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Resultados para "REMOçãO, MODIFICAçãO E DISPENSA DE TUTOR OU CURADOR" – Página 122 de 128
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Fernando Oda E Silva
OAB/GO 34.013
FERNANDO ODA E SILVA consta em registros encontrados pelo Causa Na Justiça como advogado.
ID: 295161968
Tribunal: TRF1
Órgão: Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Teixeira de Freitas-BA
Classe: MANDADO DE SEGURANçA CíVEL
Nº Processo: 1007666-82.2024.4.01.3313
Data de Disponibilização:
11/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
ANNIE KELYNE ONOFRE GUSMAO
OAB/BA XXXXXX
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LUIZ ARMANDO MORI LEITE DA SILVEIRA
OAB/BA XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Subseção Judiciária de Teixeira de Freitas-BA Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Teixeira de Freitas-BA SENTENÇA TIPO "A" PROCESSO: 1007666-82.2024.4.01.3313 CLA…
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Processo nº 0064281-96.2011.4.01.3400
ID: 308191127
Tribunal: TRF1
Órgão: Gab. 16 - DESEMBARGADOR FEDERAL FLAVIO JARDIM
Classe: APELAçãO CíVEL
Nº Processo: 0064281-96.2011.4.01.3400
Data de Disponibilização:
26/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
LUIS GUSTAVO PAIVA DE ARAUJO
OAB/SP XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 0064281-96.2011.4.01.3400 PROCESSO REFERÊNCIA: 0064281-96.2011.4.01.3400 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) POLO ATIVO: MICREX IMPORTADORA E…
JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 0064281-96.2011.4.01.3400 PROCESSO REFERÊNCIA: 0064281-96.2011.4.01.3400 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) POLO ATIVO: MICREX IMPORTADORA E DISTRIBUIDORA LTDA - EPP e outros REPRESENTANTE(S) POLO ATIVO: LUIS GUSTAVO PAIVA DE ARAUJO - SP349974 POLO PASSIVO:AGENCIA NACIONAL DE VIGILANCIA SANITARIA e outros REPRESENTANTE(S) POLO PASSIVO: LUIS GUSTAVO PAIVA DE ARAUJO - SP349974 RELATOR(A):FLAVIO JAIME DE MORAES JARDIM PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0064281-96.2011.4.01.3400 RELATÓRIO Transcrevo o relatório da sentença recorrida: O pedido foi julgado parcialmente procedente apenas para condenar a Anvisa a ressarcir à autora a quantia de US$ 6.117,00 (seis mil, cento e dezessete dólares norte americanos) a serem convertidos em real pelo câmbio comercial em vigor na data do pagamento. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária interpôs apelação (p. 140-149, r.u.) para defender a necessidade de registro prévio diante do risco sanitário do produto objeto de importação conforme redação do art. 7º da Lei nº 6.360/76 e que o condicionamento de registro imposto pela recorrente estaria albergado em relevantes razões de saúde pública. Contrarrazões apresentadas (p. 162-168, r.u.). Micrex Importadora e Distribuidora Ltda. interpôs recurso adesivo (p. 171-188, r.u.) para defender a alteração do posicionamento da apelada classificando os produtos objeto da presente demanda como medicamentos e o direito ao ressarcimento aos danos materiais supostamente causados pelo apelante ao apelado. Contrarrazões apresentadas (p. 203-209, r.u.). O Ministério Público Federal opinou pelo prosseguimento do feito sem interesse social ou individual indisponível na causa (ID 431524879). É o relatório. PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0064281-96.2011.4.01.3400 VOTO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL FLÁVIO JARDIM - Relator: I. Estão preenchidos os requisitos de admissibilidade. II. Eis a fundamentação e o dispositivo da sentença recorrida: III. A controvérsia reside na inexigibilidade de registro dos produtos Sectokil Loção e Sectokil Shampoo junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária como “medicamento”, “cosmético” ou “tecnologia de produtos para saúde”, bem como na responsabilidade civil por danos materiais, lucros cessantes e danos emergentes decorrentes do impedimento de importação. As partes divergem na classificação desses produtos, considerando que são formulados à base de Dimeticona e destinados à remoção de piolhos e lêndeas (Pediculus capins). Por um lado, é importante apontar que produtos cosméticos também podem estar sujeitos a registro quando sua finalidade for estética, protetora higiênica ou odorífera. Por outro lado, todos os medicamentos precisam de