Processo nº 1044967-70.2024.8.11.0041
ID: 299384798
Tribunal: TJMT
Órgão: Quinta Câmara de Direito Privado
Classe: APELAçãO CíVEL
Nº Processo: 1044967-70.2024.8.11.0041
Data de Disponibilização:
16/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
FERNANDO DA SILVA BETTINI
OAB/MT XXXXXX
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ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO QUINTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO Número Único: 1044967-70.2024.8.11.0041 Classe: APELAÇÃO CÍVEL (198) Assunto: [Superendividamento] Relator: Des(a). MARCOS REGE…
ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO QUINTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO Número Único: 1044967-70.2024.8.11.0041 Classe: APELAÇÃO CÍVEL (198) Assunto: [Superendividamento] Relator: Des(a). MARCOS REGENOLD FERNANDES Turma Julgadora: [DES(A). MARCOS REGENOLD FERNANDES, DES(A). LUIZ OCTAVIO OLIVEIRA SABOIA RIBEIRO, DES(A). SEBASTIAO DE ARRUDA ALMEIDA] Parte(s): [BOSCO NUNES DA SILVA - CPF: 328.707.281-15 (APELANTE), FERNANDO DA SILVA BETTINI - CPF: 003.752.731-23 (ADVOGADO), BANCO DO BRASIL SA - CNPJ: 00.000.000/0001-91 (APELADO), MILENA PIRAGINE - CPF: 295.235.348-40 (ADVOGADO), BANCO DAYCOVAL S/A - CNPJ: 62.232.889/0001-90 (APELADO), IGNEZ LUCIA SALDIVA TESSA - CPF: 666.690.228-91 (ADVOGADO), BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A. - CNPJ: 90.400.888/0001-42 (APELADO), FLAVIO NEVES COSTA - CPF: 170.446.138-37 (ADVOGADO), CASH CARD - FINANCIAMENTOS E CARTOES DE CREDITO LTDA. - CNPJ: 06.270.461/0001-60 (APELADO), BANCO SAFRA S.A - CNPJ: 58.160.789/0001-28 (APELADO), ALEXANDRE FIDALGO - CPF: 070.048.838-33 (ADVOGADO)] A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos os autos em epígrafe, a QUINTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, sob a Presidência Des(a). SEBASTIAO DE ARRUDA ALMEIDA, por meio da Turma Julgadora, proferiu a seguinte decisão: POR UNANIMIDADE, DESPROVEU O RECURSO. E M E N T A DIREITO DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. SUPERENDIVIDAMENTO. CRÉDITO CONSIGNADO. INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 14.181/2021. RECURSO DESPROVIDO. I. CASO EM EXAME 1. Apelação Cível interposta por servidor público aposentado contra sentença que indeferiu a petição inicial e extinguiu o processo sem resolução do mérito (art. 330, IV, e art. 485, I, do CPC), em ação de repactuação de dívidas por superendividamento ajuizada com fundamento na Lei nº 14.181/2021, sob alegação de comprometimento de 96,96% da renda líquida mensal. O Apelante requereu, entre outros pedidos, o reconhecimento de cerceamento de defesa, a aplicação do rito especial da Lei do Superendividamento, a limitação de descontos mensais a 40% da renda, a declaração de inconstitucionalidade de decretos presidenciais e a reformulação do plano de pagamento. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 2. Há cinco questões em discussão: (i) definir se houve cerceamento de defesa pela ausência de produção de perícia contábil; (ii) estabelecer se é possível aplicar o rito da Lei nº 14.181/2021 às dívidas oriundas exclusivamente de crédito consignado; (iii) determinar se houve violação ao mínimo existencial diante da renda líquida comprometida; (iv) verificar se o plano apresentado atende aos requisitos legais para homologação judicial compulsória; e (v) analisar a alegação de inconstitucionalidade dos Decretos nº 11.150/2022 e nº 11.567/2023. III. RAZÕES DE DECIDIR 3. O indeferimento da perícia contábil não configura cerceamento de defesa, pois a instrução probatória é própria da segunda fase do procedimento de superendividamento (art. 104-B do CDC), a qual não foi atingida diante da inadequação do plano inicial. 4. A Lei nº 14.181/2021 não se aplica a dívidas oriundas de crédito consignado, conforme expressa exclusão prevista no art. 4º, parágrafo único, I, "h", do Decreto nº 11.150/2022, regulamentador do mínimo existencial. 5. Os contratos de empréstimo consignado são regulados por legislação específica (Lei nº 10.820/2003), a qual já limita o comprometimento da renda e visa prevenir o superendividamento, sendo lícita a margem consignável utilizada. 