Processo nº 0803780-19.2024.8.10.0001
ID: 292044973
Tribunal: TJMA
Órgão: Vara de Interesses Difusos e Coletivos de São Luis
Classe: AçãO CIVIL PúBLICA CíVEL
Nº Processo: 0803780-19.2024.8.10.0001
Data de Disponibilização:
09/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
ESTADO DO MARANHÃO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DA ILHA DE SÃO LUÍS FÓRUM DESEMBARGADOR SARNEY COSTA VARA DE INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS CLASSE PROCESSUAL: AÇÃO CIVIL PÚBLICA (65) PROCESSO: 0803780-19…
ESTADO DO MARANHÃO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DA ILHA DE SÃO LUÍS FÓRUM DESEMBARGADOR SARNEY COSTA VARA DE INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS CLASSE PROCESSUAL: AÇÃO CIVIL PÚBLICA (65) PROCESSO: 0803780-19.2024.8.10.0001 AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO RÉUS: ESTADO DO MARANHÃO, MUNICÍPIO DE SÃO LUÍS Ementa. DIREITO À SAÚDE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PROCEDIMENTOS CARDÍACOS. FILA DE ESPERA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO ESTADO E DO MUNICÍPIO. OBRIGAÇÃO DE FAZER. I. Caso em exame. 1. Ação civil pública visando a obrigar Estado e Município a realizar procedimentos cardíacos em pacientes do SUS que aguardam em fila de espera. Alegações de morosidade e ausência de previsão para realização das cirurgias. Contestações alegando ilegitimidade passiva, separação de poderes e organização da fila por procedimento. II. Questão em discussão. 2. Dever do Estado e do Município em garantir a realização de procedimentos cardíacos pelo SUS. 3. Razoabilidade do tempo de espera em fila. 4. Possibilidade de intervenção judicial em políticas públicas de saúde. III. Razões de decidir. 5. A saúde é direito de todos e dever do Estado, devendo ser garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde (CF, arts. 196 e 23, II; Lei nº 8.080/1990, arts. 2º e 6º; Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, art. 12). 6. O Estado e o Município são solidariamente responsáveis pela execução da política de saúde e devem garantir a realização de procedimentos médicos necessários, inclusive cirurgias cardíacas, dentro de um prazo razoável. 7. A espera superior a dois anos por procedimentos cardíacos é excessiva e viola o direito à saúde (Enunciado nº 93 da III Jornada de Direito da Saúde do CNJ). 8. A intervenção judicial é cabível para assegurar a efetividade do direito à saúde, sem que isso configure violação à separação de poderes (RE 684.612/RJ, Tema 698 do STF, e LINDB, art. 5º). IV. Dispositivo e tese. 9. Acolhimento do pedido. Estado e Município condenados a realizar os procedimentos cardíacos em pacientes que aguardam há mais de dois anos, no prazo de seis meses, ou custear a realização na rede privada, sob pena de multa diária. Tese de julgamento: “1. É dever do Estado e do Município garantir o acesso a procedimentos cirúrgicos pelo SUS em prazo razoável, não podendo a espera em fila de espera se prolongar indefinidamente, sob pena de violação ao direito fundamental à saúde. 2. A intervenção do Poder Judiciário é legítima para determinar a realização dos procedimentos ou o custeio na rede privada quando a demora for excessiva e injustificada, observando-se os critérios de razoabilidade e as possibilidades da Administração Pública”. Dispositivos relevantes citados: CF, arts. 5º, XXXV, 23, II, e 196; Lei nº 8.080/1990, arts. 2º e 6º; Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), art. 5º; CPC, art. 487, I. Jurisprudência relevante citada: RE 684.612/RJ (Tema 698 do STF); TJ-MA - Remessa Necessária: 0590632013 MA 0044817-79.2012.8.10.0001; TJ-SP - RI: 00022337220228260236 SP 0002233-72.2022.8.26.0236. SENTENÇA 1. RELATÓRIO Trata-se de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Maranhão em face do Município de São Luís e do Estado do Maranhão, na qual requer que os réus garantam a realização dos procedimentos cardíacos de que necessitam os usuários do SUS José João Matos Costa, José Francisco Brenha e Domingas Cesaria dos Santos Simas, bem como de outros pacientes listados em documentos oficiais. O autor alega que o usuário do SUS José João Matos Costa encontra-se na fila de espera desde dezembro de 2022, sem previsão para realização da referida cirurgia, bem como que o Sr. José Francisco Brenha aguarda a realização de procedimento cirúrgico de troca valvar mitral desde janeiro de 2023, também sem previsão para realização da referida cirurgia, mesmo seu caso sendo de extrema gravidade e urgência. Aduz, ainda, que a Sra. Domingas Cesaria dos Santos Simas, portadora de câncer de mama, aguarda a sua transferência do Hospital de Cuidados Intensivos (HCI), onde deu entrada