Processo nº 5042396-58.2025.4.02.5101
ID: 315536925
Tribunal: TRF2
Órgão: 3ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro
Classe: AçãO PENAL - PROCEDIMENTO ORDINáRIO
Nº Processo: 5042396-58.2025.4.02.5101
Data de Disponibilização:
03/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
TICIANO FIGUEIREDO DE OLIVEIRA
OAB/DF XXXXXX
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AÇÃO PENAL Nº 5042396-58.2025.4.02.5101/RJ
RÉU
: HECILDA MARTINS FADEL
ADVOGADO(A)
: TICIANO FIGUEIREDO DE OLIVEIRA (OAB DF023870)
RÉU
: MARTA MARTINS FADEL LOBAO
ADVOGADO(A)
: TICIANO FIGUEIREDO DE…
AÇÃO PENAL Nº 5042396-58.2025.4.02.5101/RJ
RÉU
: HECILDA MARTINS FADEL
ADVOGADO(A)
: TICIANO FIGUEIREDO DE OLIVEIRA (OAB DF023870)
RÉU
: MARTA MARTINS FADEL LOBAO
ADVOGADO(A)
: TICIANO FIGUEIREDO DE OLIVEIRA (OAB DF023870)
DESPACHO/DECISÃO
1. Relatório
Vistos em decisão.
Trata-se de
ação penal
proposta inicialmente pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – MPRJ, em desfavor de
HECILDA MARTINS FADEL
e
MARTA MARTINS FADEL LOBAO
, imputando-lhes a prática do crime de uso de documento falso do artigo 304 e o crime de estelionato do artigo 171, todos do Código Penal.
Narrou a denúncia, em síntese, que em data não suficientemente determinada nos autos do Inquérito Policial nº 911-00228/2020, mas certamente compreendida no período entre os dias 14 de dezembro de 2016 e 28 de junho de 2017, no escritório Fadel e Giordano Advogados, situado na Rua México, nº 168, 13º andar, no Centro da Cidade do Rio de Janeiro, pessoa ainda não identificada, mancomunada com as rés, teria supostamente promovido a contrafação parcial do documento particular intitulado Instrumento Particular de Cessão de Direitos (indexado sob o nº 99 do inquérito policial), acrescentando na declaração escrita duas assinaturas materialmente falsificadas dos advogados Sérgio Ronaldo Sahione Fadel e Marcelo Martins Fadel, ambos já falecidos ao tempo da contrafação.
Segundo a narrativa acusatória, em 28 de junho de 2017, o papel foi levado ao 15º Ofício de Notas, com sede na Rua do Ouvidor, nº 89, no Centro da Cidade, onde o escrevente substituto, teria sido induzido a erro e reconhecido, por semelhança, como verdadeiras as assinaturas falsificadas. Com isso, o documento teria passado a conter declarações de vontade inautênticas, capazes de gerar consequências jurídicas e patrimoniais decorrentes da cessão fraudulenta de direitos à percepção de honorários devidos aos espólios dos advogados, em prejuízo dos herdeiros, entre eles Renata França Fadel, nora e viúva dos falecidos, e seus filhos, civilmente incapazes em razão de tenra idade.
Consta no caderno investigatório que, em 02 de outubro de 2019, as rés, livre e conscientemente, em perfeita comunhão de ações e desígnios, no exercício da advocacia, com amplo e total domínio dos fatos concernentes à administração do escritório beneficiado pela cessão fraudulenta, em prejuízo da fé pública, por interpostas pessoas que desconheciam o fato ilícito, teriam feito uso do documento falsificado, promovendo sua juntada nos autos da ação de execução de honorários que havia sido proposta por Sérgio Ronaldo Sahione Fadel, em 18 de agosto de 2009, e tramitava perante o juízo da 23ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado do RJ (Proc. nº 0211982-10.2009.8.19.0001).
