Michelly Ramos Mendes x Banco Bradesco S.A. e outros
Número do Processo:
1034163-94.2023.8.11.0003
📋 Detalhes do Processo
Tribunal:
TJMT
Classe:
PROCEDIMENTO COMUM CíVEL
Grau:
1º Grau
Órgão:
2ª VARA CÍVEL DE RONDONÓPOLIS
Última atualização encontrada em
18 de
julho
de 2025.
Intimações e Editais
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24/06/2025 - Documento obtido via DJENAcórdão Baixar (PDF)
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24/04/2025 - IntimaçãoÓrgão: Quinta Câmara de Direito Privado | Classe: APELAçãO CíVELESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO QUINTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO Número Único: 1034163-94.2023.8.11.0003 Classe: APELAÇÃO CÍVEL (198) Assunto: [Superendividamento] Relator: Des(a). LUIZ OCTAVIO OLIVEIRA SABOIA RIBEIRO Turma Julgadora: [DES(A). LUIZ OCTAVIO OLIVEIRA SABOIA RIBEIRO, DES(A). MARCOS REGENOLD FERNANDES, DES(A). SEBASTIAO DE ARRUDA ALMEIDA] Parte(s): [MICHELLY RAMOS MENDES - CPF: 949.645.721-53 (APELANTE), FILIPE ANTONIO DE OLIVEIRA LIMA - CPF: 085.158.316-43 (ADVOGADO), BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A. - CNPJ: 90.400.888/0001-42 (APELADO), SERGIO SCHULZE - CPF: 312.387.349-87 (ADVOGADO), ITAU UNIBANCO S.A. - CNPJ: 60.701.190/0001-04 (APELADO), RENATO CHAGAS CORREA DA SILVA - CPF: 444.850.181-72 (ADVOGADO), BANCO BRADESCO S.A. - CNPJ: 60.746.948/0001-12 (APELADO), ROSANGELA DA ROSA CORREA - CPF: 519.812.380-34 (ADVOGADO), BANCO ORIGINAL S/A - CNPJ: 92.894.922/0001-08 (APELADO), GABRIELA CARR - CPF: 318.861.098-00 (ADVOGADO), RAMON HENRIQUE DA ROSA GIL - CPF: 348.920.268-67 (ADVOGADO), BANCO DO BRASIL SA - CNPJ: 00.000.000/0001-91 (APELADO), SERVIO TULIO DE BARCELOS - CPF: 317.745.046-34 (ADVOGADO), JOSE ARNALDO JANSSEN NOGUEIRA - CPF: 497.764.281-34 (ADVOGADO), REALIZE CREDITO, FINANCIAMENTO E INVESTIMENTO S.A. - CNPJ: 27.351.731/0001-38 (APELADO), THIAGO MAHFUZ VEZZI - CPF: 181.442.388-50 (ADVOGADO), BANCO COOPERATIVO SICREDI S.A. - CNPJ: 01.181.521/0001-55 (APELADO), EDUARDO ALVES MARCAL - CPF: 902.715.131-87 (ADVOGADO), CREDIATIVOS SOLUCOES FINANCEIRAS LTDA - CNPJ: 04.746.344/0001-03 (APELADO), ARNALDO DOS REIS FILHO - CPF: 290.451.688-39 (ADVOGADO), ROBERTO ALVES LIMA RODRIGUES DE MORAES - CPF: 296.714.768-05 (ADVOGADO)] A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos os autos em epígrafe, a QUINTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, sob a Presidência Des(a). SEBASTIAO DE ARRUDA ALMEIDA, por meio da Turma Julgadora, proferiu a seguinte decisão: POR UNANIMIDADE, PROVEU O RECURSO. E M E N T A DIREITO DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE SUPERENDIVIDAMENTO. EMPRÉSTIMOS BANCÁRIOS MÚLTIPLOS. COMPROMETIMENTO DE RENDA SUPERIOR A 200%. MÍNIMO EXISTENCIAL. NECESSIDADE DE PROCEDIMENTO ESPECIAL. RECURSO PROVIDO. I. Caso em exame 1. Apelação cível interposta contra sentença que julgou improcedentes os pedidos iniciais em ação de superendividamento, sob o fundamento de que os empréstimos foram contraídos de forma espontânea, sem quaisquer vícios, não havendo evidências de que o endividamento decorra de infortúnios da vida ou fatos imprevisíveis. II. Questão em discussão 2. A questão em discussão consiste em verificar: (i) se a apelante se encontra em situação de superendividamento, nos termos do art. 54-A, §1º do CDC, a justificar a instauração do procedimento especial previsto na Lei 14.181/21; (ii) se o valor de R$600,00 estabelecido pelo Decreto n. 11.567/23 como mínimo existencial deve ser interpretado como parâmetro absoluto, independentemente das circunstâncias particulares do caso concreto; e (iii) se houve observância da boa-fé pela consumidora ao contrair os múltiplos empréstimos. III. Razões de decidir 3. A Lei 14.181/21 conceituou o superendividamento como a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer seu mínimo existencial, estabelecendo procedimento especial para repactuação das dívidas. 4. Está configurada a situação de superendividamento quando as dívidas da consumidora junto às instituições financeiras totalizam 205% de sua renda líquida mensal, tornando materialmente impossível o adimplemento das obrigações sem comprometer seu mínimo existencial. 5. O valor de R$600,00 estabelecido pelo Decreto n. 11.567/23 como mínimo existencial deve ser interpretado como parâmetro referencial e não como teto absoluto, devendo-se considerar as peculiaridades do caso concreto. 