registro na Anvisa. Além dessa distinção técnica, há, no caso concreto, divergência de entendimento ao longo do tempo quanto ao tratamento dos produtos objeto da Licença de Importação nº 11/0844364-2, que passou a exigir prévio registro do Sectokil Loção e Sectokil Shampoo na qualidade de medicamentos após 2011. O juízo de piso entendeu que haveria algum tipo de expectativa decorrente da consulta da recorrida encaminhada por e-mail a Anvisa em 2 de junho de 2009 sobre a necessidade de registro de “um produto contra piolhos” com base na RDC nº 185/01 por ser (i) destinado ao tratamento de infestação do couro cabeludo por piolhos e (ii) não utilização de meio farmacológico, imunológico ou metabólico para realizar sua função, sendo uma ação exclusivamente mecânica (p. 59, r.u.). Obteve como resposta a desnecessidade de registro (p. 57-58, r.u.), não obstante não tenha sido submetido especificamente os produtos Sectokil Loção e Sectokil Shampoo e consequentemente da não avaliação dos produtos individualizados. Em que pese a avaliação inicial do juízo a quo, entendo que tal resposta não foi específica quanto aos produtos Sectokil Loção e Sectokil Shampoo e, por isso, não há nexo causal em concluir que tal resposta ensejou diretamente a importação desses produtos. Confira-se o teor dos e-mails (fl. 57, r.u.): Mais ainda, a resposta da Anvisa não foi dada de forma motivada e pelas áreas técnicas responsáveis, tanto o é que o recorrente teve dúvidas quanto à possibilidade de utilização formal dessa “consulta”, consoante se percebe do último e-mail, de 13.6.2009 (p. 57,r.u.): Em 2011, a Anvisa notificou o importador acerca de parecer da área técnica referente à classificação dos produtos Sectokil Loção e Sectokil Shampoo como “medicamento”, considerando que o princípio ativo do cosmético é um medicamento – a dimeticona. Tal avaliação foi feita com base na RDC nº 185/01 e na RDC nº 81/08 (p. 62-63, r.u.). Nessa manifestação, não há dúvidas regulatórias sobre qualidade de “medicamento” dos produtos Sectokil Loção e Sectokil Shampoo: Esta manifestação sim é uma manifestação formal, que examinou detalhadamente os produtos. Os e-mails não têm a mesma função. Nesse particular, concordo com a sentença recorrida no sentido da presença de interesse público na opinião técnica, que pode ser alterada a qualquer tempo pela Anvisa quando reconhecido o risco à saúde pública e detectadas alterações de entendimento toxicológico que fundamente restrições à livre comercialização de bens. O controle regulatório da autarquia tem caráter prospectivo, visa a preservar a saúde pública e justifica a restrição à atividade econômica imposta ao particular. Contudo, no caso em questão, os e-mails não podem ser sequer considerados pedidos formais de análise da necessidade ou não de um registro de medicamento. Dessa forma, o dever de deferência do Poder Judiciário às decisões regulatórias já foi tratada pelo Supremo Tribunal Federal diante da (i) falta de expertise e capacidade institucional de tribunais para decidir sobre intervenções regulatórias, que envolvem questões policêntricas e prognósticos especializados e (ii) possibilidade de a revisão judicial ensejar efeitos sistêmicos nocivos à coerência e dinâmica regulatória administrativa. Confira-se a ementa do precedente de lavra do Ministro Luiz Fux nesse sentido: AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO ECONÔMICO E ADMINISTRATIVO. CONCORRÊNCIA. PRÁTICA LESIVA TENDENTE A ELIMINAR POTENCIALIDADE CONCORRENCIAL DE NOVO VAREJISTA. ANÁLISE DO MÉRITO DO ATO ADMINISTRATIVO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. INCURSIONAMENTO NO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 279 DO STF. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. A capacidade institucional na seara regulatória, a qual atrai controvérsias de natureza acentuadamente complexa, que demandam tratamento especializado e qualificado, revela a reduzida expertise do Judiciário para o controle jurisdicional das escolhas políticas e técnicas subjacentes à regulação econômica, bem como de seus efeitos sistêmicos. 2. O dever de deferência do Judiciário às decisões técnicas adotadas por entidades reguladoras repousa na (i) falta de expertise e capacidade institucional de tribunais para decidir sobre intervenções regulatórias, que envolvem questões policêntricas e prognósticos especializados e (ii) possibilidade de a revisão judicial ensejar efeitos sistêmicos nocivos à coerência e dinâmica regulatória administrativa. 