Segundo a inicial, o estelionato judiciário não teria se consumado por circunstâncias alheias à vontade das denunciadas, uma vez que o Juízo, em 26 de novembro de 2021, proferiu decisão determinando a transferência dos créditos para o inventário nº 0150958- 97.2017.8.19.0001, à disposição do juízo orfanológico, como forma de resguardar o direito dos herdeiros.
Em razão de a vítima Renata França Fadel ter exercido o direito de representação em sede policial, art. 171, § 5º, do CP, o MPRJ pediu a condenação nos crimes de estelionato tentado e uso de documento falso, tipificados nos artigos 171, caput c/c 14, inciso II e 304, na forma do 69, todos do Código Penal.
Em cota, conforme Anexo 02 do Evento 01, o Parquet Estadual promoveu o arquivamento quanto à Vany Giordano, contra a qual não foram reunidos elementos probatórios suficientes. Também, o MPRJ promoveu o declínio de sua atribuição para o Ministério Público Federal, tendo em vista os casos em que teria havido uso do documento supostamente falso em processos em curso nas Varas Federais do Rio de Janeiro/RJ.
No ponto, requereu ao Juízo da 11ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro que fosse desmembrado o feito, com a remessa de cópia à Procuradoria da República no Rio de Janeiro, para ciência e providências cabíveis.
Por fim, requereu a expedição de ofício à 23ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado do RJ, solicitando cópia integral do processo nº 0211982-10.2009.8.19.0001 e justificou o não-cabimento de Acordo de Não Persecução Penal, eis que as denunciadas, embora ouvidas em sede policial, não confessaram a prática dos delitos. Ademais, apontou a existência de elementos indicativos de reiteração criminosa.
Após o oferecimento da denúncia, os autos foram redistribuídos para a 11ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, por prevenção à medida de sequestro nº 0231354-85.2022.8.19.0001, cujo apensamento restou determinado na sequência (Evento 1, ANEXO7, Páginas 176/179, 182/183 e 192).
No dia 19/9/2022, a denúncia foi recebida, ocasião em que determinou o arquivamento do feito quanto à Vany Giordano, bem como a expedição de ofício à 23ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado do RJ, para obtenção de cópia integral do processo nº 0211982-10.2009.8.19.0001.
Todavia, nada dispôs acerca dos desmembramentos do feito para levar adiante as promoções de declínio de atribuição em comento (Evento 1, ANEXO7, Páginas 176/179, 182/183 e 192).
Devidamente citadas, as rés apresentaram resposta à acusação. Dentre outras questões, sustentaram a absorção do crime de uso de documento falso (art. 304 do CP), pelo crime de estelionato (art. 171 do CP), dada a ausência de potencialidade lesiva, no caso, das cópias do instrumento particular falso utilizadas. Referem, ademais, a celebração de acordo, no dia 9/5/2022, entre a Fadel Advogados e Vany, acerca dos honorários que seriam devidos à Giordano Consultoria, em que restou definido o correspondente a 50% dos honorários e verbas sucumbenciais relacionados a contratos celebrados em nome de Sérgio Ronaldo, entre outros (Evento 1, ANEXO7, Páginas 219/220 e 246/319).
Posteriormente, data de 1º de dezembro de 2022, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro apresentou peça de aditamento à inicial (Evento 01, Anexo 01), imputando tais delitos em decorrência da suposta utilização do referido documento em uma série de outros processos que tramitaram perante a Justiça Federal.
O aditamento ressalta que a vítima Renata França Fadel exerceu expressamente o direito de representação em sede policial (art. 171, § 5º, do CP)
.
Refere, ademais, que o escritório advocatício FADEL & GIORDANO ADVOGADOS teria levantado o valor de R$ 5.323.006,10 (cinco milhões, trezentos e vinte e três mil, seis reais e dez centavos), com base no documento supostamente falso (Evento 1, ANEXO9, Páginas 34/68).
Não foram arroladas testemunhas adicionais às apresentadas na denúncia, e foi requerida a expedição de ofícios às Varas Federais mencionadas no aditamento, para que encaminhassem cópias dos autos (Evento 1, ANEXO9, Páginas 34/68).
