Processo nº 5291908-21.2022.8.09.0051
ID: 310297147
Tribunal: TJGO
Órgão: 5ª Câmara Cível
Classe: PROCEDIMENTO COMUM CíVEL
Nº Processo: 5291908-21.2022.8.09.0051
Data de Disponibilização:
30/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
WENDEL CARLOS RÊGO DE OLIVEIRA
OAB/GO XXXXXX
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RAFAEL JOSE MOURA BORGES
OAB/GO XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO
Tribunal de Justiça do Estado de Goiás
Gabinete do Desembargador Guilherme Gutemberg Isac Pinto
APELAÇÃO CÍVEL Nº. 529190…
PODER JUDICIÁRIO
Tribunal de Justiça do Estado de Goiás
Gabinete do Desembargador Guilherme Gutemberg Isac Pinto
APELAÇÃO CÍVEL Nº. 5291908-21.2022.8.09.0051
5ª CÂMARA CÍVEL
COMARCA DE GOIÂNIA
APELANTE: ESPÓLIO DE JOSÉ PEREIRA COUTO
APELADOS: ESPÓLIO DE ANDRÉ GUSTAVO VIANA COUTO E OUTRA
RELATOR : DES. GUILHERME GUTEMBERG ISAC PINTO
VOTO
Cuida-se, como visto no relatório, de APELAÇÃO CÍVEL interposta pelo ESPÓLIO DE JOSÉ PEREIRA COUTO (mov. 179) em desprestígio à sentença (mov. 165) proferida pelo Juiz de Direito da 17ª Vara Cível e Ambiental da Comarca de Goiânia, Dr. Nickerson Pires Ferreira, nos autos da ação de enriquecimento ilícito – reparação de danos com pedido de antecipação de tutela de urgência, proposta em desfavor de ESPÓLIO DE ANDRÉ GUSTAVO VIANA COUTO e de PATCHELLE CELIANA CALASSIO CHAUD COUTO.
A sentença atacada foi proferida nos seguintes termos:
“(…) Narra o polo ativo que, André Gustavo, seu filho, aproveitando-se da relação de confiança e dos problemas de saúde, passou a administrar suas finanças. A partir de 2007, munido de procuração outorgada, André Gustavo iniciou uma série de desvios de valores da conta do autor para sua conta pessoal, além de realizar empréstimos em nome do pai e utilizar os recursos para aquisição de bens em nome próprio.
O autor requer a restituição dos valores desviados com juros e correção monetária.
De plano, vislumbro que o pedido inicial não merece prosperar. Explico.
O enriquecimento ilícito configura-se quando há acréscimo patrimonial de uma pessoa, sem causa legítima, em detrimento do patrimônio de outra. No caso em análise, o autor alega que o filho se aproveitou da relação de confiança, da procuração outorgada e de sua condição de saúde debilitada para desviar recursos de forma ilícita. Em contrapartida, o espólio do réu sustenta que a gestão financeira era realizada com a anuência do autor e que o aumento patrimonial de André Gustavo decorre de heranças e de seu trabalho.
Para a configuração do enriquecimento sem causa, a doutrina e a jurisprudência exigem a demonstração cumulativa dos seguintes requisitos: (i) enriquecimento de um sujeito; (ii) empobrecimento de outro; (iii) nexo causal entre o enriquecimento e o empobrecimento; (iv) ausência de causa justificadora para o enriquecimento; e (v) subsidiariedade, ou seja, a inexistência de outra ação judicial capaz de reparar o dano sofrido.
No caso em tela, o autor não apresentou documentos capazes de demonstrar o enriquecimento ilícito de André Gustavo, especialmente que a evolução patrimonial foi em virtude de desvio de valores. Explico.
Analisando os documentos apresentados pelo autor, em que pese se tenha a existência de transferências da conta do autor para a do requerido, não restou comprovado nos autos que os referidos montantes eram utilizados para o enriquecimento do requerido/proveito único e exclusivo.
Isto porque, conforme informado na inicial, o requerido tinha autorização do autor para realizar movimentações bancárias em seu nome e tais transferências possuíam a finalidade de custear seus gastos e administrar seus bens. Inexistindo provas de que tais valores foram utilizados para outros fins, como aquisição de bens particulares.
