Processo nº 5005902-76.2022.4.03.6103
ID: 335984857
Tribunal: TRF3
Órgão: 3ª Vara Federal de São José dos Campos
Classe: AçãO CIVIL PúBLICA CíVEL
Nº Processo: 5005902-76.2022.4.03.6103
Data de Disponibilização:
28/07/2025
Polo Passivo:
Advogados:
FELIPE LAURETTI SPINARDI
OAB/SP XXXXXX
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SERGIO RABELLO TAMM RENAULT
OAB/SP XXXXXX
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SEBASTIAO BOTTO DE BARROS TOJAL
OAB/SP XXXXXX
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LEONARDO BISSOLI
OAB/SP XXXXXX
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PROCESSO Nº 5005902-76.2022.4.03.6103 / 3ª Vara Federal de São José dos Campos AUTOR: A. B. D. I. D. M. D. D. E. S. -. A., A. D. I. A. D. B. Advogados do(a) AUTOR: FELIPE LAURETTI SPINARDI - SP374608…
PROCESSO Nº 5005902-76.2022.4.03.6103 / 3ª Vara Federal de São José dos Campos AUTOR: A. B. D. I. D. M. D. D. E. S. -. A., A. D. I. A. D. B. Advogados do(a) AUTOR: FELIPE LAURETTI SPINARDI - SP374608, LEONARDO BISSOLI - SP296824, SEBASTIAO BOTTO DE BARROS TOJAL - SP66905, SERGIO RABELLO TAMM RENAULT - SP66823 REU: B. B. O. L., B. B. S. T. A. L. Advogados do(a) REU: ALESSANDRO PEZZOLO GIACAGLIA - SP300036, CARLOS EDSON STRASBURG JUNIOR - SP246241, CATARINA LOBO BESSA DE SA LIMA CORDAO - SP439448, JOSE MAURO DECOUSSAU MACHADO - SP173194, MARINA GUAPINDAIA FIGUEIREDO - SP469539, RAFAEL CURI SAVASTANO - SP346046, RENE GUILHERME DA SILVA MEDRADO - SP154648 S E N T E N Ç A Trata-se de ação civil pública promovida ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DE MATERIAIS DE DEFESA E SEGURANÇA – ABIMDE e ASSOCIAÇÃO DAS INDÚSTRIAS AEROESPACIAIS DO BRASIL – AIAB em face de BOEING BRASIL OPERAÇÕES LTDA. e BOEING BRASIL SERVICOS TÉCNICOS AERONÁUTICOS LTDA. Pretendem as autoras que as requeridas sejam condenadas a se abster de realizar a contratação de engenheiros, de forma sistêmica, das Empresas Estratégicas de Defesa (EEDs), bem como das Empresas de Defesa (EDs), que atuam no ramo de desenvolvimento de produtos estratégicos de defesa protegidos pelo Ministério da Defesa, para fins de impedir a perda de autonomia tecnológica nacional na área de defesa aeroespacial. Requerem que tais contratações estejam limitadas ao teto linear anual de 0,6% dos quadros de engenheiros das EEDs e EDs, ou em percentual ainda menor, a ser definido para cada empresa, se demonstrado o risco à continuidade de suas atividades como consequência da atuação das requeridas. Sustentam que nesse limite devem ser computados os engenheiros que tenham sido desligados voluntariamente das empresas de defesa nos últimos seis meses, considerando também as admissões realizadas a partir de 1º de julho de 2022. Pedem, ainda, seja reconhecido o direito das empresas de defesa de promoverem o cumprimento individual do julgado, em processo apartado e sigiloso. Requerem, ainda, o arbitramento de multa por descumprimento da decisão a ser proferida a ser revertida às empresas diretamente prejudicadas pela conduta das requeridas. Alegam as autoras, em resumo, que as requeridas integram o grupo THE BOEING COMPANY, multinacional norte-americana de desenvolvimento aeroespacial e defesa, que realizaram tratativas para a celebração de uma parceria (joint venture) com a EMBRAER S. A. Tal acordo foi rescindido unilateralmente pelas requeridas, que passaram a “tomar à força” a capacidade produtiva de engenharia das indústrias brasileiras que integram a denominada Base Industrial de Defesa. Dizem que as empresas rés vêm reiteradamente admitindo ex-funcionários das empresas em questão, todos provenientes de área de estratégia. Afirmam que tal conduta representa perigo de vazamento de segredos industriais que podem comprometer a defesa da soberania nacional, uma vez que estes funcionários seriam detentores de informações e conhecimentos específicos relevantes no cenário da aviação nacional. As autoras discorrem sobre a formação das bases da indústria aeronáutica brasileira, bem assim sobre a capacitação profissional como pilar da autonomia tecnológica, que reputam indispensável à defesa nacional. Descrevem, ainda, a constituição e evolução das operações da EMBRAER e seu papel no desenvolvimento setorial e sua relevância para o Estado brasileiro, inclusive quanto à subsistência do poder de veto da União (golden share). Referem-se, ainda, à parceria estratégica celebrada entre a EMBRAER e o INSTITUTO TECNOLÓGICO DA AERONÁUTICA – ITA, por meio do qual é oferecido um programa de mestrado profissional que se constitui em principal “porta de entrada” para engenheiros recém-formados na EMBRAER. Aduzem que a formação de engenheiros para a indústria aeronáutica é demorada e demanda custos elevados, razão pela qual a parceria em questão seria uma forma necessária para atender à demanda de profissionais qualificados. Acrescentam que o parque industrial aeroespacial brasileiro compreende muitas outras empresas, para além da EMBRAER. Sustentam as autoras, ainda, que a tutela da defesa nacional e da autonomia tecnológica se constituem em aspectos fundamentais para assegurar a soberania e a capacidade de autodeterminação nacional, conforme previsto nos artigos 1º, I, 170, I e 218 da Constituição Federal. As autoras ainda discorrem sobre a Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN), bem como dos atos normativos que estabelecem os Objetivos Nacionais de Defesa (ONDs), dentre os quais se incluem o desenvolvimento da indústria nacional de defesa, incluindo a autonomia tecnológica, que estariam assim intrinsecamente relacionados com a proteção da soberania nacional. A inicial ainda faz referência à Política Nacional da Base Industrial de Defesa (PNBID), instituída pelo Decreto nº 11.169/2022, que inclui as Empresas de Defesa (EDs), as