6. Não há nos autos qualquer indício de que os empréstimos tenham sido contraídos mediante fraude ou má-fé, caracterizando, por outro lado, violação do dever de cooperação por parte das instituições financeiras, que não agiram com a devida diligência ao conceder crédito em montante incompatível com a capacidade financeira da consumidora. IV. Dispositivo e tese 7. Recurso provido para anular a sentença e determinar a realização da audiência do art. 104-A do CDC. Tese de julgamento: "1. Configura-se o superendividamento quando as dívidas do consumidor correspondem a percentual que torna materialmente impossível o adimplemento sem comprometer o mínimo existencial, justificando a instauração do procedimento especial previsto na Lei 14.181/21. 2. O valor estabelecido pelo Decreto n. 11.567/23 como mínimo existencial deve ser interpretado como parâmetro referencial, considerando-se as peculiaridades do caso concreto." Dispositivos relevantes citados: CDC, arts. 54-A, §1º, 54-D, II, 104-A, 104-B e 104-C; Lei nº 14.181/21; Decreto n. 11.567/23; CPC, art. 99, §3º. Jurisprudência relevante citada: TJMT, 1025519-48.2023.8.11.0041, Rel. Des. Rubens de Oliveira Santos Filho, Quarta Câmara de Direito Privado, j. 19/06/2024. R E L A T Ó R I O EXMO. DES. LUIZ OCTÁVIO OLIVEIRA SABOIA RIBEIRO Egrégia Câmara: Trata-se de recurso de apelação interposto por MICHELLY RAMOS MENDES contra sentença proferida pelo Juízo da 2ª Vara Cível de Rondonópolis, na Ação de Superendividamento c/c Obrigação de Fazer c/c Pedido de Tutela Antecipada n. 1034163-94.2023.8.11.0003, movida em face de BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A. e outros, que julgou improcedentes os pedidos iniciais, uma vez que os empréstimos foram contraídos de forma espontânea, sem quaisquer vícios, e que alguns deles realizados seguidamente, não havendo evidências de que o endividamento decorra de infortúnios da vida ou fatos imprevisíveis, sendo incabível desconstituir contratos válidos e eficazes com base apenas no argumento de que os descontos totalizam montante que impede a autora de viver dignamente. Houve a condenação da autora, ora apelante, ao pagamento das despesas judiciais e honorários sucumbenciais, fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa. A apelante alega, em síntese, que a sentença merece reforma porque restou demonstrada sua situação de superendividamento, pois os empréstimos contraídos equivalem a 205% de sua renda mensal líquida; que o valor de R$600,00 fixado como mínimo existencial pelo Decreto n. 11.567/23 não corresponde à realidade econômica atual do país, bem como que o entendimento firmado no Tema 1.085 do STJ não pode ser aplicado de maneira irrestrita ao caso de consumidor superendividado e que permitir descontos bancários sobre a totalidade de seus rendimentos, sem garantir sua subsistência digna, configura afronta à legislação consumerista e ao princípio da dignidade humana. A Cooperativa de Crédito, Poupança e Investimento Integração do Sul de Mato Grosso, Amapá e Pará – SICREDI Integração MT/AP/PA apresentou contrarrazões em id. 276748459. Realize Crédito, Financiamento e Investimento S.A. apresentou contrarrazões em id. 276748462. MGW Ativos Fundo de Investimentos em Direitos Creditórios Não Padronizados (FIDC MGW ATIVOS e Creadiativos Soluções Financeiras LTDA apresentaram contrarrazões em id. 276748464. Banco Bradesco S.A. contrarrazões em id. 276748465. Banco Santander Brasil S.A. apresentou contrarrazões em id. 276748466. Itaú Unibanco S.A. apresentou contrarrazões em id. 276748467, alegando, preliminarmente, a inobservância da dialeticidade recursal. No mérito, requer o desprovimento do recurso. Banco do Brasil S.A. apresentou contrarrazões em id. 276748469. Banco Original S.A. apresentou contrarrazões em id. 276748471, impugnando, preliminarmente, a concessão da assistência judiciária gratuita. No mérito, requer o desprovimento do recurso. Desnecessária a intervenção ministerial, nos termos do art. 178 do CPC. É o relatório. V O T O R E L A T O R EXMO. DES. LUIZ OCTÁVIO OLIVEIRA SABOIA RIBEIRO Egrégia Câmara: Preambularmente, verifico que o recurso merece ser conhecido, pois presentes os pressupostos de admissibilidade. Conforme relatado, trata-se de recurso de apelação interposto por Michelly Ramos Mendes contra sentença que julgou improcedentes os pedidos iniciais, uma vez que os empréstimos foram contraídos de forma espontânea, sem quaisquer vícios, e que alguns deles realizados seguidamente, não havendo evidências de que o endividamento decorra de infortúnios da vida ou fatos imprevisíveis, sendo incabível desconstituir contratos válidos e eficazes com base apenas no argumento de que os descontos totalizam montante que impede a autora de viver dignamente. Houve a condenação