6. O Apelante não demonstrou situação concreta de superendividamento nos termos do § 1º do art. 54-A do CDC, tampouco apresentou prova mínima de suas despesas básicas ou impacto efetivo no sustento próprio e de eventual núcleo familiar. 7. O plano de pagamento apresentado não atende aos requisitos do art. 104-A e § 4º do art. 104-B do CDC, pois não garante a liquidação integral das dívidas em até cinco anos, limitando-se à genérica proposta de redução de descontos a 40% da renda. 8. A alegação de inconstitucionalidade dos Decretos nº 11.150/2022 e nº 11.567/2023 não se sustenta, por carecer de fundamentos técnicos e jurídicos suficientes, não havendo pronunciamento do STF pela suspensão de sua eficácia até o momento. 9. A limitação de descontos a 40% dos rendimentos líquidos carece de amparo legal, sobretudo diante da legalidade dos contratos consignados celebrados dentro da margem prevista em lei. IV. DISPOSITIVO E TESE 10. Recurso desprovido. Tese de julgamento: 1. A produção de provas técnicas no rito da Lei nº 14.181/2021 só é cabível na fase judicial de tratamento, não configurando cerceamento de defesa o indeferimento em fase anterior. 2. A Lei do Superendividamento não se aplica às dívidas oriundas de crédito consignado, nos termos do art. 4º, parágrafo único, do Decreto nº 11.150/2022. 3. Não se caracteriza superendividamento quando não demonstrada a insuficiência para custear o mínimo existencial, especialmente quando a renda líquida do consumidor ultrapassa o parâmetro de R$ 600,00 definido por decreto. 4. O plano de pagamento judicial compulsório deve prever a quitação integral das dívidas no prazo legal e garantir ao menos o principal corrigido, sendo incabível plano genérico de limitação de descontos sem cálculo efetivo. 5. Os Decretos nº 11.150/2022 e nº 11.567/2023 possuem presunção de constitucionalidade, cuja superação exige argumentos técnicos e robustos, ausentes no caso concreto. Dispositivos relevantes citados: CPC, arts. 330, IV; 485, I; 355; 370; 85, § 11; 98, § 3º; CDC, arts. 54-A, § 1º, 104-A, 104-B; Decreto nº 11.150/2022, art. 4º, parágrafo único, I, "h"; Decreto nº 11.567/2023, art. 3º; Lei nº 10.820/2003. Jurisprudência relevante citada: TJ/MT, RAC 1001560-14.2024.8.11.0041, Rel. Desa. Maria Helena Gargaglione Póvoas, j. 19.02.2025; TJ/SP, RAC 1028496-40.2023.8.26.0576, Rel. Desa. Sandra Galhardo Esteves, j. 07.11.2024; STJ, REsp 1.863.973/SP (Tema 1.085), Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 09.03.2022. R E L A T Ó R I O EXMO. SR. DES. MARCOS REGENOLD FERNANDES Egrégia Câmara: Trata-se de Recurso de Apelação Cível interposto por BOSCO NUNES DA SILVA contra a sentença proferida pelo MM. Juiz de Direito da 3ª Vara Especializada em Direito Bancário da Comarca de Cuiabá/MT, Dr. Alex Nunes de Figueiredo, nos autos da Ação de Repactuação de Dívidas por Superendividamento ajuizada em face de BANCO DO BRASIL S.A., BANCO DAYCOVAL S.A., BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A., CASH CARD - FINANCIAMENTOS E CARTÕES DE CRÉDITO LTDA. e BANCO SAFRA S.A., que indeferiu a petição inicial e julgou extinto o processo sem resolução do mérito, com fundamento nos art. 330, inc. IV, e art. 485, inc. I, do CPC, ao reconhecer a inadequação do plano de pagamento apresentado (vide ID. 288518924). Em suas razões recursais de ID. 288518926, o Apelante, servidor público estadual aposentado, alega comprometimento de 96,96% de seus rendimentos líquidos mensais (R$ 8.525,57 de R$ 8.792,86), pleiteando a repactuação de suas dívidas com fundamento na Lei n. 14.181/2021. Irresignado com o indeferimento da petição inicial, requer , em suma, (a) o reconhecimento de cerceamento de defesa pela ausência de realização de perícia contábil dos contratos em questão, com consequente anulação da sentença e retorno dos autos à origem; (b) subsidiariamente, a reforma da sentença para reconhecer sua condição de superendividado nos termos da Lei n. 14.181/2021; (c) a concessão de tutela de urgência para limitação dos descontos em folha de pagamento ao patamar de 40% de seus rendimentos líquidos; (d) o reconhecimento da revelia do Banco Bradesco, que não compareceu à audiência de conciliação nem apresentou contestação; (e) a declaração de