Processo nº 1004080-49.2021.8.11.0041
ID: 306366393
Tribunal: TJMT
Órgão: Terceira Câmara de Direito Público e Coletivo
Classe: APELAçãO CíVEL
Nº Processo: 1004080-49.2021.8.11.0041
Data de Disponibilização:
24/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
ANGELICA LUCI SCHULLER
OAB/MT XXXXXX
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ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO TERCEIRA CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO E COLETIVO NÚMERO ÚNICO: 1004080-49.2021.8.11.0041 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) ASSUNTO: [DANO AO ERÁRIO, INTERESSES OU DIREI…
ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO TERCEIRA CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO E COLETIVO NÚMERO ÚNICO: 1004080-49.2021.8.11.0041 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) ASSUNTO: [DANO AO ERÁRIO, INTERESSES OU DIREITOS COLETIVOS EM SENTIDO ESTRITO] RELATOR: EXMO. SR. DES. MARCIO VIDAL Turma Julgadora: [EXMO. SR. DES. MARCIO VIDAL, EXMO. SR. DES. JONES GATTASS DIAS, EXMA. SRA. DESA. MARIA EROTIDES KNEIP] Parte(s): [MINISTERIO PUBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO - CNPJ: 14.921.092/0001-57 (APELANTE), LUIZ ANTONIO POSSAS DE CARVALHO - CPF: 109.063.201-00 (APELADO), ANGELICA LUCI SCHULLER - CPF: 814.113.161-34 (ADVOGADO), NORGE PHARMA COMERCIO DE MEDICAMENTOS E MATERIAIS E SOLUCOES EM SAUDE LTDA - CNPJ: 08.139.622/0001-07 (APELADO), ALESSANDRO TARCISIO ALMEIDA DA SILVA - CPF: 570.512.241-15 (ADVOGADO), PEDRO SYLVIO SANO LITVAY - CPF: 427.883.821-20 (ADVOGADO), MIKAEL AGUIRRE CAVALCANTI - CPF: 728.423.851-87 (ADVOGADO), NORGE PHARMA COMERCIO DE MEDICAMENTOS E MATERIAIS E SOLUCOES EM SAUDE LTDA - CNPJ: 08.139.622/0001-07 (TERCEIRO INTERESSADO), MINISTERIO PUBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO - CNPJ: 14.921.092/0001-57 (CUSTOS LEGIS)] A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos os autos em epígrafe, a TERCEIRA CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO E COLETIVO do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, sob a Presidência do EXMO. SR. DES. MÁRCIO VIDAL, por meio da Turma Julgadora, proferiu a seguinte decisão: “POR UNANIMIDADE, DERAM PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR, RETIFICADO EM SESSÃO APÓS O VOTO VISTA DA 2ª VOGAL, EXMA. SRA. DESA. MARIA EROTIDES KNEIP, ACOMPANHADO PELO 2º VOGAL, EXMO. SR. DES. JONES GATTASS DIAS”. E M E N T A DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LICITAÇÃO. JULGAMENTO LIMINAR DE IMPROCEDÊNCIA. INEXISTÊNCIA MANIFESTA DE ATO ÍMPROBO NÃO CARACTERIZADA. PRESENÇA DE INDÍCIOS MÍNIMOS DE DOLO. NECESSIDADE DE INSTRUÇÃO PROBATÓRIA. SENTENÇA ANULADA. RECURSO PROVIDO PARCIALMENTE. I. Caso em exame 1. Apelação cível interposta pelo Ministério Público estadual contra sentença que julgou liminarmente improcedente Ação Civil Pública por ato de improbidade administrativa, cumulada com pedido de nulidade de licitação e ressarcimento ao erário, proposta contra ex-gestor público e empresa vencedora de pregão presencial, sob alegação de direcionamento do certame. II. Questão em discussão 2. A questão em discussão consiste em verificar: (i) se os fatos narrados na inicial e os documentos colacionados autorizam o imediato reconhecimento da inexistência de ato ímprobo; (ii) se estão presentes elementos indiciários mínimos de dolo e prejuízo ao erário que justifiquem o prosseguimento da ação para regular instrução probatória. III. Razões de decidir 3. A Lei n. 8.429/1992, após as alterações da Lei n. 14.230/2021, exige a demonstração de dolo para a tipificação dos atos de improbidade, conforme entendimento fixado no Tema n. 1.199, do STF. 4. No caso, os documentos juntados à petição inicial, notadamente relatórios do TCE, edital do certame, contrato administrativo e termo aditivo, apontam para possíveis irregularidades que, em tese, podem configurar atos ímprobos dolosos. 5. A extinção prematura da ação, sem instrução mínima, compromete o devido processo legal e a adequada apuração dos fatos, sobretudo diante da alegada reiteração de falhas e ausência de motivação em atos administrativos relevantes. 6. Não há manifesta inexistência de ato de improbidade administrativa, razão pela qual impõe-se a cassação da sentença para que o feito tenha regular prosseguimento com a produção de provas. IV. Dispositivo e tese 7. Recurso parcialmente provido para anular a sentença e determinar o retorno dos autos ao juízo de origem, a fim de permitir a instrução probatória. Tese de julgamento: “1. Não se admite o julgamento liminar de improcedência de ação por ato de improbidade administrativa quando presentes elementos indiciários mínimos de conduta dolosa. 