes de infrações administrativas ou disciplinares não há como não se exigir da Administração a prova contundente da existência dos pressupostos fáticos para o ato emanado. Para isso, a motivação do ato é de capital importância
." (FIGUEIREDO, Lúcia Valle.
Curso de direito administrativo.
5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 171-172)
Reporto-me também à seguinte admoestação de Justen Filho:
"A autoexecutoriedade indica a possibilidade de a Administração Pública obter a satisfação de um direito ou de dirimir um litígio de que participa sem a intervenção imediata do Poder Judiciário, produzindo atos materiais necessários a obter o bem da vida buscado. A auto-executoriedade pode conduzir obviamente ao impedimento da prática de certos atos pelos particulares. (...)
Não há vedação radical ao uso da força pela Administração Pública, na medida em que tal seja a solução adequada para a realização do Direito. Mas o uso da força deverá refletir um devido processo legal, sendo acompanhado da observância de todas as formalidades comprobatórias necessárias e das garantias inerentes ao processo. Mais ainda, não se admite o uso da força mediante mera invocação de fórmulas genéricas determinadas, tais como interesse público, bem comum, segurança, etc
. Deve-se identificar, de modo concreto, o bem jurídico tutelado e expor o motivo pelo qual se reputa que a força deva ser utilizada. É evidente que existem situações concretas emergenciais em que o cumprimento destas formalidades é impossível."
(JUSTEN FILHO, Marçal.
Curso de direito administrativo.
São Paulo: Saraiva, p. 207).
Enfim, desde que realmente se trate de uma imposição abusiva, excessiva, o Poder Judiciário deve reconhecer a sua invalidade, com o fim de assegurar os direitos indevidamente atingidos.
2.27. Considerações sobre a titulação de domínio:
No seu art. 189, a Constituição Republicana de 1988 estipula que
"Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos. Parágrafo único.
O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil, nos termos e condições previstos em lei
."
D'outro tanto, o art. 18, §3º da lei n. 8.629/1993, com a redação veiculada pelas leis n. 13.001/2014 e 13.465/2017, preconizou o seguinte:
Art. 18. A distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária far-se-á por meio de títulos de domínio, concessão de uso ou concessão de direito real de uso - CDRU instituído pelo art. 7
o
do Decreto-Lei n
o
271, de 28 de fevereiro de 1967.
§ 1
o
Os títulos de domínio e a CDRU são inegociáveis pelo prazo de dez anos, contado da data de celebração do contrato de concessão de uso ou de outro instrumento equivalente, observado o disposto nesta Lei.
§ 2
o
Na implantação do projeto de assentamento, será celebrado com o beneficiário do programa de reforma agrária contrato de concessão de uso, gratuito, inegociável, de forma individual ou coletiva, que conterá cláusulas resolutivas, estipulando-se os direitos e as obrigações da entidade concedente e dos concessionários, assegurando-se a estes o direito de adquirir título de domínio ou a CDRU nos termos desta Lei.
§ 3
o
O título de domínio e a CDRU conterão cláusulas resolutivas e será outorgado ao beneficiário do programa de reforma agrária, de forma individual ou coletiva, após a realização dos serviços de medição e demarcação topográfica do imóvel a ser alienado.
§ 4
o
Regulamento disporá sobre as condições e a forma de outorga dos títulos de domínio e da CDRU aos beneficiários dos projetos de assentamento do Programa Nacional de Reforma Agrária.
§ 5
o
O valor da alienação, na hipótese de outorga de título de domínio, considerará o tamanho da área e será estabelecido entre 10% (dez por cento) e 50% (cinquenta por cento) do valor mínimo da pauta de valores da terra nua para fins de titulação e regularização fundiária elaborada pelo Incra, com base nos valores de imóveis avaliados para a reforma agrária, conforme regulamento.
§ 6
o
As condições de pagamento, carência e encargos financeiros serão definidas em regulamento, não podendo ser superiores às condições estabelecidas para os financiamentos concedidos ao amparo da Lei Complementar n
o
93, de 4 de fevereiro de 1998, e alcançarão os títulos de domínio cujos prazos de carência ainda não expiraram.
§ 7
o
A alienação de lotes de até 1 (um) módulo fiscal, em projetos de assentamento criados em terras devolutas discriminadas e registradas em nome do Incra ou da União, ocorrerá de forma gratuita.
§ 8
o
São considerados não reembolsáveis:
I - os valores relativos às obras de infraestrutura de interesse coletivo;
II - aos custos despendidos com o plano de desenvolvimento do assentamento; e
III - aos serviços de medição e demarcação topográficos.
§ 9
o
O título de domínio ou a CDRU de que trata o caput
poderão ser concedidos aos beneficiários com o cumprimento das obrigações estabelecidas com fundamento no inciso V do art. 17 desta Lei e no regulamento.
§ 10.
Falecendo qualquer dos concessionários do contrato de concessão de uso ou de CDRU, seus herdeiros ou legatários receberão o imóvel, cuja transferência será processada administrativamente, não podendo fracioná-lo
.
§ 11.
Os herdeiros ou legatários que adquirirem, por sucessão, a posse do imóvel não poderão fracioná-lo
.
§ 12. O órgão federal executor do programa de reforma agrária manterá atualizado o cadastro de áreas desapropriadas e das adquiridas por outros meios e de beneficiários da reforma agrária e disponibilizará os dados na rede mundial de computadores.
§ 13. Os títulos de domínio, a concessão de uso ou a CDRU a que se refere o caput deste artigo serão conferidos ao homem, na ausência de cônjuge ou companheira, à mulher, na ausência de cônjuge ou companheiro, ou ao homem e à mulher, obrigatoriamente, nos casos de casamento ou união estável.
§ 14. Para fins de interpretação, a outorga coletiva a que se refere o § 3
o
deste artigo não permite a titulação, provisória ou definitiva, a pessoa jurídica.
§ 15. Os títulos emitidos sob a vigência de norma anterior poderão ter seus valores reenquadrados, de acordo com o previsto no § 5
o
deste artigo, mediante requerimento do interessado, observados os termos estabelecidos em regulamento e vedada a restituição de valores já pagos que eventualmente excedam o valor devido após o reenquadramento.
Publicada em 17 de dezembro de 2018, a Instrução Normativa INCRA n. 97 tratou dos procedimentos de emissão da titulação provisória e definitiva dos títulos, merecendo destaque o que segue:
Art. 1º Estabelecer, no âmbito do Incra, os critérios e procedimentos para:
I - emissão de instrumentos de titulação provisória e de titulação definitiva em terras de propriedade ou posse do Incra ou da União afetadas a Projetos de Assentamento - PA sob gestão do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra;
II - condições de pagamento e de liberação de cláusulas resolutivas dos contratos firmados ou dos títulos expedidos pelo Incra;
III - critérios e procedimentos para supervisão e regularização ocupacionais nos Projetos de Assentamento de Reforma Agrária.
Parágrafo único. Ao proceder a supervisão ocupacional dos lotes de reforma agrária, o Incra verificará as condições de permanência do beneficiário da Reforma Agrária na parcela ou no lote, bem como verificará se o ocupante não autorizado previamente pelo Incra preenche requisitos para ter a sua ocupação regularizada perante a autarquia.
No art. 2º, XI, da aludida IN 97, o título de domínio foi definido como sendo o
"
instrumento com força de escritura pública, que transfere de forma onerosa ou gratuita e em caráter definitivo, a propriedade da parcela ou lote da Reforma Agrária ao beneficiário, inegociável pelo prazo de dez anos
."
Quanto à titulação, o INCRA estipulou o seguinte, na referida Instrução Normativa 97:
Art. 3º
Realizada a seleção dos beneficiários para o Projeto de Assentamento da Reforma Agrária, que será efetuada conforme normativo específico, após a homologação da família na relação de beneficiários (RB), a família assentada receberá o instrumento de titulação aplicável à área destinada para exploração familiar.
Art. 4º A distribuição de imóveis rurais em Projetos de Assentamento federais será formalizada:
I - em caráter provisório, mediante Contrato de Concessão de Uso - CCU gratuito; e
II - em caráter definitivo, por meio de:
a) Concessão de Direito Real de Uso - CDRU gratuita; ou
b) Título de Domínio -TD oneroso ou gratuito.
Art. 5º
A titulação, provisória ou definitiva, ocorrerá de acordo com a organização socioeconômica e espacial do Projeto de Assentamento, e poderá ser operada nas seguintes modalidades
:
I - individual, com área demarcada;
II - individual, com indicação de fração ideal sobre área coletiva, com ou sem área previamente demarcada;
III - coletiva, com indicação de fração ideal sobre área coletiva, sem área individual demarcada.
§ 1º
A titulação definitiva por meio da CDRU individual ou coletiva, ou por meio de TD na modalidade coletiva, somente será concedida ao beneficiário que a requerer, por manifestação formal, e desde que a soma do total de requerimentos atinja, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) dos interessados de um mesmo projeto de assentamento.
§ 2º Além do percentual mínimo indicado no parágrafo anterior, a solicitação de titulação por meio de CDRU individual ou coletiva ou por meio de TD na modalidade coletiva deverá estar em Ata de Assembleia deliberativa dos beneficiários do projeto de assentamento, constando expressamente quais os interessados pleitearam o instrumento de titulação.
§ 3º Poderá ser conferido mais de um instrumento titulatório provisório ou definitivo, que poderá ter como objeto área contínua ou descontínua, parcelas ou partes de parcelas dentro do mesmo Projeto de Assentamento, ou fração ideal de áreas coletivas.
Art. 6º O contrato de concessão de uso - CCU, a Concessão de Direito Real de Uso - CDRU e o Título de Domínio - TD poderão ser conferidos ao homem, na ausência de cônjuge ou companheira, à mulher, na ausência de cônjuge ou companheiro, ou ao homem e à mulher, vedada a titulação em nome de pessoa jurídica.
§ 1º O CCU é o instrumento celebrado entre o Incra e o beneficiário imediatamente após a homologação da família no processo de seleção, é inegociável e autoriza, de forma provisória, segundo suas cláusulas, o uso e a exploração do imóvel e o acesso às demais políticas do PNRA.
§ 2º O TD e a CDRU são títulos definitivos, inegociáveis pelo prazo de 10 (dez) anos, contados da data de celebração de CCU ou outro instrumento equivalente, sendo regidos pelas cláusulas resolutivas constantes em seu verso, as quais dispõem sobre os direitos e obrigações das partes envolvidas.
§ 3º A emissão de TD ou de CDRU, por si só, não consolida o Projeto de Assentamento, tampouco paralisa ou impede a continuidade da aplicação de políticas públicas voltadas ao público da Reforma Agrária.
Art. 7º Dissolvida a sociedade conjugal, se não for possível o fracionamento do lote, a mulher terá preferência para permanecer no imóvel e assumir os direitos e as obrigações decorrentes do CCU, da CDRU ou do TD que ainda esteja pendente de cumprimento de cláusulas resolutivas, exceto na hipótese de o homem permanecer com a guarda dos filhos menores ou incapazes.
Art. 8º Não será permitido o fracionamento de lotes da Reforma Agrária abaixo da fração mínima de parcelamento, exceto:
I - se o lote estiver em área considerada urbana ou de expansão urbana;
II - se o lote estiver inserido em agrovilas ou em área pararural;
III - se o lote ou parte dele for destinado a instalações para fins de utilidade pública e prestação de serviços de natureza social ou econômica.