No aditamento, também foi justificado o não-cabimento de Acordo de Não Persecução Penal, eis que as penas, somadas devido ao cúmulo material de crimes, excedem o montante da pena mínima prevista no art. 28-A, do CPP, bem como de suspensão condicional do processo, nos termos do art. 89, da Lei nº 9.099/95 (Evento 1, ANEXO9, Páginas 34/68).
No dia 7/12/2022, o aditamento foi recebido pelo I. Juízo Estadual (Evento 1, ANEXO9, Página 70).
Na sequência, consta resposta à acusação apresentada pelas denunciadas (Evento 1, ANEXO9, Páginas 173/266).
Logo em seguida, apresentaram exceção de incompetência, pleiteando o reconhecimento da competência da Justiça Federal do Rio de Janeiro, para processo e julgamento do feito (Evento 1, ANEXO9, Páginas 268/285).
Adiante, o MPRJ manifestou-se pela competência do Juízo da 11ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro para o processo e julgamento do feito (Evento 1, ANEXO9, Páginas 294/295).
A exceção de incompetência foi rejeitada pelo Juízo da 11ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, ocasião em que o recebimento da denúncia foi ratificado, bem como deferidas as diligências requeridas pelas partes, dentre as quais a expedição de ofício aos juízos federais apontados no aditamento à denúncia para que informassem sobre a protocolização nos autos indicados do instrumento particular de cessão de direitos, com data de juntada e cópia da petição que a fez (Evento 1, ANEXO9, Páginas 298/300).
Na ocasião, restou designada AIJ e determinado o desapensamento de feito, para remessa à segunda instância, em razão de apelação interposta (Evento 1, ANEXO9, Páginas 298/300).
As denunciadas opuseram embargos de declaração da decisão em comento (Evento 1, ANEXO9, Páginas 315/330). O recurso foi parcialmente acolhido para sanar as omissões apontadas e enfrentadas na ocasião (Evento 1, ANEXO9, Páginas 338/343).
Na sequência, a defesa técnica das denunciadas apresentou petição para retirada do feito da pauta de audiências, eis que ainda não haviam sido expedidos os ofícios aos Juízos Federais, conforme determinado, o que foi acolhido em seguida (Evento 1, ANEXO9, Páginas 380/383 e 385).
A defesa impetrou Habeas Corpus para garantia da competência jurisdicional. Consta, adiante, a decisão monocrática proferida pelo Ministro da Sexta Turma do STJ Jesuíno Rissato, no bojo do habeas corpus nº 833.474/RJ, de acordo com a qual foi denegada a ordem pretendida, reconhecendo-se a competência da Justiça Estadual na espécie (Evento 1, ANEXO9, Páginas 463/473 e 520/531).
Em seguida, os autos foram instruídos com petição de Renata Silvares França Fadel, datada do dia 5/11/2024, em nome próprio e na qualidade de inventariante do espólio de Marcelo Martins Fadeal, por meio da qual manifestou seu desinteresse no prosseguimento da ação penal, em razão da homologação de partilha amigável do inventário de Sérgio Ronaldo Sahione Fadel (ANEXO9, Página 497).
Em nova petição, as denunciadas pleitearam a rejeição da denúncia, dados os reflexos da retratação da representação da vítima (Evento 1, ANEXO9, Páginas 506/519).
A respeito, o MPRJ manifestou-se pela preclusão da retratação da representação, eis que ocorrida após o oferecimento da denúncia, o que, ademais, em nada prejudicaria a persecução pela pelo crime de uso de documento falso (art. 304 do CP) (Evento 1, ANEXO9, Página 545). O Juízo Estadual rejeitou o pleito defensivo (Evento 1, ANEXO9, Páginas 548/549).
Em nova petição, as denunciadas noticiaram o arquivamento da medida de sequestro vinculada ao feito (autos nº 0231354-85.2022.8.19.0001), bem como requereram medidas destinadas ao levantamento dos gravames impostos a seus imóveis e automóveis (Evento 1, ANEXO9, Páginas 562/563 e 565).