2. A extinção prematura da demanda compromete o devido processo legal e inviabiliza a adequada apuração dos fatos e responsabilidades. Dispositivos relevantes citados: Lei n. 8.429/1992, arts. 1o, § 2o, 11, 17, §11; CPC, art. 487, I. Jurisprudência relevante citada: STF, ARE n. 843.989, Tema n. 1.199, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 18.08.2022; TJPR, AI n. 0044664-32.2022.8.16.0000, Rel. Des. Subst. Márcio José Tokars, j. 04.03.2023; TJ-MG, AC n. 5003092-44.2018.8.13.0223, Rel. Des. Renan Chaves C. Machado, j. 20.08.2024; TJ-MT, EDcl 1023453-87.2024.8.11.0000, Rel. Des. Luiz Octavio O. Saboia Ribeiro, j. 16.10.2024. R E L A T Ó R I O EXMO. SR. DES. MÁRCIO VIDAL (RELATOR): Egrégia Câmara: Trata-se de Recurso de Apelação Cível, interposto pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso, contra a sentença proferida pelo Juízo da Vara Especializada em Ações Coletivas da Comarca de Cuiabá/MT, que, nos autos da Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa c/c pedido de Ressarcimento ao Erário e Nulidade de Licitação, julgou improcedentes os pedidos iniciais, sob o fundamento de ausência de demonstração do dolo e de inexistência de elementos suficientes para a configuração de ato ímprobo (id. 278828501, págs. 01/16). O Apelante pretende a reforma da sentença recorrida, sustentando, em síntese, que os documentos constantes dos autos demonstram, de forma clara e objetiva, a existência de esquema fraudulento entre os Apelados, com objetivo de burlar o caráter competitivo do procedimento licitatório, em benefício exclusivo da empresa contratada. Argumenta que o Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso, no Processo n. 256153/2019, constatou as inúmeras irregularidades no certame, tais como: a) justificativa genérica, não demonstrando com objetividade a vantagem da contratação; b) inexistência dos motivos que levaram a Administração Pública a decidir pela contratação nos moldes delineados; c) falta, no termo de referência e/ou no edital do Pregão, de justificativa da inviabilidade técnica e/ ou econômica para o não-parcelamento de objeto; d) não apresentação de provas convincentes de que o parcelamento seria inviável, tanto técnica como economicamente; e) unificação dos objetos em um único lote; f) ausência, no termo de referência, da estimativa detalhada em planilha que expresse a composição dos custos unitários do pregão; g) imprecisão das especificações do objeto licitado, pois reuniu uma multiplicidade de áreas e serviços em um só objeto; h) objeto da licitação envolve uma ampla gestão com diversas áreas envolvidas, tornando indevida a exigência de registro no Conselho Regional de Administração; i) ausência de exigência do Certificado de Regularidade do Conselho Regional de Farmácia; j) exigência de licenças regulatórias junto a órgãos reguladores como requisito de habilitação. Aduz que o próprio histórico de tentativa anterior de licitação – Pregão Eletrônico n. 039/2018 – já havia sido objeto de decisão do Tribunal de Contas que determinara a sua suspensão, diante de vícios semelhantes aos apurados no pregão presencial subsequente. Reforça que o ato administrativo de revogação do pregão eletrônico anterior, realizado pelo Apelado, Luiz Antônio Possas de Carvalho, desconsiderou tal determinação judicial, determinando a publicação de novo Pregão, com vistas a favorecer a empresa Requerida. Sustenta que a reiteração das mesmas falhas no edital posterior revela a intenção deliberada de fraudar o caráter competitivo do certame. Aduz que as condutas atribuídas aos Apelados permanecem típicas, nos moldes da atual redação do artigo 11, inciso V, da Lei n. 8.429/1992, conforme tese da continuidade típico-normativa, reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça. Acrescenta que, mesmo com a superveniência da Lei n. 14.230/2021, é possível o reenquadramento jurídico dos fatos, não havendo que se falar em atipicidade. Ao final, requer o provimento da Apelação, para fins de condenação dos Recorridos pela prática de ato de improbidade administrativa, ou, subsidiariamente, o retorno dos autos ao Juízo de origem, para que seja promovida a devida instrução probatória, com apuração do efetivo dano ao erário, viabilizando, assim, eventual responsabilização patrimonial. O Recorrido, Luiz Antônio Possas de Carvalho, apresentou as contrarrazões, pugnando pelo desprovimento do Recurso (id. 278828507, págs. 01/23). A Apelada, Norge Pharma Comércio de Medicamentos e Materiais e Soluções em Saúde Ltda., não apresentou contrarrazões ao Apelo (id. 278828508, pág. 01). A Procuradoria-Geral de Justiça, por meio do parecer da lavra do Dr. Edmilson da Costa Pereira, opina pelo provimento do Apelo (id. 280440898, págs. 01/05). É o relatório. SUSTENTAÇÃO ORAL USOU DA PALAVRA A ADVOGADA ANGÉLICA LUCI SCHULLER, OAB/MT 16791-O. PARECER ORAL EXMO. SR. DR. MARCELO CAETANO VACCHIANO (PROCURDOR DE JUSTIÇA): Egrégia Câmara, O presente caso versa sobre ação civil pública por ato de improbidade administrativa proposta contra Luiz Antônio Possas de Carvalho, então Secretário Municipal de Saúde de Cuiabá, e a empresa Norge Pharma Comércio de Medicamentos e Materiais e Soluções em Saúde Ltda., em razão de irregularidades verificadas no Pregão Presencial nº 005/2019. Apesar de determinação anterior do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso (TCE/MT) para correção de vícios em edital semelhante, o novo certame foi instaurado com cláusulas igualmente restritivas, culminando na contratação da referida empresa. O Ministério Público sustenta que houve direcionamento da licitação, eliminação indevida da concorrência e violação consciente às normas e princípios da Administração Pública. O objeto do contrato celebrado consistiu na prestação de serviços de gestão operacional com mão de obra especializada, abrangendo logística de medicamentos e materiais hospitalares, controle de almoxarifados e centros cirúrgicos, montagem de kits, e monitoramento hospitalar em tempo real, 24 horas por dia. 2. ALEGAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO Sustenta-se que o requerido Luiz Antônio, mesmo ciente das ilegalidades apontadas no certame anterior (Pregão Eletrônico nº 039/2018), reeditou os vícios ao instaurar novo procedimento licitatório (Pregão Presencial nº 005/2019), com cláusulas semelhantes e igualmente restritivas, tendo como consequência a contratação direta e exclusiva da empresa favorecida, frustrando o caráter competitivo e a isonomia do processo licitatório. 