Processo nº 5036394-44.2025.4.04.7000
ID: 331616026
Tribunal: TRF4
Órgão: 3ª Vara Federal de Curitiba
Classe: PROCEDIMENTO COMUM CíVEL
Nº Processo: 5036394-44.2025.4.04.7000
Data de Disponibilização:
22/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
DAVID ZANGIROLAMI
OAB/RJ XXXXXX
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PROCEDIMENTO COMUM Nº 5036394-44.2025.4.04.7000/PR
AUTOR
: DANIELLE MARTINS BANGE
ADVOGADO(A)
: DAVID ZANGIROLAMI (OAB RJ080049)
DESPACHO/DECISÃO
TRATAMENTO: CRIZOTINIBE
DIAGNÓSTICO: CÂNCER DE PULMÃ…
PROCEDIMENTO COMUM Nº 5036394-44.2025.4.04.7000/PR
AUTOR
: DANIELLE MARTINS BANGE
ADVOGADO(A)
: DAVID ZANGIROLAMI (OAB RJ080049)
DESPACHO/DECISÃO
TRATAMENTO: CRIZOTINIBE
DIAGNÓSTICO: CÂNCER DE PULMÃO NÃO PEQUENAS CÉLULAS (CID10 C34)
REGISTRO: SIM
USO ON LABEL: SIM
ANALISADO PELA CONITEC: NÃO
ESGOTAMENTO DAS ALTERNATIVAS TERAPÊUTICAS: SIM
EVIDÊNCIA SOBRE A EFICÁCIA EM RELAÇÃO AO AUMENTO DE QUALIDADE DE VIDA, DE FUNCIONALIDADE OU REDUÇÃO DE COMPLICAÇÕES DA DOENÇA: BAIXA
Art. 103-A da Constituição Federal:
"O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional,
aprovar súmula
que, a partir de sua publicação na imprensa oficial,
terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário
e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei."
Súmula nº 61 do STF:
"
A concessão judicial de medicamento registrado na Anvisa, mas não incorporado às listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, deve observar as teses firmadas no julgamento do Tema 6 da Repercussão Geral (RE 566.471)."
1. RELATÓRIO
Trata-se de procedimento ordinário, ajuizado por
DANIELLE MARTINS BANGE
, em face de UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO, objetivando, em síntese, o fornecimento de CRIZOTINIBE, conforme recomendado em receituário médico (
evento 1, RECEIT22
) por apresentar CÂNCER DE PULMÃO NÃO PEQUENAS CÉLULAS (CID10 C34) (
evento 1, ATESTMED19
,
evento 1, ATESTMED20
). Alega não ter condições financeiras para arcar com o custo do tratamento receitado (
evento 1, DECLPOBRE3
,
evento 1, CHEQ7
,
evento 1, CHEQ6
,
evento 1, CHEQ8
) sendo que lhe foi negado o fornecimento pelo Sistema Único de Saúde (
evento 1, DECL18
). Requereu tutela de urgência e juntou documentos.
Foi determinada a emenda da inicial -
evento 5, DESPADEC1
.
A parte autora anexou prontuário médico (
evento 4, PRONT3
), nota técnica para casos similares (
evento 11, NOTATEC3
,
evento 11, NOTATEC4
,
evento 11, NOTATEC5
), relatório médico para solicitação judicial (
evento 11, OUT6
), comprovante de residência (
evento 11, END2
).
A União apresentou sua defesa no
evento 29, CONTES1
.
Foi apresentada análise técnica (laudo pericial ou nota técnica) no
evento 31, LAUDOPERIC1
.
É o breve relatório. Decido.
FUNDAMENTAÇÃO
O CPC/2015, no art. 294 e seguintes, estabelece os procedimentos e requisitos referentes à concessão de tutela provisória, que pode fundamentar-se na urgência ou na evidência.
A tutela de urgência é regulada no art. 300 do CPC/15, nos seguintes termos:
Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
§ 1o Para a concessão da tutela de urgência, o juiz pode, conforme o caso, exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer, podendo a caução ser dispensada se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la.
§ 2o A tutela de urgência pode ser concedida liminarmente ou após justificação prévia.
§ 3
o
A tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão.
DA SOLIDARIEDADE E DA COMPETÊNCIA
TEMA 793 STF
O STF fixou tese de repercussão geral no RE nº 855.718 (Tema 793), nos seguintes termos:
“Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde e, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.”