Art. 9º Nos casos de constatação de permuta entre parcelas de um mesmo projeto de assentamento ou de assentamentos distintos, desde que não tenha havido nenhuma outra infringência do instrumento ou das normas previstas na presente Instrução Normativa, o Incra poderá promover a regularização da situação dos assentados, com atualização dos registros no SIPRA e juntada da documentação respectiva nos processos individuais dos beneficiários.
Art. 10. A transferência definitiva dos lotes, por meio de CDRU ou de TD, somente será efetuada posteriormente:
I - ao registro da área em nome do Incra ou da União;
II - à realização dos serviços de medição e demarcação dos lotes individuais, ou definição da fração ideal nos casos de área coletiva;
III - ao georreferenciamento e certificação do perímetro do Projeto de Assentamento;
III - à inscrição no Cadastro Ambiental Rural - CAR da área do Projeto de Assentamento;
IV - ao cumprimento das cláusulas contratuais do CCU pelo assentado; e
V- à atualização cadastral do assentado.
Art. 11.
O assentado ficará obrigado a promover a atualização cadastral da unidade familiar a cada 2 (dois) anos, contados da celebração do CCU, da CDRU ou do TD.
§ 1º A atualização cadastral também poderá ser realizada de ofício pelo Incra mediante o cruzamento de bancos de dados oficiais e por meio de chamamento convocando os beneficiários para participação ativa.
§ 2º A não atualização dos dados na forma prevista nesse artigo acarretará o bloqueio da condição de assentado no sistema do Incra.
§ 3º O beneficiário bloqueado não poderá receber qualquer benefício do PNRA até que seja sanada sua atualização cadastral.
§ 4º A atualização cadastral prevista neste artigo deverá ocorrer prioritariamente por meio eletrônico, sendo os dados submetidos a homologação pelo Incra.
Art. 12. Constatado erro sanável em CCU, CDRU ou TD já expedido ou registrado, a Superintendência Regional do Incra providenciará aditamento dos mesmos, por meio de termo aditivo, na forma do Anexo VI.
Art. 13. Na hipótese de alteração da composição da unidade familiar por inclusão de novo integrante cônjuge ou companheiro de beneficiário já homologado, não será necessária nova verificação dos requisitos de elegibilidade.
§ 1º Caso o novo integrante cônjuge ou companheiro não possua os critérios de elegibilidade, o mesmo não poderá acessar os programas e políticas do PNRA.
§ 2º Em sendo solicitado pelo beneficiário, o novo integrante familiar poderá ser inserido nos cadastros do Incra, devendo-se anexar a documentação comprobatória do estado civil, documento de identificação civil com foto e fé pública em todo o território nacional e o Cadastro de Pessoa Física - CPF.
§ 3º A inclusão descrita no caput poderá ser processada por qualquer servidor com acesso ao SIPRA.
§ 4º No caso de casamento ou união estável de beneficiários já contemplados com CCU, a titulação definitiva ocorrerá com a emissão de um único título para cada cônjuge ou companheiro, correspondente ao lote de origem de cada consorte.
Atente-se ainda para os arts. 24 a 26 da IN 97:
Art. 24.
O Título de Domínio - TD é o instrumento, com força de escritura pública, que transfere, de forma onerosa ou gratuita e em caráter definitivo, a propriedade do imóvel da Reforma Agrária ao beneficiário e é inegociável durante o período de dez anos, contado da data de celebração do CCU ou outro instrumento equivalente.
Art. 25. Decorrido o prazo de 10 (dez) anos e cumpridas as condições resolutivas, a propriedade objeto do TD é negociável por ato inter vivos, sendo vedada a incorporação da área titulada a outro imóvel rural cuja área final ultrapasse 04 (quatro) módulos fiscais.
Art. 26. O TD é transferível, antes do prazo de dez anos ou durante a vigência de cláusulas resolutivas, por sucessão legítima ou testamentária.
§ 1º Na hipótese de haver mais de um herdeiro interessado, a transferência do TD se dará mediante inventário judicial ou extrajudicial.
§ 2º Na hipótese de sucessão legítima ou testamentária da propriedade objeto de TD ainda pendente de cumprimento das cláusulas resolutivas, os herdeiros assumirão as obrigações constantes do instrumento titulatório.
§ 3º Eventual renúncia da herança deve constar expressamente de instrumento público ou termo judicial.
Note-se que
"A titulação dos ocupantes aparece no conceito de regularização fundiária e em três de seus objetivos primordiais (arts. 9º e 10, I, II e III , da Lei nº 13.465/17). Na nova legislação, as formas de titulação dos ocupantes foram ampliadas, organizadas e fortalecidas com a criação de novos instrumentos, como a legitimação fundiária. Note-se que muitas formas de titulação foram mencionadas expressamente no art. 15 da Lei 13.465/2017 e, também, no art. 8º do Decreto 9.310/2018. Outras, encontram-se em diferentes dispositivos legais, motivo pelo qual se infere que o rol da lei é meramente exemplificativo.
Promover a regularização fundiária sem realizar a titulação dos ocupantes frustra todo o esforço de aprimoramento do núcleo urbano informal. Depois de oferecer ao núcleo as condições mínimas de habitabilidade, há que se garantir o direito à moradia formal e o direito à propriedade dos ocupantes, que esperaram décadas pela realização do sonho da casa própria. É preciso que se diga que algumas formas de titulação
– como a legitimação fundiária e de posse – somente podem ser aplicadas para imóveis oriundos de um núcleo regularizado, seja na Lei 11.977/2009 , seja na Lei 13.465/2017 . Com efeito, essas espécies de titulação foram criadas especialmente para momentos de crise, utilizando-se de conceitos mais flexíveis e abrangentes, com vistas a permitir a formalização de “situações de fato” já existentes há muito tempo. Observa-se que, alguns instrumentos trazidos pela legislação garantem o direito à propriedade e, outros, somente o reconhecimento da posse. Porém, reconhecer apenas o direito à posse é tratar essa população como cidadãos de segunda classe, sem acesso ao mercado imobiliário formalizado. Como esclarece Bruno Becker: A disseminação de títulos dominiais pode permitir, ainda, a criação de um salutar suporte financeiro para a população agraciada com o benefício do domínio, como ocorre nos países mais desenvolvidos, que possuem linhas de crédito atrativas, escudadas em garantias hipotecárias, que muito podem contribuir para a melhoria da condição de vida da população, conferindo perspectiva de progresso e ascensão a uma camada populacional até então excluída e despreparada para a evolução social."
(PEDROSO, Alberto.
Regularização fundiária urbana e seus mecanismos de titulação dos ocupantes:
lei nº 13.465/2017 e decreto nº 9.310/2018. Vol. V. 2022. São Paulo: RT. 2022. capítulo 25).
Menciono ainda o seguinte julgado:
DIREITO CONSTITUCIONAL (AGRÁRIO) E ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. MANUTENÇÃO DE POSSE. REFORMA AGRÁRIA. INCRA. PROJETO DE ASSENTAMENTO "BELA VISTA DO CHIBARRO”. CONCESSÃO DE TÍTULO DE DOMÍNIO DEFINITIVO. BENEFICIÁRIO DE CONTRATO DE ASSENTAMENTO. CUMPRIMENTO DAS CLÁUSULAS RESOLUTIVAS NO PRAZO DECENAL. CULTIVO DE CANA-DE-AÇÚCAR NO ASSENTAMENTO NÃO VIOLA OS PRINCÍPIOS DA REFORMA AGRÁRIA. A QUITAÇÃO DE DÉBITOS E RESPECTIVA INDENIZAÇÃO. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A questão que se coloca nos autos da presente apelação diz respeito à pretensão do autor à outorga de título definitivo de domínio do Lote 46, Gleba 01, localizado no Assentamento Bela Vista do Chibarro, o qual integra Programa Nacional de Reforma Agrária, ali assentado desde 26/10/1989. 2.
A Reforma Agrária tem previsão constitucional, com objetivo de propiciar a distribuição de terras pelo Governo Federal para fins de promoção da justiça social e aumento da produtividade agrícola. Da clara dicção do art. 189 da Constituição Federal percebe-se que o lapso de 10 (dez) anos é estabelecido como condição temporal da indisponibilidade do bem
. 3.
O apelante é assentado do lote desde 26 de outubro de 1989, o que demonstra, de forma inequívoca, que não está mais sujeito as condições resolutivas da propriedade a que se referem os artigos 189 da CF/88 e 21 da Lei n. 8.629/1993, ante o decurso de lapso superior a 10 (dez) anos. De acordo com referida legislação, poderá o INCRA anto outorgar o domínio ao parceleiro quando de seu assentamento ou conceder-lhe o uso da gleba, assegurando a ele o direito de adquirir posteriormente o domínio, uma vez preenchidas as condições previstas no § 1º do artigo 18
. 4. O INCRA alega diversas condicionantes que já foram superadas por esta Corte, quando do julgamento de casos análogos. 5. A interpretação trazida pelo INCRA não se presta a desconstituir o direito do impetrante ao afastamento das condições resolutivas, uma vez que a jurisprudência desta Egrégia Corte Regional consolidou-se no sentido de que o lapso de 10 (dez) anos se inicia do fato jurídico que ocorrer primeiro - o contrato de concessão de uso ou a emissão do título de domínio. 6. Também não restou demonstrado nos autos que o apelante tenha arrendado sua parcela à usina de álcool, quer pelo fato de que a exploração do lote em regime de monocultura não é expressamente vedada, seja na lei, seja no regulamento, ou no contrato, mesmo para o agricultor assentado na Reforma Agrária. 7. A prova colhida nos autos demonstrou, ainda, o autor cumpre com os demais requisitos, consistente na obrigação de fixar residência na parcela que lhe foi atribuída e na exploração da terra direta e pessoal pelo assentado e seus familiares, de acordo com as finalidades da reforma agrária. 8. Desse modo, por todos os ângulos analisados, não se vislumbra qualquer violação às cláusulas resolutivas do contrato de assentamento por parte do beneficiário, ora apelante, dispostas na cláusula quarta. 9. No tocante à alegação feita pelo INCRA de não poder ser feita a transferência do domínio definitivo por falta desmembramento da matrícula do imóvel, essa Corte já firmou entendimento no sentido de que tanto a medição, como a demarcação da parcela consistem em obrigações meramente formais, inadimplidas pela própria autarquia federal fundiária. Não se admite à autarquia fundiária se beneficiar se sua própria desídia à concessão do referido título, uma vez que tais medidas deveriam ter sido por ela efetivadas. 10. Aplica-se à espécie, o princípio do tempus regit actum, no que diz respeito à indenização devida pelo assentado, para a outorga do domínio. Considerando que o apelante e sua esposa são beneficiários do Projeto de Assentamento Bela Vista do Chibarro desde maio de 1989, ainda que o contrato de assentamento tenha sido formalizado somente em outubro de 1996, aplica-se à hipótese a regulamentação então vigente, consistente no artigo 18 da Lei n. 8.629/1993, antes das alterações introduzidas pela MP 2.183-56/2001 e do Decreto n. 59.428/1966. 11. Ainda assim se verifica a inegável obrigação de ressarcimento ao INCRA à aquisição do título definitivo de domínio do lote, seja por existir previsão contratual nesse sentido (vide cláusula terceira do contrato de assentamento), ou por determinação legal, conforme se depreende da leitura do artigo 67 do Decreto 59.428/1966. 12. Não subsiste a alegação do Apelante no sentido de que a necessidade de pagamento para aquisição da propriedade tem fundamento somente na Lei de 1993, posterior à sua posse, até porque, a Constituição Federal não admite a gratuidade na forma de alienação do bem público, sendo inviável, inclusive, a usucapião de imóveis públicos (art. 191, parágrafo único da CF). 13. Acerca do valor da indenização a ser paga pelo beneficiário ao INCRA, esta Eg. Turma, por unanimidade e em diversas oportunidades, exarou entendimento no sentido de que deverá ser apurado em fase de liquidação, em conformidade com os termos da Lei nº 8.629/93, da Instrução Normativa nº 69/2011 e do Decreto nº 8.738/2016, com base no valor mínimo estabelecido em Planilha de Preços Referenciais referente à localização do imóvel, elaborada pelo INCRA, em vigor quando da expedição do Título de Domíni e, remanescendo divergência entre as partes em relação ao valor do imóvel rural, poderá o beneficiário, ora apelante, impugná-lo na via administrativa e judicial, em ação própria. 14. Recurso de apelação a que se dá parcial provimento para determinar ao INCRA a outorga do título de domínio definitivo do lote 46 do Assentamento Bela Vista do Chibarro ao apelante José Gregório, mediante pagamento de indenização a ser efetuado pela beneficiária, em valor a ser estabelecido na esfera administrativa, nos termos da fundamentação. (TRF-3 - ApCiv: 00003964720084036120 SP, Relator: Desembargador Federal WILSON ZAUHY FILHO, Data de Julgamento: 01/12/2020, 1ª Turma, Data de Publicação: e - DJF3 Judicial 1 DATA: 10/12/2020)
2.28. Postulado orçamentário:
Como dizia Lobo Torres,
"
O orçamento tem três funções precípuas: a política, a econômica e a reguladora
. Devem elas ser examinadas em suas conotações com o Direito e a Constituição, eis que o corte entre os aspectos normativos e os aspectos políticos e econômicos implica posição nitidamente positivista e formalista. Neumark indica 4 funções para o orçamento: político-financeira (racionalidade na gestão orçamentária), política (equilíbrio entre grupos políticos), de controle financeiro (do Executivo) e econômica (racionalidade da política econômica). Musgrave aponta 3 objetivos da política orçamentária: assegurar ajustamentos na alocação de recursos; conseguir ajustamentos na distribuição da renda e riqueza e garantir a estabilização econômica; e acrescenta que a preferência pelo tamanho do orçamento é problema de política e de processo legislativo."