3. PROVAS EXISTENTES NOS AUTOS – COMPROVAÇÃO ESPECÍFICA DE CADA DOCUMENTO 3.1. Acórdão do TCE/MT – nº 389/2020-TP Local nos autos: Id. 48756773 (anexo à petição inicial). O que comprova: Que o Pregão Presencial nº 005/2019 continha cláusulas ilegais e restritivas que frustraram a competitividade do certame. Que houve direcionamento deliberado do procedimento licitatório à empresa Norge Pharma. Que o requerido Luiz Antônio foi sancionado com multa por essas irregularidades. Comprovação objetiva: dolo indireto e violação aos princípios da legalidade e isonomia, respaldado por órgão técnico de controle externo. 3.2. Comunicação Interna nº 295/CERATI/SMS e Revogação do Pregão Eletrônico nº 039/2018 Local nos autos: Id. 48757466 – pág. 2. O que comprova: Que Luiz Antônio revogou o Pregão Eletrônico nº 039/2018 com justificativa formalmente baseada em alegado conflito com contrato anterior (nº 382/2017). Entretanto, a decisão do TCE/MT que determinava a retificação do edital é anterior à comunicação interna, evidenciando que a revogação foi usada como subterfúgio para contornar a determinação legal. Comprovação objetiva: má-fé e reiteração consciente de irregularidades preexistentes, com dolo na reedição das mesmas cláusulas já consideradas ilegais. 3.3. Contrato nº 021/2020 e 1º Termo Aditivo Local nos autos: Ids. 278828431 (contrato) e 278828432 (aditivo). O que comprova: Que o contrato inicial foi celebrado com a Norge Pharma por R$ 19.200.000,00 e, apenas dois meses depois, sofreu redução significativa para R$ 9.746.000,00, com supressão de cláusulas essenciais (4.4 a 6.6). Que não há justificativa técnico-operacional que explique a alteração contratual. Comprovação objetiva: tentativa de legitimar a contratação direcionada e simular economicidade, após afastamento de concorrência, reforçando o dolo e o planejamento prévio. 3.4. Edital e Termo de Referência do Pregão Presencial nº 005/2019 Local nos autos: Id. 48756773 (anexos à petição inicial). O que comprova: Que o edital exigia, de forma desproporcional e impertinente: Registro no CRA (Conselho Regional de Administração). Capacidade técnica específica e elevada, sem justificativa técnica compatível com a realidade da contratação. Resultado: a empresa Norge Pharma foi a única habilitada e vencedora, o que demonstra restrição indevida à concorrência. Comprovação objetiva: fraude à licitação pela inclusão de barreiras artificiais no edital, configurando conduta dolosa para restringir a competição. 3.5. Relatório Técnico da Secretaria Municipal de Saúde Local nos autos: Id. 278828433 – pág. 32. O que comprova: Que a própria Secretaria já possuía estrutura organizacional e física para execução dos serviços licitados: Equipe técnica de logística interna. Centro de distribuição e almoxarifado municipal. Conclui que a contratação era desnecessária do ponto de vista técnico-operacional. Comprovação objetiva: inexistência de interesse público legítimo na contratação, revelando desvio de finalidade e potencial dano ao erário. 3.6. Documentos com Assinatura Direta do Agente Público Luiz Antônio Local nos autos: Ids. 278828430 (Ata de Registro de Preço), 278828431 (Contrato), 278828432 (Aditivo). O que comprova: Que o requerido atuou diretamente em todas as etapas relevantes do procedimento: revogação do edital anterior, lançamento do novo pregão, adjudicação, celebração do contrato e posterior aditamento. Comprovação objetiva: domínio pleno da cadeia decisória e responsabilidade direta na perpetuação dos vícios, elidindo qualquer alegação de desconhecimento ou omissão involuntária. CONCLUSÃO: Esses documentos demonstram um cenário coordenado de reiteração deliberada de ilegalidades, com atuação direta do agente público para beneficiar empresa específica, violando o dever de imparcialidade e moralidade, o que caracteriza improbidade administrativa dolosa Diante das provas documentais robustas e da inadequada extinção do feito sem instrução, o PARECER É: Pelo provimento da apelação; Pela reforma da sentença, com reconhecimento da prática de ato de improbidade administrativa; Pela condenação dos réus na forma pleiteada na origem; E, subsidiariamente para a eventualidade deste Egrégio Tribunal entender pela insuficiência probatória, não obstante o acervo mencionado, que seja anulada a sentença para reabertura da instrução processual. V O T O EXMO. SR. DES. MÁRCIO VIDAL (RELATOR): Egrégia Câmara: Como explicitado no relatório, o Ministério Público do Estado de Mato Grosso insurge-se contra a sentença proferida pelo Juízo da Vara Especializada em Ações Coletivas da Comarca de Cuiabá/MT, que, nos autos da Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa c/c pedido de Ressarcimento ao Erário e Nulidade de Licitação, julgou improcedentes os pedidos iniciais. Denota-se dos autos que o Ministério Público do Estado de Mato Grosso propôs Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, cumulada com pedidos de Ressarcimento ao Erário e Nulidade de Licitação e Contrato, contra o ex-Secretário Municipal de Saúde de