Adiante, foram expedidos os ofícios aos Juízos Federais (Evento 1, ANEXO9, Páginas 643/644 e 651/671).
Constam as FAC de
HECILDA MARTINS FADEL
(Evento 1, ANEXO9, Páginas 711/716) e solicitação de FAC de MARTA FADEL MARTINS LOBÃO (Evento 1, ANEXO9, Página 718).
Em seguida, a defesa técnica das denunciadas acostou cópia da decisão proferida no bojo do habeas corpus nº 253.068/RJ, pelo Ministro do STF André Mendonça, contra a decisão monocrática proferida pelo Ministro da Sexta Turma do STJ Jesuíno Rissato, no bojo do Habeas Corpus nº 833.474/RJ, determinando o sobrestamento do feito até julgamento do mérito do writ (Evento 1, ANEXO9, Páginas 720 e 721/729).
Adiante, os autos foram instruídos com a decisão proferida no julgamento do Habeas Corpus nº 253.068/RJ, no bojo do qual foi deferida a ordem, de ofício
" para, assentando a incompetência da Justiça estadual, determinar a remessa dos autos da Ação Penal nº 0235353-46.2022.8.19.0001, em trâmite na 11ª Vara Criminal da Comarca da Capital/RJ, à Seção Judiciária Federal do Rio de Janeiro".
Como consequência, restou declarada
"a nulidade dos atos decisórios proferidos, sendo permitida a convalidação dos atos de caráter instrutório, da denúncia ofertada e aditada e dos pronunciamentos que implicaram o recebimento destas"
(Evento 1, ANEXO10).
Os autos foram instruídos com as respostas dos Juízos Federais oficiados: (i) 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, autos nº 0065669-41.1994.4.02.5101 (Evento 1, ANEXO9, Páginas 753/755 e 767/773); (ii) 26ª Vara Federal do Rio de Janeiro, autos nº 0021648-33.2001.4.02.5101 (Evento 1, ANEXO11, Páginas 9/41); (iii) 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro, autos nº 0029916-23.1994.02.5101 (Evento 1, ANEXO13, Páginas 12/45); (iv) 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro, autos nº 0029778-46.2000.4.02.5101 (Evento 1, ANEXO13, Páginas 52/53); e (v) 18ª Vara Federal do Rio de Janeiro, autos nº 0004942- 14.1997.4.02.5101 (Evento 1, ANEXO13, Páginas 60/61 e 206/252).
Após serem distribuídos à Justiça Federal,
Hecilda Martins Fadel
e Marta Fadel Martins Lobão apresentaram petição, por meio da qual pretendem o trancamento do feito (Evento 3).
Também apresentaram o parecer subscrito pelo Professor Ademar Borges no sentido de que há nulidade na denúncia por Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro cujos fatos supostamente cometidos pelas rés são de atribuição do Ministério Público Federal. De igual modo, inexistia competência ao Juízo Estadual para o feito, o que macula a prestação jurisdicional e impõe o trancamento do feito.
Ainda, que a homologação da partilha amigável e a manifestação de desinteresse da vítima no prosseguimento da ação penal constituem fatos supervenientes modificativos de direito que devem ser conhecidos mediante aplicação analógica do art. 493 do CPC, expediente acolhido pela jurisprudência do STF e do STJ, independentemente do momento processual.
Intimado, o Ministério Público Federal – MPF expôs que a atribuição para a imputação dos crimes em comento é do Parquet Federal, de modo que, no caso, o oferecimento do aditamento foi feito por quem não detinha legitimidade para tanto, padecendo de vício de nulidade absoluta (art. 564, II, do CPP).
Ainda, que o aditamento oferecido por autoridade sem legitimidade não tem o condão de prejudicar o exercício do direito de as vítimas se retratarem de suas representações. Caso se retratem antes da ratificação do ato de aditamento, realizado por pelo Órgão de Atuação com atribuição, os efeitos de tal retratação operam-se nos termos dos artigos 25 e 102, do Código Penal, tal como ocorreu no caso.
