Processo nº 5016351-86.2025.4.04.7000
ID: 272713830
Tribunal: TRF4
Órgão: 11ª Vara Federal de Curitiba
Classe: MANDADO DE SEGURANçA CíVEL
Nº Processo: 5016351-86.2025.4.04.7000
Data de Disponibilização:
26/05/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
DANILO CASAGRANDE MONTEIRO
OAB/PR XXXXXX
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MANDADO DE SEGURANÇA Nº 5016351-86.2025.4.04.7000/PR
IMPETRANTE
: ENRICO GUARNIERI
ADVOGADO(A)
: DANILO CASAGRANDE MONTEIRO (OAB PR091763)
DESPACHO/DECISÃO
I - RELATÓRIO
1.1. Relatório do processo 5…
MANDADO DE SEGURANÇA Nº 5016351-86.2025.4.04.7000/PR
IMPETRANTE
: ENRICO GUARNIERI
ADVOGADO(A)
: DANILO CASAGRANDE MONTEIRO (OAB PR091763)
DESPACHO/DECISÃO
I - RELATÓRIO
1.1. Relatório do processo 50014390320244047006:
Em 19 de fevereiro/2024,
ENRICO GUARNIERI
impetrou um mandado de segurança, em face do DELEGADO DE POLÍCIA FEDERAL DE GUARAPUAVA, pretendendo a declaração do alegado direito de permanecer em território brasileiro.
O impetrante disse ser cidadão italiano, tendo ingressado no Brasil em 29 de março/2012 e obtido sua inscrição no cadastro de pessoas físicas em 02 de abril/2012. Sustentou ter constituído família com a sra. Cleonice Dall'olivo, cidadã brasileira, com a qual teria tido um filho, nascido em 11 de janeiro/2014, e alegou que o prazo de validade do seu passaporte teria se esgotado em 08 de julho/2014.
Ele encontrar-se-ia trabalhando em território nacional, desde então, com o fim de assegurar o sustento de sua família. Sem poder obter qualquer outro documento pessoal emitido pela República Federativa do Brasil, ele teria buscado renovar seu passaporte, em 15 de junho/2015, todavia a tentativa teria sido frustrada pela ausência de certidão negativa de qualquer impedimento à renovação, exigida pelo Consulado da Itália e que não teria sido emitida a tempo do agendamento.
Teria enfrentado dificuldade no agendamento de data junto ao Consulado Italiano, conforme evidenciaria um e-mail datado de 27 de dezembro/2016. Ele teria buscado, em 11 de julho/2022, a conversão de naturalização provisória em definitiva, conforme processo administrativo n. 235881.0231115/2022 (24920953). Seu pleito teria sido indeferido, na medida em que não lhe teria sido concedida naturalização provisória. Ele também teria ingressado com processo judicial, eproc 5004262- 81.2023.4.04.7006/PR, que teria sido extinto por ausência de interesse. Em 11 de setembro/2023, o impetrante teria buscado junto ao Departamento da Policia Federal uma autorização de residência, sendo-lhe exigido um rol de documentos e preenchimento de formulário próprio.
A fim de reunir a documentação necessária para tanto, ele teria agendado um atendimento junto ao Consulado Italiano, em 12 de outubro/2023, ocasião em que lhe teria sido exigido o registro nacional de estrangeiro - RNE, a ser obtido junto ao Departamento da Polícia Federal. O impetrante sustentou que, ao ser atendido no consulado quase teria sido deportado, dada a irregularidade de sua situação no Brasil, mas diante da constituição de núcleo familiar, lhe teria sido oportunizada a atualização do passaporte italiano, para o que seria necessária autorização da Polícia Federal, mediante emissão do RNE. Por sua vez, a autoridade policial teria se recusado a expedir o RNE, uma vez que o passaporte do impetrante encontrar-se-ia vencido.
Segundo o demandante, a autoridade impetrada estaria lhe negando direito líquido e certo de permanecer em solo brasileiro ao negar a emissão do RNE. Ele postulou a concessão de medida liminar preventiva,
inaudita altera parte
, a fim de que o Poder Judiciário impeça eventual deportação. Detalhou seus pedidos e atribuiu à causa o valor de R$ 1.412,00, anexando documentos.
Deferi a medida liminar postulada, nos termos da decisão de evento 6, determinando que a il. autoridade impetrada se abstivesse de promover a deportação do impetrante, dado que ele teria filho brasileiro. O impetrado prestou informações no movimento 16, noticiando não ter sido instaurado qualquer procedimento de deportação em face do sr. Enrico, bem como que ele não teria apresentado até então qualquer documento de viagem válido.
O Ministério Público Federal manifestou-se favorável à concessão da ordem de segurança (evento19).
A União Federal manifestou-se no movimento 23, sustentando que o autor não teria demonstrado fazer jus à permanência em solo nacional, tampouco tendo demonstrado algum contexto de ilegalidade ou abuso de poder na imposição de multa por permanência em território brasileiro. Os autos vieram conclusos.
Prolatei sentença no evento 24 daqueles autos:
"3.1. DECLARO a competência desta unidade jurisdicional para o processo e julgamento deste mandado de segurança. 3.2. ANOTO que as partes estão legitimadas para a causa e que o impetrante possui interesse processual. 3.3.
DESTACO que o direito à impetração do mandado de segurança não foi atingido pela decadência, no caso em análise
. 3.4.
CONHEÇO do mérito da pretensão deduzida na inicial e CONCEDO a segurança, nos termos da fundamentação acima. EXTINGO o processo com julgamento de mérito, na forma do art. 487, I, CPC
. 3.5.
RATIFICO a liminar deferida no evento 6 deste eproc
. 3.6. DEIXO de condenar a União Federal ao pagamento de honorários sucumbenciais, diante da regra do art. 25 da lei n. 012.016/2009 e súmulas 105, STJ e 512, STF. 3.7. ANOTO, ademais, cuidar-se de processo isento de custas, dada a gratuidade de justiça deferida ao impetrante.. 3.8. SUBMETO a presente causa ao reexame necessário, nos termos do art. 14, LMS."
O TRF4 ratificou a sentença, em acórdão com a seguinte ementa:
"ADMINISTRATIVO. IMIGRANTE. SITUAÇÃO IRREGULAR NO TERRITÓRIO NACIONAL. FILHO BRASILEIRO MENOR DE IDADE DEPENDENTE FINANCEIRAMENTE. (IM)POSSIBILIDADE DE DEPORTAÇÃO. 1. Hipótese em que o impetrante requer que a autoridade impetrada seja impedida de promover a sua deportação do território nacional, uma vez que possui filho menor de idade, que dele depende para sua subistência. 2. A Súmula 1 do Supremo Tribunal Federal veda expressamente a expulsão de estrangeiro casado com brasileira ou que tenha filho brasileiro dependente da economia paterna. 3. Segundo o art. 55, II, "a" e "b" da Lei de Migração, não será expulso o estrangeiro que tiver filho brasileiro que esteja sob sua guarda ou dependência econômica ou socioafetiva, tiver pessoa brasileira sob sua tutela ou tiver cônjuge ou companheiro residente no Brasil, sem discriminação alguma, reconhecido judicial ou legalmente. 4. Na medida em que a expulsão (que, via de regra, é fundada em infrações mais graves, como no caso em que o estrangeiro tenha cometido um crime no país) é vedada nas referidas circunstâncias, o mesmo deve ser observado em relação à deportação, que decorre de irregularidades administrativas na situação do estrangeiro no país."
Em 04 de novembro de 2024, o acórdão transitou em julgado. A União manifestou ciência do esgotamento dos prazos recursos e postulou o arquivamento dos autos.
1.2. Relatório deste eproc 5016351-86.2025.4.04.7000:
Em 02 de abril de 2025,
ENRICO GUARNIERI
impetrou o presente mandado de segurança, em face do DELEGADO DE POLÍCIA FEDERAL DE GUARAPUAVA, pretendendo a declaração do alegado direito de permanecer em território brasileiro.
Para tanto, o impetrante sustentou não manter vínculo de emprego, tendo postulado documentos pessoais a fim de regularizar sua condição no território nacional. Não contaria com renda fixa e trabalharia como pedreiro recebendo por empreitada ou por dia, mantendo assim sua família. Argumentou que ele e a esposa não teriam imóveis.
Ele argumentou desejar
"obter autorização de residência junto a Policia Federal de Guarapuava para fins de reunião familiar reconhecido por Mandado de Segurança porém recusado de forma administrativa pela Policia Federal de Guarapuava."
Segundo a peça inicial,
o impetrante
"chegou no Brasil na data de 29/03/2012 conforme se verifica no visto do seu Passaporte em anexo, vindo este a se inscrever no Cadastro da Receita com a emissão do CPF na data de 02/04/2012. Ocorre que durante este período de chegada o Requerente acabou conhecendo a Sra. Cleonice Dall’olivo, brasileira, ao qual iniciou um relacionamento amoroso o qual perdura até os dias de hoje. No passar de poucos meses a Sra. Cleonice acabou engravidando em data aproximada de 05/2013, vindo o filho do casal nascer no dia 11/01/2014 conforme certidão de nascimento em anexo. Em razão do novo relacionamento e devido ao nascimento do filho o Requerente não conseguiu mais retornar ao seus país de origem, haja vista que o seu Passaporte venceria na data de 08/07/2014 não tendo tempo hábil apara pedir a renovação em razão de ter constituindo família aqui no Brasil e precisava prover o sustento da família."
Aduziu não ter conseguido
"emitir mais nenhum documento pessoal a não ser o seu CPF, estando atualmente até com o seu Passaporte vencido e não consegue emitir, RG, Carteira de Habilitação e até mesmo Carteira de Trabalho, tendo que trabalhar sem registros e consequentemente deixar de contribuir com a previdência e Estado. Na data de 15/06/2015 o Autor tentou agendar a renovação do seu passaporte no Consulado da Itália conforme se faz prova do E-mail e documentos em anexo, todavia lhe foi exigido o Nulla Osta ao qual não chegou ao tempo do agendamento, restando frustrada a nova tentativa. Devido a dificuldade de agendar pelo SITE o Autor tentou novamente o agendamento no setor de Passaporte na data de 27/12/2016."
Alegou ter deflagrado uma demanda de naturalização - eproc 5004262 81.2023.4.04.7006/PR.
"No dia 22/06/2022 o Autor agendou junto a Policia Militar para tentar tirar ao menos sua identidade, Protocolo 226019/2023 e em razão de seu Passaporte estar vencido novamente foi recusado a emissão. No dia 11/09/2023 o Impetrante compareceu na Policia Federal de Guarapuava através do Protocolo 202308291106051258 a fim de tirar a Autorização de Residência para se legalizar, oportunidade em que novamente não foi concedido, sendo-lhe lhe entregado uma lista de documentos que deveriam ser entregues para a concessão do pedido, bem como o preenchimento dos formulários próprios. Enquanto o Autor estava reunindo a documentação pertinente para ser apresentado na PF de Guarapuava, foi novamente agendado um atendimento no Consulado Italiano para tentar renovar o Passaporte no dia 12/10/2023."
Acrescentou lhe ter sido
"informado pelo CONSULADO que para que conseguisse atualizar seu passaporte precisava ser entregue o RNE (Registro Nacional de Estrangeiro) e que era para solicitar junto a Policia Federal, que então o seu passaporte Italiano seria atualizado e emitido, sem a devida autorização da Policia Federal o Passaporte não seria emitido. Novamente o Autor pagou a taxa e fez outro agendamento na Policia Federal sob n° 202310161125190274 para o dia 13/11/2023 conforme comprovante e E-mail em anexo ao qual compareceu novamente com toda documentação e formulários devidamente preenchidos, ainda sob a orientação do Consulado de que a Policia Federal tinha que emitir o RNE para então o Autor retornar ao Consulado Italiano para atualizar o seu Passaporte, sendo este documento primordial para renovação."
Sublinhou ter ficado
"sem saída, pois no CONSULADO ITALIANO lhe foi negado a renovação do Passaporte tendo como condição a apresentação prévia do RNE, sem a apresentação o mesmo seria deportado. E na POLICIA FEDERAL lhe foi negado o RNE se não fosse apresentado Passaporte valido pelo Consulado Italiano."
O impetrante sustentou ainda que
"O Autor então na posse da Sentença fez outro agendamento na Policia Federal sob n° 202411191607155113 para comparecimento na data de 21/11/2024 as 10h30min. Lá chegando, foi apresentado a Sentença no setor responsável e este disse que NÃO iria emitir o Registro Nacional de Estrangeiro porque na Sentença e no Acórdão não constou a referida ordem. Disse que só iria emitir a Autorização de Residência se tivesse uma ordem expressa do Juízo para assim o fazer, o que acabou por deixar o Autor na mesma situação, ou seja IRREGULAR até a presente data. Tendo em vista o reconhecimento do direito liquido e certo do Autor permanecer em solo Brasileiro em razão da sua família constituída, não restou outra opção a ele a não ser demandar a presente Ação de Cumprimento de Sentença a fim de que a Requerida efetive a regularização do Autor com a expedição do respectivo documento ao qual é reflexo do próprio Mandado de Segurança já concedido."
Ele reportou-se ao art. 3 da Lei nº 13.447/2017. Enfatizou ainda que
"Não bastasse tal legislação aplicável ao Autor, seu direito de permanecer em solo Brasileiro está reconhecido por sentença transitada em julgado, logo, não cabe mais as partes legitimas e a Requerida questionar a validade da permanência do Autor no País, mas sim colaborar de forma administrativa e emitir o respectivo documento (RNE) para que o Autor possa estar legalizado para todos os efeitos legais, razão que leva o Autor a Executar o seu direito na presente Ação."
Postulou a concessão da segurança a fim de que seja expedido ofício ao Departamento da Policia Federal de Guarapuava, para que emita, a seu favor, o registro nacional de estrangeiro. Ele anexou documentos.
No movimento 9 declarei a competência da Justiça Federal e da 11ª Vara Federal para o julgamento e processamento deste mandado de segurança, e examinais os temas correlatos à prelibação da peça inicial. Deferi a gratuidade de justiça ao autor, registrei alguns vetores, com cognição não exaustiva, e facultei manifestação à autoridade impetrada a respeito da pretensão em causa.
A União Federal se manifestou no movimento 13 dizendo possuir interesse na demanda e requerendo sua intimação dos atos processuais. A autoridade impetrada prestou informações no movimento 20. Na oportunidade, disse que o impetrante teria comparecido perante a Delegacia de Polícia Federal em Guarapuava em 13/11/2023 para solicitar sua autorização de residência com base na alegação de manter família em solo nacional (protocolo de nº 202310161125190274). Seu pleito teria sido indeferido, dado que ele não teria apresentado documentação válida de viagem, eis que o seu passaporte já teria vencido. Disse não ter iniciado o processo de deportação, tampouco o tendo autuado ou cominado multa, em virtude de o autor estar buscando a regularização da situação pelo mencionado processo.
Segundo a autoridade impetrada, a Delegacia de Polícia Federal teria respeitado a decisão prolatada no MS 5001439-03.2024.4.04.7006/PR anotando no sistema SONAR - Sistema Operacional de Alertas e Restrições a proibição de deportação do impetrado, mantendo, porém, a exigência normativa de apresentação de documentos para regularização da situação migratória.
O impetrante encontrar-se-ia irregular no território nacional, em razão do excesso do prazo de estadia no país. Ele poderia promover a sua regularização, mediante a apresentação de documento de viagem válido (art. 7º, da Portaria Interministerial 12/2018). Esclareceu, ademais, que se trataria de ato vinculado, não cabendo ao agente público qualquer margem de discricionariedade para afastar a exigência de apresentação de referido documento, razão pela qual mantém a necessidade de apresentação do documento de viagem válido.
Os autos vieram conclusos.
II - FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Pressupostos processuais e condições da ação:
No movimento 9, promovi a prelibação da peça inicial, apreciando os pressupostos processuais e as condições para válido exercício do direito de ação. Não sobrevieram elementos de convicção ou argumentos que ensejem reexame de tais questões, suscetíveis de apreciação até mesmo de ofício, conforme art. 485, §3, Código de Processo Civil/15.
Retomo o exame a respeito do pedido de liminar.
2.2.
Considerações gerais sobre a antecipação de tutela:
Como sabido, a cláusula do devido processo envolve alguma aporia. Por um lado, o processo há de ser adequado: deve assegurar defesa, contraditório, ampla produção probatória. E isso consome tempo. Todavia, o processo também deve ser eficiente, ele deve assegurar ao titular de um direito uma situação jurídica idêntica àquela que ele teria caso o devedor houvesse satisfeito sua obrigação na época e forma devidas.
A demora pode contribuir para um debate mais qualificado entre as partes; todavia, também leva ao grande risco de ineficácia da prestação jurisdicional, caso o demandante tenha realmente razão em seus argumentos.