da autora, ora apelante, ao pagamento das despesas judiciais e honorários sucumbenciais, fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa. PRELIMINARES – DA GRATUIDADE DA JUSTIÇA E DA DIALETICIDADE RECURSAL A preliminar suscitada por um dos apelados, relacionada à ausência de dialeticidade recursal não merece prosperar. Embora o apelado sustente que o recurso não apontaria os equívocos da decisão recorrida, verifica-se que a apelação, ainda que repita argumentos já expendidos na petição inicial, expõe de forma suficiente as razões pelas quais a apelante entende que a sentença deve ser reformada. A exposição das razões recursais, ainda que mediante a reiteração parcial de argumentos já deduzidos, foi suficiente para viabilizar o pleno exercício do contraditório pelos apelados, tanto que apresentaram substanciosas contrarrazões, refutando os argumentos da apelante. Quanto à impugnação à gratuidade da justiça, observo que o benefício foi corretamente deferido pelo juízo de origem. Compulsando os autos, verifica-se que a apelante comprovou adequadamente sua condição de hipossuficiência financeira, incompatível com o custeio das despesas processuais sem prejuízo de seu sustento (id. 276747869). O apelado, ao impugnar o benefício, limitou-se a alegar genericamente a ausência de comprovação da hipossuficiência, sem, contudo, trazer elementos concretos capazes de infirmar a documentação apresentada e a presunção decorrente da declaração de hipossuficiência. Nos termos do art. 99, § 3º, do CPC, "presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural", cabendo à parte contrária o ônus de demonstrar a inexistência do estado de miserabilidade jurídica afirmado pela beneficiária, ônus do qual não se desincumbiu o apelado no caso concreto. Portanto, não há que se revogar a gratuidade da justiça anteriormente deferida. Diante disso, REJEITO as preliminares suscitadas. MÉRITO Após análise acurada dos autos, verifica-se que o recurso merece prosperar. A Lei 14.181/21, ao alterar o Código de Defesa do Consumidor, instituiu capítulo específico sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento da pessoa natural, conceituando-o, no art. 54-A, §1º, como "a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação". Estabeleceu-se, assim, procedimento especial para os casos de superendividamento do consumidor, conforme disposto nos arts. 104-A, 104-B e 104-C do CDC. No primeiro desses dispositivos, o legislador previu que: Art. 104-A. A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no art. 54-A deste Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas. (destaquei). No caso em tela, cumpre verificar se a apelante se encontra em situação de superendividamento, de modo a justificar a instauração do procedimento especial previsto na legislação. Compulsando os autos, é possível constatar que a autora percebe renda bruta mensal de R$4.304,61 (quatro mil trezentos e quatro reais e sessenta e um centavos), com descontos obrigatórios de R$611,12 (seiscentos e onze reais e doze centavos), resultando em renda líquida de R$3.693,49 (três mil seiscentos e noventa e três reais e quarenta e nove centavos), conforme demonstrado nos documentos acostados aos autos (id. 276747869). Em contrapartida, verifica-se que a soma dos encargos financeiros mensais referente aos contratos firmados junto aos réus totaliza R$7.582,33 (sete mil quinhentos e oitenta e dois reais e trinta e três centavos), o que corresponde a 205% (duzentos e cinco por cento) dos proventos líquidos da recorrente. Diante desse cenário, resta evidente que, na prática, a apelante não dispõe de recursos para sua subsistência e de sua família, já que suas dívidas superam em mais de duas vezes sua renda mensal. A situação é agravada pelo fato de que a autora possui uma filha de 09 (nove) anos de idade, diagnosticada com TDAH e Dislexia, que necessita de medicamentos de alto custo para tratamento, cujas receitas médicas constam dos autos. Além dos descontos relativos às dívidas, a apelante apresenta gastos fixos mensais que totalizam R$1.340,89 (um mil trezentos e quarenta reais e oitenta e nove centavos), incluindo despesas com celular, água, luz e medicação para sua filha. Considerando todos esses fatores, é incontestável que sua situação financeira compromete o mínimo existencial necessário para uma vida digna. O juízo a quo, ao fundamentar sua decisão, baseou-se na preservação do mínimo existencial de R$ 600,00 (seiscentos reais) conforme estipulado pelo Decreto n. 11.567/23. Ocorre que, com o devido respeito ao entendimento exarado na sentença, tal fundamento