Além disso, o resumo financeiro patrimonial apresentado pelo autor na réplica (evento 38) somente demonstra aquisição de bens por parte do requerido ao longo dos anos, inclusive decorrente de heranças e desconsiderando atualização monetária ou atuação profissional.
(…)
Ora, imperativo reconhecer a evolução patrimonial do polo passivo, porém não há provas cabais de que o enriquecimento seja ilícito, nem tão pouco inerente a desvio de patrimônio da parte autora.
A mera existência de discrepâncias patrimoniais, sem comprovação de que os valores alegadamente desviados do autor com o acréscimo patrimonial do réu, não se mostra apta a fundamentar a procedência do pedido. A ausência de elementos probatórios consistentes impede a formação de um juízo de certeza quanto ao procedimento das questões autorais.
Logo, não entendo que as provas juntadas aos autos pelo autor são suficientes para demonstrar o direito alegado.
(…)
Do exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido inicial, nos termos do art. 487, I do CPC.
REVOGO a liminar deferida no evento 06.
Condeno o polo ativo ao pagamento de custas e honorários advocatícios, que fixo em 10% sobre o valor da causa, nos termos do art. 85 do CPC.”
Irresignado, o autor, devidamente representado por seu inventariante, LEANDRO EMERSON VIANA COUTO, defende a necessidade de reforma da sentença atacada, sob o fundamento de que, ao contrário do que aduziu o magistrado condutor do feito na origem, restaram suficientemente comprovados o enriquecimento ilícito do Réu, o empobrecimento ilícito do Autor e o nexo causal entre a conduta e o dano efetivamente suportado.
Ressalta que André Gustavo, filho do Sr. JOSÉ PEREIRA COUTO, a partir do ano 2000, passou a apropriar-se indevidamente de valores de propriedade de seu Pai, aproveitando-se e fazendo mal uso da confiança que lhe fora dispensada para a administração das finanças e despesas do lar.
Acrescenta que o enriquecimento ilícito de André incrementou-se a partir do ano de 2004, quando o Sr. José foi diagnosticado com patologia classificada como CID = G20 (Parkinson), o qual fora afastado de suas atividades por tempo indeterminado, conforme Relatório Médico anexado aos autos). Nesse mesmo ano o Autor da herança (Sr. José) e seu filho André Gustavo (réu) mudaram-se para uma chácara situada na Rua dos Ipês, SN, Qd. G Lt. 03, Sítios de Recreio Pindorama, Goiânia – GO.
Salienta que, em 2007, o requerido André Gustavo conduziu seu genitor – José Pereira Couto - ao Cartório de Notas da Cidade de Goiânia para que este lhe outorgasse procuração por instrumento público com amplos poderes para representá-lo junto às instituições bancárias, notadamente à PREVI e ao Banco do Brasil, dentre outros, momento em que o réu passou a desviar, de forma mais agressiva e intensa, numerário da conta do Autor para a sua conta bancária.
Informa que o primeiro requerido (André Gustavo Viana Couto) faleceu no dia 05/11/2020, na cidade de Goiânia, conforme certidão de óbito e demais documentos anexados aos autos, momento em que os outros filhos do Sr. José Pereira Couto (irmãos do requerido André) resolveram analisar a situação financeira do Pai (Sr. José), já que depois das primeiras declarações apresentadas ao inventário de André Gustavo pela viúva (segunda requerida), tanto o Autor, quanto os irmãos do falecido, impressionaram-se com a fantástica “evolução patrimonial” declarada por André à Receia Federal do Brasil e passaram a investigar as movimentações bancárias do pai (Sr. José, falecido), oportunidade em que se depararam com a triste verdade de que o Réu cometera ato ilícito ao desviar durante décadas, da conta corrente de seu genitor (acometido da doença de Parkinson), montante que ultrapassa o valor de R$ 1.270.000,00 (um milhão duzentos e setenta mil reais).