(TORRES, Ricardo Lobo.
Tratado de direito constitucional financeiro e tributário.
Volume V. O orçamento na Constituição. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Renovar. 2000).
A ideia de orçamento implica a noção de planejamento e previsão. Na espécie, para além das questões atinentes à democratização da elaboração do orçamento; do princípio da justiça orçamentária e da tutela do mínimo existencial, merece destaque o princípio da legalidade orçamentária:
"
O princípio da legalidade orçamentária se afirma no início do Estado de Direito, amalgando-se à ideia de liberdade. Legalidade é princípio de limitação do poder do Estado e, ao mesmo tempo, de direcionamento das atividades administrativas. Há, com a criação do Estado de Direito, a bifurcação entre a legalidade tributária e a orçamentária. Antes o orçamento servia para a criação e a renovação da autorização anual para a cobrança de tributos. No liberalismo tanto o tributo quanto o orçamento devem ser aprovados por diferentes leis formais e o orçamento não cria o tributo, senã que apenas prevê sua cobrança
. A legalidade orçamentária não se confunde, tampouco, com a administrativa. O orçamento autoriza a despesa pública, que se realiza de acordo com as leis administrativas. O princípio da legalidade perdeu muito do seu rigor com o positivismo do início do século, que o desvinculou da legitimidade democrática, e lhe esvaziou o conteúdo com a teoria da reflè de droit (Rechtsatz), bem como com a ideologia do Estado de Bem-estar social, que privilegiou as ações administrativas. Mas, hoje, a lei recupera sua força simbólica e o princípio da legalidade volta a constituir um dos pilares da segurança jurídica, salvo para os pós-modernistas, que defendem a auto-segurança e a deslegalizaão. O princípio da legalidade se expressa através de 3 subprincípios: o da superlegalidade, o da reserva de lei e o do primado de lei."
(TORRES, R. Lobo.
Obra citada.
p. 245).
Ao que releva, o princípio da reserva de lei implica que apenas a lei formal
stricto senso
pode aprovar os orçamentos e os créditos especiais e suplementares. Tem por objetivo a segurança dos direitos fundamentais e garantir o controle político da Administração Pública. Nos termos do art. 167, §1º, CF/1988:
"
Nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a inclusão, sob pena de crime de responsabilidade
."
Logo, não é cabível nenhuma despesa sem prévia dotação orçamentária (art. 165, §5º, CF e art. 60, lei n. 4.380/1964). Caso o orçamento não seja votado a tempo, já se cogitou da prorrogação da lei orçamentária anterior (solução dispensada pelo art. 72, 'd', da Constituição de 1937 e pelo art. 66 da Constituição de 1967 com a emenda de 1969). Pode-se também empregar o mandado de injunção, para solução de questões mais imediatas, diante da demora legislativa, um tema que restou discutido, por exemplo, no âmbito do MI 232-I/STF.
Convém enfatizar, pois, que cabe ao Congresso Nacional a aprovação da lei do orçamento anual, com a afetação de recursos para o cumprimento das incumbências públicas
. Em princípio, aludida atribuição não pode ser assumida pelo Poder Judiciário, dada a ausência de legitimação representativa para tanto. Isso não impede, por óbvio, a inclusão de despesas no orçamento, por meio da requisição de pagamento de precatórios e RPVs, na forma do art. 100, CF/88.
Por sinal, até mesmo quando se cuida de reservas prospectivas, para realização de obras, há precedentes reputando cabível a condenação do Estado - por meio de algum dos entes federativos - a incluir determinadas despesas na lei orçamentária anual:
"(...)
4 - Manutenção da conclusão do juízo de origem que condenou os réus à realização de obras e serviços necessários à restauração dos trechos das rodovias indicadas a fls. 536/538, bem como a instalação dos postos de pesagem, em conformidade com as diretrizes definidas pelo Plano Diretor de Pesagem de Veículos em Rodovias Federais (fls. 540/574),
com prazo de conclusão em vinte e quatro meses; determinar à União que inclua no orçamento dos exercícios financeiros seguintes montantes necessários à realização das obras e instalação dos equipamentos
." (Ap 0005094-66.2002.4.01.3500, DESEMBARGADOR FEDERAL HILTON QUEIROZ, TRF1, 31/01/2018.)
Atente-se ainda para o seguinte julgado, do STJ:
"CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CADEIA PÚBLICA. SUPERLOTAÇÃO. CONDIÇÕES PRECÁRIAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA OBRIGAR O ESTADO A ADOTAR PROVIDÊNCIAS ADMINISTRATIVAS E APRESENTAR PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA PARA REFORMAR OU CONSTRUIR NOVA UNIDADE PRISIONAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES E DE NECESSIDADE DE PRÉVIA DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA (ARTS. 4º, 6º E 60 DA LEI 4.320/64). CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM CASOS EXCEPCIONAIS. POSSIBILIDADE. CASO CONCRETO CUJA MOLDURA FÁTICA EVIDENCIA OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DO RESPEITO À INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL DOS PRESOS E AOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DO MÍNIMO EXISTENCIAL, CONTRA O QUAL NÃO SE PODE OPOR A RESERVA DO POSSÍVEL. 1. Na origem, a Defensoria Pública e o Ministério Público do Estado do Mato Grosso ajuizaram Ação Civil Pública visando obrigar o Estado a adotar providências administrativas e apresentar previsão orçamentária para reformar a cadeia pública de Mirassol D'Oeste ou construir nova unidade, entre outras medidas pleiteadas, em atenção à situação de risco a que estavam expostas as pessoas encarceradas no local. Destaca-se, entre as inúmeras irregularidades estruturais e sanitárias, a gravidade do fato de - conforme relatado - as visitas íntimas serem realizadas dentro das próprias celas e em grupos. 2. A moldura fática delineada pelo Tribunal de origem - e intangível no âmbito do Recurso Especial por óbice da Súmula 7/STJ - evidencia clara situação de violação à garantia constitucional de respeito da integridade física e moral do preso e aos princípios da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial. 3.
Nessas circunstâncias - em que o exercício de pretensa discricionariedade administrativa acarreta, pelo não desenvolvimento e implementação de determinadas políticas públicas, seriíssima vulneração a direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição - a intervenção do Poder Judiciário se justifica como forma de pôr em prática, concreta e eficazmente, os valores que o constituinte elegeu como "supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos fundada na harmonia social", como apregoa o preâmbulo da nossa Carta Republicana
. 4. O entendimento trilhado pela Corte de origem não destoou dos precedentes do STF - RE 795749 AgR, Relator: Min. Celso de Mello, Segunda Turma, Julgado em 29/04/2014, Processo Eletrônico DJe-095 Divulg 19-05-2014 Public 20-05-2014, ARE 639.337-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 15.9.2011 - e do STJ, conforme AgRg no REsp 1107511/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 06/12/2013. Aplicação da Súmula 83/STJ. 5. Com efeito, na hipótese sub examine, está em jogo a garantia de respeito à integridade física e moral dos presos, cuja tutela, como direito fundamental, possui assento direto no art. 5º, XLIX, da Constituição Republicana. 6. Contra a efetivação dessa garantia constitucional, o Estado de Mato Grosso alega o princípio da separação dos poderes e a impossibilidade de realizar a obra pública pretendida sem prévia e correspondente dotação orçamentária, sob pena de violação dos arts. 4º, 6º e 40 da Lei 4.320/1964. 7.
A concretização dos direitos individuais fundamentais não pode ficar condicionada à boa vontade do Administrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue, nesses casos, como órgão controlador da atividade administrativa. Trata-se de inadmissível equívoco defender que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantir os direitos fundamentais, possa ser utilizado como óbice à realização desses mesmos direitos fundamentais. 8. Tratando-se de direito essencial, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada política pública vital nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, como na hipótese dos autos. 9. In casu, o pedido formulado na Ação Civil Pública é para, exatamente, obrigar o Estado a "adotar providências administrativas e respectiva previsão orçamentária e realizar ampla reforma física e estrutural no prédio que abriga a cadeia pública de Mirassol D'Oeste/MT, ou construir nova unidade, de modo a atender a todas as condições legais previstas na Lei nº 7.210/84 (Lei de Execuções Penais), bem como a solucionar os problemas indicados pelas equipes de inspeção sanitária, Corpo de Bombeiros Militar e CREA na documentação que instrui os presentes autos, sob pena de cominação de multa"
. 10. Como se vê, o pleito para a adoção de medida material de reforma ou construção não desconsiderou a necessidade de previsão orçamentária dessas obras, de modo que não há falar em ofensa aos arts. 4º, 6º e 60 da Lei 4.320/64. 11. Recurso Especial não provido. ..EMEN:Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEGUNDA Turma do Superior Tribunal de Justiça: "A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a)." Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques (Presidente), Assusete Magalhães e Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Og Fernandes.
(RESP - RECURSO ESPECIAL - 1389952 2013.01.92671-0, HERMAN BENJAMIN, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:07/11/2016 ..DTPB:.)