3. A natureza prospectiva e multipolar das questões regulatórias se diferencia das demandas comumente enfrentadas pelo Judiciário, mercê da própria lógica inerente ao processo judicial. 4. A Administração Pública ostenta maior capacidade para avaliar elementos fáticos e econômicos ínsitos à regulação. Consoante o escólio doutrinário de Adrian Vermeule, o Judiciário não é a autoridade mais apta para decidir questões policêntricas de efeitos acentuadamente complexos (VERMEULE, Adrian. Judging under uncertainty: An institutional theory of legal interpretation. Cambridge: Harvard University Press, 2006, p. 248–251). 5. A intervenção judicial desproporcional no âmbito regulatório pode ensejar consequências negativas às iniciativas da Administração Pública. Em perspectiva pragmática, a invasão judicial ao mérito administrativo pode comprometer a unidade e coerência da política regulatória, desaguando em uma paralisia de efeitos sistêmicos acentuadamente negativos. 6. A expertise técnica e a capacidade institucional do CADE em questões de regulação econômica demanda uma postura deferente do Poder Judiciário ao mérito das decisões proferidas pela Autarquia. O controle jurisdicional deve cingir-se ao exame da legalidade ou abusividade dos atos administrativos, consoante a firme jurisprudência desta Suprema Corte. Precedentes: ARE 779.212-AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe de 21/8/2014; RE 636.686-AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe de 16/8/2013; RMS 27.934 AgR, Rel. Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, DJe de 3/8/2015; ARE 968.607 AgR, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe de 15/9/2016; RMS 24.256, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 18/10/2002; RMS 33.911, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe de 20/6/2016. 7. Os controles regulatórios, à luz do consequencialismo, são comumente dinâmicos e imprevisíveis. Consoante ressaltado por Cass Sustein, “as normas regulatórias podem interagir de maneira surpreendente com o mercado, com outras normas e com outros problemas. Consequências imprevistas são comuns. Por exemplo, a regulação de novos riscos pode exacerbar riscos antigos (...). As agências reguladoras estão muito melhor situadas do que os tribunais para entender e combater esses efeitos” (SUSTEIN, Cass R., "Law and Administration after Chevron”. Columbia Law Review, v. 90, n. 8, p. 2.071-2.120, 1990, p. 2.090). 8. A atividade regulatória difere substancialmente da prática jurisdicional, porquanto: “a regulação tende a usar meios de controle ex ante (preventivos), enquanto processos judiciais realizam o controle ex post (dissuasivos); (...) a regulação tende a utilizar especialistas (...) para projetar e implementar regras, enquanto os litígios judiciais são dominados por generalistas” (POSNER, Richard A. "Regulation (Agencies) versus Litigation (Courts): an analytical framework". In: KESSLER, Daniel P. (Org.), Regulation versus litigation: perspectives from economics and law, Chicago: The University of Chicago Press, 2011, p. 13). 9. In casu, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, após ampla análise do conjunto fático e probatório dos autos do processo administrativo, examinou circunstâncias fáticas e econômicas complexas, incluindo a materialidade das condutas, a definição do mercado relevante e o exame das consequências das condutas das agravantes no mercado analisado. No processo, a Autarquia concluiu que a conduta perpetrada pelas agravantes se enquadrava nas infrações à ordem econômica previstas nos artigos 20, I, II e IV, e 21, II, IV, V e X, da Lei 8.884/1994 (Lei Antitruste). 10. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE detém competência legalmente outorgada para verificar se a conduta de agentes econômicos gera efetivo prejuízo à livre concorrência, em materialização das infrações previstas na Lei 8.884/1994 (Lei Antitruste). 