não se sustenta diante da análise aprofundada do caso concreto e da teleologia da Lei do Superendividamento. Primeiramente, o valor de R$600,00 (seiscentos reais) estabelecido pelo Decreto n. 11.567/23 como mínimo existencial deve ser interpretado como um parâmetro referencial, e não como um teto absoluto e inflexível. O conceito de mínimo existencial, diretamente relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana, abrange as condições materiais básicas para uma existência digna, variando conforme as circunstâncias particulares de cada indivíduo. No caso da apelante, que possui despesas com medicamentos para tratamento de sua filha menor, além de gastos com outros itens essenciais, o mínimo existencial certamente supera o valor estipulado no decreto. Não se pode admitir uma interpretação literal e inflexível que ignore as peculiaridades do caso concreto e comprometa a própria subsistência do consumidor e de sua família. Mais importante ainda é destacar que, no presente caso, mesmo o valor mínimo de R$ 600,00 estabelecido pelo decreto não está sendo preservado. Pelo contrário, conforme demonstrado pelos cálculos apresentados nos autos, a apelante encontra-se em situação de déficit financeiro, sem qualquer recurso para sua subsistência, o que configura clara violação ao mínimo existencial estabelecido pela própria regulamentação citada na sentença. No que tange à análise da boa-fé da apelante, requisito para a aplicação do procedimento especial previsto na Lei 14.181/21, não há nos autos qualquer indício de que os empréstimos tenham sido contraídos mediante fraude ou má-fé, ou que sejam oriundos de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento, ou ainda que decorram da aquisição de produtos e serviços de luxo de alto valor. Pelo contrário, os documentos acostados aos autos evidenciam a intenção da apelante em honrar seus compromissos, tendo inclusive buscado a via judicial para viabilizar a repactuação de suas dívidas de forma a preservar seu mínimo existencial. A própria elaboração do plano de pagamento, apresentado nos autos, demonstra o comprometimento da recorrente com a resolução de sua situação financeira. Impende ressaltar que a Lei do Superendividamento tem como objetivo não apenas proteger o consumidor, mas também assegurar o adimplemento das obrigações assumidas, preservando a segurança jurídica e o mercado de crédito. A repactuação das dívidas visa, precisamente, tornar possível que o consumidor honre seus compromissos sem comprometer sua dignidade, evitando, assim, a insolvência civil e a exclusão do mercado de consumo. Nesse contexto, é preciso lembrar que a boa-fé objetiva permeia todas as relações de consumo, impondo deveres recíprocos a consumidores e fornecedores. Entre esses deveres, destaca-se a cooperação, que no caso das instituições financeiras, implica na obrigação de avaliar a capacidade de pagamento do consumidor antes da concessão do crédito, de modo a prevenir o superendividamento. No caso dos autos, é notório que os bancos réus não agiram com a devida diligência ao conceder crédito à apelante em montante incompatível com sua capacidade financeira, contrariando o dever previsto no art. 54-D, II, do CDC, incluído pela Lei do Superendividamento. Esta análise encontra respaldo na jurisprudência recente deste Tribunal, como se verifica no acórdão abaixo: “APELAÇÃO - AÇÃO DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS – SITUAÇÃO DE SUPERENDIVIDAMENTO CONFIGURADA – LEI N. 14.181/21 – RECURSO PROVIDO. A Ação de Repactuação de Dívidas com amparo na Lei n. 14.181/21 (Lei do Superendividamento) é procedimento especial com requisitos específicos que devem ser estritamente observados e, para que seja admitida, cabe ao autor demonstrar que está configurada a situação de superendividamento”. (TJMT, 1025519-48.2023.8.11.0041, CÂMARAS ISOLADAS CÍVEIS DE DIREITO PRIVADO, RUBENS DE OLIVEIRA SANTOS FILHO, Quarta Câmara de Direito Privado, Julgado em 19/06/2024, Publicado no DJE 21/06/2024 - destaquei). No referido precedente, constatou-se que as despesas do apelante superavam sua renda mensal, configurando evidente situação de superendividamento que justificava a aplicação do procedimento especial previsto na Lei 14.181/21. Situação semelhante verifica-se no presente caso, uma vez que as dívidas da apelante correspondem a 205% de sua renda líquida, tornando materialmente impossível o adimplemento das obrigações sem comprometer seu mínimo existencial. Diante do exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso para anular a sentença e determinar a realização da audiência do art. 104-A do CDC, com apresentação do plano pelo autor, e demais atos processuais previstos na Lei 14.181/2021. É como voto. Data da sessão: Cuiabá-MT, 15/04/2025