Diante disso, percebe-se, com base nesse julgado, a parte autora pode, em tese, ajuizar ação contra qualquer um dos entes que compõem o SUS. Todavia, cabe ao juiz verificar se a pessoa jurídica de direito público responsável pelo financiamento de determinada tecnologia está no polo passivo. Caso não esteja, o juiz deve determinar a sua inclusão, ainda que isso signifique deslocamento de competência.
Em março/2022, no julgamento de diversas reclamações (AgRg nas RCLs 49.289, 49.890, 50.415, 50.416, 50.463, 50.412, 50.726, 50.907, 50.866, 50.457, 50.856, 50.908, 50.481, 50715, 50.458, 50.649, 50.414 e 49.909) o Supremo Tribunal Federal reafirmou a tese fixada no julgamento do Tema 793, reconhecendo a competência da Justiça Federal nas ações que tenham por objeto:
a) medicamentos não padronizados no SUS;
b) medicamentos padronizados no SUS de competência da União; e
c) medicamentos oncológicos.
TEMA 1234 STF
Não obstante, posteriormente, o STF afetou o RE nº 1.366.243 como tema de repercussão geral (Tema 1234) para tratar especificamente acerca da legitimidade da União para figurar como ré nos processos que pleiteiam tecnologias que não estão incluídas nas políticas públicas. Como consequência, o RE trata da competência para julgar esses processos, a teor do art. 109, I da CF.
TEMA 1234 STF - TUTELA PROVISÓRIA INCIDENTAL
Em 17/04/2023, o Ministro Relator proferiu decisão provisória, que foi referendada pelo colegiado, nos seguintes termos:
"O Tribunal, por unanimidade, referendou a decisão proferida em 17.4.2023, no sentido de conceder parcialmente o pedido formulado em tutela provisória incidental neste recurso extraordinário, para estabelecer que, até o julgamento definitivo do Tema 1234 da Repercussão Geral, a atuação do Poder Judiciário seja regida pelos seguintes parâmetros:
(i)
nas demandas judiciais envolvendo medicamentos ou tratamentos
padronizados
: a composição do polo passivo deve observar a repartição de responsabilidades estruturada no Sistema Único de Saúde, ainda que isso implique deslocamento de competência, cabendo ao magistrado verificar a correta formação da relação processual, sem prejuízo da concessão de provimento de natureza cautelar ainda que antes do deslocamento de competência, se o caso assim exigir;
(ii)
nas demandas judiciais relativas a medicamentos
não incorporados
:
devem ser processadas e julgadas pelo Juízo, estadual ou federal, ao qual foram direcionadas pelo cidadão, sendo vedada, até o julgamento definitivo do Tema 1234 da Repercussão Geral, a declinação da competência ou determinação de inclusão da União no polo passivo;
(iii) diante da necessidade de evitar cenário de insegurança jurídica, esses parâmetros devem ser observados pelos processos
sem sentença prolatada
; diferentemente, os processos
com sentença prolatada até a data desta decisão (17 de abril de 2023)
devem permanecer no ramo da Justiça do magistrado sentenciante até o trânsito em julgado e respectiva execução (adotei essa regra de julgamento em: RE 960429 ED-segundos Tema 992, de minha relatoria, DJe de 5.2.2021);
(iv) ficam mantidas as demais determinações contidas na decisão de suspensão nacional de processos na fase de recursos especial e extraordinário".
TEMA 1234 STF - DECISÃO
Em 16/09/2024, o tema 1234 foi julgado. A ata da decisão de julgamento foi publicada em 19/09/2024. Nesse processo, que tratava unicamente de medicamentos, foram trazidos novos contornos à competência e à legitimidade passiva dos processos que pleiteiam medicamentos incorporados ou não.
RESPONSABILIDADE POR MEDICAMENTOS INCLUÍDOS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Nos termos do tema 1234, a responsabilidade de custeio por medicamentos incorporados com pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) foi a seguinte:
-medicamentos do grupo 1A do Componente Especializado (CEAF), medicamentos do Componente Estratégico (CESAF) e medicamentos pleiteados por indígenas - custeio da União.
-medicamentos do grupo 1B e 2 do CEAF - custeio do estado.
-medicamentos do Componente Básico (CBAF) e do grupo 3 do CEAF - custeio do município.