Apontou que o uso de documentos falsos teve como pano de fundo o recebimento de honorários devidos a terceiros no bojo de processos judiciais. O objetivo do crime, portanto, era só um: a obtenção de vantagem indevida em prejuízo daqueles que seriam os titulares dos recursos almejados
Com a não-ratificação do aditamento, remanescem apenas os fatos atinentes à contrafação do documento falso em comento, além daqueles que decorrentes de seu uso perante a Justiça Estadual do Rio de Janeiro.
O Ministério Público Federal requereu o arquivamento do feito, no que pertine aos crimes, em tese, de estelionato (art. 171 do CP) praticados mediante o uso de documentos falsos em Juízos Federais do Rio de Janeiro/RJ, tendo em vista a retratação das representações das vítimas, nos termos do art. 25 do CPP.
Deixou, portanto, de ratificar o aditamento à denúncia e, remanescente apenas questões relacionadas à contrafação do instrumento particular de cessão de direitos falso e ao seu uso perante a 23ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, requereu o declínio de competência à Justiça Estadual do Rio de Janeiro/RJ, com a consequente remessa do feito para a ratificação ou não dos atos praticados pelos respectivos Órgãos estaduais.
Em nova manifestação, a defesa reiterou o pedido de trancamento, porquanto a nulidade da denúncia original emana da decisão proferida pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, na qual reconhecida a competência da Justiça Federal para processar e julgar a totalidade dos fatos apurados na presente ação penal, estando incluídos, portanto, a denúncia e seu respectivo aditamento, mormente pela conexão a atrair a integral competência da Justiça Federal nos termos da Súmula 122 do Superior Tribunal de Justiça – STJ.
Os autos vieram conclusos.
É o relatório. Decido.
2. Fundamentação
2.1. Competência da Justiça Federal
A delimitação da competência à luz das normas existentes na ordem jurídica é garantia constitucional no que toca ao juízo natural e ao devido processo legal, artigo 5º, inciso LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
De tal modo, no âmbito processual penal há nulidade dos atos decisórios em caso de incompetência absoluta, tal como prevê o artigo 567 do Código de Processo Penal – CPP.
Entretanto, nos termos da jurisprudência do Egrégio Supremo Tribunal Federal – STF os atos decisórios proferidos por juízo absolutamente incompetente são passíveis de ratificação.
No presente caso, o Eminente Ministro André Mendonça concedeu, de ofício, a ordem no Habeas Corpus 253.068 para:
“
(...) assentando a incompetência da Justiça estadual, determinar a remessa dos autos da Ação Penal nº 0235353-46.2022.8.19.0001, em trâmite na 11ª Vara Criminal da Comarca da Capital/RJ, à Seção Judiciária Federal do Rio de Janeiro.
“Como consequência da declaração da incompetência, declaro a nulidade dos atos decisórios proferidos, sendo permitida a convalidação dos atos de caráter instrutório, da denúncia ofertada e aditada e dos pronunciamentos que implicaram o recebimento destas (grifei)
”.
Na fundamentação, o Excelso Ministro pontuou que
"(...) Sendo assim, tendo havido ofensa direta aos interesses da União, a atrair a competência da Justiça Federal (art. 109, inc. IV, CRFB), impõe-se, portanto, assentar a incompetência da Justiça estadual.
28. Como consequência, tornam-se nulos os atos decisórios proferidos pelo Juízo incompetente, permitida a convalidação dos (i) atos instrutórios, (ii) de relativo caráter decisório (tal como o recebimento da denúncia) e (iii) da denúncia apresentada e seu aditamento, nos termos do art. 567 do CPP”.
Importante reiterar que o Egrégio Supremo Tribunal Federal reconheceu, portanto, a competência da Justiça Federal para o processamento dos autos da Ação Penal nº 0235353-46.2022.8.19.0001, outrora em trâmite na 11ª Vara Criminal da Comarca da Capital/RJ com envio do feito à Seção Judiciária Federal do Rio de Janeiro.