Empresas Estratégicas de Defesa (EEDs), além de órgãos e entidades, públicas e privadas, desenvolvedores ou produtores de bens e serviços de defesa. Tais normas indicariam que o setor de tecnologia aeroespacial seria de interesse estratégico para a defesa nacional, incluindo a força humana produtiva como produto estratégico de defesa. As autoras também tratam de aspectos econômicos e geopolíticos do setor de defesa brasileiro, assim como da grande escassez de profissionais qualificados, o que teria levado as requeridas a adotarem estratégias agressivas de formação de suas equipes. Aduzem que, embora o movimento de contratação seja habitual em um mercado de condições equalizadas, passou a assumir contornos econômicos desastrosos, com a captura sistemática de empregados estratégicos das empresas de defesa, condutas que afirmam que irá inviabilizar as atividades das empresas, com consequente desemprego dos profissionais “não-capturados”. Essa prática seria ainda agravada pelo fato de que as requeridas estariam extraindo majoritariamente os profissionais mais qualificados e experientes. Narram que, em razão das características específicas do setor aeronáutico, a natureza dos produtos, serviços e tecnologias garantiria ao País uma posição de liderança frente a seus parceiros, fortalecendo o denominado soft power do Brasil na esfera internacional. A inicial ainda trata do interesse da BOEING na absorção da base tecnológica aeroespacial brasileira, incluindo as tratativas realizadas entre 2018 e 2020 para a criação de uma joint venture, havendo previsão de uma atuação na área de aviação comercial (80% da BOEING e 20% da EMBRAER) e uma empresa na área de promoção e desenvolvimento de novos mercados e aplicação de produtos e serviços de defesa (com participação majoritária da EMBRAER e manutenção do poder de veto da União). Na fase final de implementação da operação conjunta, as requeridas teriam decidido de forma unilateral por sua resilição, em 25.4.2020. Afirmam as autoras, todavia, que durante as tratativas as requeridas tiveram acesso a uma série de informações sigilosas e estratégicas por parte da EMBRAER e, por consequência, de todas as EEDs e EDs, já que praticamente todas estas são fornecedoras da EMBRAER. Lembram as autoras, ainda, dos acidentes envolvendo aviões do modelo BOEING 737 MAX em 2018 e 2019, que se revelaram como decorrentes de falhas de projeto, fatos que afirmam terem abalado seriamente a credibilidade das áreas de engenharia da BOEING. Dizem as autoras que tais falhas foram noticiadas como decorrentes de uma mudança de cultura das requeridas, que teriam passado a privilegiar corte de custos e maximização de lucros, deixando de ser empresas focadas na segurança e excelência de projetos. As requeridas ainda teriam obtido prejuízos substanciais (US$ 5,4 bilhões) na produção do avião-tanque KC-46, modelo que tem propósitos semelhantes aos do KC-390 da EMBRAER, a despeito da diferença de tamanho. Acrescentam, ainda, que as dificuldades da BOEING com as áreas de engenharia teriam também relação com a escassez da mão de obra na área, já que a formação plena de um engenheiro nessa área pode demandar até 15 anos. Isto também estaria fazendo com que as requeridas estivessem perdendo engenheiros para novas empresas norte-americanas do setor aeroespacial, caso da SPACE X e da BLUE ORIGIN, o que estaria levando a um “apagão” de engenheiros especialistas nos Estados Unidos. O quadro ainda teria sido agravado com os desdobramentos da guerra na Ucrânia, levando à desativação dos escritórios das requeridas naquele país e na Rússia. Todos esses fatos teriam levado a BOEING a concentrar suas ações de captura de pessoal em São José dos Campos, um dos principais polos de formação de engenharia aeronáutica do mundo, construído em mais de 70 anos de investimentos do Estado brasileiro em pesquisa, tecnologia e educação. Afirmam também que as requeridas estão construindo seu novo centro de engenharia e tecnologia no Brasil, em São José dos Campos, conforme oferta de vagas de trabalho divulgadas no próprio site internacional. Dizem também que tomaram conhecimento da cooptação sistemática e agressiva de profissionais de engenharia, que teve início especialmente a partir de julho de 2022, com informações de EDs e EEDs que já perderam até 10% do total de engenheiros para a BOEING, além de até 70% de engenheiros de áreas específicas e essenciais. Isto teria ocorrido em empresas como EMBRAER, AKAER, AVIBRAS, AEL SISTEMAS, SAFRAN, MAC JEE, dentre outras. A ação estaria também alcançando empresas de pequeno porte (com menos de 50 empregados), caso da ORBITAL ENGENHARIA (responsável por importantes projetos de defesa). Em relação à EMBRAER, esta teria perdido para a BOEING 65 profissionais de engenharia altamente especializados, que exerciam, em sua maioria, posições de liderança, com mais de 13 anos de empresa, em média. Diz que 41% desses engenheiros tinha mais de 15 anos na EMBRAER, tempo necessário para a formação completa de um profissional de liderança de área; 52% dos profissionais foram contratados com engenheiros sêniores; 80% deles foi qualificado em instituições públicas; 22% foram capacitados pelo programa de especialização em engenharia conduzido pelo ITA/EMBRAER. Afirma, ainda, ser inevitável que a requerida tenha acesso a segredos de Estado, pois tais profissionais seriam detentores de informações sigilosas e essenciais e projetos estratégicos de defesa do País. A captura da força produtiva ainda teria como consequência o abalo da estrutura que garantia a autonomia tecnológica de defesa aeroespacial brasileira. A inicial veio instruída com documentos. A União foi intimada a se manifestar sobre seu eventual interesse no feito, tendo apresentado petição, em 15.02.2023, instruída