RESPONSABILIDADE POR MEDICAMENTOS NÃO INCORPORADOS OU INCORPORADOS SEM PACTUAÇÃO NA CIT
-medicamentos cujo custo anual de tratamento supere 210 salários-mínimos - custeio da União
-medicamentos cujo custo anual de tratamento seja inferior a 210 salários-mínimos - custeio do estado, com ressarcimento pela União pelo Fundo Nacional de Saúde de:
a) 65%, caso o tratamento anual custe entre 7 e 210 salários-mínimos;
b) 80%, caso o tratamento anual custe entre 7 e 210 salários-mínimos e seja oncológico, em processos ajuizados até 10/06/2024.
c) em percentual a ser fixado em pactuação na CIT, para processos ajuizados após 10/06/2024 e que pleiteiam medicamentos oncológicos.
-medicamentos cujo custo anual seja inferior a 7 salários-mínimos - custeio do estado sem ressarcimento pela União.
De acordo com a decisão, medicamentos não incorporados devem ser entendidos como aqueles que não constam na política pública do SUS; medicamentos previstos nos PCDTs para outras finalidades; medicamentos sem registro na ANVISA; e medicamentos off label sem PCDT ou que não integrem listas do componente básico.
MODULAÇÃO DE EFEITOS DO TEMA 1234 STF
Quando do julgamento do RE afetado, houve modulação dos efeitos unicamente em relação à competência. Sobre o ponto, o voto assim dispôs:
"Quanto a estes processos e unicamente quanto à competência jurisdicional, para que não haja qualquer prejuízo às partes, mais notadamente os milhares de cidadãos brasileiros que ajuizaram ações em foros competentes, de acordo com a cautelar firmada por mim e ratificada pelo Plenário do STF, tenho que, diante das dramáticas situações de saúde e de vida presentes em cada demanda e, considerando os posicionamentos recentes do STF sobre a consequência do julgamento pelo STF em controle difuso ou concentrado de constitucionalidade, tenho que os efeitos dos acordos, unicamente quanto à modificação de competência (item 1, caput, da tese a seguir proposto), somente incidirão sobre os processos ajuizados após a publicação da ata deste julgamento."
RESPONSABILIDADE POR MEDICAMENTOS SEM REGISTRO NA ANVISA
Nesses casos, segue-se o tema 500 do STF, que diz ser da União a legitimidade passiva para figurar no feito, bem como da Justiça Federal a competência para processamento e julgamento.
RESPONSABILIDADE POR PROCEDIMENTOS, ÓRTESES, PRÓTESES, CIRURGIAS, EXAMES E INSUMOS
O tema 1234 do STF tratou unicamente de medicamentos. As demais tecnologias em saúde continuam seguindo o que foi fixado em termos de competência no tema 793 STF. Segundo ele, como já se viu, o feito deve ser direcionado ao ente que é responsável financeiro pela prestação.
PRODUTOS À BASE DE CANNABIS
Em reiterados conflitos de competência, o STJ vem decidindo que a mera autorização na ANVISA para uso do produto não afasta o fato de que não há registro junto ao órgão regulamentador, atraindo, dessa forma, a incidência do tema 500 do STF:
EMENTA ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. MEDICAMENTO NÃO REGISTRADO NA ANVISA. TEMA 500/STF. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. CONFLITO CONHECIDO. COMPETÊNCIA DO JUIZ FEDERAL, ORA SUSCITADO. 1. Cinge-se à controvérsia em definir a competência para o processamento e o julgamento de ação ajuizada contra a União e o Estado de Santa Catarina, objetivando a concessão do medicamento Carmen’s Medicinals CBN 1000 mg e CBD 2000 mg, derivados de Cannabis. 2. A jurisprudência consolidada deste STJ, à luz do tema 500/STF, entende que as ações, visando ao fornecimento de medicamentos não registrados na ANVISA, como é o caso dos autos, devem ser propostas contra a União, atraindo, portanto, a compe tência da Justiça Federal para processá-las e julgá-las. 3. Conflito de competência conhecido para declarar a competência do Juiz Federal do 2º Núcleo de Justiça 4.0 de Santa Catarina - SJ/SC, ora suscitado.
Por outro lado, o STJ decidiu que não se aplica o tema 1234 do STF aos pedidos de produtos à base de canabidiol, porque ele abarca somente a concessão de medicamentos registrados pela ANVISA.