11. As sanções antitruste, aplicadas pelo CADE por força de ilicitude da conduta empresarial, dependem das consequências ou repercussões negativas no mercado analisado, sendo certo que a identificação de tais efeitos anticompetitivos reclama expertise, o que, na doutrina, significa que “é possível que o controle da “correção” de uma avaliação antitruste ignore estas decisões preliminares da autoridade administrativa, gerando uma incoerência regulatória. Sob o pretexto de “aplicação da legislação”, os tribunais podem simplesmente desconsiderar estas complexidades que lhes são subjacentes e impor suas próprias opções” (JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de uma administração pública complexa: a experiência estrangeira na adaptação da intensidade do controle. São Paulo: Malheiros – SBDP, 2016, p. 152-155). 12. O Tribunal a quo reconheceu a regularidade do procedimento administrativo que impusera às recorrentes condenação por práticas previstas na Lei 8.884/1994 (Lei Antitruste), razão pela qual divergir do entendimento firmado no acórdão recorrido demandaria o reexame dos fatos e provas, o que não se revela cognoscível em sede de recurso extraordinário, face ao óbice erigido pela Súmula 279 do STF. 13. Agravo regimental a que se NEGA PROVIMENTO. (RE 1083955 AgR, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 28/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-122 DIVULG 06-06-2019 PUBLIC 07-06-2019) Logo, deve ser mantida a sentença no sentido de não acolher o pedido autoral para afastar a necessidade de registro dos produtos Sectokil Loção e Sectokil Shampoo. Quanto à indenização, divirjo da fundamentação e do acolhimento parcial do pedido autoral porque não houve ação da Anvisa que tenha causado dano ao recorrido. O e-mail enviado para a Anvisa em 2009 não tratou individualmente dos produtos a serem importados e não foi formalmente submetido à agência. Com isso, a resposta da autarquia não foi motivada e não pode ser utilizada como nexo causal para a suposta autorização da importação de 2940 frascos de Sectokil Loção (p. 35, r.u.) e 3000 frascos de Sectokil Shampoo (p. 36, r.u.) no valor total de US$ 6.170,00. Não houve nexo causal entre a expectativa supostamente legítima do particular em razão do e-mail de 2009. Tanto assim o é que a parte tem dúvidas sobre a possibilidade de utilização dessa comunicação de maneira “formal”, o que reforça que até mesmo o recorrido teve dúvidas quanto à utilidade da informação. Não há frustração à expectativa da importação dos produtos Sectokil Loção e Sectokil Shampoo, já que a suposta consulta tratou genericamente de produtos para piolhos. O nexo causal entre a conduta da Anvisa e a perda financeira decorrente da importação dos produtos Sectokil Loção e Sectokil Shampoo não foi comprovada nos autos. Por conseguinte, não há que se falar em responsabilidade civil no caso concreto. A sentença deve, portanto, ser parcialmente reformada para julgar o pedido autoral de ressarcimento improcedente e deve ser mantida quanto à impossibilidade de afastamento da necessidade de registro dos produtos Sectokil Loção e Sectokil Shampoo. IV. Em face do exposto, nego provimento ao recurso adesivo e dou provimento à apelação da Anvisa e à remessa necessária, tida por interposta, para julgar o pedido autoral improcedente. Condeno a parte autora a pagar honorários de sucumbência no montante de 10% sobre o valor da causa (art. 20, § 3º, do CPC). Custas ex lege. Sem honorários recursais, eis que a sentença foi proferida na vigência do Código de Processo Civil de 1973. É como voto. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0064281-96.2011.4.01.3400 Processo Referência: 0064281-96.2011.4.01.3400 APELANTE: MICREX IMPORTADORA E DISTRIBUIDORA LTDA - EPP, AGENCIA NACIONAL DE VIGILANCIA SANITARIA APELADO: AGENCIA NACIONAL DE VIGILANCIA SANITARIA, MICREX IMPORTADORA E DISTRIBUIDORA LTDA - EPP EMENTA ADMINISTRATIVO. REGULATÓRIO. SANITÁRIO. APELAÇÃO CÍVEL E RECURSO ADESIVO. AÇÃO DE PROCEDIMENTO ORDINÁRIO. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). IMPORTAÇÃO DE PRODUTO FORMULADO COM BASE EM DIMETICONA. COMBATE A PIOLHOS E LÊNDEAS. CLASSIFICAÇÃO COMO MEDICAMENTO. NECESSIDADE DE REGISTRO PRÉVIO NA ANVISA. RESPONSABILIDADE CIVIL. INEXISTÊNCIA DE NEXO CAUSAL. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO INDENIZATÓRIO. APELAÇÃO DA ANVISA PROVIDA. APELAÇÃO ADESIVA NÃO PROVIDA. REMESSA NECESSÁRIA PARCIALMENTE PROVIDA. 1. Apelação e recurso adesivo contra sentença que julgou parcialmente procedente o pedido para condenação da Anvisa ao ressarcimento de valor referente à importação de produtos. Recurso adesivo da parte autora requerendo o reconhecimento do direito ao ressarcimento por danos materiais com base em suposta falha da Anvisa ao exigir o registro dos produtos após parecer técnico. 