Daí a relevância do prudente emprego da tutela de urgência, prevista no art. 300 e ss. do CPC/2015. Desde que a narrativa do demandante seja verossímil, seus argumentos sejam fundados e a intervenção imediata do Poder Judiciário seja necessária - i.e., desde que haja
fumus boni iuris
e
periculum in mora -
a antecipação da tutela deverá ser deferida.
Sem dúvida, porém, que o tema exige cautela, eis que tampouco soa compatível com o devido processo a conversão da antecipação em um expediente rotineiro, o que violentaria a cláusula do art. 5º, LIV e LV, CF. Ademais, o provimento de urgência não pode ser deferido quando ensejar prejuízos irreversíveis ao demandado (art. 300, §3º, CPC).
Daí o relevo da lição de Araken de Assis, como segue:
"A tutela de urgência e a tutela de evidência gravitam em torno de dois princípios fundamentais: (a) o princípio da necessidade; e (b) o princípio da menor ingerência.
- Princípio da necessidade - Segundo o art. 301, in fine, a par do arresto, sequestro, arrolamento de bens, e protesto contra a alienação de bens, o órgão judiciário poderá determinar qualquer outra medida idônea para asseguração do direito. Essa abertura aplica-se às medidas de urgência satisfativas (art. 303, caput): a composição do conflito entre os direitos fundamentais somente se mostrará legítima quando houver conflito real, hipótese em quase patenteia a necessidade de o juiz alterar o esquema ordinário de equilíbrio das partes perante o fator temporal do processo. A necessidade de o juiz conceder medida de urgência apura-se através da comparação dos interesses contrastantes dos litigantes. Dessa necessidade resulta a medida adequada à asseguração ou à satisfação antecipada em benefício do interesse mais provável de acolhimento em detrimento do interesse menos provável.
- Princípio do menor gravame - O princípio do menor gravame ou da adequação é intrínseco à necessidade. É preciso que a medida de urgência seja congruente e proporcional aos seus fins, respectivamente a asseguração ou a realização antecipada do suposto direito do autor. Por esse motivo, a medida de urgência cautelar prefere à medida de urgência satisfativa, sempre que adequada para evitar o perigo de dano iminente e irreparável, e, na órbita das medidas de urgência satisfativas, o órgão judiciário se cingirá ao estritamente necessário para a mesma finalidade." (ASSIS,
Araken
de.
Processo civil brasileiro.
volume II. Tomo II. Parge Geral: institutos fundamentais. São Paulo: RT, 2015, p. 370-371).
Cuidando-se, ademais, de pedido em desfavor da Fazenda Pública, a lei 8.437/1992 veda a antecipação de tutela que implique compensação de créditos tributários ou previdenciários (art. 1º, §5º). A lei do mandado de segurança veda a concessão de liminares com o fim de se promover a entrega de mercadorias, a reclassificação de servidores públicos e o aumento ou extensão de vantagens de qualquer natureza (art. 7º, §2º, lei 12.016).
Registre-se que o STF já se manifestou sobre a constitucionalidade de algumas dessas limitações (lei 9.494), conforme se infere da conhecida
ADC 04-6/DF
, rel. Min. Sydnei Sanches (DJU de 21.05.1999), com os temperamentos reconhecidos no
informativo 248, STF
. No âmbito do Direito Administrativo militar, há restrições ao emprego do
writ
, por exemplo, diante do que preconiza o art. 51, §3º, lei n. 6.880/1980, ao exigir o exaurimento da via administrativa.
Por outro lado, como sabido, o juízo não pode antecipar a eficácia meramente declaratória de uma cogitada sentença de procedência. Afinal de contas, a contingência é inerente aos provimentos liminares; de modo que a certeza apenas advém do trânsito em julgado (aliás, em muitos casos, sequer depois disso, dadas as recentes discussões sobre a relativização da
res iudicata
): "
É impossível a antecipação da eficácia meramente declaratória, ou mesmo conferir antecipadamente ao autor o bem certeza jurídica, o qual somente é capaz de lhe ser atribuído pela sentença declaratória
. A cognição inerente ao juízo antecipatório é por sua natureza complemente inidônea para atribuir ao autor a declaração - ou a certeza jurídica por ele objetivada."
(MARINONI, Luiz Guilherme.
A antecipação da tutela.
7. ed. SP: Malheiros. p. 55)
No rito do mandado de segurança, o tema é regulado pelo art. 7 da lei n. 12.016/2009.
2.3. Respeito ao contraditório:
Assegurou-se manifestação à autoridade impetrada e à União Federal (art. 7, II, lei 12.016/2009) a respeito do pedido de liminar, o que atendeu ao postulado da bilateralidade de audiência - art. 5, LIV, LV, Constituição e art. 7, parte final, CPC/15.
2.4. Controle jurisdicional da Administração Pública:
Vivemos o tempo da superação do modelo de Estado meramente Legislativo em prol de um efetivo Estado Constitucional, conforme conhecida expressão de Peter Häberle, constitucionalista alemão.
Durante muitos anos, a teoria do Estado gravitou em torno do estudo das competências e dos órgãos administrativos. Atualmente, contudo, o eixo tem sido deslocado em direção à busca de efetividade dos direitos fundamentais. E isso é incompatível com a ideia de
legibus solutus
, própria ao Estado oitocentista.
Como explica Gustavo Binembojm,
"A palavra discricionariedade tem sua origem no antigo Estado europeu dos séculos XVI a XVIII, quando expressava a soberania decisória do monarca absoluto (voluntas regis suprema lex). Naquela época, do chamado Estado de polícia, em que o governo confundia-se integralmente com a Administração Pública, a sinonímia entre discricionariedade e arbitrariedade era total. Com efeito, se a vontade do soberano era a lei suprema, não fazia sentido cogitar de qualquer limite externo a ela. Por atavismo histórico, ainda nos dias de hoje encontra-se o adjetivo 'discricionário' empregado como sinônimo de arbitrário ou caprichoso, ou para significar uma decisão de cunho puramente subjetivo ou político, liberta de parâmetros jurídicos de controle."
(BINENBOJM, Gustavo.
Uma teoria do direito administrativo:
direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. RJ: Renovar, 2008, p. 195-196).
Posteriormente, essa noção de discricionariedade (então compreendida como sinônimo de arbítrio) evoluiu em prol do reconhecimento da existência de distintas opções deliberativas, desde que observados os limites estipulados pela própria lei. Em muitos casos, a lei imporia a finalidade, mas não estipularia os meios a serem escolhidos, pelos administradores, para a sua obtenção.
Em período mais recente, sob o Estado Constitucional, reconhece-se que o administrador público não pode decidir de qualquer forma, ao seu alvedrio.
"Em consequência, como assinala Maria Sylvia Z. Di Pietro, a discricionariedade deixa de ser compreendida como um campo externo ao direito - verdadeiro atavismo monárquico - passando a ser vista como um poder jurídico. É dizer: um espaço decisório peculiar à Administração, não de escolhas puramente subjetivas, mas definida pela prioridade das autoridades administrativas na fundamentação e legitimação dos atos e políticas públicas adotados, dentro de parâmetros jurídicos estabelecidos pela Constituição, pelas leis ou por atos normativos editados pelas próprias entidades da Administração."
(BINENBOJM.
Obra cit.
p. 199).
Ora, há muito é sabido que o Poder Judiciário pode promover o controle de atos administrativos discricionários, quando menos para aferir eventual desvio de finalidade. O grande debate diz respeito, isso sim, à intensidade e aos critérios envolvidos no aludido controle judicial.
Bandeira de Mello explica que
"
Em despeito da discrição presumida na regra de direito, se o administrador houver praticado ato discrepante do único cabível, ou se tiver algum fim seguramente impróprio ante o confronto com a finalidade da norma, o Judiciário deverá prestar a adequada revisão jurisdicional, porquanto, em rigor, a Administração terá desbordado da esfera discricionária
."
(BANDEIRA DE MELLO, Celso A.
Discricionariedade e controle jurisdicional.
SP: Malheiros, 2001, p. 36).
Concordo, pois, com Binenbojm quando enfatiza que
"A emergência da noção de juridicidade administrativa, com a vinculação direta da Administração à Constituição, não mais permite falar, tecnicamente, numa autêntica dicotomia entre atos vinculados e atos discricionários, mas, isto sim, em diferentes graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade.
A discricionariedade não é, destarte, nem uma liberdade decisória externa ao direito, nem um campo imune ao controle jurisdicional. Ao maior ou menor grau de vinculação do administrador à juridicidade corresponderá, via de regra, maior ou menor grau de controlabilidade judicial dos seus atos
."
(BINENBOJM, Gustavo.
Obra citada.
p. 208).
Diante do reconhecimento de efetividade aos princípios constitucionais da boa gestão pública (art. 37, CF), não há como imaginar que o Poder Executivo possa deliberar de qualquer modo, sem justificar suas escolhas e sem ter que prestar contas.
"
O mérito - núcleo do ato -, antes intocável, passa a sofrer a incidência direta dos princípios constitucionais. Deste modo, ao invés de uma dicotomia tradicional (ato vinculado v. ato discricionário), já superada, passa-se a uma classificação em graus de vinculação à juridicidade, em uma escala decrescente de densidade normativa vinculativa
."
(BINENBOJM, Gustavo.
Obra citada.
p. 209).
Convém atentar para a precisa síntese de Binenbojm:
"É interessante registrar que a aplicação da teoria do desvio de poder para o controle da finalidade dos atos administrativos discricionários não importa controle do mérito propriamente dito, mas como que um estreitamento do seu âmbito.
Ou seja: não se trata de controlar o núcleo da apreciação ou da escolha, mas de diminuir mo espaço em que o administrador faz escolhas de acordo com a própria conveniência e oportunidade.
O mesmo pode ser afirmado com relação às outras formas, ditas, de controle do mérito do ato administrativo, como o controle da proporcionalidade, da moralidade e da eficiência. Neste sentido, por exemplo, não se controla o mérito do ato administrativo em descompasso com a proporcionalidade, mas apenas se reconhece que o conteúdo desproporcional do ato simplesmente não é mérito
.
Em outras palavras, não há conveniência e oportunidade possível fora dos limites estabelecidos pela proporcionalidade." (BINENBOJM, Gustavo.
Obra cit.
p. 210)
Sei bem que, no mais das vezes, as questões alusivas à eficiência de determinadas soluções administrativas escapam do controle judicial, sob pena de se instituir um governo de magistrados, inviabilizando-se a própria administração pública e comprometendo o sistema de pesos e contrapesos
. Repiso esse detalhe: os juízos de mera conveniência e de mera oportunidade escapam, em regra, do controle jurisdicional, salvo quando se tratar de escolhas manifestamente desastrosas, desproporcionais, que comprometam a própria moralidade pública ou mesmo uma noção mínima de eficiência.
Colho a lição de Hans Wolff, Otto Bachof e Rolf Stober:
"Enquanto a Administração está orientada para a multiplicidade e tem responsabilidade metajurídica, a jurisprudência é de tipo monodisciplinar-jurídico (...).
Por isso, o controlo jurisdicional circunscreve-se apenas ao controlo jurídico. Este controlo não se confunde com a vigilância completa (Rundum-Beaufsichtigung) da Administração
. Por isso, o controle jurisdicional termina onde deixam de existir padrões jurídicos de controlo (...). Aqui a autonomia da Administração manifesta-se de forma particularmente clara. Em primeiro plano, está a auto-responsabilidade, que terá de ser respeitada pela jurisprudência, bem como a oportunidade, mas não a legalidade da actuação (...). A ideia nuclear é a de que o controlo jurisdicional não conduz a uma subalternização da Administração e os tribunais não devem substituir as apreciações (valorações) da Administração pelas suas próprias valorações.
Nesse contexto, devemos distinguir duas questões fundamentais. Por um lado, suscita-se a questão de saber se num Estado de direito que pratica a divisão de poderes haverá decisões 'livres do direito' para a Administração, no sentido de determinadas medidas estarem totalmente excluídas do controlo jurisdicional (os chamados actos de autoridade sem justiça). Esta questão suscitou-se quanto aos actos de governo e quanto aos actos de graça, mas que deve ser recusada na vigência da lei fundamental
(...). Diferente é a questão de saber até que ponto o legislador exclui do controlo jurisdicional decisões administrativas por questões de celeridade e de eficiência administrativas, através da criação de normas de sanação e de preclusão (Heilungs- und Präklusionsvorschriften) (...)
Por outro lado, trata-se do problema de saber se e em que medida a Administração goza, quanto às decisões a tomar, de margens de conformação que apenas limitem a intensidade do controlo jurisdicional (a chamada densidade do controlo). Sejam aqui lembradas apenas as margens de discricionariedade, cujo exercício está subordinado a determinados limites jurídicos." (WOLFF, Hans J.; BACHOF, Otto; STOBER, Rolf.
Direito administrativo. volume I.
Tradução do alemão por António F. de Souza. Calouste Gulbenkian, 2006, p. 247-248)
Em muitos casos, todavia, deve-se ter em conta a teoria dos motivos determinantes, bem explicitada por Hely Lopes Meireles:
"A teoria dos motivos determinantes funda-se na consideração de que os atos administrativos, quando tiverem sua prática motivada, ficam vinculados aos motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos. Tais motivos é que determinam e justificam a realização do ato, e, por isso mesmo, deve haver perfeita correspondência entre eles e a realidade. Mesmo os atos discricionários, se forem motivados, ficam vinculados a esses motivos como causa determinante de seu cometimento e sujeitam-se ao confronto da existência e legitimidade dos motivos indicados. Havendo desconformidade entre os motivos determinantes e a realidade, o ato é inválido."
(MEIRELLES, Hely Lopes.
Direito Administrativo Brasileiro.
14ª Edição, Editora RT, p. 175)
É fato que, na contemporaneidade, alguns autores têm criticado referida teoria, como bem ilustra a seguinte lição de Marçal Justen Filho:
"A teoria dos motivos determinantes estabelece que o
agente administrativo se vincula à motivação adotada
, de modo que se presume que o motivo indicado foi o único a justificar a decisão adotada. Essa teoria deve ser reputada como
ultrapassada
, não se prestando mais ao controle de validade dos atos administrativos. Foi desenvolvida nos primórdios do direito administrativo, quando ainda não se delineara de modo perfeito a distinção entre autonomia de vontade privada e vontade funcionalizada própria do direito administrativo. Mais ainda, era um instrumento de controle construído em vista de certa concepção de discricionariedade.
A afirmação pelo agente de que atuou fundado em determinados motivos não produz efeitos vinculantes para fins de controle. Pode evidenciar-se a existência de motivos ocultos ou disfarçados. Mas não há impedimento a que a Administração Pública evidencie, posteriormente, que o ato se fundou em outros motivos, que justificavam adequadamente a decisão adotada
. A equivocada indicação do motivo é uma falha, mas o grave reside na ausência de atuação orientada a satisfazer as necessidades coletivas, com a observância de um procedimento democrático." (JUSTEN FILHO, Marçal.
Curso de direito administrativo.
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 264)
Em que pese a densidade da crítica de Marçal Justen Filho, essa teoria ainda exerce salutar função democrática, ao estimular, por vias oblíquas, o dever de fundamentação do ato administrativo. Compartilho, pois, da lição de José dos Santos Carvalho Filho quando argumenta:
"
A teoria dos motivos determinantes baseia-se no princípio de que o motivo do ato administrativo deve sempre guardar compatibilidade com a situação de fato que gerou a manifestação da vontade
. E não se afigura estranho que se chegue a essa conclusão: se o motivo se conceitua como a própria situação de fato que impele a vontade do administrador, a inexistência dessa situação provoca a invalidação do ato."
(CARVALHO F, José dos Santos.
Manual de direito administrativo.
24. ed. RJ: Lumen Juris, 2011, p. 109).
Afinal de contas, conquanto o Poder Judiciário não possa invadir a esfera decisória que é própria do Poder Executivo - o que não se discute -, também é fato que se deve
"
fortalecer o postulado da inafastabilidade de toda e qualquer fiscalização judicial. A progressiva redução e eliminação dos círculos de imunidade do poder há de gerar, como expressivo efeito consequencial, a interdição do seu exercício abusivo
."
(FAGUNDES, Seabra.
O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário.
Atualizado por Gustavo Binenbojm. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 191).
Conjugando-se esses elementos, vê-se que o Direito Administrativo contemporâneo não mais acolhe a premissa de que o mérito dos atos administrativos seria sempre insuscetível de controle judicial. Isso não ocorre em um Estado Constitucional,
dado que administrar é exercer função: é atuar em nome próprio, mas no interesse alheio
. É cabível, ademais, o controle de decisões fundadas em fontes normativas que veiculam conceitos porosos, imprecisos, indeterminados (leia-se CARRIÓ, Genaro R.
Notas sobre Derecho y lenguaje.
6. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2011).
Isso significa que, diante da efetividade dos princípios constitucionais, o administrador público não pode decidir ao seu líbito, já que - mesmo em tais casos - há zonas de certeza positiva e negativas, suscetíveis de aferição judicial.