Cuiabá, Luiz Antônio Possas de Carvalho e a empresa privada, Norge Pharma Comércio de Medicamentos e Materiais e Soluções em Saúde Ltda., vencedora do Pregão Presencial/SRP n. 005/2019, lançado pela Secretaria Municipal de Saúde, alegando ter ficado constatada a prática de ato ímprobo. Salientou, na inicial, que o Município de Cuiabá lançou o Processo Licitatório n. 67.646/2019, visando à contratação de empresa especializada em fluxo de medicamentos e correlatos e de operação de logística no almoxarifado Central, montagem de kits cirúrgicos, comprovação eletrônica de gastos em salas de centro cirúrgico e sistema de controle e monitoramento hospitalar de média e alta complexidade 24 horas por dia em tempo real, para atender as necessidades da Secretaria Municipal de Saúde, tendo comparecido à sessão pública de abertura do Pregão apenas a empresa Requerida que foi declarada vencedora, com posterior assinatura do Contrato n. 021/2020. Sustentou que o procedimento foi precedido de direcionamento, consubstanciado em exigências técnicas desproporcionais e não justificadas no Edital, com o claro intuito de favorecer a empresa contratada. Enfatizou que a exigência de qualificação técnica imposta no Edital comprometeu a competitividade do processo, ao exigir atestados e capacidades operacionais incompatíveis com a realidade do serviço a ser executado. Narrou que o Termo de Referência que subsidiou o Edital foi deficiente, não contendo a devida estimativa de custos unitários, tampouco a devida motivação para a contratação pelo modelo adotado. Mencionou que a estrutura física e organizacional da Secretaria Municipal de Saúde já possuía equipe e instalações adequadas à execução direta das atividades, o que, aliado à ausência de estudo comparativo de viabilidade, fragiliza ainda mais a justificativa para a contratação. Apontou que, poucos meses após a assinatura do contrato, foi celebrado o 1º Termo Aditivo, que suprimiu diversas cláusulas e reduziu drasticamente o objeto inicialmente contratado, com correspondente diminuição de seu valor, sem a apresentação de planilha de custos ou qualquer estudo que indicasse a adequação dos novos valores aos preços praticados pelo mercado. Enfatizou que essas condutas caracterizam atos de improbidade administrativa, enquadrando-se nos artigos 10 e 11 da Lei n. 8.429/1992, por causarem lesão ao erário e por atentarem contra os princípios da Administração Pública, como legalidade, moralidade, impessoalidade e isonomia, uma vez que frustraram a licitude do processo licitatório e impediram a seleção da proposta mais vantajosa à Administração. Diante de tais fundamentos, requereu a condenação dos Demandados às sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa, além da declaração de nulidade do procedimento licitatório e do contrato celebrado, e a restituição integral dos valores eventualmente pagos aos cofres públicos. O Julgador singular prolatou sentença, ficando a parte dispositiva grafada da seguinte forma: “Ante o exposto, com fundamento no art. 487, I, do Código de Processo Civil, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos constantes nesta ação de improbidade administrativa.” (Sic). Contra essa decisão, o Ministério Público Estadual interpôs o presente Recurso de Apelação Cível. Sabe-se que a Lei n. 14.230/2021 alterou profundamente o regime de responsabilização pela prática de ato de improbidade administrativa, previsto na Lei n. 8.429/1992, e, por isso, passou-se a discutir sobre a sua retroatividade. Dirimindo a questão, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE n. 843989/PR, paradigma do Tema 1.199, do regime da repercussão geral, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, fixou as seguintes teses: 1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei. (Negritei). A Lei n. 8.429/1992, com as alterações procedidas pela mencionada norma, exige, para a tipificação do ato ímprobo, a presença do dolo, conceituando-o como a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos dispositivos normativos, não bastando mera voluntariedade do agente. Veja-se: Art. 1º - O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei. §1º - Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais. § 2º - Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente. (Negritei). Vê-se, portanto, que, para a configuração da improbidade administrativa, necessária se faz a demonstração do elemento subjetivo dolo. No caso vertente, entendo que o conjunto probatório apresentado pelo Recorrente não se mostra suficiente para caracterizar conduta dolosa dos Apelados. Com efeito, as irregularidades apontadas no bojo do procedimento licitatório, embora tenham sido reconhecidas pelo Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso – TCE/MT –, com aplicação de sanção pecuniária ao ex-gestor, não foram acompanhadas de provas aptas a comprovar que a condução do certame visava, deliberadamente, beneficiar a empresa contratada – Norge Pharma Comércio de Medicamentos e Materiais e Soluções em Saúde Ltda. – em detrimento da legalidade e da competitividade. A documentação constante nos autos, notadamente o Edital, o Termo de Referência, o Contrato n. 021/2020 e seu respectivo Termo Aditivo, revela que, embora o modelo adotado pela Administração Pública tenha sido tecnicamente questionável, não houve demonstração de que o gestor tenha se valido de sua posição para frustrar o caráter