Extrai-se, da fundamentação do acórdão, o seguinte:
"Contra a efetivação dessa garantia constitucional, o Estado de Mato Grosso alega a impossibilidade de realizar a obra pública pretendida sem prévia e correspondente dotação orçamentária, sob pena de violação dos arts. 4º, 6º e 40 da Lei 4.320/1964.
Recorrentemente, tem-se visto a invocação da
teoria da reserva do
possível
como escudo para o Estado se escusar do cumprimento de suas obrigações prioritárias. Não deixo de reconhecer que as limitações orçamentárias são, realmente, entrave para a efetivação dos direitos sociais. No entanto, é preciso ter em mente que o princípio da reserva do possível não pode ser utilizado de forma indiscriminada, sobretudo quando estiver em jogo direitos associados à própria vida e à integridade física.
Não se podem importar preceitos do direito comparado sem atentar para o Estado brasileiro. Na Alemanha, p. ex., onde o tema da reserva do possível se coloca de maneira proeminente, os cidadãos já dispõem do mínimo de prestações materiais capazes de assegurar existência digna.
Situação completamente diversa é a que se observa nos países pobres ou em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Aqui, ainda não foram asseguradas, à maioria dos cidadãos, condições básicas para uma vida digna. Neste caso, qualquer pleito que vise a fomentar existência minimamente decente não pode ser encarado como sem-razão, pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos principais do Estado brasileiro. É por isso que o
princípio da reserva do possível
não pode, mecanicamente, ser oposto ao
princípio do
mínimo existencial
.
Desse modo, somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá pensar, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se deve investir. Claro, se não se pode cumprir tudo o que assegurado pela Constituição, deve-se, ao menos, garantir aos cidadãos esse piso basilar de direitos essenciais à vida, entre os quais, sem a menor dúvida, há de se incluir padrão mínimo de dignidade às pessoas encarceradas em estabelecimentos prisionais.
Por esse motivo, inexistindo comprovação objetiva e cabal da incapacidade econômico-financeira do Estado, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário determine a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político. No caso concreto, é exatamente esse o pedido formulado na Ação Civil Pública, conforme se vê à fl. 28 dos autos
:
'adotar providências administrativas e respectiva
previsão
orçamentária
e realizar ampla reforma física e estrutural no prédio que abriga a cadeia pública de Mirassol D'Oeste/MT, ou construir nova unidade, de modo a atender a todas as condições legais previstas na Lei nº 7.210/84 (Lei de Execuções Penais), bem como a solucionar os problemas indicados pelas equipes de inspeção sanitária, Corpo de Bombeiros Militar e CREA na documentação que instrui os presentes autos, sob pena de cominação de multa.'
Como claramente se observa, o pleito para a adoção de medidas materiais de reforma ou construção
não desconsiderou
a necessidade de previsão orçamentária dessas obras, de modo que não há falar em ofensa aos arts. 4º, 6º e 60 da Lei 4.320/64." (RESP - RECURSO ESPECIAL - 1389952 2013.01.92671-0, HERMAN BENJAMIN, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:07/11/2016 ..DTPB:.)
Assim, segundo a jurisprudência do STJ, é cabível - em situações excepcionais - que o Poder Judiciário determine ao Poder Legislativo a inclusão de uma dada despesa na lei de orçamento anual, questão que possui, como relatei, alguns aspectos melindrosos.
Quando se cuida de eventual condenação da Fazenda Pública ao pagamento de quantia certa, isso implica a imposição de que despesas determinadas sejam registradas na lei orçamentária anual, por força do art. 100, CF e art. 67 da lei n. 4.320, de 1964. De modo semelhante, quanto o Poder Judiciário condena a União Federal ou autarquias federais ao cumprimento de obrigação de fazer, em princípio, é incumbência de tais entes adotarem as medidas pertinentes à afetação de recursos para adimplemento das obrigações ou efetivação dos devedores respectivos. Aludido debate não se coloca, porém, quando se cuida de entidades submetidas ao regime de direito privado, como é o caso, no geral, das empresas públicas, conforme art. 173, §2, Constituição/88.
A tanto converge a análise da prof. Odete Medauer, quando sustenta:
“O controle jurisdicional não incide sobre um programa governamental num setor determinado, nem sobre diretrizes gerais em certa matéria. A manifestação judicial se realiza, de regra, sobre atuações ou omissões específicas, pontuais. Assim, por exemplo, faltaria competência ao Judiciário para apreciar a diretriz política de prever, na peça orçamentária, mais recursos para obras públicas do que para o atendimento hospitalar da população carente; ou a diretriz de prever mais recursos para um avião presidencial do que para o fornecimento de remédios contra a Aids; ou a diretriz de reduzir impostos em determinado setor produtivo, para fomentá-lo, e aumentar em outros setores. No caso de percentuais de alocação de recursos, previstos na Constituição ou demais normas, cabe sim ao Poder Judiciário apreciar seu cumprimento, inclusive no tocante à inclusão, nestes percentuais, de itens impróprios.
Mesmo neste último caso, não se trataria exatamente de uma política pública, mas de cumprimento de uma regra impositiva de previsão e alocação de recursos em certa matéria (educação, saúde etc.) ou da interpretação de itens que comporiam recursos para a educação, por exemplo
”
(MEDAUAR, Odete.
Políticas públicas ambientais:
estudos em homenagem ao Professor Michel Prieur. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2009. p. 222-223).
2.29. Reserva do possível:
Invoca-se, não raro, o postulado da "reserva do possível" como o fim de se justificar o descumprimento de determinadas imposições constitucionais ou legais. Sem dúvida que, diante de uma efetiva situação de impossibilidade, não há como se cominar sanções porventura previstas na norma. Em termos mais abstratos, os legisladores não podem obrigar alguém a se locomover mais rápido do que a luz, a ocupar mais de um espaço ao mesmo tempo ou a vencer a lei da inércia. Tampouco pode obrigar uma mulher a parir em 5 meses, no exemplo de Hans Welzel. Uma legislação que impusesse tais obrigações não seria apenas ineficaz, pois seria a rigor verdadeiro
nonsense.
Sabe-se também que, no âmago do Direito Civil, há a previsão dos motivos de força maior, como justificadores do inadimplemento de certas obrigações, conforme art. 393, parágrafo único, CC/02:
"O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir."
Cuida-se de medida que se aproxima da reserva do possível.
Convém ter em conta, porém, o seguinte julgado:
"(...)
De qualquer sorte, incumbe ao Poder Executivo prestar um serviço público adequado e administrar o orçamento de modo eficiente e responsável, a fim de atender, a contento, a demanda, sem criar empecilhos injustificados à liberdade das pessoas de sair do país
. Pela precisão e pertinência com a temática, transcrevo as palavras de Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo (Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: Ingo Wolfgang Sarlet e Luciano Benetti Timm (Organizadores). Direitos Fundamentais: orçamento e "reserva do possível". Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. pág. 34):
Com efeito,
o que se verifica, em muitos casos, é uma inversão hierárquica tanto em termos jurídico-normativos quanto em termos axiológicos, quando se pretende bloquear qualquer possibilidade de intervenção neste plano, a ponto de se privilegiar a legislação orçamentária em detrimento de imposições e prioridades constitucionais e, o que é mais grave, prioridades em matéria de efetividade de direitos fundamentais
.
Tudo está a demonstrar, portanto e como bem recorda Eros Grau, que a assim designada reserva do possível "não pode ser reduzida a limite posto pelo orçamento, até porque, se fosse assim, um direito social sob 'reserva de cofres cheios' equivaleria, na prática - como diz José Joaquim Gomes Canotilho - a nenhuma vinculação jurídica". Importa, portanto, que se tenha sempre em mente, que quem "governa" - pelo menos num Estado Democrático
(e sempre constitucional) de Direito - é a Constituição, de tal sorte que aos poderes constituídos impõe-se o dever de fidelidade às opções do Constituinte, pelo menos no que diz com seus elementos essenciais, que sempre serão limites (entre excesso e insuficiência!) da liberdade de conformação do legislador e da discricionariedade (sempre vinculada) do administrador e dos órgãos jurisdicionais. Saliente-se que o requerente solicitou a emissão de passaporte na sua modalidade comum, porquanto em situação de normalidade, haveria tempo hábil para a emissão do documento.
Por essa razão, não se afigura razoável argumentar que, não ter sido requerida a expedição de passaporte de "emergência" na via administrativa, não haveria ato coator, até porque é sabido que tal pedido, se formulado, não seria acolhido naquela esfera, dada as hipóteses restritivas em que é admitido pela autoridade. Tampouco se justifica o seu não-atendimento no tempo e modo previamente acertado previamente, por falha da Administração, apesar de ter cumprido os requisitos legais para a obtenção do documento. Quanto ao tipo de passaporte a ser emitido (comum com urgência ou de emergência), é irrelevante o fato de não estarem preenchidos os pressupostos elencados no art. 13 do Decreto n.º 1.983/1996 e no art. 43 da Instrução Normativa n.º 003/2008-DG/DPF, porque o que enseja a determinação judicial de imediato fornecimento do documento pela Polícia Federal é a ilegalidade do cerceamento à liberdade que se impõe ao requerente, em decorrência da paralisação de serviço público essencial (e agora a demora para a sua regularização).
Conclusivamente, os princípios da eficiência e da continuidade do serviço público, aliados à natureza contraprestacional da taxa paga pelo requerente e à fundamentalidade do direito afetado, injustificadamente, pela omissão da Administração, constituem fundamentos relevantes para o acolhimento do pleito liminar
. Ante o exposto, defiro o pedido de atribuição de efeito suspensivo à apelação, para determinar à autoridade requerida que inicie imediatamente os procedimentos necessários à emissão do passaporte de urgência ao requerente, de modo a garantir a entrega do documento até o dia 04/08/2017. Para o cumprimento da liminar, a requerida deverá informar diretamente ao requerente sobre as providências que ainda lhe incumbe (comparecimento no Departamento da Polícia, pagamento de eventuais taxas extras ou complementares àquela já adimplida, disponibilizando a respectiva GRU, apresentação de outros documentos etc.). Intimem-se, sendo a autoridade requerida por mandado em regime de plantão, para ciência e cumprimento da decisão. (TRF4 5038580-69.2017.404.0000, QUARTA TURMA, Relatora VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, juntado aos autos em 25/07/2017)
Com efeito, conquanto se saiba que há situações em que o Estado simplesmente não dispõe de estrutura e recursos para efetivar direitos fundamentais (
ad impossibilia nemo tenetur
) - ninguém pode ser obrigado a fazer o impossível - isso deve ser demonstrado rigorosamente. Não se pode invocar a tal "reserva do possível" como mantra retórico para simplesmente não se cumprir o que obrigam a Constituição e demais leis.
Afinal de contas,
"
A teoria da reserva do possível não tem aplicação sem prova de que os recursos orçamentários e financeiros sejam insuficientes para o adimplemento de obrigações do ente público ou demonstração do impacto que as despesas podem trazer para as finanças públicas
. Caso em que a União Federal tem obrigação legal de conservar e restaurar o bem tanto na condição de proprietária quanto por força da regra do art. 19, parágrafo 1º, do Decreto nº 25/37."
(AC - Apelação Civel - 571134 0000411-22.2011.4.05.8200, Desembargador Federal Frederico Dantas, TRF5 - Terceira Turma, - Data::28/09/2017 - Página::108.) Ademais,
"
É descabida e incoerente a invocação também pelo IPHAN do princípio da reserva do possível para se escusar de restaurar o bem imóvel objeto dos autos se já dispunha de verba especialmente destinada a este fim
."