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24/04/2025 - IntimaçãoÓrgão: Quinta Câmara de Direito Privado | Classe: APELAçãO CíVELESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO QUINTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO Número Único: 1034163-94.2023.8.11.0003 Classe: APELAÇÃO CÍVEL (198) Assunto: [Superendividamento] Relator: Des(a). LUIZ OCTAVIO OLIVEIRA SABOIA RIBEIRO Turma Julgadora: [DES(A). LUIZ OCTAVIO OLIVEIRA SABOIA RIBEIRO, DES(A). MARCOS REGENOLD FERNANDES, DES(A). SEBASTIAO DE ARRUDA ALMEIDA] Parte(s): [MICHELLY RAMOS MENDES - CPF: 949.645.721-53 (APELANTE), FILIPE ANTONIO DE OLIVEIRA LIMA - CPF: 085.158.316-43 (ADVOGADO), BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A. - CNPJ: 90.400.888/0001-42 (APELADO), SERGIO SCHULZE - CPF: 312.387.349-87 (ADVOGADO), ITAU UNIBANCO S.A. - CNPJ: 60.701.190/0001-04 (APELADO), RENATO CHAGAS CORREA DA SILVA - CPF: 444.850.181-72 (ADVOGADO), BANCO BRADESCO S.A. - CNPJ: 60.746.948/0001-12 (APELADO), ROSANGELA DA ROSA CORREA - CPF: 519.812.380-34 (ADVOGADO), BANCO ORIGINAL S/A - CNPJ: 92.894.922/0001-08 (APELADO), GABRIELA CARR - CPF: 318.861.098-00 (ADVOGADO), RAMON HENRIQUE DA ROSA GIL - CPF: 348.920.268-67 (ADVOGADO), BANCO DO BRASIL SA - CNPJ: 00.000.000/0001-91 (APELADO), SERVIO TULIO DE BARCELOS - CPF: 317.745.046-34 (ADVOGADO), JOSE ARNALDO JANSSEN NOGUEIRA - CPF: 497.764.281-34 (ADVOGADO), REALIZE CREDITO, FINANCIAMENTO E INVESTIMENTO S.A. - CNPJ: 27.351.731/0001-38 (APELADO), THIAGO MAHFUZ VEZZI - CPF: 181.442.388-50 (ADVOGADO), BANCO COOPERATIVO SICREDI S.A. - CNPJ: 01.181.521/0001-55 (APELADO), EDUARDO ALVES MARCAL - CPF: 902.715.131-87 (ADVOGADO), CREDIATIVOS SOLUCOES FINANCEIRAS LTDA - CNPJ: 04.746.344/0001-03 (APELADO), ARNALDO DOS REIS FILHO - CPF: 290.451.688-39 (ADVOGADO), ROBERTO ALVES LIMA RODRIGUES DE MORAES - CPF: 296.714.768-05 (ADVOGADO)] A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos os autos em epígrafe, a QUINTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, sob a Presidência Des(a). SEBASTIAO DE ARRUDA ALMEIDA, por meio da Turma Julgadora, proferiu a seguinte decisão: POR UNANIMIDADE, PROVEU O RECURSO. E M E N T A DIREITO DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE SUPERENDIVIDAMENTO. EMPRÉSTIMOS BANCÁRIOS MÚLTIPLOS. COMPROMETIMENTO DE RENDA SUPERIOR A 200%. MÍNIMO EXISTENCIAL. NECESSIDADE DE PROCEDIMENTO ESPECIAL. RECURSO PROVIDO. I. Caso em exame 1. Apelação cível interposta contra sentença que julgou improcedentes os pedidos iniciais em ação de superendividamento, sob o fundamento de que os empréstimos foram contraídos de forma espontânea, sem quaisquer vícios, não havendo evidências de que o endividamento decorra de infortúnios da vida ou fatos imprevisíveis. II. Questão em discussão 2. A questão em discussão consiste em verificar: (i) se a apelante se encontra em situação de superendividamento, nos termos do art. 54-A, §1º do CDC, a justificar a instauração do procedimento especial previsto na Lei 14.181/21; (ii) se o valor de R$600,00 estabelecido pelo Decreto n. 11.567/23 como mínimo existencial deve ser interpretado como parâmetro absoluto, independentemente das circunstâncias particulares do caso concreto; e (iii) se houve observância da boa-fé pela consumidora ao contrair os múltiplos empréstimos. III. Razões de decidir 3. A Lei 14.181/21 conceituou o superendividamento como a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer seu mínimo existencial, estabelecendo procedimento especial para repactuação das dívidas. 4. Está configurada a situação de superendividamento quando as dívidas da consumidora junto às instituições financeiras totalizam 205% de sua renda líquida mensal, tornando materialmente impossível o adimplemento das obrigações sem comprometer seu mínimo existencial. 5. O valor de R$600,00 estabelecido pelo Decreto n. 11.567/23 como mínimo existencial deve ser interpretado como parâmetro referencial e não como teto absoluto, devendo-se considerar as peculiaridades do caso concreto. 6. Não há nos autos qualquer indício de que os empréstimos tenham sido contraídos mediante fraude ou má-fé, caracterizando, por outro lado, violação do dever de cooperação por parte das instituições financeiras, que não agiram com a devida diligência ao conceder crédito em montante incompatível com a capacidade financeira da consumidora. IV. Dispositivo e tese 7. Recurso provido para anular a sentença e determinar a realização da audiência do art. 104-A do CDC. Tese de julgamento: "1. Configura-se o superendividamento quando as dívidas do consumidor correspondem a percentual que torna materialmente impossível o adimplemento sem comprometer o mínimo existencial, justificando a instauração do procedimento especial previsto na Lei 14.181/21. 