Processo nº 08023841320248150051
Número do Processo:
0802384-13.2024.8.15.0051
📋 Detalhes do Processo
Tribunal:
TJPB
Classe:
APELAçãO CíVEL
Grau:
1º Grau
Órgão:
1ª Câmara Cível
Última atualização encontrada em
30 de
junho
de 2025.
Intimações e Editais
-
30/06/2025 - IntimaçãoÓrgão: 1ª Câmara Cível | Classe: APELAçãO CíVELPoder Judiciário Tribunal de Justiça da Paraíba Gabinete 21 - Des. Francisco Seráphico Ferraz da Nóbrega Filho ACÓRDÃO AGRAVO INTERNO Nº: 0802384-13.2024.815.0051 ORIGEM: 2ª VARA MISTA DA COMARCA DE SÃO JOÃO DO RIO DO PEIXE RELATOR: DES. FRANCISCO SERÁPHICO FERRAZ DA NÓBREGA FILHO AGRAVANTE: MARIA DO CARMO VERÍSSIMO ADVOGADO: AIRY JOHN BRAGA DA NÓBREGA MACENA – OAB/PB 25.681 AGRAVADO: BANCO ITAÚ CONSIGNADO S.A. ADVOGADA: ENY BITTENCOURT OAB/PB 26.271-A EMENTA DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA CONTRATUAL CUMULADA COM REPETIÇÃO DE INDÉBITO E INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO NÃO CONTRATADO. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO POR AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. CONFIGURAÇÃO DE DEMANDA PREDATÓRIA. LITIGÂNCIA ABUSIVA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. I. CASO EM EXAME 1. Apelação cível interposta contra sentença que extinguiu, sem resolução do mérito, ação declaratória de inexistência contratual, com pedido de repetição de indébito e indenização por dano moral, fundada na alegação de inexistência de contratação de empréstimo consignado com descontos indevidos em benefício previdenciário. A extinção se baseou na ausência de demonstração de tentativa de solução administrativa, considerada essencial para caracterizar o interesse de agir. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 2. Há duas questões em discussão: (i) definir se a ausência de requerimento administrativo prévio impede o ajuizamento da ação por ausência de interesse de agir; (ii) verificar se o ajuizamento de múltiplas ações semelhantes contra a mesma instituição caracteriza litigância predatória, justificando a extinção do feito. III. RAZÕES DE DECIDIR 3. O interesse de agir exige, nos termos do art. 17 do CPC, a presença de necessidade e adequação da tutela jurisdicional. A ausência de requerimento administrativo prévio, em determinadas hipóteses, pode indicar a inexistência de pretensão resistida. 4. Conforme decidido pelo STF (RE 631.240/MG – Tema 350) e pelo STJ, a ausência de requerimento administrativo pode implicar a extinção da ação, especialmente quando o direito postulado depende de provocação inicial à parte adversa. 5. A multiplicidade de ações ajuizadas pela parte, com petições padronizadas, datas coincidentes e fragmentação artificial das demandas, evidencia indícios de litigância predatória e abuso do direito de ação, conforme reconhecido por diversos Centros de Inteligência e pelas Recomendações nº 127/2022 e 159/2024 do CNJ. 6. A litigância predatória, caracterizada por fracionamento indevido de pretensões e ajuizamento em massa de ações semelhantes, compromete a efetividade da jurisdição e viola o devido processo legal substancial. 7. A manutenção da sentença se impõe diante da constatação de má-fé processual e desvio do direito de ação, sem prejuízo da possibilidade de repropositura da demanda, desde que sanados os vícios apontados, nos termos do art. 486, § 1º, do CPC. IV. DISPOSITIVO E TESE 8. Recurso desprovido. Tese de julgamento: 1. A ausência de requerimento administrativo prévio, quando exigido para caracterização da pretensão resistida, pode ensejar a extinção do processo por ausência de interesse de agir. 2. O ajuizamento simultâneo de múltiplas ações padronizadas contra o mesmo réu, com pedidos idênticos ou semelhantes, configura indício de litigância predatória e autoriza o indeferimento da petição inicial ou a extinção do processo. 3. A litigância predatória viola os princípios do devido processo legal, da lealdade processual e da eficiência da jurisdição, autorizando o juiz a adotar medidas cautelares para conter seu uso abusivo. 4. O direito de acesso à justiça não é absoluto e deve ser exercido com observância da boa-fé, sob pena de configuração de abuso e responsabilização processual. Dispositivos relevantes citados: CF/1988, arts. 5º, XXXV, LIV e LXXVIII; CPC/2015, arts. 17, 330, 486, § 1º e 932, IV, “b”; Recomendação CNJ nº 127/2022 e nº 159/2024. Jurisprudência relevante citada: STF, RE 631.240/MG, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 03.09.2014, DJe 10.11.2014; STJ, AgInt no AREsp 989022/RJ, Rel. Min. Marco Buzzi, j. 24.05.2021, DJe 27.05.2021; STJ, REsp 1.349.453/MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 10.12.2014, DJe 02.02.2015; STJ, REsp 2.021.665/MS (Tema 1198), Corte Especial, j. 13.03.2025; TJMG, Ap. Cív. 1.0000.23.089089-9/001, Rel. Des. Marcelo de Oliveira Milagres, j. 27.06.2023; TJPE, Ap. Cív. 0001936-17.2019.8.17.2210, Rel. Des. Fábio Eugênio Dantas de Oliveira Lima, j. 30.09.2022; TJPB, Ap. Cív. 0800161-23.2023.8.15.0601, Rel. Des. José Ricardo Porto, j. 28.02.2024. RELATÓRIO Cuida-se de Agravo Interno interposto por Maria do Carmo Veríssimo, inconformada com a Decisão Monocrática catalogada ao Id. 33614289, que manteve a extinção do feito sem resolução de mérito em razão da falta de interesse de agir consubstanciada na ausência de requerimento administrativo prévio. Nas razões recursais apresentadas (Id. 34378127), o autor, ora recorrente, alega que a decisão impugnada não tem amparo legal, vez que nega o acesso ao judiciário. Defende que o fracionamento de ações, no caso em apreço, mostra-se necessário, visto que cada processo trata acerca de contrato de número diverso, com datas de início e valores de parcelas mensais diversos, de modo que não existe conexão alguma entre as demandas. Pontua que os contratos são específicos e singularizados, as causas de pedir e os pedidos das ações ditas fracionadas, indevidamente, são distintos e inconfundíveis, não havendo espaço para a