(Apelação 25445 0005277-46.2011.4.05.8500, Desembargador Federal Fernando Braga, TRF5 - Terceira Turma, DJE - Data::23/08/2017 - Página::60.)
Atente-se ainda para a seguinte deliberação do STF:
"AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRAS DE INFRAESTRUTURA DE MOBILIDADE URBANA. ANÁLISE DE LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL LOCAL. SÚMULA 280. SUPOSTA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL. IMPROCEDÊNCIA. PRECEDENTES. 1. Eventual divergência em relação ao entendimento adotado pelo juízo a quo, no que se refere à determinação de realização de obras de infraestrutura de mobilidade urbana, demandaria o exame da legislação infraconstitucional local (Lei Municipal 2.022/1959, Lei do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre e Lei Estadual 12.371/2005) o que inviabiliza o processamento do apelo extremo, em face da vedação contida na Súmula 280 do STF. 2.
Inexistência, no caso, de violação ao princípio da reserva do possível, visto que não cabe sua invocação quando o Estado se omite na promoção de direitos constitucionalmente garantidos. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. Inaplicável a majoração de honorários, por se tratar de ação civil pública na origem
." (STF - ARE: 1269451 RS 0219865-07.2016.8.21.0001, Relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 15/09/2021, Segunda Turma, Data de Publicação: 23/09/2021)
Constou no aludido voto:
"Assim, reserva do possível não pode servir de argumento para escusar o Estado de cumprir os comandos constitucionais, sobretudo aqueles expressamente nomeados e caracterizados como direitos fundamentais. Eventual objeção orçamentária deveria ser acompanhada de prova expressa, documental, que justifique adequadamente e demonstre a impossibilidade financeira do Estado, bem como porque as escolhas políticas deixam de atender demanda tão fundamental. Em outras palavras, a invocação da reserva do possível não pode consistir em mera alegação que isenta, por si só, o Estado de suas obrigações. Somente justo motivo, objetivamente aferido, tem tal valia.”
2.30. Quanto ao ônus da prova - exame precário:
Ademais, ao que releva, a inversão do ônus da prova está prevista no art. 373, §1º, CPC, sendo projeção da lógica do art. 6º, VIII, CDC, com mitigação da máxima
actor incumbit probatio et rei in excipiendo fit auctor,
com uma distribuição dinâmica das cargas probatórias,
ope iudicis
. Como notório, há casos de inversão legal direta do ônus da prova, a exemplo do que ocorre com o art. 1.965, Código Civil, ao dispor que
"Ao herdeiro instituído, ou àquele a quem aproveite a deserdação, incumbe provar a veracidade da causa alegada pelo testador";
há hipóteses de inversão legal indireta, fundada em presunções legais relativas, a exemplo da previsão do art. 322, CC (
"
Quando o pagamento for em quotas periódicas, a quitação da última estabelece, até prova em contrário, a presunção de estarem solvidas as anteriore
s."
)
O processualista Araken de Assis promove uma avaliação crítica da ampliação das hipóteses de inversão do ônus da prova, promovida com o CPC/2015:
"À base da regra do art. 373, I e II, incrementada pela decisão do art. 357, III, situa-se a previsibilidade do julgamento. A distribuição do ônus das partes institui regra de conduta para as partes e, no caso de instrução infrutífera, regra de julgamento para o juiz. Uma das partes, independentemente da sua vontade e contribuição para o resultado, assumirá o risco do insucesso probatório (retro, 1.338). Essa previsibilidade decorre da rigidez da distribuição dos riscos da instrução. Ao ensejo, assinalou-se: a distribuição proporcional e invariável do ônus da prova é um postulado da segurança jurídica, sustentado pelos práticos e defendido pelos partidários das teorias divergentes.
Examinando-se com maior atenção a sistemática legal da distribuição, verifica-se que a decantada rigidez é mais aparente que genuína. O poder de iniciativa oficial interfere, quiçá decisivamente, em tal seara, diminuindo o risco da parte onerada. E o princípio da livre apreciação (art. 371) contrabalança a prova fraca. Por fim, os temperamentos oriundos de regras especiais (retro, 1.339.2) funcionam como elementos de equilíbrio e isonomia.
O processo civil social sugeriu outro critério mais abrangente: a atribuição do ônus da prova ope judicis, conforme o caso, independentemente da posição processual ocupada pela parte, e visando à facilitação da prova. Para essa finalidade, atribuiu-se o ônus casuisticamente à parte que (aparentemente) dispõe de maiores recursos, informações e proximidade com a fonte da prova. À tal orientação, que não é recente – a distribuição do ônus entre autor e réu inspirava-se, no direito comum, em razões de equidade –, a doutrina argentina contemporânea chamou de distribuição dinâmica do ônus da prova. Existem outras denominações em uso.
Não se exige esforço inaudito para identificar a fonte inspiradora da proposta de derrogação da distribuição stática. É a mesma que defende o superlativo aumento dos poderes do órgão judiciário, transformado no führer do processo, e deposita irrestrita confiança no homem e na mulher investidos na função judicante, na respectiva inteligência, prudência, tempo disponível para delicadas ponderações e flexibilidade em desincumbir-se da magna tarefa de guardião dos direitos fundamentais.
A adesão à tese autoritária descansa em dado psicológico. O fascínio, a irrefreável atração pela novidade, haja ou não maior merecimento, a busca de soluções para a numerosidade dos feitos, assumiram papel decisivo na rápida e irrefletida adesão à teoria dinâmica. As justificativas apresentadas são esquivas ou vazias, mera retórica – a “facilitação” do acesso à Justiça Pública é uma delas.
A teoria da distribuição dinâmica baseia-se em premissa claramente irreal: o juiz e a juíza brasileira, encarregados de processar e julgar milhares de processos, não têm vagares e os instrumentos necessários à ponderação dos interesses em jogo. Não é por outra razão que só se dão conta da conveniência da mudança das regras do ônus na oportunidade do julgamento. Em realidade, a distribuição dinâmica constitui um enorme perigo ao processo garantista. Apressadamente demais, salvo engano, rejeitou-se a quebra da parcialidade em favor dos vulneráveis, invariavelmente beneficiados dessa maneira. Não é outro motivo da inexistência de critérios legais e da sua irrelevância. Esquece-se o melhor princípio: O arbítrio do juiz em liberdade total e não condicionado a determinados parâmetros legais que balizem a sua atuação não é um bom princípio.
O objetivo dessa extravagante “técnica” de julgamento é transparente, embora raramente enunciado. Favorece uma das partes que, segundo o critério fixo e prévio, não lograria êxito, por razões nem sempre – permita-se a metáfora – próprias do ofício de fazer justiça. Notou-se o problema, paradoxalmente, no processo trabalhista: pretendendo o autor horas extras, incumbe-lhe, segundo o art. 818 da CLT o ônus de provar a jornada excedente. Ora, a atribuição do ônus ao réu de provar a jornada de trabalho significaria, na prática, descarregar os riscos da demanda unicamente sobre o réu: ou ele contesta, assumindo o ônus; ou não contesta, e suporta os efeitos da falta de controvérsia, ensejando o acolhimento do pedido. O resultado é eloquente e desnuda, ao nosso ver, a inconstitucionalidade da regra
.
Inovando o processo civil, o art. 379, caput, introduziu importante limite aos deveres das partes – comparecer em juízo e responder ao que for perguntado; colaborar com a inspeção judicial, incluindo a inspectio corporis; praticar o ato que lhe for ordenado –, porque, em qualquer hipótese, há de ser preservado “o direito de não produzir prova contra si própria”. Ora, a distribuição dinâmica do ônus da prova implica, na prática, justamente o que art. 379, caput, proíbe terminantemente. Se o veto de self incrimination descansa em bases constitucionais, o art. 373, § 1.º, é inconstitucional.
Essas considerações, e o risco latente de transformar o réu em vilão, a priori, e que já suporta riscos financeiros desiguais quando litiga com autor beneficiário da gratuidade, na melhor das hipóteses recomendam aplicação estrita da doutrina da carga dinâmica, segundo pressupostos legais previamente delimitados. Tarefa particularmente difícil, pois a técnica legislativa só pode consagrar conceitos juridicamente indeterminados e, para esse efeito, trocar “peculiaridades do fato a ser provado” por “excessiva onerosidade” é, apesar da boa intenção, trocar seis por meia dúzia. E, de qualquer modo, convém explicitar tanto o fundamento, quanto a finalidade da doutrina, a fim de evitar um dos maiores males do discurso jurídico, que é a ocultação das premissas ideológicas
.
A objeção de fundo à distribuição dinâmica radica em outro aspecto. Existem fatos difíceis de provar, porque – eis o ponto – as fontes de prova e os meios de prova ostentam limites naturais. Ora, atribuir o ônus à contraparte não elimina a dificuldade, porque intrínseca à alegação de fato. A atribuição do ônus à parte contrária da originariamente agravada aumentaria a injustiça da decisão em desacordo com os valores constitucionais. A única solução consiste em fundar a decisão em juízo de verossimilhança. Assim, se A alega que contraiu infecção no hospital B, onde esteve internado, embora não seja possível apurar cientificamente a origem da bactéria (há as que se produzem unicamente no ambiante hospitalar) não cabe atribuir ao réu B a prova que o autor A, porque supostamente encontrar-se-ia em melhores condições de provar a inexistência de fatores de contaminação no estabelecimento. Não é a regra geral da distribuição do ônus da prova a causa da injustiça, mas sua alteração.
Na vigência do CPC de 1973, buscou-se arrimo no poder de instrução oficial para sustentar a admissibilidade da distribuição casuística, ope iudicis, do ônus da prova. O STJ, no procedimento monitório, admitiu semelhante regime, repartição do ônus da prova subjetivo nas “peculiaridades do caso concreto”, dando-lhe o nome que lhe é próprio: distribuição dinâmica. De lege lata, somente o art. 6.º, VIII, da Lei 8.078/1990, autorizava, expressis verbis, a distribuição ope judicis do ônus da prova no direito
.
A construção de uma possibilidade mais geral de distribuição do ônus da prova, ope judicis, assenta em outras bases. O art. 373, § 1.º, prevê semelhante medida em três hipóteses: (a) impossibilidade de a parte desincumbir-se do ônus da prova nos termos do art. 373, I e II; (b) excessiva dificuldade em cumprir o encargo nesses termos; (c) maior facilidade em obter prova do fato contrário. Em qualquer hipótese, acrescenta o art. 373, § 2.º, a distribuição, ope judicis, não pode tornar o encargo da parte onerada impossível ou excessivamente difícil
.
A iniciativa oficial em matéria de prova nada tem a ver com o risco final suportado pela parte onerada e cristalizado na falta ou insuficiência de prova. A atuação do juiz só atenua o risco desse resultado frustrante, mas não o pré-exclui em termos categóricos e definitivos, pois não é a iniciativa que preside o resultado da prova, mas a limitação do conhecimento humano.