inconstitucionalidade dos Decretos n. 11.150/2022 e n. 11.567/2023, que regulamentam o conceito de mínimo existencial; (f) a confirmação da tutela de urgência por ocasião do julgamento do mérito; (g) a inversão da condenação em custas e honorários advocatícios em razão do provimento do recurso; e (h) o regular prosseguimento do feito com observância do rito especial previsto na Lei do Superendividamento. Com exceção dos Apelados BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A. e CASH CARD - FINANCIAMENTOS E CARTÕES DE CRÉDITO LTDA., as instituições financeiras BANCO DAYCOVAL S.A., BANCO DO BRASIL S.A. e BANCO SAFRA S.A. apresentaram contrarrazões nos IDs. 288518932, 288518934, 288518935, respectivamente. Recurso tempestivo e isento de preparo (ID. 288789879). É o relatório. Inclua-se em pauta para julgamento. V O T O R E L A T O R V O T O (PRELIMINAR) EXMO. SR. DES. MARCOS REGENOLD FERNANDES (RELATOR) Augusta Câmara: A Apelante alega ter havido cerceamento de defesa ao não oportunizar a produção de perícia contábil, que comprovaria “se de fato os contratos se encontram quitados ou se existe um saldo devedor existente”. Tal insurgência não prospera. O Conselho Nacional de Justiça elenca os paradigmas trazidos pela novel legislação, entre os quais se encontram a preservação do mínimo existencial e a previsão de um sistema binário para tratamento do superendividamento, composto por duas fases, a conciliatória, que pode ser extrajudicial e a fase de tratamento, esta última necessariamente judicial e contenciosa. No caso, a presente ação não chegou a adentrar na fase de tratamento, de maneira que não merece prosperar a irresignação que pretende a anulação da sentença, sob o argumento de cerceamento de defesa, porquanto a realização de perícia contábil, só seria possível na segunda fase do processamento do rito, qual seja quando instaurada a fase judicial do processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas, nos termos do art. 104-B do CDC. “Art. 104-B. Se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)”. Ainda, o julgamento antecipado é faculdade atribuída ao magistrado sempre que entenda desnecessária a produção de prova, pelo fato de considerar suficientes aquelas apresentadas ainda na fase postulatória, ou, especialmente, quando a causa trata de matéria essencialmente de direito. Decorre dos poderes de direção do processo que lhes são conferidos especialmente pelo art. 370 do CPC, in verbis: “Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito. Parágrafo único. O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias.” Destarte, o fato de a parte postular pela produção de provas, não impede que o magistrado, firme no art. 355 do Diploma Processual, decida pela antecipação do julgamento da causa. Dessa forma, rejeita-se a preliminar. É como voto. V O T O (MÉRITO) EXMO. SR. DES. MARCOS REGENOLD FERNANDES (RELATOR) Colenda Câmara: Superada a preliminar e preenchidos os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso e adentro ao mérito recursal. Conforme relatado, BOSCO NUNES DA SILVA pretende a reforma da sentença para que seja reconhecida sua condição de superendividado, com a aplicação da Lei n. 14.181/2021, alegando comprometimento de 96,96% de seus rendimentos líquidos. Constou da sentença objurgada, in verbis: “Vistos, etc. BOSCO NUNES DA SILVA ajuizou AÇÃO DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS POR SUPERENDIVIDAMENTO em face de BANCO DO BRASIL S.A. e outros (4). Recebida a inicial, os autos foram encaminhados ao CEJUSC para tentativa de composição do conflito. Realizada a audiência, sem conciliação, voltou-me o processo concluso. É o necessário relato. Decido. DA EXIGÊNCIA DO PLANO DE PAGAMENTO COMPLETO E ADEQUADO A Lei nº 14.181/2021, que alterou o Código de Defesa do Consumidor para instituir o regime jurídico de prevenção e tratamento do superendividamento, estabelece requisitos claros e objetivos para que o consumidor possa pleitear a repactuação de suas dívidas. O artigo 104-B, §1º, do CDC, determina que o consumidor deve apresentar um plano de pagamento que contenha, obrigatoriamente: 1. A relação detalhada de todas as dívidas abrangidas; 2. A discriminação da renda mensal