em julho de 2023, para o Hospital de Alta Complexidade, com suporte para a realização de angioplastia e/ou cirurgia cardíaca, bem como para leito de cirurgia vascular. Ao final, formulou os seguintes pedidos: “Requer-se, após a concessão da liminar, seja julgada em caráter definitivo a cominação de obrigação de fazer, determinando ao Estado do Maranhão e ao Município de São Luís que, em 30 (trinta) dias, garantam a realização dos procedimentos cardíacos de que necessitam os usuários do SUS José João Matos Costa, José Francisco Brenha e Domingas Cesaria dos Santos Simas, os usuários que se encontram nas relações nominais juntadas às fls. 56/59 e 80/83 da Notícia de Fato nº 000256-510/2023 e fls. 63/66 e 76/86 da Notícia de Fato nº 002794-509/2023, bem como os outros usuários que estejam porventura aguardando procedimentos cirúrgicos de plástica valvar e/ou troca valvar múltipla e outros procedimentos que envolvam implante/troca valvar aórtica/revascularização e que serão relacionados nas Listas de Espera atualizadas a serem apresentadas pelo Estado do Maranhão e pelo Município de São Luís, e, caso não seja possível a realização das cirurgias na Rede Pública de Saúde, que arquem com os custos dos procedimentos cirúrgicos na Rede Privada de Saúde, sendo que o tratamento não pode ser diferenciado por conta desta ação judicial, sob pena de responsabilidade civil e criminal”. Em contestação, o Estado do Maranhão alegou que “a regulação de cirurgia cardíaca não é mais controlada ou gerenciada por fila única ou unificada, pois cada procedimento cirúrgico requer material específico e/ou grau diferente de complexidade” e que, por isso, adotou-se a fila individual para cada procedimento cirúrgico cardíaco, bem como que a rotatividade da fila de espera é definida a partir dos critérios de classificação de risco e da data da solicitação do procedimento - id 113131350. O Município de São Luís também apresentou contestação, alegando, preliminarmente, ilegitimidade passiva. No mérito, alegou violação ao princípio da separação dos poderes, bem como que “a atuação do Município de São Luís fica limitada ao agendamento de consultas e a marcação de exames, não possuindo qualquer ingerência no agendamento, tampouco na realização dos procedimentos cirúrgicos”, que ficam sob responsabilidade do Complexo Regulador do Município de São Luís, formado pela Central de Regulação de Consultas e Exames - id 115757846. Réplica - id 120441969. Juntada de documentação pelo Estado do Maranhão, informando que o Sr. José João Matos Costa realizou o procedimento em abril de 2024; que a Sra. Domingas Cesária dos Santos Simas realizou o procedimento de angioplastia em dezembro de 2023 e consulta ambulatorial em abril de 2024 para iniciar acompanhamento clínico cardiológico; e que o Sr. José Francisco Brenha encontra-se em fila de espera do Sistema Nacional de Regulação (SISREG), com classificação de risco para realização de implante de prótese valvar na posição de número 184 - id 123408935. Audiência de saneamento compartilhado realizada em 07/11/2024, na qual a preliminar de ilegitimidade passiva arguida pelo Município de São Luís foi rejeitada - id 134060352. Juntada de ofícios pelo Estado do Maranhão - ids 140015324 e 140015325. O Município de São Luís juntou documentos com informações da SEMUS - ids 142200250, 142200251 e 142200252. É o relatório. Decido. 2. FUNDAMENTAÇÃO A saúde é considerada direito social e, para sua garantia, exige-se do Poder Público o cumprimento de prestações positivas. A Constituição Federal enuncia que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art. 196, CF). Ademais, é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência (art. 23, II, CF). A procedência das pretensões jurídicas deduzidas pelo Ministério Público decorre de todo um sistema jurídico de promoção da saúde, estabelecido a partir do artigo 1º, III, da CF, que constitui como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana. O art. 196 da Constituição da República reafirma a obrigação do Estado de garantir a todos o direito à saúde por meio da implementação de políticas públicas sociais e econômicas visando à prevenção do risco de doenças e de outros agravos. Esses dois preceitos constitucionais indicam que o modelo político, social e econômico adotado pela sociedade brasileira não admite como válida, do ponto de vista jurídico, qualquer prática tendente a vilipendiar o direito universal à saúde e, uma vez verificada a ocorrência de lesão a esse direito, cabe aos poderes públicos constituídos coibi-la e exercitar os instrumentos legais e processuais para a garantia do acesso à justiça. No caso presente, pela via do processo coletivo. O