Nesse quadro, há delimitação da competência da Justiça Federal nos moldes do artigo 109, inciso I, da CRFB/88 para o processamento dos autos da Ação Penal referida.
Reconhecida a competência da Justiça Federal, imprescindível a análise da ratificação, ou não, das peças de acusação pelo MPF e, em seguida, eventual convalidação dos atos decisórios anteriormente proferidos.
2.2. Arquivamento por retratação da representação de crime de Ação Penal Pública Condicionada
Nos crimes de ação penal pública condicionada, a representação da vítima configura condição de procedibilidade, conforme estabelecido no artigo 100, §1º, do Código Penal, e no artigo 24 do Código de Processo Penal.
Com a alteração legislativa introduzida pela Lei nº 13.964/2019, o crime de estelionato passou a ser, como regra, de ação penal pública condicionada à representação do ofendido, exigindo-se, portanto, manifestação de vontade da vítima para o exercício da persecução penal.
De acordo com o artigo 102 do Código Penal e artigo 25 do Código de Processo Penal a retratação da representação só é admitida antes do oferecimento da denúncia. Após esse marco, a manifestação torna-se irretratável, de modo que eventual retratação posterior não possui efeitos jurídicos quanto à viabilidade da ação penal.
No caso concreto, como visto, observa-se que a persecução penal foi inicialmente conduzida por órgão do Ministério Público estadual, tanto no que tange à denúncia e ao aditamento, embora os fatos apurados fossem de competência da Justiça Federal segundo determinou o Supremo Tribunal Federal.
Narrou a denúncia, em síntese, que em data não suficientemente determinada nos autos do Inquérito Policial nº 911-00228/2020, pessoa ainda não identificada, mancomunada com as rés, teria supostamente promovido a contrafação parcial do documento particular intitulado Instrumento Particular de Cessão de Direitos (indexado sob o nº 99 do inquérito policial), acrescentando na declaração escrita duas assinaturas materialmente falsificadas dos advogados Sérgio Ronaldo Sahione Fadel e Marcelo Martins Fadel, ambos já falecidos ao tempo da contrafação.
Segundo a narrativa acusatória, as investigadas teriam feito uso do documento falsificado, promovendo sua juntada nos autos da ação de execução de honorários que tramitava perante o juízo da 23ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado do RJ (Proc. nº 0211982-10.2009.8.19.0001) em 2019.
Em aditamento, imputou-se delitos conexos, desde 2017, em decorrência da suposta utilização do referido documento em uma série de outros processos que tramitaram perante a Justiça Federal.
A conexão impôs a modificação da competência para análise de todos os fatos, consoante o artigo 109, inciso I, da CRFB/88, bem como, artigo 76, inciso III, do CPP e Súmula 122 do Superior Tribunal de Justiça - STJ.
Isso porque os supostos delitos foram praticados de modo semelhante, inicialmente perante a Justiça Federal e, subsequentemente, frente à Justiça Estadual em conexão consoante inicial e aditamento.
Diante da ausência de atribuição constitucional e legal do Parquet estadual para promover a ação penal relativa a ilícitos de competência federal, os atos por ele praticados, inclusive eventual denúncia, são nulos com fundamento no artigo 564, inciso II, do CPP, mas podem ser ratificados por parte do Ministério Público Federal.
Nesse contexto, a retratação da vítima, apresentada antes do oferecimento formal da denúncia pelo Ministério Público Federal — considerado, para fins de definição do marco processual relevante, o momento em que tal órgão é instado a ratificar ou não os atos anteriormente praticados pelo MPRJ — deve ser reconhecida como válida e eficaz, uma vez que ainda não havia se consumado o ato processual que tornaria a representação irretratável.