2. A controvérsia consiste em verificar: (i) a necessidade de registro prévio dos produtos Sectokil Loção e Sectokil Shampoo junto à Anvisa, à luz das normas sanitárias aplicáveis; e (ii) a existência de responsabilidade civil da autarquia pelo impedimento da importação, com fundamento na consulta genérica realizada pela parte autora. 3. A exigência de registro dos produtos encontra respaldo nas manifestações técnicas da Anvisa e na aplicação da RDC nº 185/01 e RDC nº 81/08, que classificaram os itens importados como medicamentos em razão da presença da substância dimeticona, que é classificada como medicamento. 4. As decisões da Anvisa têm natureza técnica e prospectiva, sendo legítima a alteração do entendimento regulatório diante de novos elementos relacionados à saúde pública. Deferência regulatória do Poder Judiciário ao controle técnico realizado por agências reguladoras. Precedente do Supremo Tribunal Federal. 5. A consulta feita à Anvisa em 2009 não tratou especificamente dos produtos importados, tampouco resultou de procedimento formal, não sendo suficiente para gerar expectativa legítima quanto à desnecessidade de registro. 6. Inexistente nexo causal entre a atuação da Anvisa e o prejuízo financeiro alegado pela parte autora, não se configurando o dever de indenizar. 7. Apelação da Anvisa e remessa necessária, tida por interposta, providas para reformar a sentença e julgar improcedente o pedido de ressarcimento. Recurso adesivo da parte autora desprovido. ACÓRDÃO Decide a Sexta Turma, à unanimidade, negar provimento ao recurso adesivo e dar provimento à apelação da Anvisa à remessa necessária, tida por interposta, nos termos do voto do Relator. Brasília/DF, data e assinatura eletrônicas. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator
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E. R. L. M. x Caixa Economica Federal - Cef
ID: 327534214
Tribunal: TRF1
Órgão: Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Itaituba-PA
Classe: PROCEDIMENTO COMUM CíVEL
Nº Processo: 1002519-36.2024.4.01.3908
Data de Disponibilização:
17/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
JONATAS THANS DE OLIVEIRA
OAB/PR XXXXXX
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ESTEFANIA GONCALVES BARBOSA COLMANETTI
OAB/DF XXXXXX
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DARLIANE ALVES NOGUEIRA
OAB/MT XXXXXX
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MARCELO PEREIRA E SILVA
OAB/PA XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Subseção Judiciária de Itaituba-PA Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Itaituba-PA SENTENÇA TIPO "A" PROCESSO: 1002519-36.2024.4.01.3908 CLASSE: PROCEDIMENTO COMU…
PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Subseção Judiciária de Itaituba-PA Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Itaituba-PA SENTENÇA TIPO "A" PROCESSO: 1002519-36.2024.4.01.3908 CLASSE: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7) POLO ATIVO: E. R. L. M. REPRESENTANTES POLO ATIVO: DARLIANE ALVES NOGUEIRA - MT27274/O POLO PASSIVO: caixa seguradora e outros REPRESENTANTES POLO PASSIVO: MARCELO PEREIRA E SILVA - PA009047 e JONATAS THANS DE OLIVEIRA - PR92799 SENTENÇA 1. RELATÓRIO Trata-se de ação ordinária ajuizada por EDGAR RODOLFO DA SILVA MELO, menor devidamente representado por seu genitor Erivan da Silva Melo, em desfavor da CAIXA ECONÔMICA FEDERAL - CEF e CAIXA SEGURADORA S/A, objetivando o recebimento de indenização securitária para quitação de financiamento habitacional, bem como indenização por danos morais. Narra o autor que sua mãe, Ritiellen Pereira de Lima, titular de contrato de financiamento habitacional firmado junto à Caixa Econômica Federal, faleceu em 27/05/2024, em decorrência de acidente de trânsito ocorrido em 29/04/2024. Alega que a segurada possuía cobertura obrigatória de seguro de Morte e Invalidez Permanente (MIP), sendo o sinistro comunicado à seguradora, que negou a cobertura sob o fundamento de que a segurada conduzia motocicleta sem possuir Carteira Nacional de Habilitação. A parte autora sustenta a inexistência de prova de que a falecida estivesse na condição de condutora, afirmando que era apenas passageira. Argumenta, ainda, que a negativa foi abusiva e que as cláusulas