por parecer elaborado no âmbito do Ministério da Defesa, de que não haveria interesse que justificasse sua intervenção neste feito (ID 275703573). As requeridas também peticionaram na mesma data nos autos, argumentando a respeito de questões processuais que impediriam o processamento da ação civil pública, tendo também requerido o indeferimento do pedido de tutela provisória de urgência (ID 275748293). Reconheceu-se a incompetência absoluta deste Juízo para processar e julgar o feito, ante a manifestação da UNIÃO, determinando-se a remessa dos autos a uma das Varas da Comarca de São José dos Campos (ID 276026542). As autoras informaram interposição de agravo de instrumento em face dessa decisão (nº 5004724-34.2023.4.03.0000 - ID 277259060). As requeridas BOEING BRASIL OPERAÇÕES LTDA. e BOEING BRASIL SERVICOS TÉCNICOS AERONÁUTICOS LTDA. contestaram o feito (ID 278364032). Argumentaram, em síntese, que as autoras seriam partes ilegítimas, pois não incluiriam em suas finalidades institucionais a defesa de quaisquer direitos relacionados no artigo 5º da Lei nº 7.347/1985; a falta de interesse processual, dada a falta de adequação e utilidade na propositura de ação civil pública para defesa de direitos individuais e heterogêneos; a ilegitimidade passiva “ad causam”, pois a BOEING OPERAÇÕES não seria uma empresa operacional, não sendo responsável pela contratação de funcionários da BOEING BRASIL; a BOEING BRASIL não atuaria predominantemente na área de defesa; a incompetência do Poder Judiciário para examinar questões relacionadas ao princípio da reciprocidade derivado das relações mantidas entre Estados; a inépcia da petição inicial, por faltar-lhe causa de pedir legal, por conter pedido incerto e indeterminado e por apresentar conclusões que não decorrem logicamente dos fatos narrados, sem tampouco indicar a lei que teria sido violada pelas requeridas. Quanto ao mérito, afirmam que a própria União teria apontado não haver clara violação à soberania, defesa e segurança nacional. Aduzem que a BOEING BRASIL é uma empresa brasileira, com operações consolidadas no País, contribuindo significativamente para a economia brasileira e para o desenvolvimento industrial. Dizem que não violaram qualquer norma que envolva soberania, defesa ou segurança nacional, pois as alegações contidas na inicial estariam baseadas em falsas premissas e interpretação equivocada da lei. Alegam que a BOEING BRASIL não violou direitos de propriedade industrial das requeridas ou de suas associadas. Dizem que os pedidos formulados nos autos causam danos à ordem econômica, pois restringem a livre contratação de funcionários (e o direitos de estes buscarem emprego), criam restrições infundadas e anticompetitivas, além de violar tratados internacionais, notadamente os acordos bilaterais vigentes entre Brasil e Estados Unidos, a regra do artigo XVII do GATS, além de precedente do órgão de apelação da OMC que invocou (disputa “Brasil vs Pneus Recauchutados”). No agravo interposto, foi proferida decisão suspendendo a decisão agravada, sem determinar a análise da liminar requerida (ID 278872146). As autoras apresentaram réplica (ID 281179082). Em nova manifestação, ofertada em 11.4.2023, a UNIÃO requereu seu ingresso no feito, na qualidade de assistente simples das autoras. A referida manifestação baseou-se em Nota Técnica elaborada no âmbito do MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO, INDÚSTRIA, COMÉRCIO E SERVIÇOS (MDIC), que consignou que “existe relevância técnica que justifica o acompanhamento pela União no feito, especialmente pelo fato de que a atividade econômica exercida pelas sociedades empresárias em questão é essencial para o País e envolve imperativo de Segurança Nacional” (ID 281793292). As autoras manifestaram-se no sentido da necessidade de análise do pedido de liminar (ID 282413497). Dada vista dos autos ao Ministério Público Federal, este informou que passa a acompanhar o feito, requerendo o reconhecimento da competência deste Juízo para processar e julgar o caso, ou, subsidiariamente, que se aguarde o julgamento definitivo do agravo de instrumento. Esclareceu que irá apresentar manifestação quanto ao mérito no momento oportuno (ID 287924326). As requeridas apresentaram nova manifestação, reiterando as questões preliminares suscitadas e pedindo a improcedência do pedido (ID 288099135). Na decisão de ID 288236435, foi reconsiderada o anterior declínio de competência, admitindo-se a UNIÃO como assistente simples das autoras. Na mesma ocasião, foi indeferido o pedido de tutela provisória de urgência. Instadas as partes à especificação de provas, as rés requereram produção de prova testemunhal e documental. As autoras requereram fossem as rés compelidas a exibir relação de todos os profissionais da área de engenharia contratados pela Boeing no Brasil desde janeiro de 2022 até a presente data. Requereram, também, a produção de prova testemunhal e depoimento pessoal das rés, além da juntada de documentos adicionais. Indeferido pedido da UNIÃO de decretação de sigilo total do processo, esta interpôs agravo de instrumento, ao qual foi concedido efeito suspensivo. A UNIÃO, como assistente simples, requereu produção de prova testemunhal e documental, e expedição de carta rogatória para oitiva de jornalista de periódico estrangeiro. O agravo de instrumento interposto pelas autoras em relação à decisão que reconheceu incompetência absoluta do juízo foi julgado prejudicado, uma vez que foi admitido o ingresso da UNIÃO no feito. As autoras interpuseram agravo de instrumento em face da decisão que indeferiu o pedido de tutela provisória de urgência. Em decisão de saneamento e organização, houve o registro de lançamento de publicidade restrita dos autos do processo; restou mantido o indeferimento