2. O valor estabelecido pelo Decreto n. 11.567/23 como mínimo existencial deve ser interpretado como parâmetro referencial, considerando-se as peculiaridades do caso concreto." Dispositivos relevantes citados: CDC, arts. 54-A, §1º, 54-D, II, 104-A, 104-B e 104-C; Lei nº 14.181/21; Decreto n. 11.567/23; CPC, art. 99, §3º. Jurisprudência relevante citada: TJMT, 1025519-48.2023.8.11.0041, Rel. Des. Rubens de Oliveira Santos Filho, Quarta Câmara de Direito Privado, j. 19/06/2024. R E L A T Ó R I O EXMO. DES. LUIZ OCTÁVIO OLIVEIRA SABOIA RIBEIRO Egrégia Câmara: Trata-se de recurso de apelação interposto por MICHELLY RAMOS MENDES contra sentença proferida pelo Juízo da 2ª Vara Cível de Rondonópolis, na Ação de Superendividamento c/c Obrigação de Fazer c/c Pedido de Tutela Antecipada n. 1034163-94.2023.8.11.0003, movida em face de BANCO SANTANDER (BRASIL) S.A. e outros, que julgou improcedentes os pedidos iniciais, uma vez que os empréstimos foram contraídos de forma espontânea, sem quaisquer vícios, e que alguns deles realizados seguidamente, não havendo evidências de que o endividamento decorra de infortúnios da vida ou fatos imprevisíveis, sendo incabível desconstituir contratos válidos e eficazes com base apenas no argumento de que os descontos totalizam montante que impede a autora de viver dignamente. Houve a condenação da autora, ora apelante, ao pagamento das despesas judiciais e honorários sucumbenciais, fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa. A apelante alega, em síntese, que a sentença merece reforma porque restou demonstrada sua situação de superendividamento, pois os empréstimos contraídos equivalem a 205% de sua renda mensal líquida; que o valor de R$600,00 fixado como mínimo existencial pelo Decreto n. 11.567/23 não corresponde à realidade econômica atual do país, bem como que o entendimento firmado no Tema 1.085 do STJ não pode ser aplicado de maneira irrestrita ao caso de consumidor superendividado e que permitir descontos bancários sobre a totalidade de seus rendimentos, sem garantir sua subsistência digna, configura afronta à legislação consumerista e ao princípio da dignidade humana. A Cooperativa de Crédito, Poupança e Investimento Integração do Sul de Mato Grosso, Amapá e Pará – SICREDI Integração MT/AP/PA apresentou contrarrazões em id. 276748459. Realize Crédito, Financiamento e Investimento S.A. apresentou contrarrazões em id. 276748462. MGW Ativos Fundo de Investimentos em Direitos Creditórios Não Padronizados (FIDC MGW ATIVOS e Creadiativos Soluções Financeiras LTDA apresentaram contrarrazões em id. 276748464. Banco Bradesco S.A. contrarrazões em id. 276748465. Banco Santander Brasil S.A. apresentou contrarrazões em id. 276748466. Itaú Unibanco S.A. apresentou contrarrazões em id. 276748467, alegando, preliminarmente, a inobservância da dialeticidade recursal. No mérito, requer o desprovimento do recurso. Banco do Brasil S.A. apresentou contrarrazões em id. 276748469. Banco Original S.A. apresentou contrarrazões em id. 276748471, impugnando, preliminarmente, a concessão da assistência judiciária gratuita. No mérito, requer o desprovimento do recurso. Desnecessária a intervenção ministerial, nos termos do art. 178 do CPC. É o relatório. V O T O R E L A T O R EXMO. DES. LUIZ OCTÁVIO OLIVEIRA SABOIA RIBEIRO Egrégia Câmara: Preambularmente, verifico que o recurso merece ser conhecido, pois presentes os pressupostos de admissibilidade. Conforme relatado, trata-se de recurso de apelação interposto por Michelly Ramos Mendes contra sentença que julgou improcedentes os pedidos iniciais, uma vez que os empréstimos foram contraídos de forma espontânea, sem quaisquer vícios, e que alguns deles realizados seguidamente, não havendo evidências de que o endividamento decorra de infortúnios da vida ou fatos imprevisíveis, sendo incabível desconstituir contratos válidos e eficazes com base apenas no argumento de que os descontos totalizam montante que impede a autora de viver dignamente. Houve a condenação da autora, ora apelante, ao pagamento das despesas judiciais e honorários sucumbenciais, fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa. PRELIMINARES – DA GRATUIDADE DA JUSTIÇA E DA DIALETICIDADE RECURSAL A preliminar suscitada por um dos apelados, relacionada à