O fundamento mais plausível para justificar a distribuição ope judicis no sistema processual é o sistemático. Ao vedar a distribuição convencional do ônus da prova (retro, 1.339.3.2) em casos que se criem dificuldades ao exercício da pretensão ou da defesa, o art. 373, § 1.º, institui requisito mais geral. Existindo motivo concreto, prévio e perfeitamente delimitado no processo – e, não, a automática inversão em proveito do vulnerável, do cliente bancário, do trabalhador, e assim por diante –, perante o qual a aplicação da distribuição estática do art. 373, I e II, atribuiria prova de produção difícil ou impossível a uma das partes (probatio diabolica), mas a contraparte se encontraria posição mais vantajosa, cabe a distribuição ope judicis no direito brasileiro. Por exemplo: na ação em que o paciente A alega que os prepostos do nosocômio B, desatendendo às prescrições do médico C, ministraram-lhe o fármaco errado ou na dose proibida, provocando gravíssimo dano, o réu dispõe de acesso fácil aos meios de prova – ao prontuário hospitalar, no qual a equipe de enfermagem lançou os dados, e às testemunhas que, afinal, cometeram ou não o erro fatal na medicação. Em contrapartida, ao paciente A é impossível ou excessivamente difícil conhecer o prontuário e identificar as testemunhas. Essa é uma hipótese que não atrai a incidência da reserva do art. 373, § 2.º.
Somente nessas condições estritas – motivo concreto, prévio e delimitado – revela-se aceitável a distribuição ope judicis do ônus da prova perante os direitos fundamentais processuais que, operando no processo, conformam a atividade processual das partes e do órgão judiciário. Não pode se adotada como regra, mas como exceção, interpretada restritivamente. Assim, a distribuição “dinâmica” atua subsidiariamente.
A distribuição dinâmica do ônus da prova ocorre em outros ordenamentos. O art. 217.6 da Ley de Enjuiciamiento Civil espanhola institui dois meios para corrigir a inadequação formal do critério geral (onus probandi incumbit qui ei dicit): (a) a disponibilidade da prova (v.g., na investigação de paternidade, o suposto pai tem condições de esclarecer o fato biológico, através de exame de DNA); e (b) a facilidade probatória (v.g., a empresa encontra-se melhor situada para arrolar as testemunhas de eventos que ocorreram em suas dependências que o visitante ocasional). E, no direito norte-americano, o juiz alocará o ônus da prova segundo numerosas e complicadas regras
.
Essa teoria tem cunho autoritário, porque concentra poderes no órgão judiciário, e, desse modo, traz consigo alto risco de subjetivismo
. Duas objeções principais, relevando o risco de prevaricação e o dever de fidelidade do juiz ao direito, opõem-se à doutrina: (a) o já mencionado risco de subjetividade e, ademais, de relatividade: o que é fácil para certo juiz pode não o ser para outro; e (b) a violação positiva ao direito fundamental processual do contraditório. Contra o risco de subjetividade, inexiste remédio; para a violação do contraditório, a medida cabível é a exigência de que haja motivo concreto, prévio e delimitado para a distribuição ope judicis. A distribuição do ônus da prova na decisão de saneamento e de organização do processo (art. 357, III) contrabalança os riscos, norteando a atividade das partes na instrução das causas. Seja como for, as objeções evidenciam que, entre nós, inexiste ainda densidade do direito fundamental à prova. O contraditório argumentantivo (dizer e contradizer) não mais satisfaz.
As repercussões positivas ou negativas da repartição casuística podem ser aquilatadas e medidas nas relações de consumo. Em tal matriz, considerando o disposto no art. 6.º, VIII, da Lei 8.078/1990, passa-se à análise do tema, sublinhando que não se limita a tais espécies de litígio, em tese, a distribuição dinâmica." (ASSIS, Araken.
Processo civil brasileiro.
Volume II - Tomo II: Institutos fundamentais. SP: RT. 2015. p. 203-209)
Por conta de tais objeções, a inversão do ônus probatório prevista no art. 373, §1º, CPC, não pode ser aplicada sem maiores comedimentos. Exige-se a presença de uma situação de efetiva dificuldade da parte cumprir o encargo decorrente do art. 373, I e II, ou uma manifesta maior facilidade de obtenção da prova, com a alteração do ônus. Em qualquer caso, deve-se assegurar às partes cumprir os encargos probatórios pertinentes e a medida não pode implicar hipóteses de verdadeira
probatio diabolica,
carreando à parte um ônus de impossível ou de excessivamente custosa demonstração (art. 373, §2º, CPC).
NA ESPÉCIE, em primeiro e precário exame, não parece haver lastro para a cogitada inversão do ônus probatório, eis que resta facultado ao autor ampla oportunidade de demonstrar a veracidade das suas alegações
.
2.31. Elementos de convicção:
No caso em exame, os demandantes apresentaram com a inicial documentos pessoais, instrumento de procuração, comprovante de endereço, declaração de hipossuficiência econômica, contrato firmado com o INCRA, certidão de assentado, espelho da unidade familiar, notas fiscais de produtor rural e guia de trânsito animal.
Esses são os elementos de convicção.
2.32. Valoração não exaustiva:
Atento às balizas acima equacionadas e aos elementos de convicção de evento-1, registro que aparentemente há demora na promoção da titulação postulada pelos autores.
Em princípio, a invocação da reserva do possível - conquanto possa ser aceita em situação excepcionais - não pode servir de simples escudo retórico e argumentativo para se descumprir imposições legais. Atente-se para o entendimento consolidado do TRF4 a respeito do tema.
ADMINISTRATIVO. ASSENTAMENTO AGRÁRIO. TITULAÇÃO DEFINITIVA. LEI Nº 13.001/2004. REGULAMENTAÇÃO.
As alterações efetuadas por lei nova e a ausência de regulamento não justificam o procedimento do INCRA de deixar de dar prosseguimento a pedido de titulação de domínio, referente a imóvel rural situado em assentamento agrário, quando preenchidos os requisitos legais, não sendo lícito atribuir à parte autora a responsabilização, bem com eventuais prejuízos diante da inércia do Estado
. (TRF4 5002805-29.2014.4.04.7103, QUARTA TURMA, Relatora VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, juntado aos autos em 29/11/2018).
ADMINISTRATIVO. IMÓVEL. REFORMA AGRÁRIA. EXPEDIÇÃO DE TÍTULO DE DOMÍNIO. REQUISITOS DEMONSTRADOS. 1.
Os autores não podem ser prejudicados pela inércia da autarquia ré, pois eles cumpriram os requisitos necessários para a expedição do título de domínio
. 2. Manutenção da sentença. (TRF4 5004843-02.2014.4.04.7010, QUARTA TURMA, Relatora VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, juntado aos autos em 20/07/2018)
ADMINISTRATIVO. REFORMA AGRÁRIA. IMÓVEL. EXPEDIÇÃO DE TÍTULO DE DOMÍNIO. VERBA HONORÁRIA. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. 1. A alegação do INCRA de que é impossível a emissão de título de propriedade em razão da ausência de preço é totalmente descabida, haja vista ser o próprio instituto, como integrante da Administração Pública, a parte que apresentará o preço a cobrar dos autores. 2. Sendo recíproca a sucumbência, cabível a compensação da verba honorária, nos termos do art. 21 do CPC de 1973. (TRF4 5004771-15.2014.4.04.7010, TERCEIRA TURMA, Relatora MARGA INGE BARTH TESSLER, juntado aos autos em 27/04/2018)
ADMINISTRATIVO. ASSENTAMENTO AGRÁRIO. TITULAÇÃO DEFINITIVA. LEI Nº 13.001/2004. REGULAMENTAÇÃO. -
As alterações efetuadas por lei nova e a ausência de regulamento, não justificam o procedimento do INCRA em deixar de dar prosseguimento a pedido de titulação de domínio, referente a imóvel rural situado em assentamento agrário, quando preenchidos os requisitos legais
. (TRF4, AC 5004708-87.2014.4.04.7010, TERCEIRA TURMA, Relator RICARDO TEIXEIRA DO VALLE PEREIRA, juntado aos autos em 10/11/2016)
Atente-se para o voto proferida pela Desembargadora Vivian Josete Pantaleão Caminha, ao julgar a
apelação nº 5002805-29.2014.404.7103/RS
:
"(...) Efetivamente, conforme bem sinalado pelo Juízo
a quo,
resta evidenciada a ilegalidade da suspensão do pedido administrativo de titulação definitiva formulado pelos autores, em decorrência da superveniência da Lei nº 13.001/04.
Isso porque se verifica que referido pedido, bem como, supostamente, o preenchimento dos requisitos necessários à titulação, ocorreram antes mesmo do advento da nova lei, bem como em virtude de tal legislação superveniente não ter modificado os requisitos anteriormente previstos para a titulação definitiva dos imóveis, do que decorre a possibilidade de empregar o arcabouço jurídico e regulamentação infralegal já existentes e que esmiúçam e estabelecem todos os passos e diretrizes a serem adotadas para o exame do pedido.
No mesmo sentido foi a manifestação do representante do Ministério Público Federal atuante na condição de
custos legis,
Dr. Paulo Gilberto Cogo Leivas, cujos fundamentos, por sua relevância, igualmente integro ao presente
decisum:
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Das alegações de impossibilidade jurídica do pedido e inadequação da via eleita
As preliminares de impossibilidade jurídica do pedido e inadequação da via eleita devem ser afastadas.
Como bem destacado pelo Juízo a quo , não há vedação no ordenamento jurídico à concessão de provimento jurisdicional que determine ao INCRA retomar o curso do expediente destinado a examinar a possibilidade de conferir titulação definitiva a assentados em programas de reforma agrária.
Também "em caso de acolhimento do pedido dos autores não estará havendo invasão do espaço de atuação discricionária do Poder Executivo, tampouco substituição do administrador pelo juiz quanto à escolha de como e onde agir ou aplicar os recursos, mas tão somente impondo o cumprimento de obrigação jurídica que já restou atribuída por lei ao INCRA
".
Tampouco ausente interesse processual da Defensoria Pública da União em valer-se da ação civil pública para a hipótese dos autos, considerando que - como já analisado na sentença - a presente ação não objetiva compelir o Poder Executivo a editar normas tampouco a suprir omissão relativa à ausência de norma regulamentadora.
2.2 Da titulação definitiva das terras de assentamento
A Lei nº 13.001/2004 alterou dispositivos da Lei nº 8.629/93, que disciplina disposições relativas à reforma agrária, nos seguintes termos:
Art. 10. A Lei n o 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 , passa a vigorar com as seguintes alterações:
“ Art. 17. ...................................................................
§ 1 o ...........................................................................
§ 2 o Para a consolidação dos projetos de que trata o inciso V do caput , fica o Poder Executivo autorizado a conceder créditos de instalação aos assentados, nos termos do regulamento.
§ 3 o Poderá ser contratada instituição financeira federal para a operacionalização da concessão referida no inciso V do caput , dispensada a licitação.
§ 4 o As despesas relativas à concessão de crédito de que trata o inciso V do caput adequar-se-ão às disponibilidades orçamentárias e financeiras do órgão responsável pela execução do referido programa.
§ 5 o O regulamento a que se refere o § 2 o estabelecerá prazos, carências, termos, condições, rebates para liquidação e procedimentos simplificados para o cumprimento do disposto neste artigo.” (NR)
“ Art. 18. A distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária far-se-á por meio de títulos de domínio, concessão de uso ou concessão de direito real de uso - CDRU instituído pelo art. 7 o do Decreto-Lei n o 271, de 28 de fevereiro de 1967 .
§ 1 o Os títulos de domínios e a CDRU serão inegociáveis pelo prazo de 10 (dez) anos, observado o disposto nesta Lei.