da tutela provisória de urgência; as preliminares alegadas em contestações foram rejeitadas. Foi deferida a produção das provas requeridas pelas partes, com concessão de prazo para juntada de novos documentos, produção de prova testemunhal e intimação das rés para que apresentassem a relação dos profissionais da área de engenharia contratados pela Boeing no Brasil desde janeiro de 2022 até a data da decisão de saneamento (ID 297702765). As rés interpuseram embargos de declaração (ID 300230596), alegando a existência de omissão e obscuridade na decisão proferida que determinou o saneamento do feito. Sustentaram haver omissão do juízo quanto à alegada tutela de direitos individuais homogêneos. Pediram o reconhecimento de preliminar de ausência de interesse processual para adequação formal de ação civil pública, uma vez que as autores pretenderiam proteção de direitos de propriedade industrial de suas empresas associadas quando da contratação específica de cada um dos funcionários pelas rés; afirmando, ainda, omissão do juízo ao não delimitar a natureza do depoimento da testemunha arrolada pela União, Dominic Gates; alegando obscuridade quanto à determinação às rés da juntada de relação de contratações; sustentando obscuridade, ainda, quanto ao juízo fixar o mês de janeiro de 2022 como sendo o termo inicial da relação de contratações, considerando que as próprias autoras teriam delimitado o termo inicial para julho de 2022. Foi negado provimento aos referidos embargos de declaração (ID 301210114). As autoras apresentaram rol de testemunhas (ID 300965555); a UNIÃO (ID 300993900); e as rés também apresentaram (ID 301005720). Houve nomeação de perita tradutora/intérprete (ID 308666420), que apresentou estimativa de honorários (ID 314678937), tendo a UNIÃO requerido que estes fossem custeados pela Assistência Judiciária Gratuita, e, alternativamente, que fosse apresentada proposta global de custos a serem rateados entre as partes que postularam oitiva de testemunhas estrangeiras (ID 316780273). Já as rés afirmaram que honorários deveriam ser custeados pelas autoras e UNIÃO (ID 317315860). As autoras afirmaram que seriam isentas de pagamento de custas, e requereram que as rés também fossem compelidas a pagar os honorários, por também peticionarem a oitiva de testemunhas estrangeiras (ID 317507922), tendo as rés sugerido que cada parte custeasse os serviços de tradução de suas próprias testemunhas (ID 322155168). Intimada a perita nomeada para que elaborasse relatório detalhado da estimativa de custo total do valor de seu serviço (ID 322446334), não houve resposta. Este juízo delimitou as datas para realização de audiência de instrução e julgamento para oitiva das testemunhas arroladas pelas partes, bem como destituiu a intérprete, nomeando outro em substituição, determinando sua intimação para que elaborasse relatório detalhado da estimativa de custo total do valor de seu serviço de tradução documental (português para inglês) e de interpretação simultânea dos depoimentos de cada uma das testemunhas estrangeiras arroladas que seriam ouvidas em audiência (ID 328967522). Comunicação de acórdão que negou provimento aos Embargos de Declaração interpostos pela UNIÃO em face de r. decisão proferida pela 3ª Turma do E. TRF da 3ª Região e que negou provimento ao agravo de instrumento interposto pelas autoras (ID 335710994). Reiterou-se intimação do perito para cumprimento do determinado nos autos (ID 332484121), vindo esse a se manifestar (ID 335566699). As autoras apresentaram documentação (ID 339574008, 339574013, 339574014, 339574015, 339574018, 339574603), afirmando fatos novos no ID 339573217. Foram então realizadas sucessivas audiências de instrução. Foram ouvidas, no dia 24.9.2024, as testemunhas arroladas pelas autoras, Uallace Moreira Lima, Anderson Ribeiro Correia, César Augusto Teixeira Andrade e Silva, tendo sido homologada a desistência da oitiva da testemunha Giovani Amianti, e determinada à testemunha César Augusto que juntasse documentos aos autos, e às rés foi determinado que se manifestassem quanto à petição das autoras no ID 339573217 (ID 339885650). No dia 25.9.2024, foram ouvidas as testemunhas arroladas pelas autoras, Luís Carlos Affonso, Fernando Antônio Oliveira, Ciro Tokasiki, tendo sido homologada a desistência da oitiva da testemunha Roberto Chaves (ID 340052227). No dia 26.9.2025, foi ouvida a testemunha arrolada pelas autoras Jorge Brandão Pereira Bittencourt. Em seguida, foi homologada a desistência da oitiva da testemunha Renata Fernandes Valentim Vieira dos Santos, passando a serem ouvidas as testemunhas arroladas pelas rés Alfred Landon Loomis e Amanda Araújo Silva (ID 340219385). No dia 01.10.2024, foram ouvidas as testemunhas arroladas pelas rés, Giovana Akemi Michelucci Kiko e Humberto Luiz de Rodrigues Pereira, tendo sido homologada a desistência da oitiva das testemunhas Eduardo Pontual e Izabela Wyszynski (ID 340689183). As autoras peticionaram nos autos em cumprimento ao determinado quanto à testemunha César Augusto Teixeira Andrade e Silva e requereram concessão de prazo para juntada de tradução juramentada de toda documentação apresentada (ID 340718614, 340718624, 340718625, 340718626, 340718627, 3407178628 e 340718630). Finalmente, no dia 02.10.2024, foram ouvidas as testemunhas arroladas pelas rés, as testemunhas arroladas pelas requeridas, Robson Valim Marini, Téo Lenquist da Rocha e Wagner Fornasari, tendo sido homologada a desistência da oitiva da testemunha arrolada pela UNIÃO, Dominic Gates. No mesmo ato, foi concedido prazo para as autoras juntarem a tradução juramentada da documentação que acompanhou a petição de ID 340718614, bem como foi determinado ao perito tradutor e intérprete que interrompesse os trabalhos de tradução, no estado