competitivo do certame com dolo específico. A revogação do certame anterior (Pregão Eletrônico n. 039/2018), objeto de determinação do TCE/MT, embora questionável sob a ótica da conveniência administrativa, não pode, por si só, ser elevada à condição de elemento caracterizador de improbidade sem a devida correlação com uma conduta volitiva voltada à ilicitude. O Apelante fundamenta sua pretensão com base em decisões proferidas pelo TCE/MT nos processos de Representação Interna e Externa, nas quais foram reconhecidas falhas no Edital do Pregão Presencial n. 005/2019, notadamente em relação ao excesso de exigências técnicas, ausência de justificativas quanto à vantajosidade da contratação e indícios de restrição à ampla concorrência. Entrementes, ainda que essas decisões recomendem maior rigor na elaboração de futuras licitações e tenham aplicado multa administrativa ao Apelado, Luiz Antônio Possas de Carvalho, não possuem força cogente para caracterizar o dolo exigido pela lei de regência da improbidade administrativa, servindo tão somente como elemento indiciário, o qual, nesta hipótese, não foi corroborado por outros meios de prova hábeis. Acresce que o próprio contrato inicialmente firmado, no valor global de R$ 19.200.000,00 (dezenove milhões e duzentos mil reais), sofreu redução expressiva mediante o primeiro Termo Aditivo, resultando no montante final de R$ 9.746.000,00 (sete milhões, setecentos e quarenta e seis mil reais). Frise-se que o Recorrente não produziu prova pericial ou técnica que demonstrasse que houve superfaturamento, sobrepreço, execução ineficiente dos serviços ou dano concreto aos cofres públicos. Tampouco foi comprovada a ausência de contraprestação pela empresa contratada, o que enfraquece substancialmente a tese de dano ao erário. Na verdade, os elementos probatórios não apresentam grau de certeza quanto ao dolo, ou seja, a vontade deliberada de frustrar a licitude do processo licitatório. Cumpre ressaltar que até a publicação do edital da licitação, inúmeros atos foram praticados, houve a participação de vários servidores, não se mostrando factível que todos os participantes estivessem em conluio com o ex-Secretário Municipal de Saúde – Luiz Antônio Possas de Carvalho – com vistas a fraudar o processo licitatório e beneficiar a empresa Norge Pharma Comércio de Medicamentos e Materiais e Soluções em Saúde Ltda. Importante destacar que, no campo das ações sancionatórias, a dúvida quanto à existência do elemento subjetivo deve ser resolvida em favor do réu, por força do princípio da segurança jurídica e do devido processo legal. Não se pode impor ao agente público as severas consequências da condenação por improbidade administrativa sem a comprovação clara e objetiva da prática de ato doloso, com desvio de finalidade ou má-fé. Nessa quadra, não havendo demonstração inequívoca de que os Apelados tenham praticado ato com dolo, dirigido à obtenção de resultado ilícito ou prejuízo à Administração, a improcedência da ação, como determinado pelo Juízo de origem, deve ser mantida. Reforçando esse entendimento, perfilho o seguinte aresto desta Corte de Justiça Estadual: “APELAÇÃO CÍVEL – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA –– PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA – REJEITADA – INCIDÊNCIA DO ARTIGO 17, § 6°-B E § 11, DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – FRUSTRAÇÃO E DIRECIONAMENTO DE LICITAÇÃO – ARTIGO 9ª e ARTIGO 10, INCISOS VIII E XI, DA LEI N.° 8.429/92 – ALTERAÇÕES NA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA PELA LEI N.° 14.130/21 – RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA – SISTEMA ADMINISTRATIVO SANCIONADOR – EXIGÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO E COMPROVAÇÃO DE EFETIVO PREJUÍZO – ELEMENTO OBJETIVO NÃO CONFIGURADO – NÃO DEMONSTRADA A AUSÊNCIA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO, SOBREPREÇO OU SUPERFATURAMENTO – IMPOSSIBILIDADE DE DANO PRESUMIDO – OVERRIDING DOS PRECEDENTES SOBRE A MATÉRIA – VONTADE LIVRE E CONSCIENTE EM ALCANÇAR RESULTADO ILÍCITO NÃO DEMONSTRADA – CONDUTA ÍMPROBA NÃO CONFIGURADA – ALTERAÇÃO DO CAPUT DO ARTIGO 11, DA LEI N.° 8.429/92 – TAXATIVIDADE – IMPOSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO BASEADA NA TIPIFICAÇÃO GENÉRICA DE VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS – ABOLITIO IMPROBITATIS RECONHECIDA – PREQUESTIONAMENTO – DESNECESSIDADE DE DISCORRER SOBRE TODAS AS TESES E DISPOSITIVOS LEGAIS INVOCADOS PELAS PARTES – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Não há que se falar em nulidade pelo julgamento liminar de improcedência da ação de improbidade administrativa, diante da expressa previsão de que o julgador poderá rejeitar a petição inicial ou, a qualquer momento do processo, julgar improcedente o pedido, quando manifestamente inexistente o ato de improbidade imputado. 2. Com as modificações trazidas pela Lei n.° 14.230/21, para a configuração de ato de improbidade administrativa que importa em enriquecimento ilício ou em prejuízo ao erário, tipificado nos artigos 9ª e 10, da Lei n.° 8.429/92, exige-se a comprovação de dolo específico, além da de efetiva perda patrimonial. 3. Não evidenciado o elemento subjetivo, consubstanciado pela vontade livre e consciente dos agentes em alcançar o resultado ilícito tipificado na lei de improbidade, bem como não demonstrado o prejuízo concreto à administração pública, afasta-se a possibilidade de condenação nas figuras típicas dos artigos 9ª, caput e 10, inciso VIII e XI, da Lei de n.