do consumidor e das despesas essenciais para manutenção de seu mínimo existencial; 3. Uma proposta CONCRETA de pagamento proporcional, respeitando os critérios de equidade entre os credores; 4. A indicação do prazo para quitação das dívidas, respeitando o limite de 5 anos; 5. Demonstração de que o plano não compromete a dignidade do consumidor nem impõe encargos excessivos a qualquer das partes. Em face da severidade do procedimento especial, com possibilidade de submissão dos credores ao plano judicial compulsório caso não haja acordo entre as partes, não se admite proposta de plano de pagamento fora dos parâmetros legais, sendo imperiosa a estrita observância aos preceitos do 104-A, caput, e art. 104-B , § 4º, do CDC No caso concreto, verifica-se que a parte autora BOSCO NUNES DA SILVA apresentou um plano de pagamento, porém sem observância plena dos requisitos exigidos pela legislação. O plano não define critérios de proporcionalidade na distribuição dos valores entre os credores. Além disso, não há clareza quanto ao prazo proposto e ao impacto financeiro real sobre a sua capacidade de pagamento. Assim, a ausência desses elementos inviabiliza a apreciação judicial do plano e impede qualquer determinação de implantação obrigatória, pois não há elementos suficientes para garantir que os credores serão tratados de forma equitativa e que o mínimo existencial do consumidor será resguardado. Assim, ainda que, em uma análise preliminar, a pretensão pareça legítima, especialmente considerando que a remuneração da parte requerente estaria comprometida quase integralmente, não entendo que se trate de situação que justifique a instauração do processo de superendividamento, conforme disciplinado nos artigos 104-A e 104-B do Código de Defesa do Consumidor. Explico! É que a ação de repactuação de dívidas não tem como finalidade meramente impor aos credores a aceitação do montante que a parte devedora deseja pagar, pelo contrário, a repactuação deve ser integralmente cumprida no prazo de até 60 (sessenta) meses, exigindo que o devedor apresente condições viáveis para a quitação dos débitos dentro desse período. Dessa forma, o plano de pagamento deve demonstrar um compromisso real com a adimplência das obrigações assumidas, não podendo simplesmente resultar na perpetuação das dívidas sem uma perspectiva concreta de liquidação. Dessa forma, o pedido apresentado pela parte autora BOSCO NUNES DA SILVA em sua demanda principal não pode ser admitido, uma vez que não se caracteriza como um plano de pagamento adequado. Isso porque, considerando o montante total da dívida, o valor proposto para quitação no período de 60 meses seria insuficiente para a liquidação integral do débito. Ademais, deve-se levar em conta que, além do saldo principal, ainda incidirão correção monetária, juros de mora, juros remuneratórios e demais encargos aplicáveis. Portanto, o plano de pagamento não obedece ao requisito legal apontado. Assim a jurisprudência: (...) Em conclusão, o plano de pagamento apresentado é absolutamente inviável e incapaz de garantir a quitação integral das dívidas dentro do prazo máximo de 5 anos. E isso sem sequer considerar os juros, a correção monetária e os demais acréscimos legais que incidirão ao longo desse período. Admitir tal proposta seria um verdadeiro atentado ao direito dos credores, que firmaram contrato confiando na boa-fé do devedor e nos princípios fundamentais que regem as relações contratuais. Aceitá-la significaria, na prática, esvaziar de sentido a segurança jurídica e comprometer a própria essência do equilíbrio contratual, e ainda ler de forma diferente a Lei n.