em que estivessem, para posterior deliberação a respeito de honorários (ID 340843525). As rés se manifestaram a respeito da petição das autoras do ID 339573217, requerendo exclusão da documentação juntada e condenação das autoras em litigância de má-fé (ID 341390811). Correspondência eletrônica do perito nomeado quanto aos honorários devidos (ID 341786391). As rés requereram juntada aos autos de transcrição completa do depoimento da testemunha Alfred Landon Loomis feita por tradutora juramentada perante a Junta Comercial do Estado de São Paulo (ID 342061205, 342061218, 342061230). As autoras peticionaram requerendo juntada da tradução juramentada da documentação relativa à testemunha César Augusto Teixeira e informaram a respeito de resultado de arbitragem entre as partes envolvidas (ID 342103868, 342103905, 342103906, 342103907, 342103910, 342103912 e 342103913). Intimadas a se manifestarem sobre a tradução juramentada do depoimento da testemunha Alfred Loomis, as autoras se manifestaram no ID 344746645. As rés se manifestaram quanto à documentação relativa à testemunha César Augusto Teixeira (ID 345441529). Intimadas a se manifestarem acerca da proposta de honorários do perito, as rés peticionaram no ID 348020838, concordando. Fixados honorários periciais, determinou-se as partes que apresentassem alegações finais escritas (ID 348035060). Alegações finais das autoras no ID 352078855, com as quais foram anexadas as transcrições dos depoimentos das testemunhas Uallace Moreira (ID 352079463), Anderson Correia (ID 352079475), César Augusto Teixeira (ID 352079478), Luís Carlos Affonso (ID 352079811), Fernando Antônio (ID 352079497), Ciro Tokasiki (ID 352079823), Jorge Bittencourt (ID 352079833), Alfred Loomis (ID 352079843), Amanda Araújo (ID 352079845), Giovana Kiko (ID 352080627), Humberto Pereira (ID 352080623), Robson Valim Marini (ID 352080646), Wagner Fornasari (ID 352080650) e Téo Lenquist Rocha (ID 352080648). Alegações finais das rés no ID 355810417. Parecer do Ministério Público Federal no ID 357640094, em que opina pela procedência do pedido de condenação das requeridas na abstenção de contratação de engenheiros de forma sistêmica, com os critérios ali sugeridos. Opinou contrariamente ao estabelecimento de limites individuais para cada ED ou EED, pela procedência do pedido de reparação de danos, em valor a ser arbitrado pelo Juízo. Requer, finalmente, autorização para extração de cópias para fins de instauração de procedimento administrativo visando à apuração da omissão da União quanto à regulamentação das medidas protetivas aos conhecimentos ínsitos à elaboração dos produtos estratégicos de defesa por EDs e EEDs. É o relatório. DECIDO. Observo que a sentença está sendo proferida somente nesta data em razão da grande complexidade do caso, como mostra a extensíssima instrução processual realizada, bem assim o fato de estar respondendo por todos os feitos em curso neste Juízo, sem auxílio, desde 2021. Apenas no corrente mês é se iniciou o exercício efetivo do Juiz Substituto aqui lotado. As questões preliminares suscitadas foram resolvidas no longo do trâmite do feito, sendo desnecessário reproduzir os argumentos já assentados a respeito. Embora não se possa invocar uma hipotética preclusão pro judicato em questões de ordem pública (como a ilegitimidade de parte ou a falta de interesse), não há razões que justifiquem a revisão do entendimento antes firmado sobre tais questões, quer na decisão de saneamento e organização, quer no exame dos embargos de declaração interpostos. Deve-se também observar que a decisão de saneamento foi impugnada em agravo de instrumento, ao qual foi negado provimento. Acrescente-se que parte significativa dos argumentos de ordem processual contidos nas alegações finais das requeridas (alicerçados em parecer que as acompanhou) dizem respeito à extensão do julgamento do mérito, ou, se preferirmos, a possíveis incidentes que venham a se estabelecer em eventual cumprimento individual do julgado. Portanto, são também questões de mérito, ou, se preferirmos, questões a serem resolvidas apenas quando da fase de cumprimento (se for o caso). Estabelecidas estas premissas, constata-se que há alguns fatos a serem considerados que são incontroversos e, nessa qualidade, independem de qualquer prova (art. 374, III, do CPC). Está bem demonstrado, de início, que as requeridas passaram a adotar uma política agressiva de contratação de pessoal, notadamente engenheiros, recrutando-os dos quadros da EMBRAER e de várias outras empresas que integram a cadeia de fornecimento para a indústria aeronáutica brasileira. Embora a admissão tenha ocorrido formalmente para a BOEING BRASIL SERVICOS TÉCNICOS AERONÁUTICOS LTDA., não há dúvida de que a força de trabalho reverte igualmente para as atividades da BOEING BRASIL OPERAÇÕES LTDA. (que, a despeito do nome empresarial, aparenta não realizar quaisquer “operações”). Os documentos que acompanharam a inicial também são indicativos que o recrutamento ocorreu, em parcela significativa, em relação a profissionais experimentados e em funções de liderança (“Senior”, “Chief”, “Head”, “Master”, “Leader”, etc.). Não há prova de que tenham sido apenas tais profissionais mais graduados, mas houve certamente uma predileção por aqueles que já haviam percorrido o processo de formação total (que é de aproximadamente 15 anos, como também demonstrado nos autos). Nesse conjunto, há engenheiros graduados pelo INSTITUTO TECNOLÓGICO DA AERONÁUTICA – ITA, mas também graduados em outras instituições (uma delas ouvida como testemunha). Também não há dúvida de que essa política agressiva acarretou desfalques substanciais no quadro de pessoal de várias das associadas das autoras. Isto é sugestivo de problemas graves no desenvolvimento e execução