(...) 1.
De acordo com a doutrina mais autorizada, os conceitos jurídicos indeterminados, como, no caso, procedimento irrepreensível e idoneidade moral inatacável, sujeitam-se a controle judicial de sua configuração concreta.
2. Não é omissão de aplicação do disposto no art. 37, I, da Constituição e no art. 8o., I, do Dec.-Lei n. 2.320/87 a afirmação de que os fatos alegados - acontecidos há mais de dez anos e em razão dos quais, processado, o apelado restou absolvido - não justificam exclusão do Curso de Agente de Polícia Federal. (EDAC 964030319994010000, DESEMBARGADOR FEDERAL JOAO BATISTA MOREIRA, TRF1 - QUINTA TURMA, DJ DATA:14/11/2002 PAGINA:207.)
No que toca à fiscalização dos atos discricionários, menciono os precedentes abaixo, colhidos junto ao STF e STJ:
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DE PROFESSORES. EXISTÊNCIA DE CANDIDADOS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO DE PROVIMENTO EFETIVO. ILEGALIDADE. LEI ESTADUAL 6.915/2007. EXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 279 DESTA CORTE. ANÁLISE DE LEGISLAÇÃO LOCAL. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 280 DO STF. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO. POSSIBILIDADE DE CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS ADMINISTRATIVOS DISCRICIONÁRIOS ABUSIVOS E ILEGAIS. AGRAVO IMPROVIDO. I - Inviável o recurso extraordinário quando sua apreciação demanda o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, bem como da legislação infraconstitucional local aplicável à espécie. Incidência das Súmulas 279 e 280 do STF. Precedentes. II -
Esta Corte possui entendimento no sentido de que o exame pelo Poder Judiciário do ato administrativo tido por ilegal ou abusivo não viola o princípio da separação dos poderes
. Precedentes. III - Agravo regimental improvido. (RE-AgR 654170, RICARDO LEWANDOWSKI, STF.)
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. DEMISSÃO. PODER DISCIPLINAR. LIMITES DE ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. ATO DE IMPROBIDADE. 1. Servidor do DNER demitido por ato de improbidade administrativa e por se valer do cargo para obter proveito pessoal de outrem, em detrimento da dignidade da função pública, com base no art. 11, caput, e inciso I, da Lei n. 8.429/92 e art. 117, IX, da Lei n. 8.112/90. 2.
A autoridade administrativa está autorizada a praticar atos discricionários apenas quando norma jurídica válida expressamente a ela atribuir essa livre atuação. Os atos administrativos que envolvem a aplicação de "conceitos indeterminados" estão sujeitos ao exame e controle do Poder Judiciário. O controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato, à luz dos princípios que regem a atuação da Administração.
3. Processo disciplinar, no qual se discutiu a ocorrência de desídia --- art. 117, inciso XV da Lei n. 8.112/90. Aplicação da penalidade, com fundamento em preceito diverso do indicado pela comissão de inquérito. A capitulação do ilícito administrativo não pode ser aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa. De outra parte, o motivo apresentado afigurou-se inválido em face das provas coligidas aos autos. 4. Ato de improbidade: a aplicação das penalidades previstas na Lei n. 8.429/92 não incumbe à Administração, eis que privativa do Poder Judiciário. Verificada a prática de atos de improbidade no âmbito administrativo, caberia representação ao Ministério Público para ajuizamento da competente ação, não a aplicação da pena de demissão. Recurso ordinário provido. (RMS 24699, EROS GRAU, STF.)
Concluo, pois, ser plenamente cabível o controle judicial dos atos administrativos, mesmo quando discricionários.
Deve-se atuar com circunspeção, todavia, a fim de que o Poder Judiciário não se substitua ao Poder Executivo, no juízo de conveniência e oportunidade de determinadas políticas públicas, salvo quando manifestamente ineficientes, inadequadas ou abusivas
.
2.5. Devido processo administrativo:
De outro tanto, como cediço, a cláusula do
due
process
of law
submete-se tanto a um viés formal (procedimento, rito), quanto a um enfoque substancial ('justa causa' para a restrição a direitos fundamentais). O preceito deu causa à edição das conhecidas súmulas 70, 323, 523 e 547 do STF.
Transcrevo, por oportuno, o art. 5º, LIV e LV da Lei Fundamental/88:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV -
aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes
.
Ora,
"A teoria do devido processo legal, construída na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, compreende duas perspectivas: substantive due process e procedural due process. A primeira é projeção do princípio no campo do direito material, enquanto a segunda funciona como garantia na esfera processual. O espectro da proteção é o trinômio vida-liberdade-propriedade."
(BACELLAR FILHO, Romeu Felipe.
Processo administrativo disciplinar.
São Paulo: Max Limonad. p. 223).
Desse modo,
"Quanto ao procedural du
process
, os dois interesses centrais podem ser identificados no caso Marschall versus Jerrico, inc. 446 US 238 (1980):
o governo não deve privar uma pessoa de um interesse importante a menos que a correta compreensão dos fatos e a lei permita; mesmo se o governo puder legalmente privar alguém de um interesse importante, o indivíduo tem o direito de ser ouvido perante uma Corte neutra antes da privação
. Enquanto a primeira regra prende-se à realidade da Justiça ('actuality of justice'), a segunda envolve a aparência de justiça ('appearance of justice')"
(BACELLAR FILHO.
Obra.
p. 224).
Reporto-me também à lição de Canotilho:
"
Processo devido em direito significa a obrigatoriedade da observância de um tipo de processo legalmente previsto antes de alguém ser privado da vida, da liberdade e da propriedade. Nestes termos, o processo devido é o processo previsto na lei para a aplicação de penas privativas da vida, da liberdade e da propriedade
. Dito por outras palavras: due process equivalente ao processo justo definido por lei para se dizer o direito no momento jurisdicional de aplicação de sanções criminais particularmente graves (...) o due process of law pressupõe que o processo legalmente previsto para a aplicação de penas seja ele próprio um processo devido, obedecendo aos trâmites procedimentais formalmente estabelecidos na Constituição ou plasmados em regras regimentais das assembléias legislativas." (CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Direito constitucional e teoria da Constituição.
7ª ed. Almedina, p. 493)
Sob o enfoque material, portanto, a cláusula do art. 5º, LIV, CF, condiciona a restrição a direitos fundamentais aos requisitos de idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
2.6. Controle da proporcionalidade:
Ademais, como notório, a atuação das entidades estatais deve respeitar ao postulado da proporcionalidade, questão verbalizada expressamente pelo art. 18 da Constituição de Portugal de 1976 e que remanesce implícita, na Lei Maior brasileira (art. 5º, LIV - enquanto projeção material da cláusula do devido processo).
Art. 18 - Constituição de Portugal. 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2.
A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos
. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
Reporto-me, tanto por isso, à lição de Bernal Pulido:
"1. Segundo o
subprincípio da idoneidade
, toda intervenção nos direitos fundamentais deve ser adequada para contribuir para a obtenção de um fim constitucionalmente legítimo. 2. Conforme o
subprincípio de necessidade
, toda medida de intervenção nos direitos fundamentais deve se a mais benigna com o direito no qual se interveio, dentre todas aquelas que revistam da mesma idoneidade para contribuir para alcançar o fim proposto. 3. No fim, conforme o
princípio da proporcionalidade em sentido estrito
, a importância dos objetivos perseguidos por toda intervenção nos direitos fundamentais deve guardar uma adequada relação com o significado do direito intervindo. Em outros termos, as vantagens que se obtém mediante a intervenção no direito devem compensar os sacrifícios que esta implica para seus titulares e para a sociedade em geral."
(PULIDO, Carlos Bernal.
El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales:
el principio de proporcionalidad como criterio para determinar el contenido de los derechos fundamentales vinculantes para el legislador. 3. ed. Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. 2007. p. 42)
Ou seja, as opções estatais não podem ser promovidas com excesso, eis que deve se conter ao mínimo indispensável para a salvaguarda dos interesses públicos que o justificam. Deve-se atentar para o conhecido postulado
odiosa sunt restringenda
(
Übermamaßverbot
).
A respeito do tema, menciono também a obra de Suzana de Toledo Barros.
O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das Leis restritivas de direitos fundamentais.
Brasília jurídica, 2ª ed., p. 69/82. Transcrevo, ademais, a análise de Canotilho e Vital Moreira:
"O terceiro pressuposto material para a restrição legítima de direitos, liberdades e garantias consiste naquilo que genericamente se designa por princípio da proporcionalidade. Foi a LC 01/82 que deu expressa guarida constitucional a tal princípio (art. 18-2, 2ª parte), embora já antes, não obstante a ausência de texto expresso, ele fosse considerado um princípio material inerente ao regime dos direitos, liberdades e garantias.
O princípio da proporcionalidade (também chamado de princípio da proibição de excesso) desdobra-se em três subprincípios
: (a) princípio da adequação (também designado como princípio da idoneidade), isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade (também chamado de princípio de necessidade, ou da indispensabilidade), u seja, as medidas restritivas previstas na Lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela Lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (c) princípio da proporcionalidade em sentido estrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa justa medida, impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos.
Em qualquer caso, há um limite absoluto para a restrição de direitos, liberdades e garantias, que consiste no respeito ao conteúdo essencial dos respectivos preceitos
."
(CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital.
Constituição da República Portuguesa Anotada.
Volume 1: arts. 1º a 107. 1ª ed. brasileira. 4ª edição portuguesa. Coimbra Ed. p. 394-395)
Vale dizer: a restrição a direitos fundamentais deve ser graduada pelo critério da indispensabilidade; ela somente pode ser imposta quando - e no limite em que - se revelar indispensável. Do contrário, o chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais (
Wesengehalt
) restaria atingido, como reconhecem expressamente o art. 18 da Constituição de Portugal/1976 e implicitamente a nossa Lei Maior.
Acrescento que o Poder Judiciário pode controlar a proporcionalidade dos atos administrativos, a fim de aferir se não implicam um comprometimento injustificado das expectativas jurídicas legítimas dos sujeitos, em prol de um retorno social que se revele reduzido ou inadequado. Como registrei antes, o mérito do ato administrativo não se furta ao controle jurisdicional, conquanto isso deva ser empregado com redobradas cautelas.
ATO ADMINISTRATIVO. CONTROLE JUDICIAL. PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. 1.
Ao controle judicial submete-se não apenas a legalidade do ato administrativo, como também a observância aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e, uma vez verificada a desproporção entre a multa aplicada e a infração cometida, cabe ao Judiciário adequá-la a parâmetros razoáveis
. 2. Apelação não provida. 3. Peças liberadas pelo Relator, em 03/02/2009, para publicação do acórdão. (TRF-1 - AC: 20899 DF 1997.34.00.020899-0, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL LUCIANO TOLENTINO AMARAL, Data de Julgamento: 03/02/2009, 7. TURMA, Publicação: 20/02/2009 e-DJF1 p.370)
2.7. Autoexecutoriedade administrativa:
O Estado de Direito impõe um plexo de garantias no que toca ao processo administrativo sancionador. De partida, quem acusa deve provar. Importa dizer, não se pode transportar, sem mais, a pretensa inversão do ônus da prova (presunção de legitimidade) para o âmbito do processo administrativo:
Ora, sabe-se que
"
A presunção de veracidade inverte o ônus da prova; é errado afirmar que a presunção de legitimidade produz esse feito, uma vez que, quando se trata de confronto entre o ato e a lei, não há matéria de fato a ser produzida; nesse caso, o efeito é apenas o anterior, ou seja, o juiz só apreciará a nulidade se arguida pela parte
."
(PIETRO, Maria S.
Direito administrativo.
18. ed. SP: Atlas, 2005, p. 192).
Com efeito, em regra, os atestados, certidões e afirmações de servidores públicos possuem, em seu favor, a presunção de autenticidade do que é declarado. Do contrário, a atividade administrativa se tornaria praticamente inviável (devendo juntar, a cada certidão, um vídeo, uma fotografia acompanhada de duas testemunhas etc.).
Deve-se atentar para as importantes ressalvas promovidas por Lúcia Vale Figueiredo, no que toca à transposição desses vetores para o âmbito do processo administrativo sancionador:
"Se os atos administrativos desde logo são imperativos e podem ser exigíveis (i.e., tornam-se obrigatórios e executáveis), há de militar em seu favor a presunção iuris tantum de legalidade. Todavia, como bem assinala Celso Antônio, a presunção se inverte quando os atos forem contestados em juízo ou, diríamos nós, também fora dele, quando contestados administrativamente.
Caberá à Administração provar a estrita conformidade do ato à lei, porque ela (Administração) é quem detém a comprovação de todos os atos e fatos que culminaram com a emanação do provimento administrativo contestado. Determinada, p.ex., a demolição de imóvel por ameaça à incolumidade pública, se houver contestação em juízo, deverá a administração provar (por meio de estudos técnicos ou pareceres, de profissionais competentes) que o imóvel ameaçava ruir e que desse fato resultava a periclitação da incolumidade pública.
De outra parte, se a regra de que a prova é de quem alega não fosse invertida, teríamos, muitas vezes, a determinação feita ao administrado de prova impossível, por exemplo, da inocorrência da situação de fato.
A prerrogativa de tal importância - presunção de legalidade - deve necessariamente corresponder, se houver confronto, a inversão do onus probandi. Isso, é claro, em princípio
.
Trazemos agora a contexto a aplicação de sanções. Muita vez torna-se difícil - ou quase impossível - provar que o sancionado não incorreu nos pressupostos da sanção (a prova seria negativa). Caberá, destarte, à Administração provar cabalmente os fatos que a teriam conduzido à sanção, até mesmo porque, em face da atuação sancionatória, vige, em sua plenitude, o inciso LIV, art. 5º do texto constitucional
.
Na verdade, quando os atos emanados forem decorrentes de infrações administrativas ou disciplinares não há como não se exigir da Administração a prova contundente da existência dos pressupostos fáticos para o ato emanado. Para isso, a motivação do ato é de capital importância." (FIGUEIREDO, Lúcia Valle.
Curso de direito administrativo.
5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 171-172)
Reporto-me também à seguinte lição de Justen Filho:
"A autoexecutoriedade indica a possibilidade de a Administração Pública obter a satisfação de um direito ou de dirimir um litígio de que participa sem a intervenção imediata do Poder Judiciário, produzindo atos materiais necessários a obter o bem da vida buscado. A auto-executoriedade pode conduzir obviamente ao impedimento da prática de certos atos pelos particulares. (...) Não há vedação radical ao uso da força pela Administração Pública, na medida em que tal seja a solução adequada para a realização do Direito. Mas o uso da força deverá refletir um devido processo legal, sendo acompanhado da observância de todas as formalidades comprobatórias necessárias e das garantias inerentes ao processo. Mais ainda, não se admite o uso da força mediante mera invocação de fórmulas genéricas determinadas, tais como interesse público, bem comum, segurança, etc. Deve-se identificar, de modo concreto, o bem jurídico tutelado e expor o motivo pelo qual se reputa que a força deva ser utilizada. É evidente que existem situações concretas emergenciais em que o cumprimento destas formalidades é impossível."
(JUSTEN FILHO, Marçal.
Curso de direito administrativo.
São Paulo: Saraiva, p. 207)
Enfim, desde que realmente se trate de uma imposição abusiva, excessiva, o Poder Judiciário deve reconhecer a sua invalidade, com o fim de assegurar os direitos indevidamente atingidos.
2.8. Dever de motivação:
A Administração Pública está obrigada a motivar os atos administrativos concretos, consectário direto do postulado da legalidade.
"
A motivação é elemento essencial para o controle, sobretudo para o controle judicial. Não haverá possibilidade de aferir se o ato se conteve dentro da competência administrativa, dentro da razoabilidade, que deve nortear toda competência, caso não sejam explicitadas as razões condutoras do provimento emanado
."
(FIGUEIREDO, Lúcia Valle.
Curso de direito administrativo.
5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 174).
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da motivação
"implica para a Administração o dever de justificar seus atos, apontando-lhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes e a providência tomada, nos casos em que este último aclaramento seja necessário para aferir-se a consonância da conduta administrativa com a lei que lhe serviu de arrimo."
(BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.
Curso de Direito administrativo.
19ª Ed, revisada e atualizada. SP: Malheiros, 2005, p. 100).
O art. 2º, caput, lei 9784/1999 dispõe expressamente que
"
A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência
."
O art. 38, §1º da mesma lei preconiza que os elementos probatórios colhidos no curso da instrução devem ser considerados na motivação do relatório e da decisão. A motivação também é invocada, por exemplo, nos arts. 45 e 49 da mesma lei. O seu art. 50, §1º dispõe que
"A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato."