º 14.181/2021, que admitiu a repactuação da dívida em razão do superendividamento, mas sem desprezar o direito que o credor tem de receber integralmente o valor corrigido da sua dívida, ainda que no prazo elastecido de 60 meses. A lei não deu ao devedor “carta branca” para deixar de pagar integralmente suas dívidas, mas lhe proporcionou pagá-las de forma elastecida, com as particularidades cabíveis, mas honrá-las integralmente, até o fim, com os acréscimos cabíveis. Diante do exposto, com fundamento no artigo 330, inciso IV, e artigo 485, inciso I, do Código de Processo Civil, INDEFIRO A PETIÇÃO INICIAL e JULGO EXTINTO O PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, tendo em vista a inadequação do plano de pagamento apresentado, que não atende aos requisitos obrigatórios estabelecidos pela Lei nº 14.181/2021. Condeno a parte autora BOSCO NUNES DA SILVA no pagamento das custas e despesas processuais, e honorários advocatícios os quais arbitro em 10% do valor atualizado da causa, conforme determina o inciso § 2º do artigo 85 do Código de Processo Civil, ficando, pois, suspensa a exigibilidade das verbas sucumbenciais da parte Autora, que somente poderão ser executadas se em até 05 (cinco) anos, contados do trânsito em julgado desta, o credor provar a alteração no estado de hipossuficiência da Autora, nos termos do art. 98, § 3º, do CPC. Revogo eventual liminar eventualmente concedida.” (ID. 288518924). Pois bem. Inicialmente, vejo que o Apelante pretende o reconhecimento da revelia do Banco Bradesco S.A., que não compareceu à audiência de conciliação nem apresentou contestação. Sem delongas, verifica-se que tal instituição não integra o polo passivo da demanda, conforme ressai da própria petição inicial. Logo, descabe a decretação de revelia de quem não é parte no processo, sendo improcedente tal alegação. Prosseguindo, é necessário esclarecer que a Lei n. 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento, introduziu no ordenamento jurídico mecanismos para prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores. Conforme preceitua o § 1º do art. 54-A do Código de Defesa do Consumidor: “Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”. A seu turno, o Decreto n. 11.567/2023, que alterou o Decreto n. 11.150/2022, estabelece no art. 3º que: “No âmbito da prevenção, do tratamento e da conciliação administrativa ou judicial das situações de superendividamento, considera-se mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a R$ 600,00 (seiscentos reais). (Redação dada pelo Decreto n. 11.567/2023)”. Do cotejo dos autos, contudo, constato que o recurso não comporta provimento. Inobstante todo o arrazoado, denota-se que a questão central do recurso reside na aplicabilidade da Lei n. 14.181/2021 aos contratos objeto da lide. Ocorre que, no caso em análise, a integralidade das dívidas do Apelante deriva de operações de crédito consignado, modalidade expressamente excluída do procedimento de repactuação. Ao ponto, o Decreto n. 11.150/2022, que regulamenta a preservação do mínimo existencial, estabelece de forma inequívoca em seu art. 4º, parágrafo único, inc. I, alínea "h", a exclusão das dívidas “decorrentes de operação de crédito consignado regido por lei específica” da aferição da preservação do mínimo existencial. Esclareça-se que os empréstimos consignados são regidos por legislação específica (Lei n. 10.820/2003 e correlatas), que já estabelece limites rigorosos de comprometimento da renda através da margem consignável, precisamente para prevenir situações de superendividamento. Tal modalidade creditícia possui garantia real mediante desconto automático em folha de pagamento, o que justifica taxas de juros menores e confere maior segurança jurídica à operação. A jurisprudência deste Tribunal tem sido consistente nesse entendimento: “APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE READEQUAÇÃO DE PARCELAS DE EMPRÉSTIMOS BANCÁRIO E DANOS MORAIS – ALEGAÇÃO DE SUPERENDIVIDAMENTO – PRETENSÃO A LIMITAÇÃO DE DESCONTOS - SUPERENDIVIDAMENTO - AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO – MARGEM CONSIGNÁVEL OBSERVADA PARA OS EMPRÉSTIMOS CONSIGNADOS – RECURSO ADESIVO – DANO MORAL – NÃO ACOLHIMENTO - RECURSOS DE APELAÇÕES CÍVEIS PROVIDOS E RECURSO ADESIVO DESPROVIDO. Conforme Decreto Estadual n. 691/2016, alterado pelo Decreto 602 de 18/08/2020, no âmbito da Administração Pública Direta, Autárquica e Fundacional do Poder Executivo do Estado de Mato Grosso, os descontos de empréstimo e cartão de crédito efetuados diretamente no holerite devem ser limitados a 35% e 15%, respectivamente, do rendimento líquido do devedor, para não comprometer o seu sustento com o superendividamento. A limitação de 35% dos rendimentos é admissível apenas em relação aos empréstimos consignados