direito à saúde, por sua vez, foi reconhecido pelo Artigo 12 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1966, como o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental, devendo os Estados partes adotarem as medidas necessárias para assegurar a melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente, bem como a criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade. Nesse contexto, a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990), uma das bases jurídicas do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, trata das condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, além de estabelecer a organização e o funcionamento dos serviços de saúde. Veja: Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. (...) Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS): I - a execução de ações: a) de vigilância sanitária; b) de vigilância epidemiológica; c) de saúde do trabalhador; (...) II - a participação na formulação da política e na execução de ações de saneamento básico; III - a ordenação da formação de recursos humanos na área de saúde; (...) VI - a formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção; VII - o controle e a fiscalização de serviços, produtos e substâncias de interesse para a saúde; Ademais, consoante legislação acima destacada, é de responsabilidade do Município e do Estado executar a política de insumos e equipamentos de saúde. Neste sentido, a jurisprudência: REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FORNECER ALIMENTAÇÃO ENTERAL A IDOSO COM PROBLEMAS GRAVES DE SAÚDE. OBRIGAÇÃO DO MUNICÍPIO. REMESSA DESPROVIDA. 1. O art. 196 da Constituição Federal impõe aos entes da Federação o dever de preservação da saúde dos cidadãos. 2. Possibilidade da obrigação ser imposta ao Município. 3. Precedentes. 4. Incidente 5. Remessa desprovida (TJ-MA - Remessa Necessária: 0590632013 MA 0044817-79.2012.8.10.0001, Relator: JOÃO SANTANA SOUSA, Data de Julgamento: 12/04/2016, QUARTA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 18/04/2016) Fornecimento de fraldas geriátricas descartáveis– Garantia Constitucional de insumos de alto custo, além de medicamentos e serviço fisioterápico - Dever do Estado de zelar pela saúde de seu povo, sendo tal obrigação solidária entre União, Estados e Municípios – Reconhecida obrigação no fornecimento de fraldas geriátricas – Sentença de procedência mantida (TJ-SP - RI: 00022337220228260236 SP 0002233-72.2022.8.26.0236, Relator: Marcos Therezeno Martins, Data de Julgamento: 31/01/2023, 3a Turma Cível, Data de Publicação: 31/01/2023). No caso dos autos, constata-se que o Sr. José João Matos Costa cadastrou-se na fila para a realização de cirurgia cardíaca em dezembro de 2022, mas realizou o procedimento apenas em abril de 2024 (ids 110476475, p. 04 e 123408935); a Sra. Domingas Cesária aguardava a sua transferência do HCI para o Hospital de Alta complexidade com suporte para a realização de angioplastia e/ou cirurgia cardíaca e leito de cirurgia vascular desde julho de 2023, tendo o procedimento de angioplastia sido realizado apenas em dezembro de 2023 (ids 110477293, p. 08 e 123408935); e o Sr. José Francisco Brenha aguarda, até o momento, a realização de procedimento cirúrgico de troca valvar mitral desde janeiro de 2023 (ids 110477303, p. 06 e 123408935). Ademais, em análise ao inquérito civil juntado pelo autor, pode-se perceber que o Sr. José Francisco Brenha manifestou-se, ainda em 2023, da seguinte forma (id 110477306, p. 09): “(...) Excelentíssimo Promotor, preliminarmente, SOLICITO a continuidade na tramitação da Notícia de Fato n° 002794-5092023, tendo em vista que eis aqui um verdadeiro descaso da administração pública e uma grave violação ao direito à saúde, previsto no art. 6º, caput, da CF. É comum a grande espera de usuários do SUS pela realização de exames, consultas e cirurgias, seja por ausência de profissionais de saúde, de equipamentos sucateados ou pela quantidade de pessoas procurando tais atendimentos. INCOMUM é a omissão/negligência de incluir um paciente grave na lista de espera para A TROCA DE VÁLVULA MITRAL, uma cirurgia de risco no coração. (...) Após quase um ano, é de saltar os olhos que sequer me encontraram na lista de espera. Encontro-me desempregado, pois a minha antiga atividade laborativa era de grande risco. Então, além do direito à saúde, a Administração pública priva-me de viver dignamente”. Outrossim, em audiência de saneamento compartilhado realizada, o diretor do Hospital Carlos Macieira afirmou que atualmente o estabelecimento realiza 32 cirurgias por mês em adultos, com previsão de ampliação para 40 por mês a partir de dezembro. Quanto às pediátricas, realiza 6 por