Registre-se, todavia, que os tribunais têm reconhecido a validade da fundamentação
per relationem,
inclusive quanto a deliberações judiciais:
"A decisão administrativa do Corregedor-Geral de Justiça empregou a chamada motivação
per relationem
- isto é, valeu-se integralmente das razões lançadas no parecer da Juíza-Corregedora para não conhecer do recurso -,
técnica essa que não é vedada, tampouco importa ausência de fundamentação
desde que o decisum se reporte a manifestações ou peças processuais que contenham os motivos, de fato e de direito, a amparar a conclusão judicial esposada, como na espécie."
(ROMS 200601698350, CASTRO MEIRA, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:10/02/2011 ..DTPB:. omiti o restante da ementa)
2.9. Estatuto jurídico do estrangeiro:
A Constituição Federal refere-se aos estrangeiros em vários dispositivos, a exemplo do art. 5º,
caput,
em que preconiza a isonomia entre brasileiros e estrangeiros residentes em solo nacional. O art. 5º, LII veda a extradição de estrangeiros por crimes políticos ou de opinião. O inciso XXXI assegura aos estrangeiros a aplicação da lei mais favoráveis - brasileira ou estrangeira - quanto à sucessão de bens de estrangeiros situados no país.
Em que pese, porém, a regra de igualdade de tratamento, a Lei Maior relaciona pontuais restrições aplicáveis aos estrangeiros em solo nacional, sem correlatos quanto aos brasileiros.
A Constituição proíbe-lhes o alistamento e voto (art. 14, § 2º). Limita, ademais, a acessibilidade a cargos públicos – o exercício de funções públicas por estrangeiros depende de futura previsão legal (art. 37, I). Há previsão da possibilidade de universidades admitirem professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma de lei aludida no art. 207, § 1º. Além disso, há proscrição de acesso a cargos públicos especiais – de presidente e vice-presidente da República; de presidente da Câmara dos Deputados; de presidente do Senado Federal; de ministro do Supremo Tribunal Federal; da carreira diplomática; de oficial das Forças Armadas; de ministro de Estado da Defesa (art. 12, § 3º).
Assim, percebe-se que a Constituição impõe o tratamento isonômico entre estrangeiros que residam no solo nacional e os brasileiros, ao tempo em que impõe limitações a isso. Convém notar, porém, que - em princípio - aludidas restrições anti-isonômicas não poderiam ser ampliadas pelos Congressistas, salvo quando presentes situações excepcionais e constitucionalmente adequadas que a justificassem. Em muitos casos, pode-se cogitar da invocação da reciprocidade internacional como um fator a ser tomado em conta para essa análise.
A Suprema Corte já declarou que
"
A assistência social prevista no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal beneficia brasileiros natos, naturalizados e estrangeiros residentes no País, atendidos os requisitos constitucionais e legais
."
(STF - RE: 587970 SP, Relator: MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 20/04/2017, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 22/09/2017). Na ocasião do julgamento, o Min. relator registrou:
"São esses, alfim, os parâmetros materiais dos quais se deve partir na interpretação da regra questionada. Indague-se: o constituinte excluiu o direito de os estrangeiros residentes no País receberem benefícios sociais, em especial o de prestação continuada versado no artigo 203, inciso V, da Lei Maior?
À luz do texto constitucional, tem-se que a resposta é desenganadamente negativa
."
Por outro lado, o Supremo Tribunal já decidiu como segue:
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REGISTRO NACIONAL DE ESTRANGEIRO - RNE. TAXA DE EXPEDIÇÃO. GRATUIDADE. ISENÇÃO. HIPOSUFICIÊNCIA ECONÔMICA. PODER JUDICIÁRIO. LEGISLADOR POSITIVO. 1. A controvérsia relativa à caracterização do Registro Nacional de Estrangeiro como taxa de serviço público e respectiva norma isentiva ostenta natureza infraconstitucional, à luz do Código Tributário Nacional e da Lei 6.815/1980. 2. Não há, sequer no plano hipotético, antinomia entre o art. 5º, LXXVII, da CFRB/88, e o art. 131 da Lei 6.815/1980, que institui a Tabela de Emolumentos Consulares e Taxas do Estatuto do Estrangeiro. 3.
O alcance da gratuidade dos atos necessários ao exercício da cidadania e os destinatários dessa norma imunizante estão sujeitos à reserva legal. Uma vez recepcionada a legislação pré-constitucional alegada inconstitucional pela Agravante, os critérios isentivos dos documentos a que se refere estão sob o pálio da liberdade relativa de conformação do Legislador ordinário. 4. O Poder Judiciário não pode criar ou estender benefício fiscal, sem amparo legal, com base em eventual isonomia cívica entre brasileiros e estrangeiros residentes no país, elegendo o critério isentivo da hipossuficiência econômica
. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 1052420 AgR, Relator (a): Min. EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 17/11/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-279 DIVULG 04-12-2017 PUBLIC 05-12-2017) (STF - AgR RE: 1052420 SP - SÃO PAULO 0001109-38.2015.4.03.6100, Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 17/11/2017, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-279 05-12-2017)
Nesse sentido, as decisões monocráticas prolatadas nos RE 852409 AgR, Rel.Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, DJe 30.04.2015; e RE 606179 AgR, Rel. Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, DJe 04.06.2013.
Na temática penal, o Superior Tribunal de Justiça deliberou que
"A proibição de progressão de regime para estrangeiro expulso constitui generalidade que vai de encontro ao princípio da individualização da pena, ademais, deve ser resguardado o princípio da igualdade, garantido pelo artigo 5º , caput, da Constituição Federal , tanto aos brasileiros como aos estrangeiros residentes no País. Precedentes.
O fato de a paciente ser estrangeira e estar em processo de expulsão do país não constitui óbice à progressão de regime de cumprimento de pena
."
(STJ - HC: 163871 SP 2010/0036537-4, Ministra ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/PE), Data de Julgamento: 16/05/2013, T6 - SEXTA TURMA, DJe 27/05/2013)
O anterior estatuto do estrangeiro - lei n. 6.815/1980 - e a lei 13.445, de 24 de maio de 2017 tangenciam o tema da isonomia. Essa legislação mais recente dispôs que devem ser assegurados aos estrangeiros, no âmbito de políticas migratórias, a igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e seus familiares. Por seu turno, o art. 4º da referida lei 13.445 estipulou que
"Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...). VIII - acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória; IX - amplo acesso à justiça e à assistência jurídica integral gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; X -
direito à educação pública, vedada a discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória
."
O art. 77 da lei 13.445 versou sobre a promoção de condições de vida digna para os estrangeiros em solo nacional, com prestação de serviços consultares no âmbito da saúde, trabalho, previdência, cultura e educação.
Em princípio, essa regra do art. 4º, X, da lei n. 13.445/2017 parece ter ab-rogado a norma do art. 1º, §1º da lei n. 11.096, de 13 de janeiro de 2005, veicula na sua redação original. Afinal de contas, segundo o art. 2º, §1º, do decreto-lei 4.657/1942:
"A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior."
Por conta dessas balizas, os Tribunais Regionais têm decidido da forma como transcrevo abaixo:
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. REMESSA NECESSÁRIA. PROUNI. ESTRANGEIRO. LEI DA MIGRAÇÃO Nº 13.445, DE 2017. DIREITO À EDUCAÇÃO EM CONDIÇÕES DE IGUALDADE COM OS NACIONAIS. -
Não se desconhece que a bolsa do Prouni visava atender apenas a brasileiros ou naturalizados, tudo conforme a Lei nº 11.096/2005 - No entanto, a Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 - Lei da Migração, que teceu uma vasta gama de princípios e diretrizes que devem nortear a política migratória (art. 3º), expressamente previu em seu artigo 4º, inciso X, o direito à educação pública, vedando a discriminação em razão de nacionalidade e da condição migratória
- Assim, dever ser garantido o direito à educação, ao migrante, em condições de igualdade com os nacionais, sendo vedado tratamento diferenciado em razão de sua nacionalidade, pelo que correta a concessão da segurança. (TRF-4 - REMESSA NECESSÁRIA CÍVEL: 50026596320204047107 RS 5002659-63.2020.4.04.7107, Relator: RICARDO TEIXEIRA DO VALLE PEREIRA, Data de Julgamento: 17/03/2021, QUARTA TURMA)
2.10. Alcance do art. 109 da lei n. 13.445/2017:
Os arts. 106 e ss. da lei n 13.445, de 24 de maio de 2017 versam sobre as sanções a serem cominadas por conta do descumprimento das normas veiculadas no estatuto do estrangeiro.
Art. 109. Constitui infração, sujeitando o infrator às seguintes sanções: I - entrar em território nacional sem estar autorizado: Sanção: deportação, caso não saia do País ou não regularize a situação migratória no prazo fixado; II -
permanecer em território nacional depois de esgotado o prazo legal da documentação migratória: Sanção: multa por dia de excesso e deportação, caso não saia do País ou não regularize a situação migratória no prazo fixado
; III - deixar de se registrar, dentro do prazo de 90 (noventa) dias do ingresso no País, quando for obrigatória a identificação civil: Sanção: multa; IV - deixar o imigrante de se registrar, para efeito de autorização de residência, dentro do prazo de 30 (trinta) dias, quando orientado a fazê-lo pelo órgão competente: Sanção: multa por dia de atraso; V - transportar para o Brasil pessoa que esteja sem documentação migratória regular: Sanção: multa por pessoa transportada; VI - deixar a empresa transportadora de atender a compromisso de manutenção da estada ou de promoção da saída do território nacional de quem tenha sido autorizado a ingresso condicional no Brasil por não possuir a devida documentação migratória: Sanção: multa; VII - furtar-se ao controle migratório, na entrada ou saída do território nacional: Sanção: multa.
A respeito do tema, leia-se:
"Como vimos anteriormente, para a concessão dos vistos temporários, faz-se necessária a obtenção prévia da autorização de residência correspondente.O Código Civil brasileiro define domicílio da pessoa natural como o local onde estabelece a sua residência com ânimo definitivo. Assim, a diferença entre residência e domicílio, para fins legais, está centrada justamente no caráter transitório ou definitivo que a pessoa atribua à sua estada em determinada localidade.Antigamente, a legislação migratória diferenciava residência de permanência, inclusive com a criação de um visto de permanência, através do qual se autorizava a residência em caráter definitivo no país.
A nova Lei de Migração andou muito bem ao abolir esta diferenciação de nomenclaturas – que acabavam, muitas vezes, gerando uma “diferenciação” no tratamento dado aos estrangeiros temporários e definitivos dispensado pelas autoridades brasileiras –, e estabelecendo o conceito da autorização de residência, com regras gerais iguais para todos os casos, respeitadas as particularidades de cada motivação da estada no país, e viabilizando, a meu ver corretamente, que o próprio estrangeiro possa, atendidas as exigências legais, conferir à sua residência no país o ânimo (temporário ou definitivo) que lhe aprouver.A autorização de residência não será concedida se o requerente não atender às exigências normativas para o tipo de autorização pretendida, ou, de modo geral, a pessoa condenada criminalmente no Brasil, ou no exterior, por sentença transitada em julgado, desde que a conduta esteja tipificada na legislação penal brasileira.
A condenação criminal somente não será impeditiva da autorização de residência se: A conduta típica caracterizar infração de menor potencial ofensivo; ou A pessoa se enquadre nas hipóteses de tratamento de saúde, acolhida humanitária, reunião familiar, ou seja, beneficiária de tratado em matéria de residência e livre circulação. As autorizações de residência para fins de pesquisa, ensino ou extensão acadêmica, e de trabalho devem ter sua deliberação concluída em, no máximo, 60 (sessenta) dias, a contar de sua solicitação.
Os requerimentos de renovação de residência temporária, ou de sua conversão em definitiva, devem ocorrer antes do final do prazo de estada. Caso o estrangeiro deixe esgotar o prazo de estada, poderá requerer nova autorização de residência, incorrendo, entretanto, na sanção por permanecer em território nacional depois de esgotado o prazo legal da documentação migratória, que implica no pagamento de multa por dia de excesso, ou deportação, caso não saia do país ou não regularize a situação migratória no prazo fixado
.
A autorização de residência pode ser concedida independentemente da condição migratória
. Ou seja, mesmo que o estrangeiro tenha se tornado irregular no país, ou tenha ingressado de modo irregular, poderá, atendidas as exigências legais cabíveis, regularizar sua estada e receber a competente autorização de residência. Essa medida é impossível na legislação migratória anterior, e constitui um dos grandes avanços trazidos pela nova Lei de Migração.A autorização de residência poderá ser negada à pessoa: - Anteriormente expulsa do País, enquanto os efeitos da expulsão vigorarem; - Condenada, ou respondendo a processo por ato de terrorismo ou por crime de genocídio, crime contra a humanidade, crime de guerra ou crime de agressão, nos termos definidos pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 1998; - Condenada, ou respondendo a processo em outro país, por crime doloso passível de extradição segundo a lei brasileira; - Que tenha o nome incluído em lista de restrições, por ordem judicial ou por compromisso assumido pelo Brasil, perante organismo internacional; - Que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal.
A posse ou a propriedade de bem no Brasil não confere o direito de obter visto ou autorização de residência em território nacional, salvo se for visto para realização de investimento no país.A autorização de residência poderá ter sua perda decretada, nas seguintes hipóteses
: - Cessação do fundamento que embasou a autorização de residência; - Obtenção de autorização de residência com fundamento em outra hipótese; e -Ausência do País por período superior a dois anos sem apresentação de justificativa.Para que não tenha problemas legais, o estrangeiro deve informar à Polícia Federal toda e qualquer alteração nas condições que fundamentaram a concessão de sua autorização de residência, ainda enquanto esta for vigente. Dessa forma, conseguirá a devida regularização de sua condição migratória, atendidas as exigências legais, e não ficará sujeito às sanções decorrentes da irregularidade de sua condição.A autorização de residência será cancelada, a qualquer tempo, nas seguintes hipóteses: Fraude; - Ocultação de condição impeditiva de concessão de visto, ingresso ou autorização de residência no País; - Se constatado que o nome do requerente constava em lista restritiva de organismo internacional, na data da autorização de residência." (AMORIM, João Alberto Alves.
Direito dos Estrangeiros no Brasil.
São Paulo: RT. 2022. RB 2.8)
Por outro lado, eventual irregularidade na permanência do(a) estrangeiro(a) em solo nacional pode dar ensejo à deportação, conforme art. 50 da referida lei n. 13.445/2017 e art. 310 do Decreto nº 9.199/2017. A deportação é medida de
"retirada compulsória do imigrante irregular, sendo resultado de processo administrativo, as infrações administrativas com sanção de deportação devem ser apuradas conforme o processo administrativo desenhado para a regularização migratória (art. 176 do Decreto)."
(KENICKE, Pedro.
Comentários à lei de migração:
lei 13.445/2017. SP: RT 2021. comentários ao art. 109).
Transcrevo também o seguinte:
"Nesse caso, o imigrante deve ser pessoalmente notificado pela Polícia Federal, da qual constem expressamente as irregularidades verificadas e a determinação para que o imigrante regularize a sua situação migratória em até 60 (sessenta) dias corridos contados da data da notificação ou, então, deixe o Brasil voluntariamente. A saída voluntária equivale ao cumprimento da notificação.
O prazo poderá ser prorrogado por igual período por meio de despacho fundamentado e desde que o notificado compareça à unidade da Polícia Federal para justificar a necessidade da prorrogação mediante o compromisso de que manterá atualizadas as suas informações domiciliares. Vencendo o prazo, a deportação pode ser executada.
Durante o prazo para a regularização migratória, precisam ser respeitadas as garantias processuais fundamentais do contraditório e da ampla defesa nas manifestações escritas. Além disso, o processo pode ser instruído com eventuais documentos e provas constantes de procedimentos de decretação da perda ou do cancelamento da autorização de residência
.
Tendo isso em conta, entende-se que, a partir da previsão do artigo 140 do Decreto nº 9.199/2017, mesmo o deportando que não tenha apresentado defesa/manifestação escrita, a autoridade pode considerar a instrução e não determinar a deportação se houver prova favorável ao imigrante em processo de perda ou cancelamento de autorização de residência. Após decisão final, é possível interpor recurso administrativo com efeito suspensivo em 10 (dez) dias.
É garantido ao imigrante, ainda que irregular e já notificado, a possibilidade de livre circulação no Brasil, mas devendo informar seu domicílio e suas atividades no Brasil e no exterior. Ademais, a DPU deve ser notificada para prestar assistência ao deportando, se este não tiver advogado constituído, em todos os procedimentos administrativos que possam levar à deportação
.
Caso o imigrante seja apátrida e se encontre em situação que possa levar à deportação, qualquer procedimento depende da prévia autorização da autoridade competente que é o MJSP (art. 52 da Lei). Caso o imigrante seja apenas visitante, o prazo de 60 (sessenta) dias para regularização migratória será deduzido do prazo de estada de 90 (noventa) dias do visto de visita (art. 176, § 8º, do Decreto).