Verbera que foram juntadas aos autos centenas de microfilmes de cheques, emitidos pelo Réu da conta bancária de seu pai, utilizados em seu benefício próprio (do 1º Réu); os comprovantes de empréstimos consignados na folha de pagamento do Sr. José com a comprovação de saque por parte de André do valor do empréstimo e depósito em sua conta bancária particular, bem como restou comprovado nos autos que o patrimônio do Réu, amealhado no período de 2003 a 2020 atingiu a importância de R$ 1.133.614,40, sendo que, no mesmo período, André declarou à Receita Federal ter obtido rendimentos tributáveis na ordem de R$ 344.670,91.
Destaca que a evolução patrimonial do requerido é incompatível com sua renda anual no importe de, aproximadamente, R$ 32.000,00 (trinta e dois mil reais).
Tece longo arrazoado sobre a evolução patrimonial do primeiro requerido a partir de agosto de 1984 até 2020, a fim de demonstrar as transferências de valores da conta bancária do de cujus (Sr. José), a qual, em 2007, foi transformada em conta conjunta com André, para a conta-corrente exclusiva de André, somando o valor de R$ 1.274.401,49, fora os rendimentos que André recebeu pela valorização das ações, dos CDBs e dos Bitcoins que adquiriu com valores desviados de propriedade do seu pai, os quais deveriam compor o espólio.
Aduz que a emissão de cheques pelo réu, conforme microfilmes acostados aos autos, da conta bancária de seu genitor demonstra mais uma forma que André encontrou para apropriar-se de recursos financeiros, sem precisar transferi-los para a sua conta bancária; já que ele passou a pagar as suas despesas pessoais com recursos de propriedade do Autor, por intermédio da utilização de cheques vinculados à conta bancária de seu genitor.
Frisa que foram emitidos 192 cheques microfilmados e acostados aos autos pelo Banco do Brasil, os quais são suficientes para demonstrar o uso livre e irrestrito dos recursos do Autor como se fossem de sua propriedade, e tudo à revelia do Autor que sofria de Mal de Parkinson, confiava plenamente em seu filho caçula e não podia assinar cártulas de cheques.
Da mesma forma, a fim de comprovar o uso indevido do patrimônio do autor, afirma que comprovou, através de declaração emitida pela CASSI que o plano de saúde do requerido era pago mediante débito em conta de titularidade do autor, bem como que restou comprovado que o primeiro requerido, em 05/04/2019, contratou empréstimo junto à Previ, em nome do Autor, sem conhecimento deste, no valor de R$ 165.000,00 (cento e sessenta e cinco mil reais), cujo valor líquido depositado em conta foi de R$ 115.051,84, cujo valor foi transferido pelo Réu, da conta do autor para sua conta pessoal, conforme extrato bancário e transferências devidamente identificadas.
Assinala, ainda, que foi requerido o pagamento do pecúlio pelo óbito de Rosária Viana Couto, junto à Previ, o qual foi creditado na c/c do autor em 12/11/2007, no valor de R$ 105.165,00 (cento e cinco mil, cento e sessenta e cinco reais) e que, no dia seguinte ao depósito André sacou na boca do caixa do Banco do Brasil o referido valor (fazendo uso da procuração que André recebeu de seu pai) e o depositou integralmente em sua conta poupança pessoal, conforme demostram o extrato bancário e o comprovante de depósito coligidos aos autos.
Nesse norte, assevera que toda a documentação apresentada não foi impugnada pela parte requerida, devendo, dessa forma, ser reconhecida a conduta ilícita perpetrada pelo réu por décadas, a qual acarretou enorme prejuízo ao espólio e aos herdeiros do senhor José Pereira Couto.
Conclusivamente, pugna pelo conhecimento e provimento do recurso, para reformar a sentença atacada, a fim de julgar procedentes os pedidos iniciais.
Regularmente intimados (mov. 182), os apelados apresentaram contrarrazões (mov. 186), pleiteando o desprovimento do recurso e consequente majoração dos honorários sucumbenciais para o importe de 20% (vinte por cento) sobre o valor atualizado da causa.
1. Da admissibilidade
Presentes os pressupostos de admissibilidade intrínsecos (legitimidade, interesse, cabimento e inexistência de fato impeditivo e extintivo) e extrínsecos (preparo, tempestividade e regularidade formal), conheço da apelação cível e, não havendo questões preliminares e/ou de ofício a serem dirimidas, reporto-me diretamente ao exame do mérito recursal.