No caso, a vítima retratou-se conforme Evento 01, Anexo 09, fls. 497 nos seguintes termos:
"Proc. n°
0235353-46.2022.8.19.0001
RENATA SILVARES FRANÇA FADEL, em nome próprio e na qualidade de inventariante do espólio de MARCELO MARTINS FADEL, vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, em conjunto com os seus advogados, manifestar seu desinteresse pelo prosseguimento da ação penal em referência, em virtude da homologação e conclusāo da partilha amigável do inventáio de SÉRGIO RONALDO SAHIONE FADEL'.".
Por isso, o MPF, instado a se manifestar sobre os atos anteriores do MPRJ, para fins de convalidação, ou não, não ratificou o aditamento da denúncia e requereu o arquivamento parcial, porquanto existiu retratação da representação pela vítima do suposto estelionato.
Como argumentou o MPF:
“(...) 64. É que, dada a instrumentalidade processual, não há como ignorar o direito material subjacente. Em outras palavras, a questão também envolve a vontade consciente de as investigadas obterem, mediante fraude, honorários advocatícios, in casu, em prejuízo do espólio de MARCELO MARTINS FADEL e da sociedade empresária GIORDANO CONTENCIOSO E CONSULTORIA LTDA, de titularidade de VANY ROSSELINA GIORDANO.
65. Com tal finalidade, teria sido feito o uso de cópias digitais de instrumento particular de cessão de direitos ideologicamente falso (art. 304 do CP) em diversos processos em curso na Justiça Federal, o que, à evidência, se encontra na linha de desdobramento normal causal da conduta de obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.
66. Dessa forma, abstraídas conjecturas acerca de inúmeras possibilidades de utilização, à luz dos elementos de prova carreados verifica-se o exaurimento da potencialidade lesiva das citadas cópias do documento falso na tentativa de obter ou na obtenção de honorários advocatícios de titularidade de terceiros.
67. Nesse particular, sob orientação finalística da conduta penal incriminadora, tida como comportamento voluntário dirigido a uma finalidade antijurídica e reprovável, e dado o esgotamento da potencialidade lesiva dos documentos à medida que utilizados nos processos em questão, impõe-se o reconhecimento da absorção do crime-meio (art. 304 do CP), pelo crime-fim (art. 171 do CP).
69. Em suma, o uso de documentos falsos teve como pano de fundo o recebimento de honorários devidos a terceiros no bojo de processos judiciais. O objetivo do crime, portanto, era só um: a obtenção de vantagem indevida em prejuízo daqueles que seriam os titulares dos recursos almejados.
70. Tratando-se os fatos objeto do aditamento de crimes de estelionato praticados em detrimento de particulares, porém com afetação da Justiça Federal, a persecução penal não deixa de ser condicionada à representação da vítima, nos termos do § 5º, do art. 171, do Código Penal.
71. Dada tal afetação, a atribuição para a imputação dos crimes em comento é do Parquet Federal, de modo que, no caso, o oferecimento do aditamento foi feito por quem não detinha legitimidade para tanto, padecendo de vício de nulidade (art. 564, II, do CPP), in casu, absoluta.
(...)
73. Como já dito, as vítimas retrataram-se de suas representações em 12/7/2022 (antes do oferecimento da denúncia e de seu aditamento, ocorridos nos dias 29/8/2022 e 1º/12/2022, respectivamente) e em 5/11/2024 (Evento 1, ANEXO9, Páginas 2/9 e 497), de modo que resta saber, para fins do disposto nos artigos 25 e 102, do Código Penal, se a ratificação do aditamento, a essa altura, encontraria óbice no vício de nulidade absoluta. Em outras palavras, resta saber se a ratificação do aditamento e do recebimento do aditamento retroagiria à data em que oferecido o aditamento, para fins de excluir a incidência dos artigos 25 e 102, do Código Penal, segundo os quais a retratação da representação não pode ser exercida após recebimento da denúncia.
74. No nosso entendimento, não. Mutatis mutandis, a jurisprudência dos Tribunais Superiores sedimentou entendimento de que o vício de nulidade absoluta, embora seja passível de ratificação, não tem o condão de interromper o prazo da prescrição da pretensão punitiva.