° 8.429/92. 4. O artigo 11, da Lei de Improbidade, com as alterações promovidas pela Lei n.° 14.230/21, não mais admite a tipificação genérica, baseada em princípios, sem que haja, simultaneamente, a capitulação da conduta em um dos incisos arrolados no novo dispositivo, ou seja, ocorreu a abolição do tipo administrativo com fundamento exclusivo no caput, do artigo 11, da Lei n.° 8.429/92, o que afasta a possibilidade de condenação, diante da atipicidade da conduta, e autoriza que se julgue a improcedência do pedido inicial. 5. Entende-se como prequestionada a matéria que foi objeto de análise e decisão no acórdão recorrido, sendo despicienda a referência expressa do dispositivo de lei federal (prequestionamento explícito), bastando que a questão jurídica tenha sido efetivamente decidida (prequestionamento implícito). 6. Sentença mantida. Recurso não provido. (N.U 0000756-19.2017.8.11.0038, Relatora Desa. Maria Aparecida Ferreira Fago, Segunda Câmara de Direito Público e Coletivo, Julgado em 30/07/2024, Publicado no DJE 07/08/2024). (Negritei). Forte nessas razões, NEGO PROVIMENTO ao Recurso de Apelação Cível, interposto pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso, mantendo inalterada a sentença recorrida. É como voto. V O T O EXMA. SRA. DESA. MARIA EROTIDES KNEIP (1ª VOGAL): Peço vista antecipada dos autos, para melhor análise da matéria. V O T O EXMO. SR. DES. JONES GATTAS (2º VOGAL): Aguardo o pedido de vista. SESSÃO DE 17 DE JUNHO DE 2025 (CONTINUAÇÃO DE JULGAMENTO) V O T O (VISTA) EXMA. SRA. DESA. MARIA EROTIDES KNEIP (1ª VOGAL): Eminentes Pares: Conforme bem relatado, trata-se de Ação Civil Pública por ato de improbidade administrativa, ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso, tendo como pano de fundo a alegada ocorrência de direcionamento ilícito no âmbito do Pregão Presencial n. 005/2019, conduzido pela Secretaria Municipal de Saúde do Município de Cuiabá, então sob a gestão do Sr. Luiz Antônio Possas de Carvalho. Sustenta o Parquet que o referido certame teria sido artificialmente estruturado para favorecer, de forma deliberada, a empresa Norge Pharma, em afronta direta aos princípios da isonomia, da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa. O juízo de primeira instância, após exame preliminar da petição inicial, julgou improcedentes os pedidos, com fulcro no art. 17, §11, da Lei n. 8.429/92, ao fundamento de inexistência de dolo específico e de dano comprovado ao erário. O ilustre Relator acompanha essa linha de raciocínio, entendendo que a exordial não logra demonstrar os elementos objetivos e subjetivos exigidos pelo novo regime da improbidade administrativa. Todavia, com a devida vênia, divirjo de tal entendimento, por reputar prematura a extinção liminar da demanda. Em meu sentir, os indícios apresentados pelo Ministério Público não apenas autorizam, como impõem o prosseguimento do feito para a devida instrução probatória, como condição necessária à elucidação das condutas imputadas ao gestor público. A peça inicial não se assenta em meras ilações ou conjecturas, mas sim em elementos documentais consistentes, dentre os quais se destacam acórdãos do Tribunal de Contas do Estado, o edital do certame, o contrato e seu aditivo, comunicações internas da Administração e pareceres técnicos. Tais documentos, analisados em conjunto, delineiam um quadro indiciário relevante que transcende o mero erro administrativo e sinaliza possível atuação dolosa e estruturada com o intuito de simular legalidade em procedimento eivado de restrições indevidas. Em especial, destaco os seguintes pontos trazidos pelo Ministério Público: a) A Secretaria Municipal de Saúde desconsiderou determinação expressa do TCE/MT que ordenava a simples retificação do Pregão Eletrônico n. 039/2018, optando, em sentido oposto, por sua revogação — justificada em vício formal supostamente identificado posteriormente — e pela instauração de novo certame, com cláusulas substancialmente similares. Tal conduta, longe de configurar liberdade administrativa, revela indício de tentativa de subversão ao controle externo exercido pela Corte de Contas; b) O edital do Pregão Presencial n. 005/2019 passou a exigir condições de habilitação que extrapolam a razoabilidade e a pertinência com o objeto contratual, a exemplo da obrigatoriedade de inscrição no Conselho Regional de Administração (CRA), da demonstração de capacidade técnica em grau desproporcional e da apresentação de licenças regulatórias cuja vinculação ao serviço prestado não restou justificada. A ausência de análise técnica ou pericial impede verificar se tais exigências funcionaram como verdadeiras barreiras artificiais à participação de outros concorrentes; c) A empresa Norge Pharma, única habilitada e vencedora do certame, figurou como beneficiária direta de um processo cujo desenho editalício se mostra potencialmente excludente. A ausência de competição, nesse contexto, não pode ser ignorada nem tampouco atribuída, de plano, a fatores alheios à ação administrativa, sendo imprescindível a produção de prova pericial e testemunhal para elucidar o grau de influência das exigências sobre o resultado do procedimento licitatório; d) Após a celebração do contrato, verificou-se a formalização do 1º Termo Aditivo, pelo qual houve redução do valor contratual em