Cito, ainda, casos análogos em que o STJ entendeu que em caso de produtos à base de Cannabis deve incidir o tema 500 do STF, com a consequente inclusão da União no polo passivo: CC 212.251/PB, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJEN 28/04/2025; CC 212008/MG, relator Ministro Teodoro Silva Santos, DJEN 23/04/2025; CC 209.792/RS relator Ministro Paulo Sérgio Domingues, DJEN 12/03/2025; CC 212.018/PB, relator Ministro Benedito Gonçalves, DJEN 06/05/2025; CC 212.207/PB, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJEN 10/04/2025; CC 210147, relator Ministro Francisco Falcão, DJEN 19/02 /2025; CC 205.152/SC, relator Ministro Gurgel de Faria, DJe de 17/9/2024.
Nesses casos, segue-se o tema 500 do STF, que diz ser da União a legitimidade passiva para figurar no feito, bem como da Justiça Federal a competência para processamento e julgamento.
COMPETÊNCIA DO CASO
O presente feito foi originalmente ajuizado na Justiça Federal, em 03/07/2025, e pretende a obtenção de medicamento não incluído nas políticas públicas. Dessa forma, a União deve figurar no polo passivo do feito, tendo em vista que o valor da causa é superior a 210 salários mínimos.
DO DIREITO À SAÚDE
O direito à saúde foi consagrado como um direito social, conforme o art. 6º, da Constituição Federal, ao lado dos direitos à educação, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância e à assistência aos desamparados.
Mais adiante, o art. 196, da mesma carta, estabelece:
“Art. 196.
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
E ainda:
“Art. 198. As ações e serviços públicos integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
(…)
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;”.
Da leitura desses dispositivos, depreende-se que, em momento algum, o constituinte quis se referir ao direito à saúde como aquele que englobaria toda e qualquer ação que objetivasse a promoção ou a recomposição da saúde. Significa dizer que esse direito não é ilimitado, como muitos querem crer, mas que está condicionado ao preenchimento de alguns requisitos, bem como à existência de recursos.
Especificamente sobre o art. 198, que trata da integralidade do atendimento de saúde, João Pedro Gebran Neto assim já se posicionou em sua obra Direito à Saúde – Análise à luz da judicialização, 1ª ed. p. 127:
“Outro elemento assegurado pela Carta Política é o chamado princípio da integralidade ou atendimento integral.
(...)
Ora, da simples leitura do texto é possível verificar que o atendimento integral previsto na Constituição não tem por escopo a garantia de todo e qualquer tipo de atendimento para os indivíduos, mas uma diretriz, um vetor, um caminho que deve ordenar as políticas públicas.
Felipe Dutra Asensi assevera que o princípio da integralidade “se traduz na ideia de que o indivíduo deve ser visto como uma totalidade bio-sociopsíquica, além de ter direito aos serviços de saúde de baixa, média e alta complexidade de forma humanizada. Ao mesmo tempo, tal princípio preconiza que os problemas de saúde vão além da mera presença ou ausência de doença, pois envolvem condicionantes sociais de múltiplas naturezas. Buscou-se, ainda, promover medidas que afastassem a exclusividade da noção de especialidade médica no cuidado da saúde, de modo a constituir uma atenção em saúde mais integral, que considerasse o usuário como um sujeito partícipe do seu processo de prevenção, proteção e recuperação”.
(…)
Isto não se confunde com a noção de direito a todo tipo de tratamento ou dever estatal prestacional amplo e irrestrito no tocante à saúde. Aliás, não há país no mundo que garanta direito nesta proporção. O que se deve garantir é a realização de políticas públicas preventivas, protetivas e de recuperação, num programa que seja o mais abrangente possível.”
A noção de direito ilimitado é contrária à análise econômica, uma vez que toda a realização de um direito implica custos (inclusive os de liberdade), e os recursos, como se sabe, são limitados. Dessa maneira, o juiz quando enfrenta a difícil tarefa de concretizar a norma que se refere ao direito à saúde deve dar ênfase à ideia de escassez de recursos e à análise dos limites e possibilidades de sua atuação.
CONDICIONANTES
Uma vez visto que o SUS não deve fornecer todos os tratamentos médicos existentes, resta saber quais são os requisitos mínimos aos quais o juiz deve se ater no momento de apreciação do pedido.