Se a irregularidade somente for constada no momento da saída do imigrante do território nacional, será lavrado termo e registrada a saída do Brasil como deportação, sem prejuízo da aplicação de multa, e a notificação será dispensada (art. 176, § 7º, do Decreto)." (KENICKE, Pedro.
Obra citada.
comentários ao art. 109 do estatuto do estrangeiro).
Note-se que, segundo o art. 129, § 3º, do Decreto nº 9.199/2017, a tramitação do processo versando sobre o pedido de fixação de residência em solo brasileiro depende do prévio recolhimento da multa porventura imposta por força da violação às regras do estatuto do esgrangeiro:
"A tramitação de pedido de autorização de residência ficará condicionada ao pagamento das multas aplicadas com fundamento no disposto neste Decreto."
No que tange ao arbitramento da multa administrativo, transcrevo os seguintes dispositivos da lei n. 13.445/2017:
"Art. 107. As infrações administrativas previstas neste Capítulo serão apuradas em processo administrativo próprio, assegurados o contraditório e a ampla defesa e observadas as disposições desta Lei. § 1º
O cometimento simultâneo de duas ou mais infrações importará cumulação das sanções cabíveis, respeitados os limites estabelecidos nos incisos V e VI do art. 108
. § 2º
A multa atribuída por dia de atraso ou por excesso de permanência poderá ser convertida em redução equivalente do período de autorização de estada para o visto de visita, em caso de nova entrada no País
. Art. 108. O valor das multas tratadas neste Capítulo considerará: I - as hipóteses individualizadas nesta Lei; II - a condição econômica do infrator, a reincidência e a gravidade da infração; III - a atualização periódica conforme estabelecido em regulamento; IV - o valor mínimo individualizável de R$ 100,00 (cem reais); V -
o valor mínimo de R$ 100,00 (cem reais) e o máximo de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para infrações cometidas por pessoa física
; VI - o valor mínimo de R$ 1.000,00 (mil reais) e o máximo de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) para infrações cometidas por pessoa jurídica, por ato infracional."
2.11. Ingresso do estrangeiro em solo nacional:
A Constituição Federal dispõe, no seu art. 5, XV, ser
"
livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens
."
Isso indica que a premissa é a garantia de livre fluxo de brasileiros e estrangeiros ao longo das fronteiras, desde que atendidos os requisitos arbitrados pela legislação infraconstitucional.
Isso também implica que, em princípio, ao tratar do tema, o Congresso não pode aniquilar a garantia constitucional, impondo requisitos proibitivos e desproporcionais.
“O direito de circulação e residência é, então, uma liberdade transcendental; sem dúvida, como já assinalamos, estamos diante de um desses direitos humanos cuja universalidade se encontra parcialmente limitada por razões de soberania nacional. (...) essa soberania se encontra, agora, muito mais limitada que no passado, pois a Carta da ONU impõe novas obrigações aos Estados, entre as quais se encontra, precisamente, o respeito à dignidade da pessoa humana. A questão dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana já não faz parte, portanto, da soberania estatal, por ser uma questão internacional, e que integra a ordem pública internacional. (...) Esta obrigação internacional dos Estados de velarem pelos direitos humanos, faz que a princípio seja obrigação das autoridades nacionais respeitar e garantir os direitos não apenas de seus nacionais, mas de todas as pessoas residentes em seu território e sujeitas à sua jurisdição, como inequivocamente estabelece o artigo 1.º, da Convenção Americana. (...) Assim, é possível sistematizar os diferentes componentes ou conteúdos do direito de circulação e residência levando em conta a nacionalidade de seus titulares, da seguinte maneira: certos componentes são universais, pois se dirigem a todos os seres humanos, em razão do que não estão condicionados à nacionalidade de seu titular; outros conteúdos protegidos, ao contrário, dependem diretamente da nacionalidade, pois a Convenção permite um tratamento diferenciado entre nacionais e estrangeiros; finalmente, estes tratados estabelecem uma titularidade, digamos, intermediária, pois em certas ocasiões a garantia de certos direitos específicos dependem de que se trate de pessoa – e não obrigatoriamente um nacional –, mas que se encontre legalmente no território do Estado específico, de onde se conclui que a garantia não se estende a toda a pessoa. Existem dois componentes do direito de circulação e residência que não dependem diretamente da nacionalidade: o direito de toda pessoa de sair livremente de qualquer país e o direito de buscar asilo, pois quando a Convenção fala dessas garantias, se refere a toda pessoa. O direito cujo alcance se encontra claramente vinculado à nacionalidade da pessoa é aquele referente à possibilidade de ingressar livremente em um país e fixar residência nele. Com efeito, segundo a Convenção, somente os nacionais têm direito a entrar em seu próprio país. Este direito é, portanto, o que se encontra mais estritamente ligado à preservação da soberania dos Estados, pois implica que, se toda a pessoa possui o direito de sair de um país, somente os nacionais possuem o direito de entrar [irrestritamente] no país do qual são nacionais." (STEINER, Christian. URIBE, Patrícia.
Convención Americana sobre Derechos Humanos Comentada.
México: Suprema Corte de Justicia de la Nación; Bogotá, Colombia: Fundación Konrad Adenauer, Programa Estado de Derecho para Latinoamérica, 2014. p.. 531-551).
Cuida-se de projeção do direito fundamental à migração, consagrado por meio da Declaração de Nova Iorque sobre Refugiados e Migrantes – importante compromisso internacional firmado no âmbito da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 16.09.2016. Por sinal, preceito semelhante já havia constado no art. 13, §2, da Declaração Universal dos Direitos Humanos/1948. Por seu turno, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, estipulou a obrigação de todos os seus Estados-membros de se comprometem a respeitar e garantir a todos os indivíduos que se achem em seu respectivo território e que estejam sujeitos à sua jurisdição, todos os direitos civis e políticos afirmados em seu texto, sem qualquer tipo de discriminação, inclusive de origem nacional, também reconhece o direito a migrar. Esse Pacto/66 estabeleceu, em termos bastante semelhantes aos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que toda pessoa faz jus a sair livremente de qualquer país, inclusive de seu próprio, e que ninguém pode ser arbitrariamente privado do direito de ingressar em seu próprio país.
No mesmo sentido, leia-se a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial/1965, art. 5, dentre outros documentos internacionais. Por outro lado, a
lei n. 13.445, de 24 de maio de 2017
, trata dos vistos de ingresso, exigidos dos estrangeiros para se adentrar ao território nacional. O anterior estatuto do estrangeiro -
lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980
- tratou também de vistos e da sua transformação (art. 37).
De modo geral, o ingresso do estrangeiro no território nacional pode se dar de modo inválido ou válido. Isso não impede eventual convalidação subsequente ou mesmo o reconhecimento de alguma situação emergencial, semelhante ao estado de necessidade, a justificar a irregularidade. Alguém pode ingressar no solo nacional fugindo da fome, fugindo de ameaças variadas, a exemplo da necessidade de refúgio. O ingresso regular pode se dar na condição de turista, a trabalho, pesquisador, diplomata, apátrida, refugiado, membro da família de alguém anteriormente admitido, de modo regular, no país. Em princípio, a diferenciação entre os casos gravita em torno dos vistos.
Há o visto prévio, expedido antes da viagem, por autoridade diplomática do país de destino, devendo ser anexado aos documentos de viagem. E há o visto de entrada - ou autorização de entrada -, cuidando-se de autorização expressa, conferida ao estrangeiro pela autoridade de fronteira, que lhe assegura, por fim, efetivamente o acesso ao território nacional.
"Por se tratar de ato de soberania do país –
a autorização ou não de ingresso no seu território –, o visto que importa para assegurar e definir a condição migratória do estrangeiro é o visto de entrada, aquele que é concedido na fronteira de um país e através do qual o indivíduo pode, efetivamente, ingressar no território do país em condição regular
."
(AMORIM, João Alberto Alves.
Direito dos Estrangeiros no Brasil.
SP: RT. 2022. capítulo 2).
Note-se que
"O visto prévio, na verdade, não outorga ou comporta o direito de ingressar no país – isto, só o visto de entrada proporciona –, ele é uma mera burocracia estabelecida pelo Estado estrangeiro para avaliar e fiscalizar, efetiva e previamente, a documentação e os antecedentes daquele que pretenda, por qualquer motivo, se deslocar até seu território. O visto prévio comporta apenas uma mera expectativa de direito de ingresso, posto que seu portador poderá ser impedido de ingressar no país por suas autoridades migratórias."
(AMORIM, João Alberto Alves.
Obra citada.
capítulo 2).
Há, ademais, uma diferença pontual entre prazo de estada e prazo de validade do visto. Prazo de estada é o prazo máximo de permanência do estrangeiro do território nacional, contado da data do ingresso; prazo de validade é o prazo de uso da autorização, prazo com que o estrangeiro pode adentrar no território pátrio. Sem dúvida que há outras questões relacionadas ao ingresso no solo brasileiro, em princípio impertinentes para o caso em análise.
2.12. Direito ao ingresso e saída do território nacional:
Anoto ainda que a Constituição Republicana assegurou o direito de ingresso e retirada do solo nacional, na posse dos seus bens, conforme art. 5, XV, Constituição:
" é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens."
Mencionom a análise de Pontes de Miranda, nos seus comentários à constituição de 1967 (art. 150, §26) e à emenda de 1969 (art. 153, §26):
"
Já a Constituição Imperial falava em bens, a respeito da saída. A de 1.891, aludia ao sair e entrar, com a sua fortuna e os seus bens. Nem a de 1.934, nem a de 1.937 se referiam a bens, sendo que a última silenciava quanto à entrada e saída de estrangeiros. A límpida corrente da tradição brasileira ressurgiu em 1.946, apenas exigido o respeito aos preceitos da Lei
. Seguiu o mesmo passo em 1.967. A Lei, aí, é a Lei que exige passaporte, ou regula a imigração, ou as comunicações necessárias às estatísticas e à saúde pública, ou ao que constitui a fortuna ou bens que entram ou dos que saem, ou - por alguma razão de interesse público - veda ou submete à satisfação de algum requisito a entrada ou saída de bens. Todavia, cumpre não se confundirem com os bens que entram ou saem com o Brasileiro, ou com o estrangeiro, os bens que lhe pertencem, porém, não são bens de uso pessoal ou que a pessoa traz sempre consigo, bens que
ossibus inharent.
Quem traz consigo ´x' malas com roupas, ainda que excessivo, diante das circunstâncias e para o senso comum, o valor de 'x' pode ter de pagar à alfândega, por se tratar de bens suscetíveis da incidência de imposto, porém seria contrário à Constituição de 1.967 que se lhe proibisse a entrada.
A entrada pode ser proibida, por Lei, quando se trate de substancia nociva, em quantidade acima da fixada, ainda que de uso pessoal (cocaína, ópio, morfina), ou por se tratar de animal ou vegetal sujeito, pela espécie, ou procedência, a regulamentos sanitários. Muito diferente é o que a Lei pode estatuir, ainda quanto à entrada e à saída, em se tratando de Lei sobre comercio exterior e interestadual, ou câmbio ou transferência de valores para fora do país. O que o Brasileiro, ou estrangeiro, leva consigo de dinheiro, nacional ou estrangeiro, ou consigo traz, não pode ser apreendido, se não há lei que o vede, por ter estabelecido limite para as suas despesas fora, ou no país. O que a Lei pode fazer é exigir que se declare o valor do dinheiro, com que se sai ou com que se entra, o tempo que se pretende passar no estrangeiro, ou no país, a finalidade que tem, ou que se quer dar ao dinheiro, ou outro bem.
Por outro lado, nem todos os bens móveis entram, claramente, no conceito de bens de uso pessoal, ou que o passageiro costuma trazer consigo. A questio facti vem à frente. Sirvam de exemplo o automóvel, a motocicleta, a bicicleta e outros objetos próprios para transporte. Se se trata de corredor de automóvel, ou de motocicleta, ou de bicicleta, ressalva-se o uso profissional ou esportivo, que faz inerente ao que entra, ou que sai, o objeto: qualquer deles adere aos ossos, no sentido forte do velho brocardo. Mas, ainda que não se trate de corredor de automóvel, ou de motocicleta, ou de bicicleta, pode ser objeto - e indispensável - de uso pessoal, ou que a pessoa costuma trazer consigo. A prova de que não se está diante de tal caso, e sim de importação ilegal para fins comerciais, ou para outros de uso pessoal, incumbe ao Estado.
O art. 150, §26 dirige-se aos três Poderes; a Lei mesma não pode vedar a entrada e a saída de bens, sem invocar alguma outra regra jurídica em que se baseie a competência legislativa. Quanto à saída de ouro, a Lei pode vedá-la; não pode vedar que entre, se a vedação não é condicionada à não aplicação nociva, ou se consiste em mero controle a que está subordinado todo o ouro existente no Brasil (art. 150, §1º)
.
Quanto ao controle do câmbio, a licença prévia de importação somente se pode exigir para o que se importe com a transferência de valor interno. Assim, o automóvel, de uso pessoal, que vem com o brasileiro, ou com o estrangeiro e adquirido com dinheiro ou valor que ele tinha no estrangeiro pode entrar. O que a Lei sobre comércio exterior pode proibir é a alienação de tal automóvel antes de certo prazo - como expediente de técnica jurídica para se evitar a fraus legis.
A respeito destes assuntos teve de haver decantação na legislação recebida a 18 de setembro de 1.946, ou inadvertidamente feita depois. Vínhamos de estrutura política aliberal, passageira, porém que deixara raízes fundas, e faltou a moda do que destoaria e destoou da Constituição de 1.946. Aos poucos, com a ação da legislatura e o enorme serviço que prestam os que se não conformam com os atos contrários à Constituição, foi-se desbastando o que nos veio da herança próxima e danosa. Mas 1.930 e 1.937 ressurgiram em 1.964." (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
Comentários à Constituição de 1967.
Tomo V. SP: Editora Revista dos Tribunais, 1.968, p. 554.)
Por conseguinte, há previsão constitucional do direito à saída e ingresso no território nacional, na posse de bens, atendidos os requisitos de lei (art. 5º, XV, CF). Mas esse direito deve ser exercido observando-se limitações legais, desde que essas sejam razoáveis e proporcionais. Ou seja, a lei não pode aniquilar a garantia assegurada constitucionalmente. Revela-se adequada, porém, a cobrança de tributos sobre aludido fluxo de objetos.
2.13. Casos de deportação:
Note-se que o estatuto do estrangeiro trata das infrações administrativas, englobando tanto o ingresso quanto a permanência irregular em solo nacional, notadamente depois do esgotamento do prazo fixado para tanto. Sair irregularmente do solo nacional, sem se submeter aos controles de alfândega, também pode ensejar a cominação de sanções. Aludidas suspeitas/imputações administrativas devem ser apuradas no âmbito de um processo administrativo adequado, com respeito ao contraditório.
No caso brasileiro, destaque-se que é dado ao estrangeiro promover a regularização da sua estadia, afastando eventuais sanções e a deportação. Logo, essa oportunidade deve ser assegurada aos estrangeiros que se encontrem em solo brasileiro.
Ademais,
"As medidas de retirada compulsória do território nacional devem ser aplicadas não apenas levando-se em consideração não apenas as normas do Regime Internacional de Proteção da Pessoa Humana, como também a legislação brasileira pertinente, em especial a Lei n.º 9.474, de 22.07.1997, conhecida como Lei de Refúgio.
A Lei de Migração faz uma distinção inédita na legislação migratória nacional, ao separar medidas de retirada compulsória propriamente ditas (repatriação, deportação e expulsão) de medidas de cooperação internacional
(extradição, transferência de execução de pena, transferência de Pessoa Condenada) que, ainda que impliquem na retirada compulsória de estrangeiro do território de um país, não possuem seu fundamento em questão migratória, mas de natureza criminal e de relações diplomáticas."
(AMORIM, João Alberto Alves.
Obra citada.
item 2.3.2.2).
Ademais,
"Como regra geral, a retirada compulsória de estrangeiro do território nacional será realizada para o seu país de nacionalidade, ou para o país do qual partiu em direção ao Brasil ou, ainda, para país que o aceite, conforme tratados dos quais o Brasil seja parte. A Lei de Migração elenca três medidas de retirada compulsória de estrangeiros do território nacional: Repatriação, Deportação e Expulsão. A efetivação das medidas de retirada compulsória é feita por meio de termo da Polícia Federal, e esta, por meio da Organização Internacional de Polícia Criminal – Interpol, comunica as autoridades policiais e migratórias dos países de escala, conexões e destino."
(AMORIM, João Alberto Alves.
Obra citada.
item 2.3.2.2).
Ao que releva, a deportação é medida imposta no âmbito de procedimento administrativo, consistindo na retirada compulsória de pessoa que se encontre em situação migratória irregular em território nacional e, devidamente notificado, tenha optado por não regularizar sua condição migratória ou retirar-se voluntariamente do país. A saída voluntária de pessoa notificada para deixar o País equivale ao cumprimento da notificação de deportação para todos os fins. Acrescento que a deportação deve decorrer de um processo administrativo adequado, com respeito ao contraditório e ampla defesa.