restritivas de cobertura devem ser interpretadas restritivamente, com aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Requereu tutela de urgência para garantir a manutenção da moradia do autor e evitar danos irreparáveis à sua condição de vida e, ao final, a quitação integral do saldo devedor do financiamento e o pagamento de indenização por danos morais. Juntou documentos. Em 18 de novembro de 2024, o pedido de tutela provisória de urgência foi postergado para após o oferecimento da resposta e foi determinada a citação das requeridas (id. 2158270126). Em sua contestação, a Caixa Econômica Federal alegou, preliminarmente, sua ilegitimidade passiva ad causam, sustentando que não possui responsabilidade pela negativa de cobertura, limitando-se a atuar como agente financeiro. Argumentou, ainda, que inexiste comprovação de que a segurada fosse passageira e que o ônus probatório é do autor. Impugna o pedido de gratuidade de justiça, apontando ausência de comprovação de hipossuficiência. No mérito, defendeu a regularidade de suas condutas contratuais e requereu a improcedência dos pedidos, com condenação do autor em honorários de sucumbência (id. 2160007424). Por sua vez, a Caixa Seguradora S/A, em contestação, sustentou, preliminarmente, a ilegitimidade ativa do autor, pois entende que o pleito deveria ser formulado pelo espólio da segurada, representado por inventariante. Alegou, ainda, sua ilegitimidade passiva quanto aos pedidos relacionados à administração do contrato de financiamento, ressaltando que sua responsabilidade limita-se à regulação de sinistros. No mérito, sustenta a legalidade da negativa de cobertura, uma vez que a apólice prevê exclusão expressa para sinistros ocorridos em condução de veículos sem habilitação, o que configuraria agravamento intencional do risco. Defendeu que a cláusula excludente é válida e não abusiva. Requereu a total improcedência dos pedidos, com condenação do autor em custas e honorários de sucumbência (id. 2168944326). Por meio de ato ordinatório, foi determinada a intimação da parte autora para manifestação acerca das contestações juntadas, bem como especificação das provas a produzir e, após, vistas à parte requerida para indicação de provas (id. 2171253126). Em réplica, o autor rebate as preliminares das rés. Afirmou que herdeiros ou dependentes possuem legitimidade para pleitear a cobertura do seguro MIP, destacando sua finalidade social de garantir a moradia do núcleo familiar. Quanto à legitimidade passiva, sustenta que a seguradora é responsável direta pelo risco, enquanto a CEF, na qualidade de estipulante e intermediária do contrato de seguro habitacional, também deve permanecer no polo passivo. No mérito, reiterou a inexistência de prova concreta de que a segurada conduzia a motocicleta, apontando que o boletim de ocorrência é insuficiente para tanto. Alegou que a cláusula excludente é abusiva e deve ser declarada nula, aplicando-se o Código de Defesa do Consumidor. Sustentou, ainda, a inexistência de agravamento intencional do risco (id. 2172385770). A parte autora manifestou-se pala produção de prova testemunhal, sob a justificativa que traria esclarecimentos fundamentais sobre a dinâmica do acidente e a real condição da segurada no momento do sinistro, com a finalidade de demonstrar a ausência de agravamento do risco por parte da segurada, afastando a justificativa da seguradora para a negativa de cobertura securitária e reforçando que a cláusula excludente invocada não se aplica ao caso (id. 2172386355). A Caixa Seguradora informou que não tinha interesse na realização de audiência de instrução, concordando com o julgamento antecipado da lide (id. 2176250721). A Caixa Econômica Federal reiterou os fundamentos apresentados na contestação e juntou documentos (id. 2177206428 e ss.). A parte autora reiterou o pedido de apreciação da tutela de urgência pleiteada, alegando que o seu genitor foi recentemente notificado para purgar a mora referente ao contrato de financiamento habitacional objeto da presente demanda, tratando-se de etapa formal do procedimento de execução extrajudicial da alienação fiduciária, cujo próximo passo seria a consolidação da propriedade do imóvel em nome da Caixa Econômica Federal e, em seguida, a realização de leilão do bem (id. 2196643362). É o relatório. Passo ao julgamento. 