2. Do mérito
Trata-se, na origem, de ação de enriquecimento ilícito cumulada com pedido de reparação de danos movida pelo Espólio de José Pereira Couto, sob o argumento de que seu filho, André Gustavo Viana Couto, mediante procuração e relação de confiança, apropriou-se indevidamente de vultosos recursos financeiros ao longo de mais de uma década, prejudicando o patrimônio do genitor e, consequentemente, dos seus herdeiros.
O Juízo a quo julgou improcedente o pedido, entendendo que não restou demonstrado o nexo de causalidade e a ilicitude na evolução patrimonial do réu, por ausência de prova da destinação irregular dos valores transferidos.
Nas razões recursais, em síntese, alega o apelante que restou sobejamente comprovado nos autos que o falecido (André Gustavo), filho do autor (Sr. José – também falecido), ao longo de cerca de duas décadas, apropriou-se de valores da conta bancária do pai, especialmente após este ser diagnosticado com doença de Parkinson (CID G20) e lhe outorgar procuração pública com poderes amplos. Os valores desviados foram estimados em mais de R$ 1.270.000,00, conforme documentos anexados aos autos.
Pois bem. Do compulso atento dos autos, especialmente dos documentos que compõem o acervo probatório, imperioso reconhecer que o recurso atacado merece provimento.
De início, convém assinalar que o art. 884 do Código Civil dispõe que:
Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Parágrafo único - Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.
Da leitura do dispositivo supra extrai-se os requisitos necessários à verificação da ocorrência do enriquecimento ilícito, quais sejam: enriquecimento de alguém em face do empobrecimento de outrem, relação de causalidade entre ambas as situações, bem como ausência de causa jurídica que justificasse referido acontecimento.
Sobre o tema leciona o ex-Ministro Cézar Peluso em sua obra Código Civil Comentado, in verbis:
(...) O enriquecimento compreende não só o aumento patrimonial, mas também qualquer vantagem, como não suportar determinada despesa.
(...) O empobrecimento pode consistir em uma redução de patrimônio ou em não perceber determinada verba que seria obtida em razão do serviço prestado ou da vantagem conseguida pela outra parte. Para Agostinho Alvim, esse requisito nem sempre é necessário (RT259l3). Segundo o ilustre mestre, há hipóteses cm que a ação é cabível mesmo sem o enriquecimento; por exemplo, quando uma pessoa informa ao herdeiro sua qualidade cm determinada sucessão. A relação de causalidade significa que o enriquecimento e o empobrecimento resultam de um só fato, atuando um como determinante da ocorrência do outro.
(...) A ausência de causa jurídica é o requisito mais importante para o reconhecimento do enriquecimento sem causa. Não haverá enriquecimento sem causa quando o fato estiver legitimado por um contrato ou outro motivo previsto em lei. Somente quando não houver nenhum destes dois fundamentos é que haverá ilicitude no locupletamento (Código civil comentado: doutrina e jurisprudência/Claudio Lufa Bueno de Godoy, coordenação Cezar Peluso. 12ª. ed., rev. e atual. Barueri/SP: Manole, 2018. 2352 p 872.
Nesse norte, a jurisprudência do Superior Tribunal e dos tribunais pátrios são uníssonas no sentido de que a ação de enriquecimento sem causa pode ser manejada sempre que se configure a presença dos seguintes requisitos: (i) enriquecimento de uma parte; (ii) empobrecimento correspondente de outra; (iii) nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento; (iv) ausência de causa jurídica justificadora; (v) subsidiariedade do pedido, ou seja, inexistência de ação específica para a reparação.