O procedimento de deportação é instaurado pelo Departamento da Polícia Federal por meio de ato que relate os seus fatos motivadores e a fundamentação legal. A Polícia Federal deve juntar ao processo administrativo o comprovante de notificação pessoal do estrangeiro, bem como da notificação, preferencialmente por meio eletrônico, da repartição consular do país de origem do deportando e, quando houver, de seu defensor constituído, para apresentar defesa técnica em 10 (dez) dias.
Da decisão administrativa que decidir pela deportação cabe recurso, com efeito suspensivo, no prazo de cinco dias, contados da notificação do deportando ou de seu defensor. O recurso deve ser endereçado à autoridade que proferiu a decisão, a qual, caso não a reconsidere, deve encaminhar o processo ao Delegado Regional Executivo, da Superintendência da Polícia Federal à qual esteja subordinada.
Se a deportação puder, por qualquer meio, produzir efeito de extradição não admitida pela legislação brasileira, ela não pode ser efetivada
.
Esta disposição legal decorre de consolidado entendimento do Supremo Tribunal, ilustrada pelo caso Ronald Biggs:
“O aparato proibitivo, entre nós, da extradição dissimulada – ou, como concedem alguns, da extradição de fato – estava a merecer análise judiciária onde se precisasse seu alcance. A ocasião veio no caso do nacional britânico Ronald Arthur Biggs, a que o Tribunal Federal de Recursos (hoje Superior Tribunal de Justiça) deu solução a todos os títulos notável. Fugitivo de uma penitenciária inglesa, onde cumpria pena por participação num assalto notório [o assalto ao trem pagador inglês], Biggs viveu por pouco tempo na Austrália e ingressou em seguida no território brasileiro sob o falso nome de Michael Haynes. Não se pôde jamais formalizar o aventado pedido de extradição, em face da inexistência de tratado bilateral específico, combinada com a inabilitação constitucional do governo britânico para oferecer reciprocidade em semelhantes hipóteses. Preso por determinação do ministro da Justiça, em 1974, Biggs requereu ao Tribunal Federal de Recursos uma ordem de habeas corpus em que, dando como incontroversa a impossibilidade da expulsão, em face da iminência de tornar-se pai de uma criança brasileira, limitava-se a apontar ilegalidade também na deportação que se lhe preparava em razão do ingresso ilegal no território. A deportação, sustentavam seus defensores, só o poderia conduzir ao seu Estado patrial, o único obrigado pelo direito das gentes a recebê-lo. Assim, teria ela a natureza de uma autêntica extradição, incidindo, de modo exato, em quanto proíbe o estatuto do estrangeiro. O Tribunal, reconhecendo embora que se tratava de um caso de ‘extradição inadmitida pela lei brasileira’, não negou a legitimidade da custódia determinada pelo ministro da Justiça com vistas à deportação, e por isso indeferiu a ordem de habeas corpus. Mas, no mesmo passo, estatuiu que o paciente não poderia ser deportado para a Grã-Bretanha, nem para qualquer outro país do qual aquele pudesse obter sua extradição. Era natural, nessas circunstâncias, que a deportação acabasse por mostrar-se inexequível, e que o paciente viesse pouco depois a ser colocado em liberdade. (...) Há que impedir, assim, não apenas a deportação ou expulsão que conduza o paciente diretamente ao Estado interessado na extradição inadmitida, mas também aquela qualquer dentre as duas figuras que lhe dê, ou que seja suscetível de lhe dar tal destino por via oblíqua. O Supremo Tribunal Federal, anos mais tarde, negou seguimento a pedido de extradição contra Ronald Biggs formulado pelo governo britânico, com base no tratado bilateral que vincula, desde 1997, as duas soberanias. Ponderou-se, no julgamento, que estava extinta a punibilidade do extraditando pela prescrição da pretensão executória, à vista da lei brasileira.” (REZEK, José Francisco.
Direito Internacional Público –
Curso Elementar. p. 131).
Caso seja necessária a decretação de prisão do deportando, ou de outra medida cautelar de natureza penal, impõe-se representação perante o juízo federal competente pode ser feita pelo próprio delegado da Polícia Federal. O anterior estatuto do estrangeiro preconizava uma prisão administrativa, imposta pelo Ministro da Justiça - art. 61 da lei n. 6.815/1980 -, não recepcionada, nesse particular, pelo ordenamento constitucional, inaugurado em 1988. O procedimento de deportação dependerá de autorização prévia do Poder Judiciário, se o estrangeiro estiver em cumprimento de pena ou respondendo a processo criminal em liberdade.
A expulsão cuida, por seu turno, da retirada compulsória do solo nacional de estrangeiro que tenha cometido crimes no país (art. 54 do estatuto do estrangeiro em vigor). Acrescento que o Estado do Estrangeiro atual deixa bem vincado o repúdio às deportações e expulsões coletivas do território do país.
2.14. Estrangeiro em condição irregular com família no país:
De partida, anote-se que a súmula 1, do Supremo Tribunal dispôs expressamente que
"
É vedada a expulsão de estrangeiro casado com brasileira, ou que tenha filho brasileiro, dependente da economia paterna
."
Ao apreciar o
RHC 123.891
, o STF concluiu que
"O § 1º do artigo 75 da lei 6.815/80 não foi recepcionado pela CF/88, sendo vedada a expulsão de estrangeiro cujo filho brasileiro foi reconhecido ou adotado posteriormente ao fato ensejador do ato expulsório, uma vez comprovado estar a criança sob a guarda do estrangeiro e deste depender economicamente."
Por seu turno, a Lei de Migração estabeleceu, no art. 55, que não será expulso o estrangeiro que tiver filho brasileiro sob sua guarda ou dependência econômica ou socioafetiva, nem o que tiver cônjuge ou companheiro residente no Brasil.
Note-se que essa proibição é projeção da tutela dispensada pelos Constituintes aos vínculos familiares, fundados em relações de afeto (art. 226, Lei Maior). Por outro lado, se a medida é vedada quanto à expulsão - fundada em infrações mais graves - também resta vedada quanto à deportação, que decorre da necessidade de se retirar um estrangeiro do solo nacional, por conta de irregularidades administrativas na sua estadia.
ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. ESTRANGEIRO. RESIDÊNCIA PERMANENTE. AUTO DE INFRAÇÃO. SANÇÃO PECUNIÁRIA AFASTADA. FILHO BRASILEIRO. PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E CONSERVAÇÃO DA UNIDADE FAMILIAR. MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. 1. Nos termos do art. 75, II, b, da Lei n. 6.815/88, é causa em que se obsta qualquer processo de expulsão quando o estrangeiro tiver "filho brasileiro que, comprovadamente, esteja sob sua guarda e dele dependa economicamente". Diante disso, no momento da lavratura do auto de infração e da notificação (10/3/2015), a permanência do autor no Brasil já estava legalmente assegurada pela existência do filho brasileiro, não havendo falar em aplicação de penalidade pela residência irregular. 2.
O direito à permanência do autor no país, dada a existência de filho brasileiro, torna desarrazoada a sanção pecuniária imposta pela estadia irregular após vencido o prazo legal e, perante a necessidade de observância da doutrina de proteção integral à criança e de conservação da unidade familiar, o acórdão recorrido merece subsistir.
3. Agravo interno não provido. (STJ - AgInt no REsp: 1870415 SP 2018/0226628-7, Data de Julgamento: 22/11/2022, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/11/2022)
Segundo a fundamentação do acórdão,
"Nos termos do art. 75, II, b , da Lei nº 6.815/88, é causa em que se obsta qualquer processo de expulsão quando o estrangeiro tiver"filho brasileiro que, comprovadamente, esteja sob sua guarda e dele dependa economicamente". Diante disso, no momento da lavratura do auto de infração e da notificação (10/3/2015), a permanência do autor no Brasil já estava legalmente assegurada pela existência do filho brasileiro, não havendo falar em aplicação de penalidade pela residência irregular."
(STJ - AgInt no REsp: 1870415 SP).
Nesse mesmo sentido, leia-se:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. DEPORTAÇÃO. MEDIDA DESPROPORCIONAL E GRAVOSA. UNIÃO ESTÁVEL COM BRASILEIRA E FILHOS EM COMUM. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA E GUARDA. ART. 75, II, B, DA LEI 6.815/80. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE, DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA PROTEÇÃO DA CRIANÇA E UNIDADE FAMILIAR. ARTS. 226 E 227 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PONDERAÇÃO DE INTERESSES. POSSIBILIDADE. - Cinge-se a controvérsia ao exame da possibilidade da concessão ao autor de prazo (180 dias) para regularizar a sua s ituação no país, mediante requerimento de permanência - Todas as circunstâncias fático-jurídicas da presente demanda restaram devidamente delineadas na sentença, cuja fundamentação se adota, como razões de decidir, in verbis: "(..) vale ressaltar que a permissão de entrada e permanência de estrangeiro em território nacional é ato discricionário, nos termos dos arts. 2º, 7º, II e 26 da Lei nº 6.815/80, levando-se em conta que o controle imigratório é inerente à própria noção de Estado, expressão típica do exercício da soberania. Assim, o visto não constitui um direito subjetivo à entrada tampouco à permanência no território.
Não obstante, o ordenamento jurídico pátrio possibilita a prorrogação do visto, desde que o estrangeiro a requeira ao Departamento de P o l í c i a F e d e r a l a n t e s d e e x p i r a d o o p r a z o inicialmente autorizado em seu país de origem, nos termos do art. 65, caput do Decreto nº 86.715/81, sendo vedada a legalização da estada de irregular, assim como a transformação em permanente do visto de turista, nos termos do art. 38. No caso, o autor ingressou no Brasil em 1 20/04/2010, com visto de turista, cujo prazo inicial expiraria em 21/05/2010, tendo sido autorizado a permanecer em solo nacional, nessa qualidade de turista, pelo prazo de trinta e um dias, a partir do desembarque em solo nacional (20/04/2010). Conquanto fosse possível, em tese, a prorrogação deste prazo, não consta que o autor tenha formulado qualquer pedido nesse sentido, como também não requereu a concessão do visto de permanência em razão de possuir prole brasileira. De conseguinte, sua estada em território nacional se tornou irregular, por excesso de prazo, possibilitando sua deportaçã
o. Com efeito, o art. 57 da Lei nº 6.815/80 (Estatuto dos Estrangeiros) prevê a deportação, como uma das modalidades de retirada compulsória do estrangeiro do território brasileiro, aplicável àqueles que tenham aqui ingressado irregularmente ou cuja estada tenha se tornado irregular, que, notificados pelo Departamento de Polícia Federal a deixar o País em determinado prazo, desatendam a essa determinação. (...) A Lei 6.815/80, em seu art. 75, veda expressamente a expulsão de estrangeiro que tenha filho ou mulher brasileira. A deportação, sendo instituto francamente mais benévolo e brando que a expulsão, não será possível se o estrangeiro tiver filho brasileiro, ainda que a lei expressamente nada disponha neste sentido. Interpretação sistêmica dos artigos 57 a 75 da Lei 6.815/80. Quanto à guarda das crianças, há de se presumir que as relações familiares são caracterizadas pela solidariedade e afeto, ainda mais quando se trata de relacionamento entre pai e filhos e não haja nos autos qualquer prova em contrário. Ademais, a unidade familiar merece, ao menos, o benefício da dúvida, sobretudo, no caso, diante da declaração da própria mãe (fl. 18) no sentido de a guarda ser exercida conjuntamente entre eles, eis que vivem todos sob o mesmo teto. (...) Destarte, ante a possibilidade de vir a ser deferida a permanência definitiva do autor no País, com base na existência de filhos menores sob sua guarda e dependência, o mais razoável e acertado é permitir que aqui permaneça para que possa regularizar sua situação em sede administrativa, a depender da prova a ser 2 apresentada. Nesse sentido, impende conferir às regras de controle imigratório uma interpretação em conformidade com o disposto no art. 226 da CFRB/88, de modo que não seria razoável considerar a medida de deportação, em detrimento da proteção à família e à criança, sem que antes seja, ao menos, analisada situação fática concreta pela autoridade r esponsável"- No mesmo sentido é o parecer do Ministério Público Federal (fls.127/133) -
Do exame dos documentos colacionados aos autos, verifica-se que o autor, de nacionalidade espanhola, se encontra no território brasileiro desde 20 de abril de 2010 (fl.24) e vive há mais de 10 anos, em união estável, com a nacional, Cathilen Silva Miranda, com quem tem dois filhos menores, ambos nascidos na Espanha, porém com certidão de transcrição de nascimento no Registro Civil de Pessoas Naturais do 1º D istrito da Comarca de Itaguaí (fls. 18/20) - Observa-se que o casal tem residência fixa no Brasil (fls. 17/18 e 22) e que seus filhos encontram-se devidamente matriculados no Pré -I B, da Educação Infantil do Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente Caio Paulo Dacorso Filho e no 1º ano do Ensino Fundamental de outra u nidade escolar em Seropédica
- Consoante bem destacado pelo Ministério Público Federal, a situação do autor amolda-se às excessões estabelecidas no art. 75 da Lei 6.815/80 ( Estatuto do Estrangeiro) que expressamente estabelece:"Não se procederá à expulsão: II. quando o estrangeiro tiver, b) filho brasileiro que, comprovadamente, esteja sob sua guarda e dele dependa economicamente". Assim, a retirada forçada do estrangeiro do território nacional não se dará no caso de existir filho brasileiro que esteja sob a guarda e dependência econômica do e strangeiro, o que ocorre in casu - O aludido art. 75 do Estatuto do Estrangeiro deve ser analisado à luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade e do princípio da proteção da criança, inclusive do direito à convivência familiar e comunitária, insculpido no art. 227 da Constituição Federal. 3 - Insta registrar que as consequências pessoais e psicológicas, além da material, advindas da deportação do autor, podem gerar traumas para os filhos, na medida em que o s mesmos serão privados da convivência com o pai - Diante da ponderação de interesses na hipótese dos autos, levando-se em conta as circunstâncias fáticas descritas na inicial, necessária a mitigação da rigidez das regras legais que disciplinam a permanência do estrangeiro no território nacional, de forma a evitar a sua imediata deportação, medida que se revela extremamente desproporcional e gravosa para o a u t o r , p r i v i l e g i a n d o a h i p o s s u f i c i ê n c i a d o estrangeiro, sua convivência familiar, bem como os princípios constitucionais acima mencionados, circunstância que impõe a m anutenção da sentença - Precedentes citados - Remessa necessária e recuso desprovidos. (TRF-2 - APELREEX: 00233327020134025101 RJ 0023332-70.2013.4.02.5101, Relator: VERA LÚCIA LIMA, Data de Julgamento: 13/08/2018, 8ª TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: 15/08/2018)
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. CASADO. FILHO. PERMANÊNCIA IRREGULAR. DEPORTAÇÃO. INCABIMENTO. I.
Trata-se de remessa oficial e apelação de sentença que julgou parcialmente procedente o pedido, para anular o Auto de Infração e Notificação nº 011/201/DPF/PB e o Termo de Notificação nº 001/2012/DPF/PB, que, respectivamente, aplicou multa imposta no art. 25, II, da Lei nº 6.815/80, por ter o autor, estrangeiro (nigeriano), extrapolado o prazo legal de estada no país, e determinou a saída do território nacional. II. O Estatuto do Estrangeiro em vigor (Lei nº 6.815, de 19/08/1980), ao cuidar da expulsão do estrangeiro, medida de caráter evidentemente punitivo, cuja estada no território nacional não é desejada ou desejável, prevê, em seu artigo 75, II, alínea b, que o mesmo não será expulso quando tiver filho brasileiro que, comprovadamente, esteja sob sua guarda e dele dependa economicamente.
IV. O referido dispositivo legal diz respeito apenas ao instituto da Expulsão, que é um processo pelo qual um país determina a saída do estrangeiro de seu território, em razão de um crime ali praticado ou comportamento nocivo aos interesses nacionais, ficando-lhe vedado o retorno ao pais de onde foi expulso. O caso não se trata de expulsão, mas de deportação proveniente de estada irregular em território brasileiro. Contudo, as hipóteses de vedação à expulsão podem ser utilizadas para o caso de deportação (casamento e filho). V. O autor é casado com brasileira e possui filho dependente economicamente. Inclusive, requereu a permanência definitiva estando em tramitação o respectivo processo administrativo, já tendo sido reconhecido nele, a autenticidade da certidão de casamento (fls. 231/249). VI. Com o objetivo precípuo de proteção à família, o STF editou a Súmula nº 01, nos seguintes termos: "É vedado a expulsão de estrangeiro casado com brasileira, ou que tenha filho brasileiro, dependente da economia paterna." VII. Remessa oficial e apelação improvidas. (TRF-5 - APELREEX: 00070225420124058200 AL, Relator: Desembargador Federal Ivan Lira de Carvalho, Data de Julgamento: 28/10/2014, Quarta Turma, Data de Publicação: 13/11/2014)
2.14. Respeito à coisa julgada:
Convém ter em conta que a coisa julgada é uma garantia constitucional, nos termos do art. 5º, XXXVI, CF: "
a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada
."