de projetos. Ao que se comprovou nos autos, entre a concepção inicial e a entrega de uma primeira aeronave, com todas as certificações exigidas, são necessários vários anos de trabalho, nas diferentes empresas que integram a cadeia de fornecimento. A retirada abrupta de engenheiros-chave nesses processos seguramente desestabiliza o desenvolvimento e acarreta lacunas de longo e difícil suprimento. Essa mesma política também acabou por frustrar, em alguma medida, os próprios objetivos da parceira institucional celebrada entre a EMBRAER e o INSTITUTO TECNOLÓGICO DA AERONÁUTICA – ITA, desenhada para formar profissionais aptos a suprirem a demanda da indústria brasileira. É um tanto frustrante, efetivamente, verificar que profissionais formados com o apoio decisivo do Estado brasileiro acabem prestando serviços a empresas de capital estrangeiro, em detrimento da indústria brasileira. Mas este aspecto não é, em si, algo surpreendente ou inédito: afinal, constitui fato notório (art. 374, I, do CPC) que muitos engenheiros graduados pelo ITA, tão logo concluam o curso, ou até antes disso, sejam tentados com ofertas de empregos generosíssimas, não raro no mercado financeiro. Bancos e corretoras de valores mobiliários têm especial predileção pelas “cabeças” recém-saídas do ITA. Isto tem ocorrido, inclusive, com os ex-alunos que tinham feito opção por seguir a carreira militar depois do curso. Nestes casos, a legislação prevê apenas uma indenização a ser paga à União, como forma de ressarcir as despesas incorridas na formação do aluno (art. 121 da Lei nº 6.880/1980). Portanto, há uma praxe histórica, amplamente tolerada e com amparo na legislação, de que nem todos os engenheiros graduados pelo ITA trabalhem na Aeronáutica; nem todos trabalhem na indústria brasileira; e nem todos sequer trabalhem como engenheiros. Nestes termos, a contratação de engenheiros pela BOEING, inclusive daqueles que concluíram o mestrado profissional promovido pela parceria EMBRAER/ITA, embora certamente frustrante, não é ilícita, nem autoriza uma intervenção judicial que possa impedir ou limitar tais contratações. Lembre-se, a propósito, que a revogação do artigo 171 da Constituição Federal, promovida pela Emenda Constitucional nº 6/1995, se não extinguiu, certamente minimizou as possíveis distinções entre empresas brasileiras e estrangeiras, incluindo a diferenciação que havia entre empresas brasileiras de capital nacional e empresas brasileiras de capital estrangeiro. Outro ponto a ser examinado (que já havia sido suscitado quando do exame do pedido de tutela provisória), é que os argumentos expostos na inicial estão calcados em uma possível interferência das requeridas na indústria da Defesa (EEDs e EDs), bem assim nas consequências para o regular desenvolvimento de projetos específicos nessa mesma área. A inicial traz um panorama bem amplo dos objetivos e das normas que amparam e presidem a atuação dessas empresas, em conjunto com os objetivos gerais do Estado brasileiro, nas áreas de defesa e segurança nacional. Não há dúvida de que houve uma expressa delimitação das causas de pedir, que, com a devida vênia a respeitáveis entendimentos em sentido diverso, deve igualmente circunscrever o exame dos pedidos contidos na inicial. Trata-se de uma decorrência imediata da norma contida no artigo 141 do CPC[1], que veicula o que habitualmente se denomina regra da congruência, adstrição ou correlação. Como ensina Fernando da Fonseca Gajardoni: [...] Basicamente, o que a regra da congruência impõe é que o juiz, ao julgar o processo, se atenha ao pedido e à causa de pedir da inicial. Estes são os limites da atuação do órgão jurisdicional do Estado, de modo que, descumprida a regra da congruência, a decisão proferida é tida por viciada, devendo ser atacada por recursos e, em último caso, até pela ação rescisória após o trânsito em julgado (art. 966, V, CPC)[2]. Como também esclarece Cássio Scarpinella Bueno, sequer o art. 10 do CPC autoriza que o juiz altere a causa de pedir, ainda que depois de ouvir as partes a respeito. As alterações das causas de pedir, prossegue, estão sujeitas aos limites temporais do artigo 329[3] e não podem ser alteradas por iniciativa do juízo. Também nesse sentido são os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça: AINTARESP 1.101.085, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 02.8.2019; AgInt no AREsp n. 2.343.299/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJe 02.5.2024; RESP 1.169.755, Rel. Vasco della Giustina, DJe 26.5.2010. De igual forma decidiu o TRF 3ª Região, aduzindo que “vige no direito processual civil pátrio a teoria da substanciação em relação à causa de pedir. Neste sentido, cabe ao autor trazer aos autos todo o substrato fático, tanto em alegações quanto em sede probatória, a fim de, em conjunto com o pedido formulado, trazer as balizas pelas quais o julgador irá prestar a jurisdição” (ApCiv 0008478-60.2017.4.03.6182, Rel. Des. Nelton Agnaldo Moraes dos Santos, intimação via sistema em 06.11.2023). Isto não se confunde, evidentemente, com a possibilidade de invocar “fundamento” diverso para a solução da lide, nem com a possibilidade de realizar um exame do pedido que albergue o “conjunto da postulação” (art. 332, § 2º, do CPC). Nenhuma dessas possibilidades afasta a necessidade de examinar o pedido à luz das causas de pedir efetivamente invocadas na inicial. Mesmo os “fatos novos” que foram noticiados nos autos não se constituem, propriamente, em alterações supervenientes dos fatos que devessem ser consideradas por ocasião do julgamento (art. 493 do CPC). Os fatos novos alegados podem ser conexos, correlatos ou trazer argumentos de reforço às razões antes apresentadas. Mas não são alterações da situação de fato que devam ser obrigatoriamente