conexão. Sustenta, ademais, que a busca prévia pela via administrativa não é requisito necessário à ação em direito do consumidor, de modo que não há que se falar em falta de interesse de agir, ainda, mais, quando no caso concreto, a parte procurou o INSS para solucionar querela não conseguindo seu intento. Por derradeiro, esclarece que, no que tange à Recomendação nº 159 do Conselho Nacional de Justiça, à luz de seu conteúdo, revela-se inadequada a extinção do feito sem resolução do mérito, uma vez que a diretriz nela contida orienta, sempre que viável, a reunião e o julgamento conjunto das ações conexas, como forma de prevenir decisões conflitantes, nos termos do art. 55, § 3º, do Código de Processo Civil, em consonância com o Item 6 do Anexo B da mencionada recomendação. Requer, ao final, a reforma da decisão monocrática ora impugnada, a fim de que seja conhecido e provido o recurso de apelação interposto. Não houve contrarrazões. É o relatório. VOTO Embora o Agravo Interno confira ao relator a faculdade de se retratar monocraticamente da decisão objeto do recurso, entendo que, in casu, o decisum ora agravado deve ser mantido pelos seus próprios fundamentos, razão pela qual os apresento para análise deste órgão colegiado: Decido. O recurso preenche os requisitos extrínsecos (tempestividade, preparo e a regularidade formal), e intrínsecos (legitimidade, capacidade e interesse, inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer) motivos pelos quais dele o conheço. Trata-se de ação declaratória de inexistência contratual, repetição de indébito e indenização por dano moral, onde se alega ausência de contratação de empréstimo consignado com descontos indevidos de parcelas em benefício previdenciário. Acerca do teor das razões recursais, observa-se que o douto julgador, ao receber a exordial, determinou sua emenda para que a parte juntasse aos autos comprovante de que teria tentado a solução do litígio nas vias administrativas. Em resposta, o causídico da promovente pontuou que as vias administrativas foram acionadas, porém, não tendo sido fornecido nenhum protocolo. Diante da ausência de prova do cumprimento da determinação, o juízo extinguiu o processo sem resolução de mérito ao argumento de que inexiste interesse de agir, consubstanciado na inexistência de pretensão resistida. Pois bem. Como é sabido, o exercício do direito de ação será regular se preenchidas condições que, segundo o art. 17 do Código de Processo Civil, englobam interesse e legitimidade. Assim, a garantia constitucional do direito à inafastabilidade da Jurisdição, quando se trata de lesão ou ameaça a direito, reclama, para o seu exercício, a observância do que preceitua o direito processual. No caso do interesse de agir, é avaliado com base em dois elementos: a necessidade da tutela jurisdicional, conhecida como "interesse necessidade", e a adequação da via processual, denominada "interesse adequação". O primeiro refere-se à impossibilidade de alcançar a realização do direito material alegado pelo demandante sem a instauração do processo. Já o segundo diz respeito à escolha do meio processual apropriado para obter o resultado pretendido. A exigência de prévio requerimento administrativo está relacionada ao interesse processual, especificamente sob o aspecto da necessidade. Por isso, há quem sustente que, em ações envolvendo relações de consumo, o consumidor deve primeiro buscar solucionar o problema diretamente com o fornecedor antes de recorrer ao Judiciário, sem que isso configure uma violação ao direito constitucional de acesso à justiça. Os adeptos dessa corrente sustentam que, em um sistema de "justiça multiportas", a via judicial deve ser acionada apenas como último recurso, incentivando a eficiência e a resolução amigável de conflitos. Por outro lado, os críticos argumentam que essa exigência pode representar um obstáculo para os consumidores, especialmente os mais vulneráveis, ao dificultar o acesso direto ao Judiciário. O fato é que a necessidade de requerimento administrativo prévio em certas demandas já foi objeto de discussão nos Tribunais Superiores, conforme analisado pelo Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral, no julgamento do RE n.º 631.240/MG (Tema 350 – ações previdenciárias) e pelo Superior Tribunal de Justiça (ações acerca de seguro obrigatório DPVAT e de exibição de documentos). Confira-se: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO E INTERESSE EM AGIR. 1. A instituição de condições para o regular exercício do direito de ação é compatível com o art. 5º, XXXV, da Constituição. Para se caracterizar a presença de interesse em agir, é preciso haver necessidade de ir a juízo. 2. A concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise. É bem de ver, no entanto, que a exigência de prévio requerimento não se confunde com o exaurimento das vias administrativas. 3. A exigência de prévio requerimento administrativo não deve prevalecer quando o entendimento da Administração for notória e reiteradamente contrário à postulação do segurado. 4. Na hipótese de pretensão de revisão, restabelecimento ou manutenção de benefício anteriormente concedido, considerando que o INSS tem o dever legal de conceder a prestação mais vantajosa possível, o pedido poderá ser formulado diretamente em juízo – salvo se depender da análise de matéria de fato ainda não levada ao conhecimento da Administração –, uma vez que, nesses casos, a conduta do INSS já configura o não acolhimento ao menos tácito da pretensão. (...). 5. Tendo em vista a prolongada oscilação jurisprudencial na matéria, inclusive no Supremo Tribunal Federal, deve-se estabelecer uma fórmula de transição para lidar com as ações em curso, nos termos a seguir expostos. 