mês, com previsão de aumento para 10 por mês. Informou, ainda, que a lista do SISREG conta com 135 pacientes pediátricos e 957 pacientes adultos, bem como que o tempo de espera por cirurgia é de, em média, 2,5 anos a 3 anos (id 134060352). Em ofício juntado pelo Estado do Maranhão, foi informado que, no Hospital Dr. Carlos Macieira, houve a ampliação dos procedimentos de Cirurgia Cardíaca Adulto de 32 procedimentos/mês para 40 procedimentos/mês, e os procedimentos de Cirurgia Cardíaca Pediátrica passaram de 08 procedimentos/mês para 10-12 procedimentos/mês (id 140015324). Ademais, a Secretaria Adjunta de Assistência à Saúde encaminhou lista atualizada referente aos procedimentos cirúrgicos de plástica valvar, troca valvar múltipla e revascularização, podendo-se observar que há inúmeros pacientes que estão há mais de 2 (dois) anos aguardando a realização de tais procedimentos (id 140015325). Já o Município de São Luís juntou ofício da SEMUS (id 142200250), no qual consta que o HUUFMA informou que o tempo médio de espera para realização dos procedimentos cirúrgicos de plástica valvar, troca valvar múltipla, implante/troca valvar aórtica e revascularização é de 573 (quinhentos e setenta e três) dias; que a média mensal é de 22 (vinte e duas) cirurgias cardíacas convencionais, sendo 05 (cinco) relacionadas à implante/troca valvar. Além disso, em documento com a relação da fila de espera de implante/troca valvar, nota-se que há pacientes que, desde 2021, aguardam realização do referido procedimento (id 142200252). Assim, resta evidente que o direito à saúde de diversos pacientes está sendo violado, em razão da morosidade na realização dos procedimentos cardíacos de que necessitam os usuários do SUS que estão na fila de espera. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça, em sua III Jornada de Direito da Saúde, editou o Enunciado nº 93, no sentido de que, nas demandas de usuários do Sistema Único de Saúde - SUS por acesso a ações e serviços de saúde eletivos previstos nas políticas públicas, considera-se excessiva a espera do paciente por tempo superior a 100 cem) dias para consultas e exames, e de 180 (cento e oitenta dias para cirurgias e tratamentos: “ENUNCIADO n° 93 Nas demandas de usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) por acesso a ações e serviços de saúde eletivos previstos nas políticas públicas, considera-se inefetiva essa política caso não existente prestador na rede própria, conveniada ou contratualizada, bem como a excessiva espera do paciente por tempo superior a 100 (cem) dias para consultas e exames, e de 180 (cento e oitenta) dias para cirurgias e tratamentos” (Redação dada na VI Jornada de Direito da Saúde - 15.06.2023). Logo, no presente caso, a procedência dos pedidos autorais é essencial para o cumprimento efetivo do dever constitucional de garantia do acesso universal e igualitário à saúde (art. 196, da CF/1988) com a devida dignidade. Ainda, não há que falar, no caso em apreço, em indevida intromissão do Poder Judiciário na esfera discricionária do Poder Executivo em realizar políticas públicas, visto que o descumprimento de direitos constitucionalmente garantidos e já previstos em políticas públicas estaduais e municipais não pode ser justificado pelo exercício de sua discricionariedade. Acerca do tema, o Supremo Tribunal Federal fixou parâmetros para nortear decisões judiciais a respeito de políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 684612, com repercussão geral (Tema nº 698): Direito constitucional e administrativo. Recurso extraordinário com repercussão geral. Intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas. Direito social à saúde. 1. Recurso extraordinário, com repercussão geral, que discute os limites do Poder Judiciário para determinar obrigações de fazer ao Estado, consistentes na realização de concursos públicos, contratação de servidores e execução de obras que atendam o direito social da saúde. No caso concreto, busca-se a condenação do Município à realização de concurso público para provimento de cargos em hospital específico, além da correção de irregularidades apontadas em relatório do Conselho Regional de Medicina. 2. O acórdão recorrido determinou ao Município: (i) o suprimento do déficit de pessoal,especificamente por meio da realização de concurso público de provas e títulos para provimento dos cargos de médico e funcionários técnicos, com a nomeação e posse dos profissionais aprovados no certame; e (ii) a correção dos procedimentos e o saneamento das irregularidades expostas no relatório do Conselho Regional de Medicina, com a fixação de prazo e multa pelo descumprimento. 