ausência de dialeticidade recursal não merece prosperar. Embora o apelado sustente que o recurso não apontaria os equívocos da decisão recorrida, verifica-se que a apelação, ainda que repita argumentos já expendidos na petição inicial, expõe de forma suficiente as razões pelas quais a apelante entende que a sentença deve ser reformada. A exposição das razões recursais, ainda que mediante a reiteração parcial de argumentos já deduzidos, foi suficiente para viabilizar o pleno exercício do contraditório pelos apelados, tanto que apresentaram substanciosas contrarrazões, refutando os argumentos da apelante. Quanto à impugnação à gratuidade da justiça, observo que o benefício foi corretamente deferido pelo juízo de origem. Compulsando os autos, verifica-se que a apelante comprovou adequadamente sua condição de hipossuficiência financeira, incompatível com o custeio das despesas processuais sem prejuízo de seu sustento (id. 276747869). O apelado, ao impugnar o benefício, limitou-se a alegar genericamente a ausência de comprovação da hipossuficiência, sem, contudo, trazer elementos concretos capazes de infirmar a documentação apresentada e a presunção decorrente da declaração de hipossuficiência. Nos termos do art. 99, § 3º, do CPC, "presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural", cabendo à parte contrária o ônus de demonstrar a inexistência do estado de miserabilidade jurídica afirmado pela beneficiária, ônus do qual não se desincumbiu o apelado no caso concreto. Portanto, não há que se revogar a gratuidade da justiça anteriormente deferida. Diante disso, REJEITO as preliminares suscitadas. MÉRITO Após análise acurada dos autos, verifica-se que o recurso merece prosperar. A Lei 14.181/21, ao alterar o Código de Defesa do Consumidor, instituiu capítulo específico sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento da pessoa natural, conceituando-o, no art. 54-A, §1º, como "a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação". Estabeleceu-se, assim, procedimento especial para os casos de superendividamento do consumidor, conforme disposto nos arts. 104-A, 104-B e 104-C do CDC. No primeiro desses dispositivos, o legislador previu que: Art. 104-A. A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no art. 54-A deste Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas. (destaquei). No caso em tela, cumpre verificar se a apelante se encontra em situação de superendividamento, de modo a justificar a instauração do procedimento especial previsto na legislação. Compulsando os autos, é possível constatar que a autora percebe renda bruta mensal de R$4.304,61 (quatro mil trezentos e quatro reais e sessenta e um centavos), com descontos obrigatórios de R$611,12 (seiscentos e onze reais e doze centavos), resultando em renda líquida de R$3.693,49 (três mil seiscentos e noventa e três reais e quarenta e nove centavos), conforme demonstrado nos documentos acostados aos autos (id. 276747869). Em contrapartida, verifica-se que a soma dos encargos financeiros mensais referente aos contratos firmados junto aos réus totaliza R$7.582,33 (sete mil quinhentos e oitenta e dois reais e trinta e três centavos), o que corresponde a 205% (duzentos e cinco por cento) dos proventos líquidos da recorrente. Diante desse cenário, resta evidente que, na prática, a apelante não dispõe de recursos para sua subsistência e de sua família, já que suas dívidas superam em mais de duas vezes sua renda mensal. A situação é agravada pelo fato de que a autora possui uma filha de 09 (nove) anos de idade, diagnosticada com TDAH e Dislexia, que necessita de medicamentos de alto custo para tratamento, cujas receitas médicas constam dos autos. Além dos descontos relativos às dívidas, a apelante apresenta gastos fixos mensais que totalizam R$1.340,89 (um mil trezentos e quarenta reais e oitenta e nove centavos), incluindo despesas com celular, água, luz e medicação para sua filha. Considerando todos esses fatores, é incontestável que sua situação financeira compromete o mínimo existencial necessário para uma vida digna. O juízo a quo, ao fundamentar sua decisão, baseou-se na preservação do mínimo existencial de R$ 600,00 (seiscentos reais) conforme estipulado pelo Decreto n. 11.567/23. Ocorre que, com o devido respeito ao entendimento exarado na sentença, tal fundamento não se sustenta diante da análise aprofundada do caso concreto e da teleologia da Lei do Superendividamento. Primeiramente, o valor de R$600,00 (seiscentos reais) estabelecido pelo Decreto n. 11.567/23 como mínimo existencial deve ser interpretado como um parâmetro referencial, e