A propósito, confira-se os seguintes excertos jurisprudenciais:
(…) 2. "A pretensão de enriquecimento sem causa (ação in rem verso) possui como requisitos: enriquecimento de alguém; empobrecimento correspondente de outrem; relação de causalidade entre ambos; ausência de causa jurídica; inexistência de ação específica. Trata-se, portanto, de ação subsidiária que depende da inexistência de causa jurídica. (…) Agravo interno e recurso especial providos. (STJ - AgInt no REsp 1679390/SP, Relatora Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI (1145), Órgão Julgador T4 - QUARTA TURMA, Data do Julgamento: 23/09/2024, Data da Publicação/Fonte DJe 25/09/2024)
(…) O ressarcimento sem causa pressupõe o enriquecimento de uma parte, o empobrecimento de outra, o nexo de causalidade, a ausência de causa justa e a subsidiariedade do enriquecimento, caso diverso dos autos (art. 884 a 886, CC). (…) (TJ-SP - Apelação Cível: 10000587720238260002 São Paulo, Relator.: Morais Pucci, Data de Julgamento: 24/10/2024, 26ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 24/10/2024)
Pois bem. Trazendo essas ilações para o caso em tela, imperioso ressaltar que os elementos acima delineados encontram-se sobejamente comprovados nos autos.
Nesse linear, verifica-se que os atos praticados por ANDRÉ GUSTAVO VIANA COUTO decorreram, a princípio, da confiança depositada em si por seu pai JOSÉ PEREIRA COUTO, o qual, após ser diagnosticado com a doença de Parkinson (CID G20), conforme relatório médico acostado à mov. 122, arq. 04, lhe outorgou procuração pública com poderes amplos, sendo este fato incontroverso, já que, na contestação oferecida à mov. 35, a viúva e única herdeira/meeira de André Gustavo rechaça apenas a ausência de sua assinatura na referida procuração.
Além disso, a condição de vulnerabilidade do idoso, com ênfase na incapacidade relativa (art. 4º, III, do CC), impõe maior rigor à fiscalização da validade e licitude dos atos praticados em seu nome:
(…) O idoso, sobretudo em condição de enfermidade degenerativa, goza de especial proteção jurídica contra abusos patrimoniais, inclusive de familiares. (TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Vol. Único. 15ª ed. São Paulo: Método, 2023)
No caso em tela, verifica-se que o autor logrou êxito em comprovar a hipervulnerabilidade do Sr. José Pereira Couto, já que, à época em que os desvios de valores tiveram início, contava com mais de 70 (setenta) anos, o qual, conforme documentos pessoais acostados à inicial (mov. 01, arq. 03), nasceu em 24/02/1932. Some-se a isso, o fato de que o Sr. José encontrava-se impossibilitado de gerenciar seus próprios negócios, tanto que outorgou procuração dando plenos poderes para o requerido administrar seus bens (mov. 38, arq. 24).
Da mesma forma, as provas coligidas aos autos são suficientes para comprovar que o requerido André Gustavo extrapolou os poderes que lhe foram conferidos através da procuração acostada à mov. 38, arq. 24, tendo em vista que, dentre os referidos poderes não se encontrava o direito de fazer empréstimos bancários de quantias vultuosas e transferir o respectivo valor para a sua conta bancária pessoal, bem como a transferência de valores e emissão de centenas de cheques sem qualquer motivo aparente e, ainda, autorizar o débito na conta corrente do Sr. José do valor referente ao plano de saúde pessoal do requerido (mov. 162, arq. 02).
A doutrina é taxativa ao afirmar que o uso de mandato para apropriação indevida de bens alheios implica abuso de confiança e ilicitude civil:
(…) A procuração não é salvo-conduto para que o mandatário disponha livremente do patrimônio do mandante em benefício próprio. Ao contrário, configura-se responsabilidade objetiva ou subjetiva, conforme o caso, quando tal desvio resulta em prejuízo.” (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Contratos. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2023)
Constata-se, dentre outros desvios, que, de acordo com os documentos juntados aos autos pelo Banco do Brasil, em resposta ao ofício encaminhado pelo Juízo de origem, especialmente os extratos bancários e as microfilmagens de cheques (mov. 95, arqs. 01/14), ficaram comprovadas transações que superam o valor de R$ 1.290.000,00 (um milhão e duzentos e noventa mil reais), inclusive através de transferências eletrônicas para a conta pessoal do requerido, conforme se depreende.
Consta, ainda, que, no dia 05/04/2019, foi efetivado um empréstimo junto à Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil, no valor de R$ 165.000,00 (cento e sessenta e cinco mil reais, em favor do autor, Sr. José Couto (mov. 162, arq. 02) e que, entre os dias 05/04/2019 a 29/11/2019, foram transferidos para a conta pessoal do requerido André Gustavo, o total de R$ 218.500,00 (duzentos e dezoito mil e quinhentos reais).