75. Nesse cenário, por analogia, conclui-se que o aditamento oferecido por autoridade sem legitimidade não tem o condão de prejudicar o exercício do direito de as vítimas se retratarem de suas representações. Caso se retratem antes da ratificação do ato de aditamento, realizado por pelo Órgão de Atuação com atribuição, os efeitos de tal retratação operam-se nos termos dos artigos 25 e 102, do Código Penal.”.
No caso em análise, conforme sustentado pelo Ministério Público Federal, o alegado uso de documentos falsificados teve por finalidade o recebimento indevido de honorários advocatícios em processos judiciais, valores que seriam de titularidade de terceiros. Fica evidente, assim, que o objetivo do suposto delito era a obtenção de vantagem ilícita em detrimento dos verdadeiros beneficiários dos recursos.
Por conseguinte, com a qualificação jurídica, a partir dos fatos, realizada pelo MPF como estelionato, crime do artigo 171 do CP, que exige representação para a veiculação da ação penal e, existente retratação da representação, não há ratificação da peça acusatória pelo Parquet Federal, o que impõe o acolhimento do arquivamento.
A peculiaridade do caso é que o MPF requereu a continuidade perante o Juízo Estadual dos fatos relacionados a tal órgão. Entretanto, o suposto uso do documento falsificado na execução de honorários advocatícios que tramitava perante o juízo da 23ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado do RJ (Proc. nº 0211982-10.2009.8.19.0001) também foi objeto da denúncia, que culminou no aditamento com a percepção da conexão do artigo 76, inciso III, do Código de Processo Penal – CPP.
Conseguintemente, não há fato autônomo em relação ao suposto fato remanescente da denúncia originária, mas conexo à utilização do mesmo documento contrafeito em autos em trâmite na Justiça Federal e, posteriormente, na Justiça Estadual, o que determina a incidência da Súmula 122 do Superior Tribunal de Justiça:
"Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal.".
De tal modo, o arquivamento em razão da retratação da representação é medida que se impõe para todos os fatos apurados na Ação Penal nº 0235353-46.2022.8.19.0001, outrora em trâmite na 11ª Vara Criminal da Comarca da Capital/RJ, remetido à Seção Judiciária Federal do Rio de Janeiro por ordem da Corte Suprema (STF).
Novamente, consoante determinou o Eminente Ministro Relator:
“(...) assentando a incompetência da Justiça estadual, determinar a remessa dos autos da Ação Penal nº 0235353-46.2022.8.19.0001, em trâmite na 11ª Vara Criminal da Comarca da Capital/RJ, à Seção Judiciária Federal do Rio de Janeiro.
“Como consequência da declaração da incompetência, declaro a nulidade dos atos decisórios proferidos, sendo permitida a convalidação dos atos de caráter instrutório, da denúncia ofertada e aditada e dos pronunciamentos que implicaram o recebimento destas”
.
Convém pontuar, por fim, que, como visto, a vítima apresentou a retratação da representação destinada aos autos nº 0235353-46.2022.8.19.0001, o que atinge todos os fatos apurados, fls. 497 do Anexo 09 ao Evento 01.
3. Dispositivo
Ante o exposto, nos termos de toda a análise processual, bem como, com atenção à fundamentação supra, ordeno o arquivamento por ausência de condição de procedibilidade frente à retratação da representação da vítima anteriormente à ratificação dos atos acusatórios pelo MPF, com fundamento nos artigos 100, §1º e 102 do Código Penal e artigos 24 e 25 do Código de Processo Penal.
Ciente o
Parquet
do disposto no artigo 28,
caput
, §§1º e 2º do Código de Processo Penal, para as providências no âmbito de suas atribuições.
Traslade-se cópia para os autos da Medida Cautelar 5062901-70.2025.4.02.5101.
Intime-se o Ministério Público Federal e a defesa para ciência da presente decisão.
Cumpra-se.
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