3. A saúde é um bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve zelar o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. 4. A intervenção casuística do Poder Judiciário, definindo a forma de contratação de pessoal e da gestão dos serviços de saúde, coloca em risco a própria continuidade das políticas públicas de saúde, já que desorganiza a atividade administrativa e compromete a alocação racional dos escassos recursos públicos. Necessidade de se estabelecer parâmetros para que a atuação judicial seja pautada por critérios de razoabilidade e eficiência, respeitado o espaço de discricionariedade do administrador. 5. Parcial provimento do recurso extraordinário, para anular o acórdão recorrido e determinar o retorno dos autos à origem, para novo exame da matéria, de acordo com as circunstâncias fáticas atuais do Hospital Municipal Salgado Filho e com os parâmetros aqui fixados. 6. Fixação das seguintes teses de julgamento: “1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes. 2. A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado; 3. No caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP)”. (STF - RE: 684612 RJ, Relator: RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 03/07/2023, Tribunal Pleno, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-s/n DIVULG 04-08-2023 PUBLIC 07-08-2023). Ademais, embora se reconheça a importância do princípio da separação dos poderes, este não é absoluto, vez que admite temperamentos ao ser confrontado com os demais princípios da ordem constitucional. Tendo em conta esta interpretação, faz-se necessário relembrar a garantia fundamental prevista no artigo 5º, inciso XXXV, segundo a qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Ressalte-se, ainda, que o art. 5º da LINDB determina que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. O direito ganha sentido na medida em que é assegurado o acesso à justiça. O direito à saúde previsto em nossa Constituição Federal e leis infraconstitucionais é letra morta até que seja efetivado por políticas públicas ou quando, na omissão da administração pública, ganha vida com o correto funcionamento do sistema de justiça. Assim, consoante jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal, é possível em situações excepcionais que o Poder Judiciário imponha à Administração Pública a tomada de medidas necessárias a assegurar direitos constitucionalmente garantidos, ainda que para isso determine a execução de obras. Em suma, face aos princípios constitucionais envolvidos, não se justifica a omissão do Poder Judiciário à questão posta em julgamento, pois a excepcionalidade da situação narrada autoriza o julgador a determinar a realização de políticas públicas sem afrontar o princípio da separação de poderes. Por outro lado, não podemos descuidar da possibilidade material do ente público. É evidente que a falta de recursos orçamentários e tempo para realização dos processos licitatórios, execução de obras e aquisição de equipamentos servem para justificar o atraso do Estado no cumprimento de alguns misteres constitucionais por algum tempo, mas jamais justificaria a negação de direitos amparados pela Constituição cidadã indefinidamente. Assim, está justificada a necessidade de conceder um prazo razoável para o cumprimento da obrigação, não para ter um “salvo-conduto”, mas para dar efetividade ao direito. Por todo o narrado, merecem acolhida, em parte, os pedidos formulados pelo Ministério Público do Estado do Maranhão. 3. DISPOSITIVO Ante o exposto, ACOLHO os pedidos formulados pelo Ministério Público do Estado do Maranhão (art. 487, I, CPC) pelo que CONDENO o Estado do Maranhão e o Município de São Luís a garantirem, no prazo de 6 (seis) meses, a realização dos procedimentos cardíacos de que necessita o usuário do SUS José Francisco Brenha, bem como todos os outros usuários que estejam aguardando procedimentos cirúrgicos de plástica valvar e/ou troca valvar múltipla e outros procedimentos que envolvam implante/troca valvar aórtica/revascularização presentes nas listas de espera apresentadas pelo Estado do Maranhão e pelo Município de São Luís nos autos. Caso não seja possível a realização das cirurgias na rede Pública de saúde, DETERMINO que os réus arquem com os custos dos procedimentos cirúrgicos na rede privada de saúde. Em caso de descumprimento de qualquer das medidas acima determinadas, FIXO multa diária no valor de R$ 1.000,00 (mil reais). Sem condenação em custas processuais e honorários advocatícios. PUBLIQUE-SE. INTIMEM-SE. São Luís/MA, data da assinatura eletrônica. Dr. Douglas de Melo Martins Juiz Titular da Vara de Interesses Difusos e Coletivos da Comarca da Ilha de São Luís
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