Ademais, o extrato bancário fornecido pelo Banco do Brasil e colacionado à mov. 162, arq. 04, demonstra que o pagamento do pecúlio pelo óbito de Rosária Viana Couto, no valor de R$ 105.165,41, foi creditado na Conta Corrente do autor (Sr. José) em 12/11/2007 e, no dia seguinte (13/11/2007), foi sacado na boca do caixa do BB o total de R$ 103.000,00, o qual foi depositado na conta corrente de André, em 13/11/2007) conforme comprovante de depósito coligido à mov. 162, arq. 05).
Destarte, incontestável que ocorreram desvios indevidos e ilegais da conta bancária do autor, bem como que ocorreu o empobrecimento de uma parte e o enriquecimento indevido da parte requerida, especialmente considerando que o réu André Gustavo declarava rendimentos tributáveis no patamar de R$ 18.000,00 a R$ 25.000,00 anuais (mov. 01, arqs. 40 a 50), bem como que sua evolução patrimonial subiu de R$ 212.059,00 em 2008 (mov. 01, arq. 40) para R$ 894.614,40 em 2019 (mov. 01, arq. 50).
Ad argumentandum, ressai dos autos que, de acordo com o Cadastro Nacional de Informações Sociais _CCNIS, Extrato Previdenciário emitido pelo INSS (mov. 16 e 17), o requerido André Gustavo Viana Couto atuou como empregado no Banco do Brasil de 11/03/1988 a 02/12/1991, no Goiás Esporte Clube de 02/01/1996 a 01/1998, no Município de Aparecida de Goiânia de 25/03/1999 a 02/2003 e, concomitantemente, trabalhou no Goiás Esporte Clube de 15/02/2000 a 10/10/2000 e na Organização Cultural Educacional Filantrópica de 24/01/2003 a 06/08/2003. Consta, ainda, que trabalhou na Secretaria Municipal de Educação de 22/08/2002, até 2016 (Declaração IR – mov. 48).
Constata-se que, em todo o período acima descrito, a remuneração do requerido não foi superior a R$ 3.000,00 e, conforme Declarações de Imposto de Renda coligidas às movs. 46, do ano de 2003 até 2012, o patrimônio do requerido evoluiu de R$ 8.000,00 para R$ 766.063,64.
Acrescente-se, ainda, que somente consta a natureza da ocupação do requerido, ora apelado, como advogado, a partir da Declaração de Imposto de Renda referente ao ano calendário de 2017, exercício 2017 (mov. 49), quando foram declarados rendimentos tributáveis anualmente no valor de, aproximadamente, R$ 26.000,00.
Desse modo, por qualquer ângulo que se analise a questão, não há, nos autos, a comprovação da origem ou causa jurídica do enriquecimento do requerido.
Segundo entendimento comum, o enriquecimento sem causa apresenta como condições especiais o enriquecimento, o empobrecimento correlativo, a ausência de causa jurídica e a ausência de interesse pessoal do empobrecido.
Cediço caber à parte autora a prova dos fatos constitutivos do seu direito, nos termos do art. 373, I, do Código de Processo Civil e, em observância ao regramento processual, percebe-se que o demandante, ora recorrente, desincumbiu-se do ônus que lhe competia, eis que os fatos narrados na inicial encontram lastro na documentação jungida ao feito. Por outro lado, o apelado não logrou êxito em comprovar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito autoral.