"A sentença de mérito transitada em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de específica ação autônoma de impugnação (ação rescisória) que
haja sido proposta na fluência do prazo decadencial previsto em lei
, pois, com o exaurimento de referido lapso temporal,
estar-se-á diante da coisa soberanamente julgada, insuscetível de ulterior modificação, ainda que o ato sentencial encontre fundamento em legislação que, em momento posterior, tenha sido declarada inconstitucional pelo STF, quer em sede de controle abstrato, quer no âmbito de fiscalização incidental de constitucionalidade
. A superveniência de decisão do STF, declaratória de inconstitucionalidade de diploma normativo utilizado como fundamento do título judicial questionado, ainda que impregnada de eficácia ex tunc - como sucede, ordinariamente, com os julgamentos proferidos em sede de fiscalização concentrada (RTJ 87/758 - RTJ 164/506-509 - RTJ 201/765) -, não se revela apta, só por si, a desconstituir a autoridade da coisa julgada, que traduz, em nosso sistema jurídico, limite insuperável à força retroativa resultante dos pronunciamentos que emanam, in abstracto, da Suprema Corte." (RE 592.912-AgR, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 3-4-2012, Segunda Turma, DJE de 22-11-2012.)
Atente-se também para a lição de Humberto Theodoro Jr.:
"A coisa julgada é fenômeno próprio do processo de conhecimento, cuja sentença tende a fazer extinguir a incerteza provocada pela lide instalada entre as partes. Mas fazer cessar a incerteza jurídica não significa apenas fazer conhecer a solução cabível, mas impô-la, tornando-a obrigatória para todos os sujeitos do processo, inclusive o próprio juiz. Às vezes, o comando sentencial tem de ser executado por meio de realização coativa da prestação devida pelo vencido. Outras vezes, a declaração apenas é suficiente para eliminar o foco da desavença. Nem sempre, portanto, o processo civil está predisposto a providências executivas. Há acertamentos condenatórios, mas há também os não condenatórios, que se desenvolvem em torno de pretensões constitutivas ou apenas declaratórias.
Uma vez, porém, concluído o acertamento da controvérsia, seja por sentença de imposição de sanção, seja por sentença puramente declaratória, a coisa julgada se estabelece com a mesma função, ou seja, a certeza jurídica em torno da relação controvertida se implanta com plenitude, vinculando as partes e o juiz.
Essa situação jurídica cristalizada pela coisa julgada caracteriza-se por dois aspectos fundamentais: de um lado, vincula definitivamente as partes; de outro, impede, partes e juiz, de restabelecer a mesma controvérsia não só no processo encerrado, como em qualquer outro.
Admite-se, dessa maneira, uma
função negativa
e uma
função positiva
para a coisa julgada. Pela função negativa exaure ela a
ação exercida
, excluindo a possibilidade de sua
reproposição
. Pela função positiva, “impõe às partes obediência ao julgado como norma
indiscutível
de disciplina das relações extrajudiciais entre elas e obriga a autoridade judiciária a ajustar-se a ela, nos pronunciamento que a pressuponham e que a ela se devem coordenar” (
apud
NEVES, Celso. Coisa Julgada Civil. São Paulo: RT, 1971, p. 383-383).
A coisa julgada, por sua força vinculativa e impeditiva, não permite que partes e juiz escapem da definitiva sujeição aos efeitos do acertamento consumado no processo de conhecimento. O resultado prático é caber a qualquer dos litigantes “a
exceptio rei iudicatae,
para excluir novo debate sobre a relação jurídica decidida” (
apud
NEVES, Celso. Op. Cit, p. 489), e ao juiz o poder de, até mesmo de ofício, extinguir o processo sem julgamento do mérito, sempre que encontrar configurada a ofensa à coisa julgada (ar. 267, V e § 3º).
Portanto, quando o art. 467 fala em
indiscutibilidade
e
imutabilidade
da sentença transitada em julgado refere-se a duas coisas distintas: a) pela
imutabilidade
, as partes estão proibidas de propor ação idêntica àquela em que se estabeleceu a coisa julgada; b) pela
indiscutibilidade
, o juiz é que em novo processo, no qual se tenha de tomar a situação jurídica definida anteriormente pela coisa julgada como razão de decidir, não poderá reexaminá-la ou rejulgá-la; terá de tomá-la simplesmente como
premissa
indiscutível. No primeiro caso atua a força
proibitiva
(ou negativa) da coisa julgada, e, no segundo, sua força
normativa
(ou positiva). (THEODORO JÚNIOR, Humberto.
Curso de Direito Processual Civil:
Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 587-588).
Nesse mesmo sentido, leiam-se também os seguintes julgados: RE 444.816, rel. min. Marco Aurélio, julgamento em 29-5-2012, Primeira Turma, DJE de 27-8-2012; RE 594.350, rel. min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 25-5-2010, DJE de 11-6-2010.
Nos termos do art. 502, CPC/15,
"Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
" O art. 503, do mesmo código, preconiza que
"A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida."
Merece ênfase, ademais, o art. 508, CPC:
"Transitada em julgado a decisão de mérito, considerar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e as defesas que a parte poderia opor tanto ao acolhimento quanto à rejeição do pedido."
Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero são precisos quando enfatizam que "
A coisa julgada pressuposto do discurso jurídico - constitui uma regra sobre o discurso. Não admite, nesse sentido, ponderação. Representa evidente agressão ao Estado Constitucional e ao próprio discurso jurídico a tentativa de relativizar a coisa julgada."
(MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel.
Código de processo civil.
6. ed. rev. atual. São Paulo: RT, 2014, p. 449).
Desse modo, a sentença transitada em julgado não pode ser alterada ou desconsiderada pelo Juízo, conforme lógica do art. 508, CPC/15. Tal alteração apenas seria admissível em casos de negócio processual, avençado entre as partes, versando sobre pretensões disponíveis, conforme art. 190, CPC/15. Também seria cabível em hipótese de ação rescisória, interposta perante o Tribunal competente e com atenção ao prazo do art. 975, CPC/15; em caso de
querela nullitatis insanabilis
ou de declaração, pela Suprema Corte, da inconstitucionalidade de norma tomada como fundamento para prolação da sentença (art. 535, §4º, CPC).
2.15. Registro Nacional Migratório:
O Registro Nacional Migratório - RNM é um número com numeração única atribuído a cada imigrante
, que é gerado a partir das suas informações pessoais e impressões digitais. Cuida-se de registro obrigatório para todos os imigrantes que possuem visto temporário ou autorização de residência no Brasil. Já foi denominado de Registro Nacional de Estrangeiro.
Note-se que
"para a legalização dos documentos, bastará a certificação de autenticidade conforme os procedimentos estabelecidos no país de origem do documento ou por seu consulado. Além disso, todos os países integrantes do acordo são signatários da Convenção sobre a Eliminação da Exigência de Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros, de 1961, conhecida popularmente como Convenção da Apostila da Haia , que estabelece a dispensa de legalização consular de determinados documentos públicos , para a produção de efeitos jurídicos no território dos países membros . Conforme as Decisões CMC, n.º 44/00 e n.º 45/00, ambas de 14.11.2000, que adotam o Acordo sobre Dispensa de Tradução de Documentos administrativos para Efeito de Imigração entre os Estados-Parte do Mercosul e o Acordo sobre Dispensa de Tradução de Documentos administrativos para Efeito de Imigração entre os Estados-Parte do Mercosul, Bolívia e Chile, os nacionais destes países não precisam apresentar, para a solicitação de vistos, renovação de prazo de estada e concessão de permanência, traduções para o idioma local dos seguintes documentos: • Passaporte; • Cédula de Identidade; • Certidões de nascimento ou casamento; • Certidão negativa de antecedentes criminais. O Peru aderiu ao Acordo sobre Dispensa de Tradução de Documentos administrativos para Efeito de Imigração entre os Estados-Parte do Mercosul, Bolívia e Chile em 28.07.2014, através da Decisão CMC n.º 15/14."
(AMORIM, João.
Direito dos Estrangeiros no Brasil
. São Paulo: RT. 2022. capítulo IV).
Por seu turno, o
"direito de reunião familiar compreende a concessão àqueles familiares que eventualmente não sejam nacionais de um dos países do acordo, de igual direito de residência. Se a nacionalidade do familiar em questão demandar a concessão de visto prévio de entrada, este deve ser providenciado."
(AMORIM, João.
Obra citada.
capítulo IV).
Ademais,
"não podem ser emitidos por autoridade consular brasileira no exterior:Documentos não emitidos pelos Postos brasileiros no exterior: 1– Certidão de Antecedentes Criminais (esse documento poderá ser emitido por meio de consulta ao site da Polícia Federal ou aos sites das secretarias de segurança dos estados e do Distrito Federal); 2– Carteira de Identidade e Registro Geral – RG (a emissão desse documento é de competência exclusiva das Secretarias de Segurança Pública dos estados e do Distrito Federal); 3- Registro Nacional de Estrangeiro ou Carteira de Registro Nacional Migratório (esse documento é emitido apenas pela Polícia Federal); 4- Carteira Nacional de Habilitação – CNH (esse documento é emitido somente pelos Departamentos de Trânsito (DETRAN’s) dos Estados e do Distrito Federal, e pelo Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN)."
(AMORIM, João.
Obra citada.
capítulo IV).
A respeito do tema, menciono o seguinte julgado:
"DIREITOCONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ESTRANGEIRO. HIPOSSUFICIÊNCIA . INEXIGIBILIDADE DE TAXA. REGULARIZAÇÃO DE ESTRANGEIROS NO PAÍS. EMISSÃO DE DOCUMENTOS. ISENÇÃO . ARTIGO 5º, LXXVII, CF. LEI 13.445/2017, ARTIGOS 4º, XII, E 113, § 3º. 1 . A Constituição Federal dispõe no artigo 5º, LXXVII que "são gratuitas as ações de habeas-corpus e habeas-data, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania". 2. Considerando que a regularização da permanência do estrangeiro no país, inclusive mediante expedição do Registro Nacional de Estrangeiro - RNE, é essencial para o exercício de direitos fundamentais, possível extrair da dicção constitucional a existência de garantia de respectivo processamento de forma gratuita na hipótese de comprovada falta de condições econômicas para pagamento de taxas, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. 3 . Ademais, a Lei 13.445/2017, novo estatuto que regula a migração, prevê, dentre outros temas, as condições e efeitos da naturalização (artigos 64/73), dispondo, a respeito, que: “Não serão cobrados taxas e emolumentos [...] para a obtenção de documentos para regularização migratória aos [...] indivíduos em condição de hipossuficiência econômica” (artigos 4º, XII, c.c. 113, § 3º, e Decreto 9.199/2017,artigo 312) . 4.Declarada a hipossuficiência da impetrante, fica afastada a cobrança das taxas para o Registro Nacional de Estrangeiro - RNE bem como para emissão da primeira via da Carteira de Estrangeiros ("Carteira de Registro Nacional Migratório"), em virtude do princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. 5. Apelação e remessa oficial desprovidas".(TRF-3 - ApelRemNec: 50169987320174036100 SP, Relator.: Desembargador Federal LUIS CARLOS HIROKI MUTA, Data de Julgamento: 23/04/2021, 3ª Turma, Data de Publicação: Intimação via sistema DATA: 27/04/2021)
O art. 117 do atual estatuto do estrangeiro dispôs que
"O documento conhecido por Registro Nacional de Estrangeiro passa a ser denominado Registro Nacional Migratório."
O tema foi regrado, ademais, pelo decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017, cuidando-se de atribuição do Departamento da Polícia Federal - art. 59 do decreto.
O art. 62 do decreto 9.199 discorreu sobre o registro prévio à obtenção de vistos, como transcrevo abaixo:
Art. 62. O registro consiste na inserção de dados em sistema próprio da Polícia Federal, mediante a identificação civil por dados biográficos e biométricos. § 1º O registro de que trata o caput será obrigatório a todo imigrante detentor de visto temporário ou de autorização de residência. § 2º A inserção de que trata o caput gerará número único de Registro Nacional Migratório, que garantirá ao imigrante o pleno exercício dos atos da vida civil.
Art. 63.
A Carteira de Registro Nacional Migratório será fornecida ao imigrante registrado, da qual constará o número único de Registro Nacional Migratório
. § 1º Não expedida a Carteira de Registro Nacional Migratório, o imigrante registrado apresentará o protocolo recebido, quando de sua solicitação, acompanhado do documento de viagem ou de outro documento de identificação estabelecido em ato do Ministro de Estado do Ministério da Justiça e Segurança Pública, e terá garantido os direitos previstos na Lei nº 13.445, de 2017 , pelo prazo de até cento e oitenta dias, prorrogável pela Polícia Federal, sem ônus para o solicitante. § 2º A Carteira de Registro Nacional Migratório poderá ser expedida em meio eletrônico, nos termos estabelecidos em ato da Polícia Federal, sem prejuízo da emissão do documento em suporte físico.
Art. 64.
O imigrante de visto temporário que tenha ingressado no País deverá proceder à solicitação de registro no prazo de noventa dias, contado da data de ingresso no País, sob pena de aplicação da sanção prevista no inciso III do caput do art. 307
. § 1º Na hipótese de empregado doméstico, o registro deverá ocorrer no prazo de trinta dias, contado da data de ingresso no País, com a comprovação da anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social e do registro na Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas - e-Social. § 2º Na hipótese de não comprovação da anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social e do registro no e-Social no prazo de que trata o § 1º, a Polícia Federal realizará o registro do imigrante e comunicará o Ministério do Trabalho.
Art. 65. O documento de viagem do imigrante com visto temporário válido é apto para comprovar a sua identidade e demonstrar a regularidade de sua estada no País enquanto não houver expirado o prazo para o registro, independentemente da expedição da Carteira de Registro Nacional Migratório.
Art. 66.
O imigrante a quem tenha sido deferido, no País, o pedido de autorização de residência deverá proceder à solicitação de registro no prazo de trinta dias, contado da data da publicação do deferimento do referido pedido, sob pena de aplicação da sanção prevista no inciso IV do caput do art. 307. Parágrafo único. A publicação a que se refere o caput será feita preferencialmente por meio eletrônico
.
Destaco ainda que
"na Carteira de Registro Nacional Migratório constará o prazo de residência do imigrante, conforme estabelecido na autorização de residência obtida. §1º A data de início da contagem do prazo de residência do imigrante que tenha ingressado sob o amparo de visto temporário será a da primeira entrada no País após a sua concessão. §2º A data de início da contagem do prazo de residência do imigrante que tenha obtido autorização de residência no País será a de requerimento do registro. §3º Na hipótese de o imigrante que tenha obtido autorização de residência no Brasil não solicitar o registro no prazo previsto no inciso IV do caput do art. 307, a data de início da contagem do prazo de residência se dará após transcorrido o prazo de trinta dias, contado da data da publicação da decisão que deferiu o requerimento de autorização de residência. §4º Na hipótese de residência temporária, o prazo de vencimento da Carteira de Registro Nacional Migratório coincidirá com o término do prazo da autorização de residência."
Aludida Carteira de Registro Nacional Migratório tem a validade de nove anos, contados a partir da data do registro, quando se tratar de residência por prazo indeterminado. Parágrafo único. Na hipótese de que trata o caput , a validade da Carteira de Registro Nacional Migratório será indeterminada quando o titular: I - houver completado sessenta anos de idade até a data do vencimento do documento; ou II - for pessoa com deficiência (arts 73 e 74 do referido decreto 9.199/2017).
2.16. Distribuição do ônus da prova:
Conquanto haja uma natural assimetria entre a parte autora e a autoridade administrativa impetrada, não é cabível inversão do ônus da prova no âmbito do mandado de segurança. Incumbe ao impetrante o ônus de comprovar, de plano, já com a peça inicial e com documentos, a veracidade da narrativa dos fatos promovida na peça inicial.
2.17. Valoração precária:
Como registrei acima, o Poder Judiciário assegurou ao sr. LUIZ HENRIQUE GUARNIERI a permanência no solo nacional, proibindo-se a sua deportação, conforme sentença de eproc 50014390320244047006 - decisão transitada em julgado.
Na forma do art. 508, CPC, a referida solução não pode ser desconsiderada pelas partes, salvo eventual demanda rescisória que porventura venha a ser deflagrada no prazo do art. 975, CPC e porventura acolhida pelo Judiciário. Assim, na espécie, deve-se atentar para a garantia da coisa julgada.
Naquele mandado de segurança, não houve maiores discussões a respeito de documentos de regularização da permanência do impetrante em solo nacional
. Neste processo, ele almeja que lhe sejam entregues documentos para fins de regularização efetiva da sua situação jurídica no país.