examinadas na sentença. Diante disso, os pedidos devem ser analisados à vista das causas de pedir expressamente apresentadas pelas autoras e, do que se pôde comprovar, não ficaram demonstradas as consequências alegadas quanto às áreas de defesa e de segurança nacional. Isto decorre, desde logo, da própria manifestação do Ministério da Defesa, em que se baseou a primeira intervenção da União nestes autos. Se os projetos de Defesa estão sob supervisão estrita da pasta respectiva, esta certamente seria a primeira a reconhecer os prejuízos que, em teoria, estariam sendo causados pela contratação sistemática de profissionais de engenharia por empresas estrangeiras (ou de capital com origem estrangeira). Claro que, no período que mediou a propositura da ação e a referida manifestação, houve alterações significativas no Ministério e nos próprios Comandos militares, o que poderia justificar a existência de diferentes perspectivas a respeito do tema. Mas é sintomático que o interesse da União (posteriormente manifestado nos autos) tenha partido do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, não do Ministério da Defesa (que, ao que consta dos autos, não mudou de opinião a respeito). A manifestação do MIDICS está calcada no fato (evidente) de que a indústria aeronáutica é importantíssima para a economia nacional e o feito merecia ser acompanhado de perto da União. O fato de a União ter apresentado alegações finais em conjunto com as autoras, embora tenha certo simbolismo, não altera substancialmente aquelas conclusões. Não se nega, evidentemente, que haja linhas de conexão entre a aviação de defesa, a aviação comercial e a aviação executiva, como inclusive ficou demonstrado no curso da instrução. Vários sistemas e equipamentos (comunicação, navegação, segurança de voo, aerodinâmica, estruturas, materiais, eletrônica, sistemas, etc.) são compartilhados ou similares. A expertise construída na área de defesa certamente se comunica para a aviação comercial e/ou executiva (e vice-versa). Ao que também se viu na instrução, é próprio dos sistemas produtivos da EMBRAER que um time de engenheiros de cada área específica vá migrando de projetos, ora da defesa, ora da aviação comercial, ora da aviação executiva. Assim, eventual quebra do sigilo industrial, por parte de engenheiros atuantes na aviação comercial, teria aptidão de produzir efeitos indiretos e nocivos na área de defesa. Existe um risco, que certamente não pode ser ignorado. Em tese, ex-engenheiros das associadas das autoras, mesmo que atuantes na aviação comercial, poderiam praticar condutas aptas a causar prejuízos econômicos ao País, com eventuais implicações na defesa e na segurança nacionais. Essas mesmas condutas poderiam, afinal, levar a complicações nas relações diplomáticas ou comerciais com Estados e empresas estrangeiras. Mas, ao que se pôde verificar ao final da instrução processual, inclusive dos depoimentos pessoais e das testemunhas ouvidas, trata-se de um risco meramente potencial. É “possível”; talvez “provável”. Mas ocorrência efetiva desses problemas não ficou comprovada. Aliás, testemunhos colhidos ao longo da instrução são sugestivos de que as próprias requeridas tenham manifestado cautela em relação a essas informações sigilosas, em particular quando da admissão desses novos engenheiros, inclusive documentando tal proibição como regra integrante do contrato de trabalho. Claro que tal “cautela” poderia ser apenas uma forma de se proteger contra acusações de uso indevido desses segredos, mas não uma política empresarial explicitamente direcionada a evitar esse mau uso. Não é exigível que o engenheiro “apague” da memória os segredos industriais de que teve conhecimento. Mas é exigível que a empresa contratante conduza a política de admissão com o rigor necessário para não permitir que tais segredos sejam compartilhados, mesmo que involuntariamente. Talvez aqui haja algo de ingênuo em imaginar que não interessasse às requeridas ter acesso a tais informações. Mas, para adotar a solução pretendida na inicial, seria indispensável uma prova cabal da utilização dessas mesmas informações. Como já observado anteriormente, uma parte dos problemas narrados na inicial poderia ser resolvida com simples ajustes nos contratos de trabalho celebrados pelas empresas associadas das autoras. Assim, por exemplo, com a inserção de cláusulas de confidencialidade e de não-concorrência (non compete clause) e, evidentemente, com a instituição de uma política salarial e de incentivos compatível com o mercado. É possível que as associadas das autoras só tenham se dado conta da necessidade desses ajustes depois de atingidas pela agressividade da política das requeridas. Mas essa demora não é algo que, por si, possa ser imputado a estas. Em um sistema jurídico que tem como um de seus fundamentos a livre iniciativa, que é também base da ordem econômica (artigos 1º, IV, e 170 da Constituição Federal), a intervenção judicial, quer para impedir, quer para limitar a contratação de trabalhadores, há de ser feita com muita cautela. A livre concorrência é também princípio regente da ordem econômica (art. 170, IV, da Constituição) e, para que se possa estabelecer uma restrição dessa natureza, precisaria haver uma prova muito clara dos fatos e dos propósitos indevidos das requeridas, o que não se verificou, mesmo depois de uma fase probatória muitíssimo extensa. São evidentes os propósitos econômicos e comerciais das requeridas. São também notórios os sucessivos prejuízos que estas vêm experimentando globalmente[4], assim como todas as enormes dificuldades que vêm sofrendo em sua área de projetos. A desativação dos escritórios na Rússia e na Ucrânia[5], os infortúnios decorrentes de acidentes com um de seus modelos mais promissores[6] não