Num primeiro momento, há que se dar o devido destaque aos julgados do STF e do STJ sobre o tema.
O STF, em 2010, na Suspensão de Tutela Antecipada 175, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, reconheceu que o Poder Judiciário pode deferir medida que vise tratamento de saúde não contemplado nas políticas públicas do SUS. O voto trata Em seu voto, o Ministro ressalta a importância da avaliação desse tipo de pedido com base na Medicina Baseada em Evidências (MBE), bem como a necessidade da observância das seguintes situações:
(i) a inexistência de tratamento/procedimento ou medicamento similar/genérico oferecido gratuitamente pelo SUS para a doença ou, no caso de existência, sua utilização sem êxito pelo postulante ou sua inadequação devido a peculiaridades do paciente;
(ii) a adequação e a necessidade do tratamento ou do medicamento pleiteado para a doença que acomete o paciente;
(iii) a aprovação do medicamento pela ANVISA;
(iv) a não configuração de tratamento experimental.
Em 2018, o STJ, no julgamento do REsp 1.657.156, cujo relator foi o Ministro Benedito Gonçalves, fixou os seguintes requisitos para que possa haver a concessão judicial de tecnologia em saúde não prevista no SUS:
(i) comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
(ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;
(iii) existência de registro do medicamento na Anvisa, observados os usos autorizados pela agência.
Em maio de 2019, o STF julgou o recurso extraordinário de nº 657.718, que deu origem ao Tema 500, tratando do dever do Estado de fornecer medicamento não registrado pela ANVISA. A tese firmada foi a seguinte:
“1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.
2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:
(i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);
(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e
(iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União.”
Com a decisão, pode-se entender que a falta de registro na ANVISA não pode mais ser vista como óbice intransponível para que o SUS seja obrigado a fornecer determinado medicamento pleiteado judicialmente. Caso sejam atendidos os condicionantes fixados, o pedido pode ser deferido.
Por fim, em 09/2024, houve o julgamento do tema 6 do STF, que estabeleceu que a concessão judicial de medicamentos não padronizados no SUS só pode ocorrer "desde que preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos, cujo ônus probatório incumbe ao autor da ação: (a) negativa de fornecimento do medicamento na via administrativa, nos termos do item '4' do Tema 1234 da repercussão geral; (b) ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, ausência de pedido de incorporação ou da mora na sua apreciação, tendo em vista os prazos e critérios previstos nos artigos 19-Q e 19-R da Lei nº 8.080/1990 e no Decreto nº 7.646/2011; c) impossibilidade de substituição por outro medicamento constante das listas do SUS e dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas; (d) comprovação, à luz da medicina baseada em evidências, da eficácia, acurácia, efetividade e segurança do fármaco, necessariamente respaldadas por evidências científicas de alto nível, ou seja, unicamente ensaios clínicos randomizados e revisão sistemática ou meta-análise; (e) imprescindibilidade clínica do tratamento, comprovada mediante laudo médico fundamentado, descrevendo inclusive qual o tratamento já realizado; e (f) incapacidade financeira de arcar com o custeio do medicamento."
Em embargos de declaração, foi esclarecido que, para o deferimento de pedido de medicamento para doença rara e ultrarra, também deve haver comprovação de existência de evidências científicas de eficácia de alto nível.
A despeito de a decisão do tema 6 e as demais terem sido proferidas em processos que tratam de medicamento, entendo que é o caso de aplicar a mesma lógica nelas contida a todos os tratamentos não fornecidos pelo SUS. Não faz sentido exigir alto nível de evidências científicas em relação a medicamento, e não exigir de procedimentos ou cirurgias. A lógica de avaliação de tecnologia em saúde deve ser a mesma. Do mesmo modo, a deferência à Conitec deve ocorrer em todos os casos, não só no que diz respeito a medicamentos.
DO CUSTO-EFETIVIDADE
Além de analisar se os requisitos estabelecidos pelos julgamentos acima se encontram presentes, há que se apurar se a tecnologia demandada é custo-efetiva, a teor do art. 19-Q, §2º, II, da Lei nº 8.080/90.
O custo-efetividade é um conceito que analisa os desfechos clínicos de uma determinada intervenção, tecnologia ou tratamento e os seus custos. Leva em consideração a comparação com as terapias já existentes e privilegia uma análise econômica do direito à saúde. Basicamente, o custo-efetividade é extraído da relação entre o incremento que uma intervenção ou tecnologia possibilita em termos de quantidade e qualidade de vida e o custo desse incremento.