A propósito, confira-se a jurisprudência desta egrégia Corte de Justiça, in verbis:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA C/C INDENIZATÓRIA. REQUISITOS PREENCHIDOS. FATO CONSTITUTIVO DO DIREITO AUTORAL . PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ AFASTADA. MAJORAÇÃO DA VERBA HONORÁRIA. DESPROVIMENTO . I. O enriquecimento sem causa é tratado pelo Código Civil, em seu artigo 884, e conceituado pela doutrina como sendo o acréscimo de bens que se verifica no patrimônio de um sujeito em detrimento de outrem, sem que para isso tenha um fundamento jurídico. São requisitos para configurar o enriquecimento sem causa: a) o enriquecimento - deslocamento patrimonial consubstanciado em uma vantagem decorrente da aquisição ou incremento de valor de bens ou direitos de crédito, sem a desvantagem equivalente; b) a ausência de causa - falta de causa da atribuição patrimonial entendida como o motivo jurídico, justificação do aporte de um bem a determinado patrimônio, e c) a obtenção à custa de outrem ? a necessidade de que o enriquecimento tenha sido obtido por terceiro às expensas daquele a quem estava afetada a destinação econômica do bem. Verificada a presença dos requisitos mencionados, o autor desincumbiu-se do ônus que lhe competia e, em contrapartida, a associação recreativa apelante não demonstrou a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito autoral, a tornar impositiva a manutenção da sentença que julgou procedente o pedido vestibular . II. (…). IV- Apelo desprovido. (TJ-GO 0166223-27.2014 .8.09.0130, Relator.: REINALDO ALVES FERREIRA, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: 18/10/2021)
Outrossim, o provimento do recurso, para, em reforma à sentença atacada, para julgar procedente o pedido inicial, a fim de reconhecer o enriquecimento sem causa do requerido e, consequentemente, condenar o espólio de ESPÓLIO DE ANDRÉ GUSTAVO VIANA COUTO e a viúva/inventariante PATCHELLE CELIANA CALASSIO CHAUD COUTO a restituírem ao Autor, com juros e correção monetária, todos os valores de propriedade do autor que foram indevidamente apropriados ao longo dos anos, contados a partir de cada desvio indevido de valor.
Imperioso ressaltar que a apuração do valor a ser restituído ao espólio do Sr. José Pereira Couto deverá ser apurado em liquidação de sentença, pelo procedimento comum, nos termos do art. 509, inciso II, do CPC, a fim de possibilitar à parte autora demonstrar o total efetivamente desviado indevidamente da propriedade do Sr. José, bem como para que a parte requerida comprove a origem dos valores que ensejaram sua evolução patrimonial.
3. Do dispositivo
Diante do exposto, CONHEÇO DO RECURSO e DOU-LHE PROVIMENTO, para, em reforma à sentença atacada, julgar procedente o pedido inicial, a fim de reconhecer o enriquecimento sem causa do requerido e, consequentemente, condenar o espólio de ESPÓLIO DE ANDRÉ GUSTAVO VIANA COUTO e a viúva/inventariante PATCHELLE CELIANA CALASSIO CHAUD COUTO a restituírem ao Autor, com juros de 1% ao mês e correção monetária pelo INPC, contados a partir de cada desvio indevido, todos os valores de propriedade do Sr. JOSÉ PEREIRA COUTO que foram indevidamente apropriados ao longo dos anos, cujo montante deverá ser apurado em liquidação de sentença pelo procedimento comum, nos termos do art. 509, inciso II, do CPC.
Consectário lógico da reforma da sentença, inverto os ônus sucumbenciais, para condenar os requeridos ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação, cujo montante deverá ser definido após efetivada a liquidação de sentença.
É como voto.
Desde já, advirto às partes que a oposição de embargos de declaração manifestamente infundados e protelatórios dará ensejo à cominação da multa prevista no artigo 1.026, §§ 2º e 3º do Código de Processo Civil.
(Datado e assinado em sistema próprio).
DES. GUILHERME GUTEMBERG ISAC PINTO
Relator
APELAÇÃO CÍVEL Nº. 5291908-21.2022.8.09.0051
5ª CÂMARA CÍVEL
COMARCA DE GOIÂNIA
APELANTE: ESPÓLIO DE JOSÉ PEREIRA COUTO
APELADOS: ESPÓLIO DE ANDRÉ GUSTAVO VIANA COUTO E OUTRA
RELATOR : DES. GUILHERME GUTEMBERG ISAC PINTO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os presentes autos da Apelação Cível nº 5291908-21.2022.8.09.0051.
Acorda o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, pela Primeira Turma Julgadora de sua Quinta Câmara Cível, à unanimidade de votos, em conhecer da Apelação Cível e dar-lhe provimento, nos termos do voto do Relator.