deixam dúvidas a respeito disso. São estes, em essência, os fatos que justificam o ímpeto manifestado pelas requeridas na contratação de engenheiros. Também não se descarta que haja um interesse das requeridas em minar a concorrência. Entendo ter ficado bem claro ao longo da instrução que EMBRAER e BOEING não são propriamente “concorrentes”, em um sentido estrito, pois se dedicam a construir aeronaves de tamanhos, perfis e aplicações distintas. Aliás, a ideia da constituição da joint venture foi um pouco orientada por essa premissa: a conjugação de esforços e competências, cada qual em sua área específica, poderia resultar em uma empresa maior e mais eficiente[7]. Mas há certamente uma “concorrência” em sentido amplo, que deriva do interesse na captação e manutenção de uma mão-de-obra cada vez mais especializada e escassa, também no plano global. Outro aspecto a ser levado em conta é que as medidas restritivas aqui pretendidas acabariam por afetar, diretamente, os direitos dos trabalhadores brasileiros, que têm o legítimo interesse de buscar colocações que ofereçam melhores salários e oportunidades. Aliás, não por acaso os “valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” convivem, lado a lado, como fundamentos da República (art. 1º IV, da Constituição Federal). É também sintomático que a “busca do pleno emprego” seja igualmente um princípio orientador da ordem econômica brasileira, tal como estabelecido no artigo 170, VIII, da Constituição. No contexto fático destes autos, é até possível sustentar que tais princípios entrem em confronto com outros princípios, como é o caso da soberania (arts. 1º, I, e 170, I). Mas é preciso atenção para não consentir que a colisão entre princípios (ou entre regras e princípios) seja resolvida a partir de uma visão pessoal ou particular do julgador ou das partes. Lembro-me, em especial, da lição de Paulo de Barros Carvalho[8]: Há princípios para todas as preferências, desde aqueles tradicionais, manifestados expressamente ou reconhecidos na implicitude dos textos de direito positivo, até outros, concebidos e declarados como entidades que dão versatilidade ao autor do discurso para locomover-se livremente, e ao sabor de seus interesses pessoais, na interpretação do produto legislado. Portanto, não se dá conteúdo aos princípios, nem se resolvem conflitos entre diferentes princípios por gostos pessoais ou visões particulares de mundo. Isto é mais relevante ainda nos dias atuais, em que diferentes governos têm sistematicamente ignorado os valores que caracterizam o multilateralismo nas relações comerciais (incluindo os princípios regentes da Organização Mundial do Comércio – incorporados à ordem interna com a promulgação do Decreto nº 1.355/1994). Os critérios para solução jurídica dessas pendências devem ser, com o perdão da redundância, jurídicos, a partir do que estabelecem a Constituição e as leis brasileiras. Diante disso, a conclusão é que a restrição à admissão de trabalhadores, pelos motivos invocados na inicial, exigiria uma determinação legislativa específica, cuja validade ainda seria avaliada à luz das normas constitucionais já mencionadas. Embora não se descarte que a situação de fato possa se alterar no futuro, a depender de condutas praticadas pelos profissionais cooptados das associadas das autoras, o quadro atual não autoriza solução diversa. Por tais razões, com fundamento no art. 487, I, do Código de Processo Civil, julgo improcedentes os pedidos. Não há condenação em honorários de advogado, nem custas ou despesas processuais, na forma do artigo 18 da Lei nº 7.347/1985. Decorrido o prazo legal para eventual recurso, arquivem-se os autos, observadas as formalidades legais. P. R. I. São José dos Campos, na data da assinatura. [1] “Art. 141. O juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte”. [2] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. In: MARCATO, Antonio Carlos. Código de processo civil interpretado. São Paulo: Atlas, p. 188. [3] BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de Direito Processual Civil. V. 1. 13ª. ed. São Paulo: SaraivaJur, p. 230. [4] “Boeing é uma das empresas que mais dá prejuízo no Século XXI”. Forbes. Matéria de 03 de fevereiro de 2025. Disponível em https://forbes.com.br/forbes-money/2025/02/boeing-e-uma-das-empresas-que-mais-da-prejuizo-no-seculo-21/. Acesso em 25 jul. 2025. [5] “Boeing fecha escritório na Ucrânia”. Valor Econômico. Edição de 28 de fevereiro de 2022. Disponível em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/02/28/boeing-fecha-escritorio-na-ucrania.ghtml. Acesso em 25 jul. 2025. [6] “346 mortes: por que passageiros estão se recusando a voar de Boeing 737 Max”. Portal UOL. Disponível em https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2024/03/09/passageiros-se-recusam-a-voar-em-boeing-737-max.htm. Acesso em 25 jul. 2025. [7] Claro que a imprensa já noticiou rumores de que a EMBRAER estaria projetando um modelo para concorrer diretamente com BOEING e AIRBUS. Mas, a despeito da existência de capacidade técnica e operacional, a própria EMBRAER tem negado a existência de planos nesse sentido, como noticiado em CNN Brasil. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/embraer-minimiza-noticias-de-que-esteja-produzindo-modelo-de-aviao-para-competir-com-boeing-e-airbus/. Acesso em 25 jul. 2025. [8] Prefácio a ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 5ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2025, p. 14. Tratamos dessa “proliferação artificial” de princípios ou “panjusfundamentalização” em nosso Proteção da confiança e previdência social: a tutela do segurado em tempos de reformas e alterações da jurisprudência. São Paulo: Juspodivm, 2025, p. 44-45.
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