6. Quanto às ações ajuizadas até a conclusão do presente julgamento (03.09.2014), sem que tenha havido prévio requerimento administrativo nas hipóteses em que exigível, será observado o seguinte: (i) caso a ação tenha sido ajuizada no âmbito de Juizado Itinerante, a ausência de anterior pedido administrativo não deverá implicar a extinção do feito; (ii) caso o INSS já tenha apresentado contestação de mérito, está caracterizado o interesse em agir pela resistência à pretensão; (iii) as demais ações que não se enquadrem nos itens (i) e (ii) ficarão sobrestadas, observando-se a sistemática a seguir. 7. Nas ações sobrestadas, o autor será intimado a dar entrada no pedido administrativo em 30 dias, sob pena de extinção do processo. Comprovada a postulação administrativa, o INSS será intimado a se manifestar acerca do pedido em até 90 dias, prazo dentro do qual a Autarquia deverá colher todas as provas eventualmente necessárias e proferir decisão. Se o pedido for acolhido administrativamente ou não puder ter o seu mérito analisado devido a razões imputáveis ao próprio requerente, extingue-se a ação. Do contrário, estará caracterizado o interesse em agir e o feito deverá prosseguir. 8. Em todos os casos acima – itens (i), (ii) e (iii) –, tanto a análise administrativa quanto a judicial deverão levar em conta a data do início da ação como data de entrada do requerimento, para todos os efeitos legais. 9. Recurso extraordinário a que se dá parcial provimento, reformando-se o acórdão recorrido para determinar a baixa dos autos ao juiz de primeiro grau, o qual deverá intimar a autora – que alega ser trabalhadora rural informal – a dar entrada no pedido administrativo em 30 dias, sob pena de extinção. Comprovada a postulação administrativa, o INSS será intimado para que, em 90 dias, colha as provas necessárias e profira decisão administrativa, considerando como data de entrada do requerimento a data do início da ação, para todos os efeitos legais. O resultado será comunicado ao juiz, que apreciará a subsistência ou não do interesse em agir. (RE 631240, Relator Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 3/9/2014, Acórdão eletrônico Repercussão Geral - Mérito DJE 220, divulgado em 7/11/2014, publicado em 10/11/2014 RTJ, volume 00234-01, pp 00220) AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE COBRANÇA DE SEGURO OBRIGATÓRIO - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. IRRESIGNAÇÃO DA AUTORA. 1. O requerimento administrativo prévio constitui requisito essencial para aferir a existência de interesse de agir na ação de cobrança do seguro DPVAT . Súmula 83/STJ. 2. A ameaça ou lesão a direito aptas a ensejar a necessidade de manifestação judiciária do Estado só se caracterizam após o prévio requerimento administrativo, o qual não se confunde com o esgotamento das instâncias administrativas, consoante firmado pelo Plenário da Corte no julgamento de repercussão geral reconhecida nos autos do RE 631.240, Rel . Min. Roberto Barroso, Sessão do dia 03.09.14 . 3. Agravo interno desprovido. (STJ - AgInt no AREsp: 989022 RJ 2016/0252720-3, Relator.: Ministro MARCO BUZZI, Data de Julgamento: 24/05/2021, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/05/2021). Destaques. PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS EM CADERNETA DE POUPANÇA. EXIBIÇÃO DE EXTRATOS BANCÁRIOS. AÇÃO CAUTELAR DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS. INTERESSE DE AGIR. PEDIDO PRÉVIO À INSTITUIÇÃO FINANCEIRA E PAGAMENTO DO CUSTO DO SERVIÇO. NECESSIDADE. 1. Para efeitos do art. 543-C do CPC, firma-se a seguinte tese: A propositura de ação cautelar de exibição de documentos bancários (cópias e segunda via de documentos) é cabível como medida preparatória a fim de instruir a ação principal, bastando a demonstração da existência de relação jurídica entre as partes, a comprovação de prévio pedido à instituição financeira não atendido em prazo razoável, e o pagamento do custo do serviço conforme previsão contratual e normatização da autoridade monetária. 2. No caso concreto, recurso especial provido. (REsp n. 1.349.453/MS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 10/12/2014, DJe de 2/2/2015.). Grifei. O argumento sustentado nas decisões acima citadas é no sentido de que o interesse de agir pressupõe resistência da parte adversa em relação à pretensão deduzida em juízo, consubstanciado, nos casos específicos, no fato de que, se de acordo com a legislação posta, para se ter acesso a um direito do qual a parte se averba titular, é necessário pedir a quem tem o dever legal de o entregar, a ausência desse pedido fulminaria com a pretensão resistida, devendo ser extinto o processo por ausência de interesse de agir. Veja-se que aqui se constata de maneira muito fácil a ausência do “interesse necessidade” já que o próprio autor seria capaz de obter o bem desejado (benefício previdenciário, indenização de seguro obrigatório e/ou documento em posse de terceiro), amparado na lei, sem a necessidade de movimentar a máquina estatal, porque a própria legislação dispõe acerca do procedimento a ser por ele adotado para tomar posse do direito que se averba detentor. Percebe-se que a extinção do processo sem resolução de mérito, nessas situações, possui certo embasamento na legislação federal que rege a matéria posta, o que não ocorre, via de regra, quando o objeto do litígio está relacionado a empréstimo supostamente fraudulento com desconto em benefício previdenciário, pleito de restituição em dobro das parcelas indevidamente descontadas e eventual direito a indenização por danos extrapatrimoniais. Assim, em tese, a extinção do processo em razão da ausência de requerimento administrativo, nesse último caso, visto de forma isolada, fere o princípio da inafastabilidade da jurisdição, por ausência de previsão legal. Porém, o sistema jurídico, especialmente as normas processuais, foi estruturado com base na presunção de boa-fé, considerando condutas regulares, de maneira que, em havendo indícios concretos de abuso do direito de ação e tentativa de desvirtuamento de institutos e prerrogativas processuais, outros princípios devem ser analisados para fins de se evitar a burla no sistema processual, como no caso