Votaram acompanhando o Relator, o Excelentíssimo Desembargador Maurício Porfírio Rosa e a Excelentíssima Desembargadora Mônica Cezar Moreno Senhorelo.
Presidiu a sessão de julgamento o Excelentíssimo Senhor Desembargador Maurício Porfírio Rosa.
Esteve presente a Procuradora Geral de Justiça, a Doutora Estela de Freitas Rezende.
(Datado e assinado em sistema próprio).
GUILHERME GUTEMBERG ISAC PINTO
Desembargador
Relator
EMENTA: DIREITO CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA E ABUSO DE PROCURAÇÃO. PROVIMENTO DO RECURSO PARA REFORMAR A SENTENÇA E JULGAR PROCEDENTE O PEDIDO INICIAL.
I. CASO EM EXAME 1. Apelação cível interposta contra sentença que julgou improcedente o pedido inicial, em ação proposta por espólio visando à restituição de valores desviados da conta bancária do autor da herança por filho que possuía procuração com poderes amplos. A parte autora sustenta que o falecido, diagnosticado com doença de Parkinson, teve seu patrimônio dilapidado por conduta ilícita do mandatário, que se valeu da condição de confiança e da fragilidade do outorgante para apropriar-se de recursos vultosos. A sentença rejeitou o pedido sob o fundamento de ausência de prova do nexo causal entre os desvios patrimoniais e a ilicitude alegada.
II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 2. Há duas questões em discussão: (i) saber se restaram configurados os requisitos do enriquecimento sem causa, notadamente o enriquecimento do requerido, o empobrecimento do autor, o nexo de causalidade entre os dois, a ausência de causa jurídica e a subsidiariedade da via eleita; e (ii) saber se os atos praticados pelo mandatário extrapolaram os poderes conferidos pela procuração pública, violando o dever de confiança e gerando responsabilidade civil por abuso de poder.
III. RAZÕES DE DECIDIR 3. O conjunto probatório é suficiente para comprovar a apropriação indevida de valores pelo mandatário, inclusive mediante transferências bancárias, emissão de cheques e contratação de empréstimos consignados, cujos valores foram integralmente utilizados em proveito próprio, sem anuência do outorgante. 4. Comprovou-se que o falecido padecia de doença degenerativa, fato que comprometeu sua capacidade de administração patrimonial, sendo relevante a idade avançada à época dos fatos. 5. A evolução patrimonial do requerido mostrou-se incompatível com sua renda declarada à Receita Federal, revelando acréscimo injustificado de patrimônio, ao passo que se evidenciou empobrecimento correlato do espólio, que sofreu os efeitos financeiros dos atos ilícitos. 6. O requerido extrapolou os limites dos poderes outorgados, realizando atos que demandariam autorização específica, como contratação de empréstimos e transferências vultosas para a sua conta corrente pessoal, restando configurado o abuso de procuração. 7. Diante da robustez das provas, incide o disposto no art. 884 do CC, impondo-se a obrigação de restituição dos valores ilicitamente apropriados, com atualização monetária e juros desde cada movimentação indevida. 8. O recurso deve ser provido para julgar procedente o pedido inicial, impondo-se a restituição dos valores apurados em liquidação de sentença, com inversão dos ônus da sucumbência.
IV. DISPOSITIVO E TESE 9. Recurso conhecido e provido.
Tese de julgamento: "1. Configura-se enriquecimento sem causa quando demonstrado o acréscimo patrimonial injustificado de uma parte, correspondente ao empobrecimento de outra, havendo nexo causal entre ambos e ausência de causa jurídica para legitimar tal vantagem." "2. O mandatário que, valendo-se da confiança e da fragilidade do mandante, realiza atos que excedem os poderes conferidos incorre em abuso de direito e responde pela restituição dos valores indevidamente apropriados."
Dispositivos relevantes citados: CC, arts. 884, parágrafo único, 4º, III; CPC, art. 373, I.
Jurisprudência relevante citada: STJ, AgInt no REsp 1679390/SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, j. 23/09/2024; TJ-SP, Apelação Cível 1000058-77.2023.8.26.0002, Rel. Morais Pucci, 26ª Câmara de Direito Privado, j. 24/10/2024.
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