aproximadamente R$ 9,5 milhões. A despeito de parecer vantajoso sob a ótica financeira, a ausência de motivação clara e objetiva para tal redução pode, em tese, indicar artifício doloso, destinado a conferir aparência de legalidade e mascarar eventual superfaturamento ou sobreprecificação anterior; e) Documento técnico oriundo da própria Secretaria Municipal de Saúde (ID 278828433) aponta a existência de estrutura física e administrativa suficiente para a execução dos serviços internamente, o que, a confirmar-se, esvazia a justificativa da contratação e reforça a tese de lesão potencial ao erário. A verificação dessa circunstância demanda instrução específica, inclusive mediante perícia de custos e análise comparativa da estrutura disponível. É certo que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que a caracterização do ato de improbidade administrativa exige a demonstração de dolo específico — o que, por sua vez, não se coaduna com a mera imprudência ou imperícia administrativa. No entanto, essa exigência não se traduz na impossibilidade de apuração do dolo durante a instrução, sobretudo quando presentes, como no caso concreto, elementos indicativos de possível conduta intencional, harmônica e estrategicamente desenhada para frustrar os princípios da Administração Pública. O art. 17, §11, da Lei de Improbidade Administrativa, ao permitir a improcedência liminar, deve ser interpretado com temperança, a fim de evitar que a exceção se transforme em regra, e que ações bem fundamentadas sejam descartadas sem o devido contraditório e produção de provas. Exige-se, nesse contexto, que a inexistência de ato ímprobo seja manifesta — o que, à toda evidência, não se configura nos presentes autos. Ademais, a extinção precoce da demanda — sem a realização de instrução probatória mínima — compromete o devido processo legal substancial e fragiliza o sistema de responsabilização dos agentes públicos, permitindo que eventuais condutas lesivas à moralidade administrativa permaneçam impunes pela ausência de oportunidade de apuração. A propósito: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. RECEBIMENTO DA INICIAL. JUÍZO PRÉVIO DE ADMISSIBILIDADE DA DEMANDA. EXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA O SEU AFORAMENTO. INDÍCIOS DE ATO ÍMPROBO. ANÁLISE SUPERFICIAL. EXEGESE DO ARTIGO 17, §§7º. E 8º. DA LEI N.º 8.429/92. SUPOSTA FRAUDE EM CERTAMES LICITATÓRIOS COM A FINALIDADE DE DESVIAR DINHEIRO PÚBLICO. CONDUTA QUE, EM TESE, PODE CONSTITUIR ATO DE IMPROBIDADE. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA, A FIM DE SE AVERIGUAR A EXISTÊNCIA DE DOLO E AS DEMAIS CIRCUNSTÂNCIAS QUE ENVOLVEM O ATO. REGULAR PROSSEGUIMENTO DO FEITO. RECURSO DESPROVIDO.” (TJPR - 4ª Câmara Cível - 0044664-32.2022.8.16.0000 - Rel.: DESEMBARGADOR SUBSTITUTO MÁRCIO JOSÉ TOKARS - J. 04.03.2023) “APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - SUPOSTA NULIDADE DA ALIENAÇÃO DE IMÓVEIS PÚBLICOS E PRÁTICA DE ATOS DE IMPROBIDADE - REJEIÇÃO LIMINAR DA INICIAL - INDÍCIOS DA PRÁTICA DE ATO ÍMPROBO - NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA PARA APURAÇÃO DAS IRREGULARIDADES - CASSAÇÃO DA SENTENÇA - Consideradas as alterações promovidas pela Lei 14.230/21, aplicável à espécie (Tema 1199/STF), a rejeição da petição inicial da ação de improbidade administrativa apenas ocorrerá nos casos do artigo 300, do CPC e quando não preenchidos os requisitos dos incisos I e II, do § 6º, do artigo 17 da Lei 8.429/92 - Revela-se descabida a rejeição liminar da inicial na hipótese em que há indícios da prática de ato ímprobo - os quais justificam ao menos o processamento do feito e a instrução probatória para a devida elucidação, à luz do princípio "in dubio pro societate" - Também se justifica a necessidade de dilação probatória em razão de ter sido veiculado pedido de anulação dos atos impugnados.” (TJ-MG - Apelação Cível: 50030924420188130223, Relator.: Des.(a) Renan Chaves Carreira Machado (JD Convocado), Data de Julgamento: 20/08/2024, Câmaras Cíveis / 6ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 26/08/2024) “AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. RECEBIMENTO DA INICIAL. ART . 17, § 10, LEI 8429/92. INDÍCIOS SUFICIENTES. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. 1. O presente agravo de instrumento foi interposto antes da edição da Lei 14.230/2021, portanto, na vigência da redação original do art. 17, § 10º, Lei nº 8.429/92. 2.Há indícios suficientes para o recebimento da inicial, sendo que a ampla defesa e estabelecimento do contraditório, no decorrer da instauração probatória, se encarregarão de trazer elementos bastantes para o convencimento do juízo. 3.No momento do recebimento da inicial da ação civil pública por ato de improbidade administrativa, na existência de indícios do ato improbo, impera o princípio in dubio pro societate, consoante entendimento consagrado em nossos tribunais. 