em folha de pagamento, não computando nesta margem outras modalidade que sejam debitadas diretamente em conta-corrente e cartões de crédito visto que estes possuem margem de 15%. Constatado que no caso os empréstimos consignados estão dentro da margem consignável não há como reconhecer superendividamento da autora impondo-se a improcedência da demanda. Não há falar em danos morais pleiteado em Recurso Adesivo diante da reforma da sentença para julgar a demanda improcedente.” (TJ/MT. RAC 1001560-14.2024.8.11.0041. Relatora Desa. Maria Helena Gargaglione Póvoas, Segunda Câmara de Direito Privado. Julgamento: 19/02/2025, DJe: 19/02/2025). Ainda que superada a questão da exclusão dos contratos consignados, constata-se que o Apelante não demonstrou o preenchimento dos requisitos essenciais para caracterização do superendividamento nos termos do § 1º do art. 54-A do CDC, in verbis: “Art. 54-A. Este Capítulo dispõe sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021) § 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021).” Aliás, não se ignora que o Apelante, como servidor público estadual aposentado, aufere renda bruta de R$ 12.170,07, que subtraído os descontos obrigatórios R$ 2.213,90, remanesce o rendimento líquido de R$ 9.956,17, não sendo contabilizado os valores auferidos sob a rubrica “VI GRAT ART 7 LC” na monta de R$ 4.358,60 e “AUX ALIMENTACAO” na quantia de R$ 450,00, que acrescem ainda o valor líquido de R$ 4.808,60 (vide fichas financeiras ref. Janeiro/agosto de 2024 ao ID. 288518399); valores substancialmente superiores ao mínimo existencial de R$ 600,00 estabelecido no Decreto n. 11.567/2023. Destarte, ainda que se considere o comprometimento alegado de 96,96% da renda, restaria ao Apelante valor superior ao mínimo legal para sua subsistência. Além do mais, o Apelante não comprovou adequadamente suas despesas familiares essenciais, a existência de dependentes, ou o impacto concreto no sustento básico, limitando-se a alegações genéricas sobre dificuldades financeiras, sendo que, ainda que militasse em favor daquele a inversão do ônus da prova, não está o mesmo isento de produzir prova mínima de sua condição de superendividado. A propósito: “CONTRATOS BANCÁRIOS. REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS. LEI 14.181/21 DO SUPERENDIVIDAMENTO QUE POSSUI PROCEDIMENTO PRÓPRIO. MÍNIMO EXISTENCIAL. DECRETO LEI 11.567/23. VALOR QUE PODE SER ALTERADO, DESDE QUE COMPROVADO NOS AUTOS OS GASTOS BÁSICOS. AUTOR QUE NÃO DEMONSTROU QUANTO TEM DE GASTO ESSENCIAL MENSAL. FALTA DE COMPROVAÇÃO. LIMITAÇÃO DOS DESCONTOS QUE NÃO PODE OCORRER EM DECORRÊNCIA DE INCOMPATIBILIDADE DE RITO. SENTENÇA REFORMADA. Para que a Lei 14.181/21 possa ser aplicada, o autor deve comprovar que a cobrança de dívidas está comprometendo o seu mínimo existencial, de acordo com o procedimento específico para tal pedido, que não pode ser feito de forma genérica. Os documentos acostados aos autos não demonstram as movimentações do autor. Sequer foi acostado cálculo de suas despesas básicas necessárias. Autor que não comprovou qual seria o valor mínimo para sua manutenção básica, se sujeitando, assim, ao disposto no Decreto Lei 11.567/23. Mínimo existencial que pode ser modificado, desde que seja comprovado nos autos os gastos básicos para sua manutenção. Falta de comprovação nos autos . Autor que acrescentou contratos nos autos regidos pela Lei 10.820/03, alterada pela lei 13.172/15 e, posteriormente, pela Lei 14.431/22 . Incompatibilidade dos ritos de limitação dos descontos com o superendividamento, conforme expresso no artigo 4º parágrafo único, e incisos do Decreto Lei 11.150/2022. Sentença reformada para julgar improcedente a ação. Apelação do autor não provida e provida a dos réus.” (TJ/SP. RAC 1028496-40.2023.8.26.0576. Rel. Desa. Sandra Galhardo Esteves. 