§ 2 o Na implantação do projeto de assentamento, será celebrado com o beneficiário do programa de reforma agrária contrato de concessão de uso, gratuito, inegociável, de forma individual ou coletiva, que conterá cláusulas resolutivas, estipulando-se os direitos e as obrigações da entidade concedente e dos concessionários, assegurando-se a estes o direito de adquirir título de domínio ou a CDRU nos termos desta Lei.
§ 3 o O título de domínio e a CDRU conterão cláusulas resolutivas e será outorgado ao beneficiário do programa de reforma agrária, de forma individual ou coletiva, após a realização dos serviços de medição e demarcação topográfica do imóvel a ser alienado.
§ 4 o É facultado ao beneficiário do programa de reforma agrária, individual ou coletivamente, optar pela CDRU, que lhe será outorgada na forma do regulamento.
§ 5 o O valor da alienação, na hipótese do beneficiário optar pelo título de domínio, será definido com base no valor mínimo estabelecido em planilha referencial de preços, sobre o qual poderão incidir redutores, rebates ou bônus de adimplência, estabelecidos em regulamento.
§ 6 o As condições de pagamento, carência e encargos financeiros serão definidas em regulamento, não podendo ser superiores às condições estabelecidas para os financiamentos concedidos ao amparo da Lei Complementar nº 93, de 4 de fevereiro de 1998 , e alcançarão os títulos de domínio cujos prazos de carência ainda não expiraram.
§ 7 o A alienação de lotes de até 1 (um) módulo fiscal, em projetos de assentamento criados em terras devolutas discriminadas e registradas em nome do Incra ou da União, ocorrerá de forma gratuita.
§ 8 o São considerados não reembolsáveis: I - os valores relativos às obras de infraestrutura de interesse coletivo; II - aos custos despendidos com o plano de desenvolvimento do assentamento; e III - aos serviços de medição e demarcação topográficos.
§ 9 o O título de domínio ou a CDRU de que trata o caput poderão ser concedidos aos beneficiários com o cumprimento das obrigações estabelecidas com fundamento no inciso V do art. 17 desta Lei e no regulamento.
§ 10. Falecendo qualquer dos concessionários do contrato de concessão de uso ou de CDRU, seus herdeiros ou legatários receberão o imóvel, cuja transferência será processada administrativamente, não podendo fracioná-lo.
§ 11. Os herdeiros ou legatários que adquirirem, por sucessão, a posse do imóvel não poderão fracioná-lo.
§ 12. O órgão federal executor do programa de reforma agrária manterá atualizado o cadastro de áreas desapropriadas e das adquiridas por outros meios e de beneficiários da reforma agrária e disponibilizará os dados na rede mundial de computadores.” (NR) “
Art. 18-A. Os lotes a serem distribuídos pelo Programa Nacional de Reforma Agrária não poderão ter área superior a 2 (dois) módulos fiscais ou inferior à fração mínima de parcelamento.
§ 1 o Fica autorizado o Incra, nos assentamentos com data de criação anterior ao período de 10 anos contados retroativamente a partir de 27 de dezembro de 2013, a conferir a CDRU ou título de domínio relativos às áreas em que ocorreram desmembramentos ou remembramentos após a concessão de uso, desde que observados os seguintes requisitos:
I - observância dos limites de área estabelecidos no caput , por beneficiário;
II - o beneficiário não possua outro imóvel a qualquer título;
III - o beneficiário preencha os requisitos exigidos no art. 3 o da Lei n o 11.326, de 24 de julho de 2006 ; e
IV - o desmembramento ou remembramento seja anterior a 27 de dezembro de 2013.
§ 2 o O beneficiário titulado nos termos do § 1 o não fará jus aos créditos de instalação de que trata o art. 17 desta Lei.”
“ Art. 19. O título de domínio, a concessão de uso e a CDRU serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente de estado civil, observada a seguinte ordem preferencial: ..................................................................................” (NR) “
Art. 21. Nos instrumentos que conferem o título de domínio, concessão de uso ou CDRU, os beneficiários da reforma agrária assumirão, obrigatoriamente, o compromisso de cultivar o imóvel direta e pessoalmente, ou por meio de seu núcleo familiar, mesmo que por intermédio de cooperativas, e o de não ceder o seu uso a terceiros, a qualquer título, pelo prazo de 10 (dez) anos.” (NR) “
Art. 22. Constará, obrigatoriamente, dos instrumentos translativos de domínio, de concessão de uso ou de CDRU, cláusula resolutória que preveja a rescisão do contrato e o retorno do imóvel ao órgão alienante ou concedente, no caso de descumprimento de quaisquer das obrigações assumidas pelo adquirente ou concessionário.
§ 1 o Após transcorrido o prazo de inegociabilidade de 10 (dez) anos, o imóvel objeto de título translativo de domínio somente poderá ser alienado se a nova área titulada não vier a integrar imóvel rural com área superior a 2 (dois) módulos fiscais.
§ 2 o Ainda que feita pelos sucessores do titulado, a alienação de imóvel rural em desacordo com o § 1 o é nula de pleno direito, devendo a área retornar ao domínio do Incra, não podendo os serviços notariais lavrar escrituras dessas áreas, nem ser tais atos registrados nos Registros de Imóveis, sob pena de responsabilidade administrativa, civil e criminal de seus titulares ou prepostos.” (NR)
“ Art. 24. As ações de reforma agrária devem ser compatíveis com as ações da política agrícola, das políticas sociais e das constantes no Plano Plurianual da União.” (NR)
O INCRA alegou que a declaração de consolidação do assentamento somente poderia ser efetivada após a regulamentação da Lei 13.001/2014, o que ainda não ocorrera e, por essa razão, os atos de emissão de títulos de domínio estariam suspensos em face de ausência de permissão legal, uma vez que os instrumentos legislativos necessitariam de regulamentação.
Contudo, contrariamente ao alegado pelo INCRA, nem todos os atos legislativos necessitam de regulamentação ou exigem a atuação administrativa para a sua execução.
Dessa forma, embora as leis possam ser objeto de regulamento, nem todas reclamam complementação, ou seja, o regulamento não seria condição de sua aplicação, cuja edição é facultada ao Executivo.
Primeiramente, portanto, destaca-se que a ausência de regulamentação não pode invalidar o comando legal naquilo que seja passível de aplicação.
Por outro lado, mesmo em relação a dispositivos legais que sejam considerados não auto-executáveis, a inércia do executivo na produção de normas regulamentares pode ser antijurídica.
Conforme Clève, "a eficácia (execução) da lei pode ficar condicionada à edição do regulamento, desde que seja fixado prazo para a ação normativa do Executivo (o princípio da divisão de poderes não admite deixar-se ao inteiro arbítrio do Executivo a suspensão ou adiamento da execução da lei)"
Dessa forma, a omissão na produção do regulamento, sempre que possível, não deve inviabilizar a aplicação da norma sujeita à regulamentação, pois o descumprimento da Constituição ou da lei pelo titular da função regulamentar não pode onerar o Estado ou o cidadão:
Sérgio Ferraz, Regulamento , citado, p. 116, afirma que a omissão na edição de regulamentos de execução não impede a eficácia da lei que condicionou sua aplicação à produção da norma regulamentar em determinado prazo, pois caso contrário se estaria permitindo que o regulamento de execução se sobreponha à lei, situação na qual entraria em pleno vigor no prazo estabelecido (o mesmo ocorrendo com a lei que não previu prazo para a expedição de regulamento, de modo que tanto num caso como no outro, a norma legal deve ter aplicação per si ).
(...)
A omissão do ente regulamentar subordinado não pode impor dano ao ente normatizador subordinante, motivo pelo qual cabe dar cumprimento à lei, como se o ato regulamentar não fosse necessário.
No caso dos autos, como bem destacado na sentença, "a ausência de regulamentação da matéria por mais de um ano, com a consequente paralisação completa dos expedientes administrativos relacionados à titulação definitiva de terras em assentamento, viola o princípio da eficiência".
Em relação às alterações promovidas pela Lei nº 13.001/2004 a dispositivos da Lei nº 8.629/93, o Ministério Público Federal assim como o Juízo a quo (eventos 33 e 63 - 74 do processo originário) concluíram que a redação originária da Lei nº 8.629/93 trazia os mesmos requisitos hoje exigidos quanto à outorga do título de domínio definitivo, apenas não previa a possibilidade do imóvel rural ser distribuído por concessão de direito real de uso – CDRU.
Também relevante ressaltar que foi editado o Decreto nº 8.256/2014, que regulamenta o inciso V do art. 17 da Lei 8.629/93 incluído pela Lei 13.001/2014, que dispõe sobre os créditos de instalação no programa de reforma agrária ("V - a consolidação dos projetos de assentamento integrantes dos programas de reforma agrária dar-se-á com a concessão de créditos de instalação e a conclusão dos investimentos, bem como com a outorga do instrumento definitivo de titulação").
No que se refere aos valores de alienação e condições de pagamento dos imóveis - se for o caso, pois há hipóteses de gratuidade - a serem transferidos por título de domínio, sobre os quais o art. 18 da Lei 8.629/93 remete à norma regulamentadora, cabe a aplicação de regulamento anterior, Instrução Normativa do INCRA nº 30/2006, que estabelece critérios e procedimentos para a transferência de domínio por meio da emissão de instrumentos de titulação em terras de patrimônio do INCRA ou da União e apuração de valores de imoveis rurais a serem alienados.
Com efeito, permanecem eficazes os dispositivos de norma regulamentadora anterior que forem compatíveis com as alterações da lei regulamentada, conforme o seguinte entendimento doutrinário:
Contudo, se a revogação se fizer por lei superveniente que também reclame regulamentação, parece-nos perfeitamente possível falar em aproveitamento total ou parcial do antigo regulamento pela nova legislação, nos mesmos moldes em que se fala em recepção constitucional. (...)
A lógica da recepção como meio abreviado de produção normativa pode ser aplicada também para regulamentos amparados em lei, caso essas venham a ser modificadas, situação na qual devem ser mantidos os válidos regulamentos produzidos pela autoridade então competente. Tratando do assunto, Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, citado, p. 176, admite a continuidade da vigência de decreto quando a lei regulamentada revogada é substituída por outra, 'desde que a nova lei contenha a mesma matéria regulamentada'. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Princípios Gerais de Direito Administrativo, citado, p. 364, destaca que se a lei foi revogada, suspende-se as eficácia do regulamento e se houver apenas modificação da lei, permanecem eficazes os dispositivos que lhe forem compatíveis.
Ademais, no caso dos autos deve ser considerado que a regulamentação anterior é aplicável mesmo porque os assentados receberam o imóvel mediante contratos de concessão de uso durante a vigência da disposição legal alterada. O Ministério Público Federal já havia se manifestado nesse sentido ao exarar parecer no 1º grau, ao qual me reporto (evento 33 do processo originário):
Com efeito, a redação originária da Lei nº 8.629/93 trazia os mesmos requisitos hoje exigidos quanto à outorga do título de domínio definitivo. Apenas não previa a possibilidade do imóvel rural ser distribuído por concessão de direito real de uso – CDRU.
Assim, a regulamentação anterior é aplicável, até porque os assentados receberam o imóvel durante a vigência da disposição legal já revogada.
Como se vê, a alteração da lei de regência e a ausência de novo regulamento a ela correspondente não justificam que o INCRA deixe de dar prosseguimento à titulação definitiva em casos como o presente. Não há, portanto, o óbice apontado pelo INCRA.
Dessa forma, não há justificativa para o INCRA se opor ao prosseguimento de expediente que verse sobre a titulação de imóveis aos beneficiários do Projeto de Assentamento Imbaá, em Uruguaiana/RS, mediante adoção de medidas para a verificação do cumprimento dos requisitos legais.