4.Agravo de instrumento improvido. (TRF-3 - AI: 50116985820214030000 MS, Relator.: Desembargador Federal NERY DA COSTA JUNIOR, Data de Julgamento: 03/09/2024, 3ª Turma, Data de Publicação: Intimação via sistema DATA: 05/09/2024) Também nesse sentido é o entendimento deste Tribunal: “AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – RECEBIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL – ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA – INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE QUANTO À PRÁTICA DE ATO ÍMPROBO – NECESSIDADE DE INSTRUÇÃO PROBATÓRIA PARA APURAÇÃO DOS FATOS – DECISÃO MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO. Nos termos do artigo, 17, § 6º-Bº, da Lei 8.429/92, o Juiz rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade ou diante do não preenchimentos dos requisitos previstos na lei, como a individualização da conduta do réu, apontamento de elementos probatórios mínimos acerca da prática do ato ímprobo e de sua autoria, além de indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo. Presentes indícios suficientes de autoria e materialidade, não há falar em ausência de justa causa no recebimento da petição inicial, de modo que, seria precipitado reconhecer a inexistência da prática de ato ímprobo, sem instrução probatória, mostrando-se imprescindível o regular processamento do feito.” (TJ-MT 10049436520208110000 MT, Relator.: MARIO ROBERTO KONO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 08/11/2022, Segunda Câmara de Direito Público e Coletivo, Data de Publicação: 22/11/2022) “DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. MAGISTRADO. SUPOSTA COMERCIALIZAÇÃO DE DECISÕES JUDICIAIS. EVOLUÇÃO PATRIMONIAL INCOMPATÍVEL. ALTERAÇÕES DA LEI 14.230/2021. PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO. PROVIMENTO PARCIAL. (...) 5. O juízo de admissibilidade da ação de improbidade não implica prejulgamento, mas visa verificar a existência de justa causa para seu prosseguimento, em observância aos princípios da inafastabilidade da jurisdição e da primazia do julgamento de mérito. IV. Dispositivo e tese 6. Agravo de Instrumento parcialmente provido. Tese de julgamento: "1. A revogação do art. 11, I, da Lei 8 .429/92 pela Lei 14.230/21 não impede o prosseguimento de ação de improbidade administrativa quando os fatos narrados puderem configurar outras modalidades de atos ímprobos ainda previstas na legislação. 2. A existência de elementos probatórios mínimos sobre evolução patrimonial incompatível com os rendimentos do agente público justifica o prosseguimento da ação de improbidade para instrução probatória.” (...) (TJ-MT - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO CÍVEL: 10234538720248110000, Relator.: LUIZ OCTAVIO OLIVEIRA SABOIA RIBEIRO, Data de Julgamento: 16/10/2024, Terceira Câmara de Direito Público e Coletivo, Data de Publicação: 21/10/2024) A atuação do Poder Judiciário, notadamente em matéria de improbidade administrativa, deve conjugar prudência com efetividade, evitando tanto a banalização das ações quanto sua extinção indevida, sob pena de se enfraquecer o próprio arcabouço protetivo da Administração Pública contra condutas ímprobas. Por tais fundamentos, peço vênia ao douto Relator, para dar parcial provimento à apelação, para anular a sentença que julgou improcedente liminarmente a ação, determinando o retorno dos autos à origem para a regular instrução processual, com produção de provas, inclusive pericial e testemunhal, se necessário. É como voto. V O T O EXMO. SR. DES. MÁRCIO VIDAL (RELATOR): Eminentes pares, Chamou-me a atenção o voto da Desembargadora Maria Erotides. A princípio, passou-me despercebido o fato de haver uma causa prejudicial de mérito: o possível cerceamento de produção de provas. O juízo de primeiro grau julgou a ação improcedente sem a devida instrução, baseando-se apenas nos elementos trazidos pelo promovente e pela parte passiva, sem encaminhar o processo para instrução. Como é de conhecimento de todos, o legislador alterou o regime anterior da ação de improbidade administrativa, passando a exigir a prova do dolo. Isso requer uma cognição realmente exauriente para determinar se houve dolo. Sendo assim, retifico meu voto e adiro ao entendimento da Desembargadora Maria Erotides, no sentido de prover parcialmente o apelo para anular a sentença, determinando o retorno ao juízo de primeiro grau para que se proceda à instrução, dando oportunidade a todos os protagonistas do processo. É como voto. V O T O EXMO. SR. DES. JONES GATTAS DIAS (2º VOGAL): Eminentes pares, Apenas em acréscimo ao que foi votado, é relevante mencionar que, antes das recentes mudanças na lei de improbidade administrativa, atuei por oito anos como juiz da Fazenda Pública, com competência em improbidade administrativa. Nesse período, convivia com o que a doutrina hoje denomina "o medo do administrador público". Um exemplo disso é o prefeito municipal, que, como ordenador de despesas, muitas vezes era responsabilizado por questões ocorridas em determinado órgão municipal. Em muitos casos, ele tinha dificuldade de acompanhar essas situações e acabava respondendo por improbidade administrativa. A lei atual, com suas modificações — ainda que muito questionada e criticada —, trouxe uma alteração substancial: a exigência do dolo específico. Isso, evidentemente, tornou mais difícil a comprovação da improbidade. É exatamente por essa razão que também acompanho os entendimentos precedentes. Uma sentença que se mostra precoce, que não oportunizou a comprovação do alegado dolo específico, impede que este seja apurado. Portanto, parece-me indispensável acompanhar esse entendimento para que seja possível a comprovação do tão difícil dolo específico, razão pela qual, acompanho o voto retificado do relator, que está em consonância com o entendimento da 1ª vogal. Data da sessão: Cuiabá-MT, 17/06/2025.
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