12ª Câmara de Direito Privado. Julgamento: 07/11/2024, DJe: 07/11/2024; g.n.). Sublinha-se que o art. 104-A do CDC exige que o consumidor apresente “proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas”. No caso vertente, como bem asseverado pelo juízo sentenciante, o plano apresentado não demonstra viabilidade concreta para quitação integral dos débitos no prazo legal, dado que a proposta limita-se a reduzir genericamente os descontos a 40% da renda (ID. 288518850), sem considerar a integralidade dos valores principais, juros, correção monetária e demais acréscimos legais que incidirão durante o período quinquenal. Conforme orientação jurisprudencial, o plano judicial compulsório deve assegurar aos credores, no mínimo, o valor principal devido, nos termos do § 4º do art. 104-B do CDC: “Art. 104-B. Se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021) (...) § 4º O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual previsto no art. 104-A deste Código, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)”. Entretanto, a proposta apresentada por BOSCO NUNES DA SILVA frustra esta exigência legal, inviabilizando a recuperação integral do capital emprestado. Quanto à arguição de inconstitucionalidade dos Decretos n. 11.150/2022 e n. 11.567/2023, impende destacar que os referidos atos normativos gozam de presunção de constitucionalidade e legitimidade, calhando pontuar que o estabelecimento do mínimo existencial em R$ 600,00 decorreu de estudos técnicos elaborados pelo Poder Executivo, considerando impactos econômicos sistêmicos e a necessidade de segurança jurídica nas relações creditícias. Sobre essa temática, encontram-se em tramitação no Supremo Tribunal Federal as ADPFs n 1.005 e n. 1.006, que questionam a constitucionalidade dos referidos decretos, porém sem que tenha havido suspensão liminar de sua eficácia. Com a devida vênia, a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos constitui matéria de alta complexidade, que não pode ser declarada com base em ilações ou inferências pessoais, exigindo fundamentação técnica e jurídica robusta. Na espécie, o Apelante limitou-se a alegações genéricas, sem demonstrar de forma concreta os vícios apontados. Com efeito, mantém-se plena a vigência e aplicabilidade dos Decretos n. 11.150/2022 e n. 11.567/2023. Ao arremate, diante da inaplicabilidade da Lei nº 14.181/2021 aos contratos de crédito consignado que compõem a integralidade das dívidas do Apelante, melhor sorte não assiste o Apelante no que concerne ao pleito de tutela de urgência para limitação dos descontos a 40% dos rendimentos líquidos, precisamente por não encontrar amparo legal, dado que, conforme demonstrado, os contratos consignados observam os limites estabelecidos na legislação específica, não havendo abusividade ou ilegalidade nos descontos praticados. Para contratos não consignados, aplica-se o entendimento do STJ no Tema n. 1.085 (REsp 1.863.973-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 2º Seção, j. 09/03/2022, DJe 15/03/2022), que reconhece a licitude dos descontos em conta corrente desde que previamente autorizados pelo mutuário, não sendo aplicável a limitação de 30% específica para empréstimos consignados. Confira-se: “São lícitos os descontos de parcelas de empréstimos bancários comuns em conta-corrente, ainda que utilizada para recebimento de salários, desde que previamente autorizados pelo mutuário e enquanto esta autorização perdurar, não sendo aplicável, por analogia, a limitação prevista no § 1º do art. 1º da Lei n. 10.820/2003, que disciplina os empréstimos consignados em folha de pagamento.” Diferentemente dos casos em que este Tribunal tem anulado sentenças por extinção prematura sem observância do rito bifásico da Lei do Superendividamento, na hipótese vertente a exclusão legal é expressa e definitiva, não havendo margem para aplicação do procedimento especial aos contratos consignados e, por corolário, não havendo razões para modificar a sentença vergastada, que deve ser mantida na íntegra, tal como proferida. Por todo o exposto, REJEITO a preliminar e, no mérito, NEGO PROVIMENTO ao Recurso de Apelação interposto por BOSCO NUNES DA SILVA, mantendo integralmente a sentença recorrida por estes e seus próprios fundamentos. Nos termos do art. 85, § 11, do CPC, majoro a condenação em honorários advocatícios para 15% do valor atualizado da causa, mantida a suspensão da exigibilidade, tendo em vista a gratuidade da justiça deferida (art. 98, § 3º, do CPC). É como voto. Data da sessão: Cuiabá-MT, 10/06/2025
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