das demandas predatórias. Consistem tais ações no ajuizamento de processos em massa, quase sempre com petições padronizadas, onde a parte, tendo vários contratos com a mesma instituição financeira, em vez de englobá-los num só pedido, divide cada avença em ação distinta, buscando, com isso, múltiplas indenizações por danos materiais e/ou morais e, de igual sorte, patrocinar ao advogado sucumbências diversas. A questão que, de início, poderia ser considerada simples, torna-se complexa, já que envolve um elemento primordial, incompatível com o ordenamento jurídico pátrio, qual seja, o abuso de direito de litigar. Coloca-se a matéria da seguinte forma: todos têm o direito de acesso à Justiça, mas esse direito não pode ser praticado de forma abusiva, seja pelo jurisdicionado, seja pelo seu patrono. Atualmente, existe uma considerável quantidade de demandas relativas a empréstimos consignados que têm sido analisadas por este Tribunal de Justiça e, de fato, na maioria das situações, há má-fé da instituição financeira quanto à omissão de informações acerca das cláusulas do negócio jurídico contratado, envolvendo, muitas vezes, pessoas vulneráveis como aposentados ou pensionistas, pessoas humildes, analfabetos ou de pouca instrução e essas demandas devem ser apreciadas de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Todavia, também é possível identificar que, em algumas dessas causas, constam indícios de fraudes, especialmente em Comarcas do interior do Estado da Paraíba, porquanto alguns dos respectivos autores, sequer, têm conhecimento da quantidade de ações ajuizadas em seu nome pelo causídico. É consabido que essa situação gera uma crise no Judiciário, que atinge a todos, vez que o acesso irrestrito à justiça faz com que a porta de entrada seja infinita e a saída, estreita. Como poder estatal, constitucionalmente investido da missão de pacificação dos conflitos e de prestar a jurisdição, não pode o Judiciário ignorar o problema e simplesmente absorver toda a litigiosidade que lhe é apresentada, apenas ao argumento de que a parte possui direito de livre acesso à justiça sem ter respeito ao devido processo legal. Não há, portanto, um direito absoluto e irrestrito de acesso à justiça, pois o princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988 deve ser harmonizado com o devido processo legal substancial, estabelecido no mesmo artigo, inciso LV. E, sendo princípios de igual relevância constitucional, interpretá-los exige ponderação de valores, de modo que a aplicação da norma extraída de um princípio constitucional não pode resultar na restrição de um direito fundamental a ponto de comprometer sua eficácia mínima. A demanda predatória mina os princípios fundamentais do devido processo legal substancial ao tornar o sistema de justiça um instrumento de abuso, violando direitos das partes envolvidas e prejudicando a sociedade como um todo. Não precisa muito esforço para se concluir que o excesso de ações predatórias congestiona o sistema judicial, dificultando o andamento de processos legítimos e prejudicando o direito das partes a um julgamento justo e célere. A litigância predatória ainda compromete a equidade, pois impõe custos desproporcionais e obriga a parte demandada a se defender de ações, muitas vezes, infundadas. Ademais, prejudica a ampla defesa e o contraditório, vez que um volume excessivo de demandas, pode levar o réu a não conseguir exercer sua defesa de maneira adequada, seja por limitação de tempo, recursos financeiros ou estratégicos. Deve, então, haver uma atuação para reduzir até o ponto de eliminar as vantagens dos praticantes desse tipo de conduta, o que significa ainda proteger a imensa maioria dos jurisdicionados e profissionais da advocacia, os quais se conduzem de forma ética, não abusiva. Tamanha a repercussão disso que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), editou a Recomendação nº 127, de 15 de fevereiro de 2022, definindo o que seria judicialização predatória, nos seguintes termos: Art. 2º Para os fins desta recomendação, entende-se por judicialização predatória o ajuizamento em massa em território nacional de ações com pedido e causa de pedir semelhantes em face de uma pessoa ou de um grupo específico de pessoas, a fim de inibir a plena liberdade de expressão. Dialogando com essa normativa, em outubro/24 o mesmo CNJ editou nova Recomendação, de nº 159, que assim dispõe dos seus arts. 1º ao 3º, in verbis: Art. 1º. Recomendar aos(às) juízes(as) e tribunais que adotem medidas para identificar, tratar e sobretudo prevenir a litigância abusiva, entendida como o desvio ou manifesto excesso dos limites impostos pela finalidade social, jurídica, política e/ou econômica do direito de acesso ao Poder Judiciário, inclusive no polo passivo, comprometendo a capacidade de prestação jurisdicional e o acesso à Justiça. Parágrafo único. Para a caracterização do gênero “litigância abusiva” devem ser consideradas como espécies as condutas ou demandas sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos, entre outras, as quais, conforme sua extensão e impactos, podem constituir litigância predatória. Art. 2º. Na detecção da litigância abusiva, recomenda-se aos(às) magistrados(as) e tribunais que atentem, entre outros, para os comportamentos previstos no Anexo A desta Recomendação, inclusive aqueles que aparentam ser lícitos quando isoladamente considerados, mas possam indicar desvio de finalidade quando observados em conjunto e/ou ao longo do tempo. Art. 3º. Ao identificar indícios de desvio de finalidade na atuação dos litigantes em casos concretos, os(as) magistrados(as) poderão, no exercício do poder geral de cautela e de forma fundamentada, determinar diligências a fim de evidenciar a legitimidade do acesso ao Poder Judiciário, incluindo, entre outras, as previstas no Anexo B desta Recomendação. Grifei. No anexo “A” da norma em comento, foi apresentada lista exemplificativa de condutas processuais potencialmente