Em reforço ao posicionamento adotado, os precedentes desta Corte:
ADMINISTRATIVO. ASSENTAMENTO AGRÁRIO. TITULAÇÃO DEFINITIVA. LEI Nº 13.001/2004. REGULAMENTAÇÃO. - As alterações efetuadas por lei nova e a ausência de regulamento, não justificam o procedimento do INCRA em deixar de dar prosseguimento a pedido de titulação de domínio, referente a imóvel rural situado em assentamento agrário, quando preenchidos os requisitos legais. (TRF4, APELAÇÃO CÍVEL Nº 5004708-87.2014.404.7010, 3ª TURMA, Des. Federal RICARDO TEIXEIRA DO VALLE PEREIRA, POR UNANIMIDADE, JUNTADO AOS AUTOS EM 10/11/2016)
ADMINISTRATIVO. ASSENTAMENTO AGRÁRIO. TITULAÇÃO DEFINITIVA. LEI Nº 13.001/2004. REGULAMENTAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. COMPENSAÇÃO. -
As alterações efetuadas por lei nova e a ausência de regulamento, não justifica que o INCRA deixe de dar prosseguimento a pedido de titulação de domínio, referente à imóvel rural situado em assentamento agrário. - Não se pode atribuir à parte autora a responsabilização, bem com eventuais prejuízos diante da inércia do Estado, devendo o INCRA expedir a titulação definitiva, independente da fixação do valor. Ressalta-se que, após a efetiva regulamentação, poderá o INCRA, em seu interesse, exigir o pagamento dos valores necessários à aquisição do imóvel. - Constatada a sucumbência recíproca, possível a compensação dos honorários advocatícios, nos termos do artigo 21 do Código de Processo Civil
. (TRF4, APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 5004700-13.2014.404.7010, 3ª TURMA, Juíza Federal MARIA ISABEL PEZZI KLEIN, POR UNANIMIDADE, JUNTADO AOS AUTOS EM 13/04/2016)
Nesse diapasão, verifica-se que a decisão proferida pelo Juízo
a quo
não merece qualquer reproche, devendo ser mantida, em todos os seus termos.
Em face do disposto nas súmulas n.ºs 282 e 356 do STF e 98 do STJ, e a fim de viabilizar o acesso às instâncias superiores, explicito que a decisão não contraria nem nega vigência às disposições legais/constitucionais prequestionadas pelas partes." (TRF4 5002805-29.2014.4.04.7103, QUARTA TURMA, Relatora VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, juntado aos autos em 29/11/2018).
Em princípio, a mencionada lógica deveria ser privilegiada pelo presente juízo, diante da lógica dos arts. 489, §1º, VI e 927, CPC, alvo dos lúcidos comentários de Araken de Assis, como transcrevo abaixo:
"Por mais de uma razão só em sentido amplíssimo mostra-se possível conceber o julgamento segundo a legalidade, conseguintemente, a obediência do juiz à lei. O juiz não deve contas unicamente à sua consciência e aos pendores do siso de justiça próprio. Não julga porque quer, nem recebeu investidura nesse sentido. O Estado outorgou-lhe esse poder, consoante o modelo constitucional, exigindo-lhe modesta contrapartida: obediência ao ordenamento jurídico, principalmente à lei, ou seja, ao direito vigente no Estado, na sua inteireza, especialmente quanto às fontes formais do Poder Legislativo.
E impõe essa exigência por razão básica, mas fundamental: a conduta prescrita aos particulares e aos agentes públicos e conhecida prévia e abstratamente nas normas legais, e o próprio juiz, o mais importante órgão estatal, não se furta desses comandos
. O problema da legitimidade democrática da criação judicial não pode ser resolvidos pelos controles internos da magistratura, porque esses são exercidos por outros juízes.
Em matéria de previsibilidade dos pronunciamentos judiciais, e, portanto, de segurança e de certeza, que constituem o cimento imprescindível à ordem jurídica justa, a súmula vinculante significou notável avanço, agora acompanhado dos precedentes no julgamento dos casos repetitivos (art. 928, I e II). E, perante a súmula vinculante e o precedente, a obediência à lei (ou antes, à consciência da pessoa investida na função juridicamente) não serve de pretexto hábil ao seu descumprimento
.
À primeira vista,as operações intelectuais do órgão judiciário, perante o verbete, não se distinguiriam das feitas para aplicar o direito objetivo. Embora a aplicação da súmula vinculante e do precedente não seja mecânica e automática, pois a adequação da tese jurídica à questão de fato depende de interpretação, ensejando pronunciamento alternativo, tal questão não toca o ponto.
E, com efeito, se a tese jurídica consagrada na súmula e no precedente rege a espécie litigiosa, todavia, ao órgão judiciário faltará a liberdade de aplicá-la, ou não. É imperativo que a aplique ao objeto litigioso. Ficará impedido de rejeitá-la, oferecendo sua própria interpretação da questão constitucional. E deixando de aplicá-la, estritamente, ensejará a reclamação prevista no art. 103, §3º, CF e no art. 988, NCPC. O acolhimento da reclamação implicará nulidade do provimento contrário à súmula. Desaparece, correlatamente, a independência do juiz.
Essa situação de modo algum equivale à submissão do juiz ao ordenamento jurídico subentendida no art. 8º. O juiz é livre para negar aplicação à lei e para interpretá-la a seu modo, adotando entendimento minoritário ou vencido, o que nunca ocorrerá perante uma súmula vinculante ao precedente. Em suma, a liberdade de interpretação fica restrita à adequação da tese jurídica ao material de fato (art. 489, §1º, VI) e desaparece a liberdade de aplicação
." (ASSIS, Araken.
Processo civil brasileiro.
Volume II - Tomo I. Parte geral. Institutos Fundamentais. Sâo Paulo: RT, 2015, p. 926-927)
De outro norte, a titulação definitiva dependerá do preenchimento de obrigações previstas no art. 15 do Decreto n. 9.311/2018, pelos beneficiários, quais sejam:
Decreto n.º 9.311, de 2018
Art. 15. As condições de permanência do beneficiário no PNRA constarão do Contrato de Concessão de Uso - CCU, do Contrato de Concessão de Direito Real de Uso - CDRU e do Título de Domínio - TD e incluem as seguintes obrigações da unidade familiar:
I - explorar o imóvel direta e pessoalmente, por meio de sua unidade familiar, exceto se verificada situação que enseje justa causa ou motivo de força maior reconhecido pelo Incra, admitidas a intermediação de cooperativas, a participação de terceiros, onerosa ou gratuita, e a celebração do contrato de integração de que trata a Lei nº 13.288, de 16 de maio de 2016 ;
II - não ceder, a qualquer título, a posse ou a propriedade da parcela recebida, ainda que provisória e parcialmente, para uso ou exploração por terceiros;
III -
observar a legislação ambiental
,
em especial quanto à manutenção e à preservação das áreas de reserva legal e de preservação permanente
;
IV - observar as diretrizes técnicas, econômicas e sociais definidas pelo Incra para projeto de assentamento;
V - firmar o instrumento de titulação definitiva, conforme disciplinado pelo Incra; e
VI - cumprir demais obrigações e compromissos previstos no instrumento contratual.
Assim, deve-se aferir no momento próprio se os demandantes preencheram tais condições para perfectibilização da titulação, em caso de procedência da pretensão.
Não raro, em demandas com a presente, tem-se discutido a necessidade de comprovação do pagamento do valor do crédito alimentação, fomento e habitação, que teriam sido recebidos a título de empréstimo, requisito prévio para o requerimento de expedição do título de domínio da propriedade em que assentados. Faço esse registro a fim de que o tema seja discutido no curso da demanda
.
2.33. Necessidade de se assegurar o contraditório:
Ressalvo, ademais, que não se cuida de exame que possa ser concluído desde logo, dada a necessidade de se assegurar o respeito ao contraditório, como registrei acima. Não há urgência de tal ordem que imponha a ultimação da apreciação desde logo, em que pese o equacionamento já promovido acima, com exame precário, contingente. Anoto que a necessidade de se firmar o instrumento de titulação definitiva, conforme previsto no art. 15, V do Decreto n. 9.311/2018, depende também de ato do INCRA, não havendo se falar em exclusão do assentado do PNRA, enquanto pende tal ato de ser editado.
INDEFIRO, por conta disso, e ao menos por ora, o pedido de antecipação de tutela, ressalvando que o tema há de ser reapreciado por época do saneamento - art. 357, conforme art. 296, CPC.
III - EM CONCLUSÃO
3.1. DECLARO a competência da Justiça Federal e deste Juízo para o processamento e julgamento da pretensão, e sua submissão ao rito comum.
3.2. REPUTO que as partes estão legitimadas para a causa e que os autores possuem interesse processual - art. 17, CPC/15.
3.3. DEFIRO o pedido de gratuidade de Justiça, na forma do art. 99, §2, CPC, sem prejuízo de eventual nova análise, caso a tanto instado - art. 100, CPC.
3.4. INDEFIRO, ao menos por ora, o pedido de antecipação de tutela, sem prejuízo de novo exame do tema, na fase de saneamento da demanda. INTIMEM-SE as partes a respeito desta decisão.
3.5. INTIMEM-SE os autores para que, no prazo de 15 (quinze) dias úteis, contados da intimação, apresentem demonstrativo do pagamento ao INCRA das prestações do valor do crédito alimentação, fomento e habitação, que foram recebidos a título de empréstimo, ou indiquem eventual impossibilidade de o fazer, apresentando justificativas para tanto.
3.6. CITE-SE o INCRA - após a regular instrução do processo mediante cumprimento do item anterior
- para, querendo, apresentar resposta ou proposta de acordo em 30 dias úteis, contados na forma dos arts. 219, 224, 231 e 335, CPC. Deverá o demandado, na mesma oportunidade, juntar a documentação de que disponha para o esclarecimento da causa, conforme lógica do art. 438, CPC
3.7.. INTIME-SE também o MPF a respeito da presente demanda, para os fins previstos no art. 178, III, CPC. Prazo de 30 dias úteis - art. 180, CPC.
3.8. INTIME-SE a parte autora para, querendo, apresentar réplica à contestação, tão logo seja juntada aos autos. Prazo de 15 dias úteis, contados da intimação, conforme arts. 219, 224, 351, CPC e art. 5 da lei n. 11.419/06.
3.9. INTIMEM-SE as partes - tão logo tenha sido apresentada réplica ou tenha se esgotado o prazo para tanto - para que, querendo, especifiquem as diligências probatórias pertinentes e necessárias para a solução do processo.
Caso requeiram a inquirição de testemunhas deverão apresentar desde logo o pertinente rol, com a qualificação devida, atentando para o limite do art. 357, §6, CPC. Caso requeiram dilação pericial, deverão apresentar desde logo os quesitos correlatos, sem prejuízo de oportuna intimação para indicação de assistentes periciais e demais medidas do art. 465, §1, CPC, caso a medida venha a ser deferida pelo Juízo. Ficam cientes de que o decurso
in albis
do aludido prazo implicará preclusão temporal.
Prazo comum de 5 dias úteis, contados da intimação.
3.10. Tudo cumprido, oportunamente VOLTEM-ME CONCLUSOS para saneamento, ocasião em que reapreciarei, sendo o caso, o pedido de antecipação da tutela de urgência - art. 296, CPC.
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