A análise dessa relação pelo juiz deve se dar também para atender ao disposto na LINDB, que, no seu art. 20, impõe a ele que considere as consequências práticas da sua decisão.
No SUS, a Lei nº 12.401/2011 prevê que a CONITEC, órgão responsável pela incorporação de novas tecnologias, realize estudos econômicos de modo a avaliar o custo-efetividade em seus relatórios de recomendação. Seu art. 19-Q, §2º, I, estabelece que:
“§ 2º O relatório da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS levará em consideração, necessariamente:
(...)
II - a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível.”
A Lei nº 14.313/2022 reconheceu a importância dos limiares e tornou obrigatória a sua fixação e a sua divulgação. Os limiares são marcos econômicos que estabelecem qual a disposição a pagar de um sistema de saúde por uma determinada intervenção.
Ele é fruto de uma análise técnica e de uma escolha politica e pode variar de sistema para sistema, ou seja, de país para país, de acordo com a sua economia. Esses limiares podem ser também implícitos ou explícitos, caso sejam ou não estatuídos em ato normativo.
No Brasil, não estava claro qual o modelo de cálculo utilizado para aferir o custo-efetividade. Tampouco existia limiar de custo-efetividade explícito. Alguns estudos sugeriam existir um limiar implícito de 1 a 3 PIBs per capita/ano de vida. Sobre o tema, vide estudo de PICHON-RIVIERE, de 2022, que encontrou no Brasil uma estimativa de limiar implícito de 0,99 PIB per capita por intervenção em saúde.
Recentemente, a Conitec aprovou uma recomendação sobre limiares, estabelecendo que, a princípio, seria utilizado o limiar de 1 PIB per capita/ano de vida, com a possibilidade de triplicá-lo nos casos de doenças pediátricas, raras e na atenção às pessoas em vulnerabilidade social. Na ocasião, deixou claro que ele não seria a única variável a ser considerada no processo de incorporação de tecnologia em saúde, sendo apenas uma referência.
Nos casos em que o tratamento pleiteado exceda significativamente o limiar da Conitec, recomenda-se ao juiz que ele não o defira. O limiar foi fixado de forma técnica, por processo democrático. O juiz não possui legitimidade técnica, nem democrática para tanto. A ele cabe verificar se o núcleo do direito à saúde está preservado, sem se afastar da realidade de limitações de recursos.
O princípio da equidade traz a necessidade de se tratar as pessoas, em termos de assistência e recuperação da saúde, de forma diferenciada, atendendo às suas particularidades. Todavia, diante da escassez de recursos e da ampliação de necessidades em saúde, esse princípio não pode mais se traduzir em dar tudo aquilo de que uma pessoa necessite. É necessário fazer distinção entre doenças, mas não ao ponto de investir recursos altíssimos com apenas algumas delas. Deve-se buscar um equilíbrio no tratamento diferenciado que se dá em relação a certas doenças. Por um lado, reconhece-se que será necessário se dispor a pagar mais por ele. Por outro, esse investimento maior não pode deixar de distribuir os recursos de maneira justa, maximizando o bem-estar social.
DO CASO CONCRETO
A nota técnica/perícia apresentada no
evento 31, LAUDOPERIC1
, trouxe os seguintes dados:
Os estudos que dizem respeito à tecnologia pretendida para a situação da parte autora não possuem alto nível de evidência científica, vez que não são de fase III. Tampouco existem ensaios clínicos randomizados sobre o medicamento. Assim, não resta preenchido um dos requisitos fixados pelo Tema 6 e pela Súmula 61 do STF para que pudesse haver o deferimento do pedido.
Sem dúvida, esta juíza se sensibiliza com o problema de saúde da parte autora, mas ela também se compadece dos problemas dos demais indivíduos que estão albergados pelo SUS, que serão certamente atingidos com eventual decisão favorável. A saúde coletiva deve focar no indivíduo, mas sem desconsiderar a coletividade.
1. Posto isso,
indefiro o pedido de tutela de urgência
.
2. Intimem-se.
3. Prossiga-se no cumprimento do despacho anterior e demais disposições previstas na Portaria nº 1507/2020, deste Juízo.
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