abusivas. Abaixo, citação de algumas: (…) 2) pedidos habituais e padronizados de dispensa de audiência preliminar ou de conciliação; (…) 6) proposição de várias ações judiciais sobre o mesmo tema, pela mesma parte autora, distribuídas de forma fragmentada; (…) 13) concentração de grande volume de demandas sob o patrocínio de poucos(as) profissionais, cuja sede de atuação, por vezes, não coincide com a da comarca ou da subseção em que ajuizadas, ou com o domicílio de qualquer das partes; Já o item 10 do Anexo B refere-se à “Lista exemplificativa de medidas judiciais a serem adotadas diante de casos concretos de litigância abusiva”, in verbis: (…) 10) notificação para apresentação de documentos que comprovem a tentativa de prévia solução administrativa, para fins de caracterização de pretensão resistida; Grifei. Observa-se que, para garantir tanto o direito de acesso à justiça quanto o devido processo legal, o Magistrado pode, diante de indícios de litigância abusiva e no exercício de seu poder de cautela, exigir que a parte comprove a tentativa de solução administrativa, a fim de caracterizar a pretensão resistida. Nesses casos, a análise do juízo não se limita, isoladamente, às condições da ação, mas abrange a legalidade do processo como um todo, sendo plenamente possível a extinção do feito sem resolução de mérito, caso a parte não cumpra a determinação estabelecida. Na verdade, a regra é a presunção da boa-fé das partes, razão pela qual, salvo nos casos específicos apontados pelo STF e pelo STJ, o requerimento administrativo não é, em tese, um requisito para o ajuizamento de ações. No entanto, diante de indícios concretos de má-fé, sua exigência configura uma medida excepcional e proporcional, pois assegura tanto o princípio da inafastabilidade da jurisdição — permitindo a repropositura da demanda após a correção do vício — quanto à observância do devido processo legal, protegendo-o dos efeitos prejudiciais de ações predatórias. E não foi só o Conselho Nacional de Justiça que tratou de tentar coibir a prática danosa em comento, mas tem ela sido objeto de inúmeros estudos, levantamentos e notas técnicas produzidas pelo Centros de Inteligência dos Tribunais do país, como o TJMT, TJMS, TJBA, TJRN, TJPE, TJMG, inclusive, este Tribunal de Justiça da Paraíba, por meio da Recomendação n° 01/2024 de 25 de novembro de 2024. Nesse viés, o Centro de Inteligência da Justiça Estadual de Pernambuco que elaborou a Nota Técnica 02/2021 definindo “demanda predatória” nos seguintes termos: Cuida-se de espécie de demanda oriunda da prática de ajuizamento de ações produzidas em massa, utilizando-se de petições padronizadas contendo teses genéricas, desprovidas, portanto, das especificidades do caso concreto, havendo alteração apenas quanto às informações pessoais da parte, de forma a inviabilizar o exercício do contraditório e da ampla defesa. A prática é favorecida pela captação de clientes dotados de algum grau de vulnerabilidade, os quais podem ou não deter conhecimento acerca do ingresso da ação, e pelo uso de fraude, falsificação ou manipulação de documentos e omissão de informações relevantes, com nítido intento de obstaculizar o exercício do direito de defesa e potencializar os pleitos indenizatórios. As demandas predatórias são marcadas pela carga de litigiosidade em massa, por ações ajuizadas de maneira repetitiva e detentoras de uma mesma tese jurídica (artificial ou inventada), colimando ainda, no recebimento pelos respectivos patronos de importâncias indevidas ou que não serão repassadas aos titulares do direito invocado.” Sem grifos no original. Com base na referida nota, foram recomendadas boas práticas para coibir as demandas atentatórias da boa fé, dentre elas: Inserir o CPF do demandante no campo de busca no sistema Pje (consulta unificada logada), a fim de averiguar se se trata de devedor/litigante contumaz ou, mais, se a parte autora ingressou de uma única vez com diversas demandas contendo o mesmo fundamento. Já o Centro de Inteligência da Justiça Estadual de Minas Gerais emitiu a Nota Técnica nº 01/2022, a qual foi aderida pelo TJ/PA, através da Nota Técnica 6/2022, apresentando como justificativa as seguintes considerações: A Constituição da República traz, dentre os direitos fundamentais previstos especialmente no seu art. 5º, diversas garantias processuais. Como ensina a professora da Universidade Federal do Pará, Rosalina Moitta Pinto da Costa: “(...) as garantias do processo passaram a ser previstas entre os direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito, o que exige um novo paradigma de processo que se coadune com os parâmetros éticos e morais aceitáveis pelo consenso dos homens livres de qualquer época ou lugar, enquanto se revele capaz de realizar uma justiça verdadeiramente imparcial, fundada na natureza e na razão” . Com efeito, a Constituição Federal estabelece, ao lado do amplo acesso à Justiça (CF, art. 5º, XXXIV, a), a garantia do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV) e da razoável duração do processo, revelando que tanto o ingresso em juízo como o exercício da atividade jurisdicional devem se conformar com os ditames de um processo justo, célere, seguro e efetivo. Ainda nas palavras da professora Rosalina Moitta Pinto da Costa “o processo não é algo destituído de conotações éticas e deontológicas, mas tem objetivos metajurídicos, escopos sociais e políticos, que transcendem a mera técnica processual.