não como um teto absoluto e inflexível. O conceito de mínimo existencial, diretamente relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana, abrange as condições materiais básicas para uma existência digna, variando conforme as circunstâncias particulares de cada indivíduo. No caso da apelante, que possui despesas com medicamentos para tratamento de sua filha menor, além de gastos com outros itens essenciais, o mínimo existencial certamente supera o valor estipulado no decreto. Não se pode admitir uma interpretação literal e inflexível que ignore as peculiaridades do caso concreto e comprometa a própria subsistência do consumidor e de sua família. Mais importante ainda é destacar que, no presente caso, mesmo o valor mínimo de R$ 600,00 estabelecido pelo decreto não está sendo preservado. Pelo contrário, conforme demonstrado pelos cálculos apresentados nos autos, a apelante encontra-se em situação de déficit financeiro, sem qualquer recurso para sua subsistência, o que configura clara violação ao mínimo existencial estabelecido pela própria regulamentação citada na sentença. No que tange à análise da boa-fé da apelante, requisito para a aplicação do procedimento especial previsto na Lei 14.181/21, não há nos autos qualquer indício de que os empréstimos tenham sido contraídos mediante fraude ou má-fé, ou que sejam oriundos de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento, ou ainda que decorram da aquisição de produtos e serviços de luxo de alto valor. Pelo contrário, os documentos acostados aos autos evidenciam a intenção da apelante em honrar seus compromissos, tendo inclusive buscado a via judicial para viabilizar a repactuação de suas dívidas de forma a preservar seu mínimo existencial. A própria elaboração do plano de pagamento, apresentado nos autos, demonstra o comprometimento da recorrente com a resolução de sua situação financeira. Impende ressaltar que a Lei do Superendividamento tem como objetivo não apenas proteger o consumidor, mas também assegurar o adimplemento das obrigações assumidas, preservando a segurança jurídica e o mercado de crédito. A repactuação das dívidas visa, precisamente, tornar possível que o consumidor honre seus compromissos sem comprometer sua dignidade, evitando, assim, a insolvência civil e a exclusão do mercado de consumo. Nesse contexto, é preciso lembrar que a boa-fé objetiva permeia todas as relações de consumo, impondo deveres recíprocos a consumidores e fornecedores. Entre esses deveres, destaca-se a cooperação, que no caso das instituições financeiras, implica na obrigação de avaliar a capacidade de pagamento do consumidor antes da concessão do crédito, de modo a prevenir o superendividamento. No caso dos autos, é notório que os bancos réus não agiram com a devida diligência ao conceder crédito à apelante em montante incompatível com sua capacidade financeira, contrariando o dever previsto no art. 54-D, II, do CDC, incluído pela Lei do Superendividamento. Esta análise encontra respaldo na jurisprudência recente deste Tribunal, como se verifica no acórdão abaixo: “APELAÇÃO - AÇÃO DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS – SITUAÇÃO DE SUPERENDIVIDAMENTO CONFIGURADA – LEI N. 14.181/21 – RECURSO PROVIDO. A Ação de Repactuação de Dívidas com amparo na Lei n. 14.181/21 (Lei do Superendividamento) é procedimento especial com requisitos específicos que devem ser estritamente observados e, para que seja admitida, cabe ao autor demonstrar que está configurada a situação de superendividamento”. (TJMT, 1025519-48.2023.8.11.0041, CÂMARAS ISOLADAS CÍVEIS DE DIREITO PRIVADO, RUBENS DE OLIVEIRA SANTOS FILHO, Quarta Câmara de Direito Privado, Julgado em 19/06/2024, Publicado no DJE 21/06/2024 - destaquei). No referido precedente, constatou-se que as despesas do apelante superavam sua renda mensal, configurando evidente situação de superendividamento que justificava a aplicação do procedimento especial previsto na Lei 14.181/21. Situação semelhante verifica-se no presente caso, uma vez que as dívidas da apelante correspondem a 205% de sua renda líquida, tornando materialmente impossível o adimplemento das obrigações sem comprometer seu mínimo existencial. Diante do exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso para anular a sentença e determinar a realização da audiência do art. 104-A do CDC, com apresentação do plano pelo autor, e demais atos processuais previstos na Lei 14.181/2021. É como voto. Data da sessão: Cuiabá-MT, 15/04/2025
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24/04/2025 - Documento obtido via DJENAcórdão Baixar (PDF)