A autoridade impetrada sustentou que a ausência da autorização de residência do autor no Brasil decorreria da não apresentação de documento de viagem válido, eis que o passaporte do autor encontrar-se-ia vencido. Aludida alegação da autoridade impetrada não resta controvertida neste processo.
Em princípio, o impetrante parece fazer jus à obtenção do referido documento, enquanto projeção direta da sentença transitada em julgado, em cujo âmbito o Poder Judiciário reconheceu o seu direito de permanecer no território nacional. Reputo que sua narrativa dos fatos é verossímil e que seus argumentos jurídico são densos.
Do contrário, seria o mesmo que outorgar um benefício com uma mão e retirá-lo à força com outra.
Não se pode ignorar que a situação do impetrante perdura por longo prazo, tendo em vista que seu passaporte venceu em 08/07/2014, tendo decorrido, portanto, mais de 10 (dez) anos, sem que tenha conseguido regularizá-lo por falta de documentos expedidos por autoridade brasileira.
O limbo jurídico a que o autor está submetido não coaduna com os seus direitos fundamentais, impondo-se o respeito à dignidade inerente à condição humana garantido aos estrangeiros residentes no país, nos termos do art. 5º da CF. Ademais, a situação foge da esfera da individualidade do autor, pois perpassa os direitos dos seus entes familiares, sobremodo do filho brasileiro, quem pode restar afetado pela situação. Além disso, o Estado deve proteger a família não apenas por meio de programas sociais, mas por meio de políticas que visem assegurar a sua preservação, nos termos do art. 226 da CF:
"A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado"
.
A manutenção do autor na situação em que está atualmente o equipara a um apátrida (
displaced person, Heimatlos
), na medida em que não recebe a proteção legal de que necessita de seu país de origem, por falta do documento de identificação estrangeiro para emissão de passaporte renovado, ao passo que também não obtém documentação junto ao país em que reside há vários anos.
ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. ESTRANGEIRO. RESIDÊNCIA PERMANENTE . AUTO DE INFRAÇÃO. SANÇÃO PECUNIÁRIA AFASTADA. FILHO BRASILEIRO. PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E CONSERVAÇÃO DA UNIDADE FAMILIAR . MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. 1. Nos termos do art. 75, II, b, da Lei n . 6.815/88, é causa em que se obsta qualquer processo de expulsão quando o estrangeiro tiver "filho brasileiro que, comprovadamente, esteja sob sua guarda e dele dependa economicamente". Diante disso, no momento da lavratura do auto de infração e da notificação (10/3/2015), a permanência do autor no Brasil já estava legalmente assegurada pela existência do filho brasileiro, não havendo falar em aplicação de penalidade pela residência irregular. 2 . O direito à permanência do autor no país, dada a existência de filho brasileiro, torna desarrazoada a sanção pecuniária imposta pela estadia irregular após vencido o prazo legal e, perante a necessidade de observância da doutrina de proteção integral à criança e de conservação da unidade familiar, o acórdão recorrido merece subsistir. 3. Agravo interno não provido. (STJ - AgInt no REsp: 1870415 SP 2018/0226628-7, Data de Julgamento: 22/11/2022, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/11/2022)
Atente-se para a lógica do seguinte julgado:
E M E N T A DIREITO PROCESSUAL CIVIL. DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. NULIDADE DO PROCESSO. NÃO CABIMENTO . ESTRANGEIRO. PEDIDO DE REGULARIZAÇÃO MIGRATÓRIA. PROLE BRASILEIRA. HIPOSSUFICIÊNCIA ECONÔMICA COMPROVADA . INEXIGIBILIDADE DE TAXA. ATOS NECESSÁRIOS AO EXERCÍCIO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. ART . 5º, INC. LXXVI. LEI Nº 13.445/2017 – LEI DE MIGRAÇÃO . ACORDO SOBRE RESIDÊNCIA. DECRETO nº 6.975/2009. MULTA . AFASTAMENTO. APELAÇÃO DA UNIÃO NÃO PROVIDA. APELAÇÃO DO AUTOR PROVIDA. 1 . Inicialmente, não merece prosperar a alegação da UNIÃO no tocante à preliminar de nulidade do processo porquanto tratando-se de competência relativa - definida em razão do valor da causa -, e não arguida como questão preliminar em sede de contestação, prorrogar-se-á a competência relativa, nos termos do disposto nos artigos 63, 64 e 65 c/c 337, inc. II, todos do Código de Processo Civil. 2. A presente ação foi ajuizada com o escopo de assegurar o processamento da regularização migratória do autor, ora apelante, sem a cobrança de taxa ou multa . 3. Observa-se, à vista dos documentos acostados aos autos, que o autor, nascido na Venezuela, chegou ao Brasil em 25/01/2008 (Passaporte: C1885901), é inscrito no CPF nº 537.421.682-15, e tem um filho brasileiro de 07 anos - ISAAC RAFAEL HERCULANO VIVAS –, nascido em 22/02/2014, em São Paulo/SP (Id 68040158) . Pretende, o apelante, a regularização de sua documentação para permanência definitiva no Brasil em razão de prole brasileira. O autor declarou não possuir condições econômicas para arcar com o pagamento de R$ 827,75 (oitocentos e vinte e sete reais e setenta e cinco centavos), referente à taxa cobrada pela Polícia Federal. 4. Conforme se verifica do Formulário Socioeconômico (Id 68040158) acostado aos autos, o autor está desempregado, sendo a renda bruta familiar de R$ 800,00 à data da propositura da ação, tendo gastos mensais fixos do grupo familiar da ordem de R$ 783,00, sendo a título de despesa com aluguel R$ 403,00, e alimentação em torno de R$ 300,00, sem contar outras despesas . 5. In casu, vale destacar que a Constituição Federal de 1988 dispõe no art. 5º, inc. LXXVI, que, in verbis: “são gratuitasas ações de habeas corpus e habeas data, e, na forma dalei, os atos necessários ao exercício da cidadania" (grifos meus) . Outrossim, a Lei Magna não prevê distinções entre nacionais e estrangeiros no que alude ao exercício de direitos fundamentais. 6. Desse modo, considerando que a regularização da estada do estrangeiro em território nacional é de essencial importância para o exercício de direitos fundamentais, possível extrair da dicção constitucional a existência de garantia de expedição da documentação do apelante de forma gratuita - na hipótese de comprovada falta de condições econômicas de pagamento -, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc . III, da CF/88). 7. Com efeito, constata-se por meio dos documentos acostados aos autos que o autor não possui capacidade econômica para arcar com o valor da taxa cobrada para regularização migratória sem o comprometimento de seu sustento e o de sua família, o que impede a expedição de documento indispensável de identificação do requerente em território nacional. Outrossim, assistido pela Defensoria Pública da União (DPU), o autor declarou estar desempregado, restando comprovada nos autos a condição de hipossuficiência econômica do ora apelante . 8. Registre-se, ainda, que o disposto no artigo 4º, inc. XII, da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 - Lei de Migração -, assegura expressamente a isenção de taxas concernentes à regularização de estrangeiros no país mediante declaração de hipossuficiência econômica, assim dispondo, in verbis: Art . 4º Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados: (...) XII - isenção das taxas de que trata esta Lei, mediante declaração de hipossuficiência econômica, na forma de regulamento; (...) Ademais, dispõe ainda o § 3º do art. 113 da Lei nº 13.445/2017: (...)§ 3º Não serão cobrados taxas e emolumentos consulares pela concessão de vistos ou para a obtenção de documentos para regularização migratória aos integrantes de grupos vulneráveis e indivíduos em condição de hipossuficiência econômica”. Outrossim, estabeleceu o art. 312 do Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017: Art . 312. Taxas e emolumentos consulares não serão cobrados pela concessão de vistos ou para a obtenção de documentos para regularização migratória aos integrantes de grupos vulneráveis e aos indivíduos em condição de hipossuficiência econômica. § 1º A condição de hipossuficiência econômica será declarada pelo solicitante, ou por seu representante legal, e avaliada pela autoridade competente (...). 9. Trata-se, com efeito, de respeito à dignidade da pessoa humana e efetivação de garantias constitucionais, considerando a igualdade entre nacionais e estrangeiros no tocante ao exercício de direitos fundamentais. 10 . Assim, não há como condicionar a emissão de documento essencial para a regularização migratória do autor ao recolhimento de qualquer taxa quando verificada a hipossuficiência do requerente, sob pena de se impor indevida restrição ao exercício de direito fundamental previsto na Carta Magna. 11. Ademais, para casos como o presente, em que se encontram relacionados vínculos de ordem familiar, também se deve levar em consideração a proteção constitucional à família, erigida à condição de base da sociedade nos termos dos artigos 226 e 227 da Constituição Federal. Nesse sentido, dispõe o art . 37 da Lei de Migração, in verbis: Art. 37. O visto ou a autorização de residência para fins de reunião familiar será concedido ao imigrante: (...) IV - que tenha brasileiro sob sua tutela ou guarda. 12. Observa-se que a Lei de Migração garante a concessão de autorização de residência no país em razão de prole brasileira sob sua guarda, como no caso do autor, ora apelante. Ademais, já era garantido o direito à permanência no Brasil para estrangeiro com prole brasileira sob sua guarda, nos termos do art . 75, inc. II, alínea b, do Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80).
Portanto, o autor já fazia jus à permanência no país com o nascimento do filho brasileiro, em 22/02/2014, anteriormente à propositura da presente demanda
. 13. Outrossim, dispõe o Artigo 3, item 2, do Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercado Comum do Sul – Mercosul, Bolívia e Chile, assinado por ocasião da XXIII Reunião do Conselho do Mercado Comum, realizada em Brasília nos dias 5 e 6 de dezembro de 2002, introduzido no direito brasileiro pelo Decreto nº 6.975, de 7 de outubro de 2009, e do qual a Venezuela era signatária, in verbis: O presente Acordo aplica-se a: 1) Nacionais de uma Parte, que desejem estabelecer-se no território de outra e que apresentem perante o consulado respectivo sua solicitação de ingresso no país e a documentação determinada no artigo seguinte; 2)
Nacionais de uma Parte, que se encontrem no território de outra Parte, desejando estabelecer-se no mesmo e apresentem perante aos serviços de migração sua solicitação de regularização e a documentação determinada no artigo seguinte. O procedimento previsto no parágrafo 2 aplicar-se-á independente da condição migratória em que houver ingressado o peticionante no território do país de recepção e implicará a isenção de multas e outras sanções administrativas mais gravosas
(grifos meus) . 14.
Desse modo, verifica-se que o autor gozava de regularidade em sua permanência no país já que tinha direito de residência no Brasil por força do referido tratado internacional, não havendo, portanto, de se cogitar em aplicação de penalidade de multa ao autor, ora apelante
, 15. Por derradeiro, restando in casu comprovada a hipossuficiência econômica do autor, e em respeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da igualdade entre nacionais e estrangeiros no tocante ao exercício de direitos fundamentais, bem como da razoabilidade, deve ser afastada, a cobrança de taxa/multa para a regularização migratória do autor com base em prole brasileira. 16 . Apelação da União não provida. Apelação do autor provida. (TRF-3 - ApCiv: 00234181920164036100 SP, Relator.: Desembargador Federal NERY DA COSTA JUNIOR, Data de Julgamento: 12/11/2021, 3ª Turma, Data de Publicação: Intimação via sistema DATA: 26/11/2021)
Conquanto o
Acordo de Migração entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana
não veicule regras detalhadas sobre o tema, o fato é que a obtenção dos documentos decorre da própria concessão da segurança na sentença transitada em julgado, em cujo âmbito restou vedada a deportação do impetrante, razão da preservação dos vínculos familiares mantidos em solo nacional.
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA COM BASE EM REUNIÃO FAMILIAR . DOCUMENTOS. APRESENTAÇÃO. PASSAPORTE VÁLIDO. LAISSEZ PASSER . REGISTRO NACIONAL MIGRATÓRIO. REMESSA NECESSÁRIA E RECURSO DA UNIÃO DESPROVIDOS. 1 – Houve expresso indeferimento, por parte da autoridade migratória, do pedido de autorização de residência formulado pelo estrangeiro, com base em reunião familiar, ao fundamento de ausência de apresentação da documentação exigida, a caracterizar resistência ao pedido e, corolário lógico, inequívoco interesse processual, a demandar intervenção do Poder Judiciário. 2 - Sob outro aspecto, não se vislumbra perda superveniente do objeto do presente recurso, como sugere o órgão do Ministério Público Federal, na medida em que o processamento do pedido de autorização de residência, inclusive com a emissão de documento que regulariza a permanência do estrangeiro em território nacional, somente se deu em razão da concessão da medida liminar, provimento de natureza precária que demanda confirmação judicial . 3 – O passaporte é documento emitido pelo país aos seus nacionais (natos ou naturalizados), fundado no poder de império, que serve de prova da identidade e cidadania do seu titular, no qual podem ser apostos diversos registros, tais como entradas, saídas, vistos e autorizações, sendo essencial à saída do país emitente e ao ingresso no país estrangeiro, nos termos do art. 5º, I, da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 (Lei de Migração), a qual institui os direitos e os deveres do migrante e do visitante, que, por sua vez, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o viajante ou migrante. 4 - O art . 129, § 1º, da legislação mencionada permite, no entanto, a apresentação de documento de viagem com validade expirada, em caráter excepcional, ou documento emitido por órgão público brasileiro que comprove a identidade do imigrante. 5 - No caso concreto, o impetrante instruiu a ação mandamental com os seguintes documentos: Registro Nacional Migratório provisório, emitido em 13/02/2023; protocolo de requerimento de autorização de residência; escritura pública de união estável; “Laissez Passer” com validade de 1º de fevereiro a 1º de março de 2023. 6 - O Registro Nacional Migratório referenciado, expedido pela Polícia Federal em 13 de fevereiro de 2023, traz a indicação do nome do impetrante, data de nascimento, nacionalidade e filiação, ao passo que o “Laissez Passer” constitui documento de viagem, no caso de passaporte não válido no Brasil, sendo hábeis, portanto, a suprir a exigência documental trazida pela legislação migratória. Precedente desta 3ª Turma . 7 - Remessa necessária e apelação interposta pela União Federal desprovidas. Sentença mantida. (TRF-3 - ApelRemNec: 50118272820234036100 SP, Relator.: Desembargador Federal CARLOS EDUARDO DELGADO, Data de Julgamento: 05/07/2024, 3ª Turma, Data de Publicação: DJEN DATA: 10/07/2024)
Na peça inicial, o impetrante postulou que
"seja determinada a expedição de ofício à Policia Federal de Guarapuava, para que cumpra a ordem de permanência do Autor no País e emita o Registro Nacional de Estrangeiro a fim de legalizar o Autor perante o Estado Brasileiro."
Diante do exposto, concedo, liminarmente, a segurança ao autor, determinando que a autoridade policial da Delegacia de Polícia Federal de Guarapuava emita o Registro Nacional de Estrangeiro ao autor, bem como se abstenha de lhe recusar a autorização de residência no solo nacional, invocando como motivo a falta de referido documento.
Deixo de arbitrar multa dissuasória do descumprimento, prevista no art. 537, CPC, também aplicável no rito do mandado de segurança, dado não divisar sinais da sua necessidade. Caso aludida premissa seja infirmada, aludidas
astreintes
haverão então de ser arbitradas.
III - EM CONCLUSÃO
3.1. REPORTO-ME ao evento 9 no que toca aos pressupostos e condições de válido exercício de direito de ação.
3.2. EQUACIONEI acima alguns vetores, com cognição precária, relevantes para a apreciação do pedido de liminar, ao tempo em que destaquei os elementos de convicção veiculados nos autos.
3.3. DEFIRO a liminar postulada pelo impetrante, a fim de determinar à autoridade impetrada que se abstenha de recusar ao autor a expedição do registro nacional de estrangeiro (RNE) - por conta da alegada não apresentação de documentos necessários para tanto -, em prol da regularizar sua permanência no Brasil, bem como se abstenha de promover a regularização de sua permanência com argumento na falta de referido documento.
3.4.
NOTIFIQUE-SE a autoridade impetrada para que cumpra a medida liminar, no prazo de 15 (quinze) dias úteis, contados da notificação. ANOTO que a impetrante poderá promover a notificação da autoridade impetrada, por meio do(a) seu(sua) advogado(a) na forma do art. 269, §1, Código de Processo. Civil/15.
3.5. DEIXO de cominar multas diárias para o descumprimento, sem prejuízo de nova análise, caso se faça necessário - art. 537, CPC.
3.6. INTIMEM-SE as partes a respeito desta decisão - art. 5 da lei n. 11.419/2006.
3.7. INTIME-SE o MPF para, querendo, apresentar parecer em 10 dias úteis, contados da intimação, na forma do art 12 da lei n. 12.016/2009.
3.8. VOLTEM-ME conclusos para prolação da sentença, com a manifestação do MPF ou esgotamento do prazo para tanto fixado.
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