(…) Grifei. Por fim, comungando com tais medidas, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça no âmbito do julgamento do Tema 1198 (Resp nº 2021665/MS, julgado em 13/03/25), que trata dos recursos repetitivos, firmou a tese no sentido de que, nas situações em que for constatado indício de litigância predatória, o juiz poderá exigir que a parte autora do processo emende a petição inicial, a fim de que haja a demonstração do direito de agir e a autenticidade da postulação. Grifei. Volvendo-se ao caso concreto, observa-se que, embora o Magistrado tenha se limitado ao requerimento administrativo para extinguir o processo pela ausência do interesse de agir, sem declinar outras razões, a sentença deve ser mantida. É que, conforme certidão inserta ao Id. 33141534 e, após acessar o PJE de 1º Grau, constata-se: (1) a recorrente possui 09 (nove) ações em face de instituições financeiras, sendo 03 (três) em face do Banco Itaú Consignado, ora recorrido; (2) a petição inicial é padronizada, subscrita pelo mesmo causídico, todas litigando supostos empréstimos consignados fraudulentos descontados nos proventos de aposentadoria da parte autora; (3) é utilizada a mesma procuração para o ajuizamento das ações, todas datadas do mesmo dia (14/10/24) e a data de distribuição quando não é a mesma, é bastante próxima (06/11/24 - Proc.: 0802384-13.2024.815.0051 e 0802383-28.2024.815.0051; 09/11/24 – Proc.: 0802438-76.2024.815.0051, 0802439-61.2024.815.0051 e 0802440-46.2024.815.0051; 14/11/24 – Proc.: 0802468-14.2024.815.0051; 03/12/24 – Proc.: 0802598-04.2024.815.0051, 0802599-86.2024.815.0051 e 0802600-71.2024.815.0051; (4) em todas as demandas há renúncia injustificada da demandante de participar de tentativa de conciliação, mesmo tendo optado pelo procedimento comum, além de cobrança de alto valor indenizatório e repetição do indébito. (5) O endereço profissional do causídico que patrocina todas as causas não coincide com a Comarca ou com o domicílio de qualquer das partes. No caso concreto, entendo que estão presentes os elementos identificadores da demanda agressora e uso predatório do Poder Judiciário, vez que a parte recorrente manejou 09 (nove) ações em face de instituições financeiras, sendo 03 (três) contra o mesmo banco ora apelado (0802384-13.2024.815.0051, 0802598-04.2024.815.0051 e 0802599-86.2024.815.0051), tratando da mesma matéria, apresentando idêntico e genérico relato e pedido, diferenciando-se entre si apenas quanto ao valor do empréstimo impugnado e pelo número do contrato, fazendo-se uso da mesma procuração datada de 14/10/24, sendo as três últimas demandas distribuídas em 03/12//24, cujo endereço profissional do causídico é em Comarca (Sousa) diferente de onde reside, principalmente, a parte autora (São João do Rio do Peixe). Assim diante dos veementes indícios de práticas predatórias no caso concreto, deve ser mantida extinção da demanda por falta de interesse de agir, ressaltando-se, ainda, que o vício do processo não está somente na ausência de prova do requerimento administrativo, mas no fracionamento desnecessário das ações que envolvem as mesmas partes ora litigantes, sem justificativa razoável. Nesse sentido, Jurisprudência correlata: APELAÇÃO CÍVEL – EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS – AJUIZAMENTO PELA MESMA AUTORA DE VÁRIAS OUTRAS PRETENSÕES CONTRA O MESMO RÉU COM PEDIDOS IDÊNTICOS – FRACIONAMENTO DE DEMANDAS – LITIGÂNCIA PREDATÓRIA – AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. 1. O fracionamento de pretensões, inclusive de exibição de documentos, foi apontado pelo Centro de Inteligência deste Tribunal de Justiça, na Nota Técnica n. 01/2022, como uma conduta indicativa de litigância predatória. 2. Inadmissível a formulação de várias demandas contra o mesmo réu pela técnica abusiva de fracionamento da pretensão. A unidade do direito material, consubstanciada na relação negocial base que se projeta no tempo, deve ser observada no plano processual. Observância de disposições do Código de Processo Civil. 3. O exercício do direito de ação não é incondicional, deve ser exercido em consonância com regras, princípios e valores do ordenamento jurídico. 4. Extinção do processo sem resolução de mérito pela ausência do interesse processual de agir. (TJMG –Apelação Cível 1.0000.23.089089-9/001, Relator(a): Des.(a) Marcelo de Oliveira Milagres, 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 27/06/2023, publicação da súmula em 27/06/2023). APELAÇÃO CÍVEL - PEDIDO DE TUTELA CAUTELAR ANTECEDENTE PARA EXIBIÇÃO DE DOCUMENTO - PROCURAÇÃO DO ADVOGADO OBTIDA MEDIANTE CAPTAÇÃO INDEVIDA DE CLIENTE - INVALIDADE DO MANDATO - IRREGULARIDADE DA REPRESENTAÇÃO JUDICIAL - AJUIZAMENTO DE VÁRIAS AÇÕES DE EXIBIÇÃO CONTRA O MESMO RÉU SEM RAZÃO PLAUSÍVEL PARA O FRACIONAMENTO - AUSÊNCIA DE INTERESSE-NECESSIDADE - LITIGÂNCIA PREDATÓRIA -PROCESSO EXTINTO SEM EXAME DE MÉRITO (...) - Não havendo razão plausível para o ajuizamento de várias ações contra o mesmo réu, em vez de uma, fracionamento adotado apenas para obter a multiplicação artificial de honorários, cabe sustentar a desnecessidade de tantas demandas, o que justifica a extinção do processo desnecessário sem exame de mérito, por falta de interesse de agir, na dimensão da necessidade. - O fracionamento injustificável de ações traduz afronta ao modelo cooperativo de processo conformado pelo CPC vigente - entre cujas normas fundamentais estão consagrados os princípios da boa-fé (artigo 5º) e da eficiência (artigo 8º) - e acarreta considerável desperdício de recursos, tempo e trabalho que poderiam ser canalizados para a resolução de outras demandas, razão pela qual o Centro de Inteligência deste TJMG (nota técnica n. 01) inclui a "fragmentação de pretensões" "com a finalidade de multiplicar ganhos (indenização, honorários)" entre as condutas indicativas de possível litigância predatória, esta considerada "um dos mais graves problemas enfrentados pelo Poder Judiciário, com sérios prejuízos ao erário e grande impacto no tempo médio de tramitação dos processos". (TJMG - Apelação Cível 1.0000.22.280486-6/001, Relator(a): Des.(a) Fernando Lins , 20ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 10/05/2023, publicação da súmula em 11/05/2023). Destaques. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DECLARATÓRIA E INDENIZATÓRIA - AJUIZAMENTO PELO AUTOR DE VÁRIAS OUTRAS AÇÕES CONTRA O RÉU VERSANDO SOBRE O MESMO TEMA - INEXISTÊNCIA DE RAZÃO PLAUSÍVEL PARA A MULTIPLICIDADE DE DEMANDAS – AUSÊNCIA DE INTERESSE-NECESSIDADE - LITIGÂNCIA PREDATÓRIA - EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM EXAME DE MÉRITO - Não havendo razão plausível para o ajuizamento de várias ações contra o mesmo réu em vez de uma, fracionamento adotado apenas para obter a multiplicação artificial de indenizações e honorários, cabe sustentar a desnecessidade de tantas demandas, o que justifica a extinção do processo desnecessário sem exame de mérito, por falta de interesse de agir, na dimensão da necessidade - O fracionamento injustificável de ações traduz afronta ao modelo cooperativo de processo conformado pelo CPC vigente - entre cujas normas fundamentais estão consagrados os princípios da boa-fé (artigo 5º) e da eficiência (artigo 8º) - e acarreta considerável desperdício de recursos, tempo e trabalho que poderiam ser canalizados para a resolução de outras demandas, razão pela qual o Centro de Inteligência deste TJMG (nota técnica n. 01) inclui a "fragmentação de pretensões" "com a finalidade de multiplicar ganhos (indenização, honorários)" entre as condutas indicativas de possível litigância predatória, esta considerada "um dos mais graves problemas enfrentados pelo Poder Judiciário, com sérios prejuízos ao erário e grande impacto no tempo médio de tramitação dos processos". (TJ-MG - AC: 10000220022354001 MG, Relator: Fernando Lins, Data de Julgamento: 19/10/2022, Câmaras Cíveis / 20ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 20/10/2022). Grifei. EMENTA. PROCESSO CIVIL. DEVIDO PROCESSO LEGAL. INDEFERIMENTO DA INICIAL. ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO. DEMANDA TEMERÁRIA. CARÁTER PÚBLICO DO PROCESSO. OFENSA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO AMPLO ACESSO À JUSTIÇA. INEXISTÊNCIA. 1. A Constituição da República estabelece, ao lado do amplo acesso à Justiça (CF, art. 5º, XXXIV, a), a garantia do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV) e da razoável duração do processo. 2. A cláusula constitucional do devido processo legal associa-se, diretamente, ao conceito de sentença justa, que ressupõe observância estrita aos deveres da lealdade e boa-fé objetiva por parte de todos aqueles que participam do processo judicial. 3. A concepção publicista do processo estabelece que, submetida a lide à apreciação do Judiciário, emerge, ao lado dos interesses privados das partes, o interesse público do Estado-juiz em ver o direito material sendo observado e atuado com justiça real e efetiva. 4. A ordem processual confere ao juiz moderno poderes e faculdades para, na coordenação do processo, inibir posturas que dificultem a defesa, altere ou oculte a verdade dos fatos, induza o juiz a erro, represente açodamento ou negligência na apresentação da postulação em Juízo. 5. Ao juiz não é dado ignorar a realidade das lides agressoras à prestação jurisdicional justa, eficiente e prestada em tempo razoável, sendo lícito atuar na repressão a chamada lide temerária. 6. O processo civil não tolera o abuso de direito processual, no qual se enquadra toda e qualquer forma temerária (imprudente, negligente, açodada ou descuidada) de lide, que põe em risco valores e regras fundamentais, a exemplo de exercício do direito de defesa. 7. Insere-se no conceito de demanda temerária ações padronizadas, em que não se observam as peculiaridades de cada parte e as especificidades da relação em conflito, ajuizadas aos milhares, no mesmo espaço de tempo, contra uma única parte, com petições iniciais contendo teses genéricas, tudo a dar especial protagonismo a institutos meramente formais, como a revelia, a impugnação específica e a inversão do ônus da prova. Em outras palavras, compromete ao exercício do direito de defesa e pode induzir o juiz a erro in judicando. 8. Apelação improvida. (TJPE: APELAÇÃO CÍVEL 0001936-17.2019.8.17.2210, Rel. FABIO EUGENIO DANTAS DE OLIVEIRA LIMA, Gabinete do Des. Fábio Eugênio Dantas de Oliveira Lima (1ª CC), julgado em 30/09/2022). Grifei. E, ainda: CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA/NULIDADE DE NEGÓCIO JURÍDICO C/C REPETIÇÃO DO INDÉBITO E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. DETERMINAÇÃO PARA APRESENTAR O CONTRATO QUESTIONADO OU O PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. NÃO ATENDIMENTO E AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA. AJUIZAMENTO DE DIVERSAS AÇÕES EM FACE DA MESMA INSTITUIÇÃO BANCÁRIA. PETIÇÕES INICIAIS SEMELHANTES. FRACIONAMENTO DE DEMANDAS. LITIGÂNCIA PREDATÓRIA E ABUSO DO DIREITO DE LITIGAR. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. DESPROVIMENTO DA SÚPLICA APELATÓRIA. - Tendo a parte autora sido intimada para juntar o contrato questionado nos autos ou o comprovante de prévio requerimento administrativo para apresentação do referido instrumento, sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito, age com acerto o juiz ao extinguir o feito ante a inércia daquela em cumprir a determinação judicial ou apresentar justificativa da impossibilidade de fazê-lo. - Ainda que fosse possível afastar os argumentos supra, não se pode deixar de reconhecer, assim como fez o juiz de primeiro grau, a caracterização da presente demanda como predatória. - O acesso abusivo ao sistema de justiça, especialmente por meio de lides predatórias, é um dos mais graves problemas enfrentados atualmente pelo Poder Judiciário, com sérios prejuízos ao erário e grande impacto no tempo médio de tramitação dos processos. - Tais demandas são caracterizadas por apresentar iniciais genéricas e idênticas para autores distintos, várias ações para a mesma parte, indicando o fatiamento de demandas, a tramitação invariável sob o pálio da justiça gratuita, a invocação de dano moral in re ipsa, o uso de cópia não original de procuração, o ajuizamento em data muito posterior à da constante na procuração, alegação genérica e totalmente inconsistente de que desconhece ou não se recorda da origem da dívida, a ausência da parte autora em audiências, dentre outros aspectos. - O magistrado tem papel fundamental no combate a estas postulações abusivas e indevidas, podendo atuar de ofício, determinando a realização de atos processuais, a fim de zelar pelo regular andamento da demanda judicial a ele apresentada. - “APELAÇÃO CÍVEL – EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS – AJUIZAMENTO PELA MESMA AUTORA DE VÁRIAS OUTRAS PRETENSÕES CONTRA O MESMO RÉU COM PEDIDOS IDÊNTICOS – FRACIONAMENTO DE DEMANDAS – LITIGÂNCIA PREDATÓRIA – AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. 1. O fracionamento de pretensões, inclusive de exibição de documentos, foi apontado pelo Centro de Inteligência deste Tribunal de Justiça, na Nota Técnica n. 01/2022, como uma conduta indicativa de litigância predatória. 2. Inadmissível a formulação de várias demandas contra o mesmo réu pela técnica abusiva de fracionamento da pretensão. A unidade do direito material, consubstanciada na relação negocial base que se projeta no tempo, deve ser observada no plano processual. Observância de disposições do Código de Processo Civil. 3. O exercício do direito de ação não é incondicional, deve ser exercido em consonância com regras, princípios e valores do ordenamento jurídico. 4. Extinção do processo sem resolução de mérito pela ausência do interesse processual de agir. (TJMG –Apelação Cível 1.0000.23.089089-9/001, Relator(a): Des.(a) Marcelo de Oliveira Milagres, 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 27/06/2023, publicação da súmula em 27/06/2023)” VISTOS, relatados e discutidos os autos acima referenciados. ACORDA a Primeira Câmara Especializada Cível do Egrégio Tribunal de Justiça da Paraíba, à unanimidade de votos, NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO. (0800161-23.2023.8.15.0601, Rel. Gabinete 11 - Des. José Ricardo Porto, APELAÇÃO CÍVEL, 1ª Câmara Cível, juntado em 28/02/2024). Grifei. Nesse contexto, constatada a necessidade de apresentação do requerimento administrativo no caso concreto, assim como diante do fracionamento indevido de demandas, a extinção do processo sem resolução de mérito não representa uma negação ao direito constitucional de ação, mas sim, o exercício regular de um direito. Ressalta-se que a repropositura da ação está condicionada à correção dos vícios apontados neste voto, nos termos do artigo 486, §1º, do CPC. Ante o exposto, com esteio no art. 932, IV, “b” do Código de Processo Civil, conheço do recurso e nego-lhe provimento, mantendo a sentença recorrida. Assim, de acordo com a fundamentação supra, a exigência de prévio requerimento administrativo tem sido admitida em demandas de massa, a fim de se evitar judicialização desnecessária. Ressalte-se que no caso concreto não há peculiaridades fáticas que justifiquem a propositura de várias ações, quando a parte autora poderia ter proposto apenas uma, com base no artigo 327 do CPC, in verbis: Art. 327. É lícita a cumulação, em um único processo, contra o mesmo réu, de vários pedidos, ainda que entre eles não haja conexão. Grifei. Desse modo, tratando-se de demanda resultante de fracionamento ilegítimo de pretensões, é válida a exigência do requerimento administrativo prévio sem o qual a ação padece de uma de suas condições, qual seja, o interesse de agir, no que tange à necessidade, não havendo que se falar em reunião de processos para que seja sanado o vício, até porque a Recomendação n. 159 do CNJ, em seu anexo B, item 6 prevê tal possibilidade apenas se for possível, o que não é o caso dos presentes autos, diante da irregularidade que fulmina com o direito de prosseguir com a demanda. Destaca-se que a finalidade da reunião de ações, conforme prevista no Código de Processo Civil e mencionada na Recomendação em referência, consiste em evitar a prolação de decisões conflitantes, e não em convalidar eventuais vícios identificados no ajuizamento da demanda que, posteriormente, deixa de preencher os requisitos indispensáveis ao seu regular trâmite e processamento. É importante destacar, ainda, que o item 6 do Anexo B da mencionada normativa nem sempre será aplicável ao caso concreto, conforme expressamente ressalvado no seu próprio texto. Portanto, ao extinguir o feito sem resolução de mérito, o juízo de origem agiu em conformidade com a lei, com os princípios que norteiam o processo civil e com a Tese 1198 do Superior Tribunal de Justiça, não se configurando qualquer violação ao direito de acesso à Justiça. Ademais, não há nulidade na técnica da fundamentação per relationem, conforme reiteradamente tem decidido o STJ e o STF, especialmente quando, como se vê nestes autos, há expressa e efetiva complementação das razões referenciadas do decisum agravado com os demais argumentos a seguir lançados. É que, para o STJ, a reprodução dos fundamentos declinados pelas partes ou pelo órgão do Ministério Público ou mesmo de outras decisões proferidas nos autos da demanda atende ao art. 93, IX, da CF/88. (STJ. Corte Especial. EREsp 1.021.851-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 28/6/2012). Igualmente, para o STF, a fundamentação per relationem constitui motivação válida e não ofende o disposto no art. 93, IX, da Constituição da República. (STF. 2ª Turma. Inq 2725, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 08/09/2015). Quanto ao princípio da colegialidade, vale ressaltar que a decisão monocrática proferida por Relator não o afronta e tampouco configura cerceamento de defesa, sendo certo que a possibilidade de interposição de agravo interno contra a respectiva decisão, como ocorre na espécie, permite que o recurso seja apreciado pela Câmara. Assim, considerando, pois, que a decisão agravada examinou de maneira adequada o contexto processual, em consonância com as normas jurídicas pertinentes à matéria, não há fundamentos que justifiquem a sua reforma. Pelo exposto, nego provimento ao Agravo Interno. É o voto. Certidão de Julgamento Id. 35619194. Francisco Seráphico Ferraz da Nóbrega Filho Desembargador Relator