2. FUNDAMENTAÇÃO 2.1. PRODUÇÃO DE PROVAS A parte autora requereu a produção de prova testemunhal, sob a justificativa de que a testemunha apresentaria informação importante para o esclarecimento dos fatos debatidos nos autos. Observa-se que o ponto central a ser dirimido resume-se em analisar se o autor possui direito à indenização securitária por morte de sua genitora, ainda que esta tenha falecido em razão de acidente automobilístico quando pilotava motocicleta para o qual não estava habilitada. De um lado, o autor entende que teria direito ao recebimento do seguro por conta do evento morte, considerando que não há qualquer menção sobre quem estava conduzindo a motocicleta no momento do acidente. De outro, as requeridas alegam que o fato de a falecido estar pilotando motocicleta sem habilitação no momento do acidente afastaria o direito à indenização. Dessa forma, para o desfecho da lide, basta o pronunciamento judicial no sentido de reconhecer ou não o direito vindicado após o exame das circunstâncias apresentadas no caso concreto. Logo, indefiro a prova requerida pela parte autora por não vislumbrar a necessidade de sua produção. 2.2. PRELIMINARES 2.2.1. DO ÔNUS DA PROVA De acordo com o art. 373, do CPC, o ônus probatório incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito, e ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor Assim, no caso em questão, para o recebimento de prêmio do seguro basta ao segurado comprovar, nos termos do artigo citado, a contratação do seguro, a ocorrência do sinistro e o efetivo prejuízo. À seguradora cabe comprovar as circunstâncias modificativas ou extintivas do direito autoral, demonstrando a existência de ocorrência apta a ensejar a exclusão do risco, ou seja, o motivo pelo qual o evento não estaria abrangido pela cobertura. Nesse sentido, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria, decidiu que, nas demandas sobre indenização securitária, deve-se aplicar a regra geral de distribuição estática do ônus da prova, recaindo sobre a seguradora o ônus de comprovar as causas excludentes da cobertura. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. VIOLAÇÃO DE DISPOSITIVOS LEGAIS. ART. 757 DO CC. LEGÍTIMA EXPECTATIVA DO SEGURADO. ART. 765 DO CC. CLÁUSULAS CONTRADITÓRIAS. INTERPRETAÇÃO MAIS FAVORÁVEL AO ADERENTE. ART. 373 DO CPC. ÔNUS DA PROVA. DISTRIBUIÇÃO ESTÁTICA. CAUSA EXTINTIVA DO DIREITO DO AUTOR. ÔNUS ATRIBUÍDO AO RÉU. REFORMA DO ACÓRDÃO RECORRIDO. 1. Ação de cobrança de indenização securitária, ajuizada em 25/9/2020, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 10/10/2023 e concluso ao gabinete em 14/6/2024. 2. O propósito recursal consiste em decidir se (I) a existência de cláusulas contratuais contraditórias acarreta a adoção da interpretação mais favorável ao aderente, e (II) nas demandas em que haja distribuição estática do ônus da prova, é dever da seguradora comprovar as causas excludentes da cobertura securitária. 3. Estabelece art. 757 do Código Civil que, “pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados”. Quanto ao pacto celebrado, o art. 765 do mesmo diploma legal prevê que “o segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”. 4. O contrato de seguro é, por excelência, um contrato de boa-fé, pressupondo-se confiança mútua entre os contratantes. Por meio dele, exige-se o dever de informação sobre as especificidades das cláusulas contratuais, bem como a seleção dos riscos predeterminados pelo segurador, com clareza acerca da cobertura. 5. A elaboração e interpretação do conteúdo das cláusulas do contrato de seguro deve ser realizada de acordo com a boa-fé, não podendo, ao mesmo tempo, exceder os riscos predeterminados e tampouco frustrar a legítima expectativa do contrato ou desnaturalizar a sua garantia. 6. O art. 432 do CC dispõe que “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”. Mais recentemente, o §1º, IV, do art. 113, incluído pela Lei 13.874/2019, ampliou o alcance do princípio "contra proferentem", ao estabelecer que a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, quando identificável. 7. Nas demandas de indenização securitária em que não há partes vulneráveis ou hipossuficientes e que não incidem peculiaridades relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário (§§ 1º ou 3º do art. 373 do CPC) deve-se aplicar a regra geral de distribuição estática do ônus da prova. 8. A partir da regra de distribuição estática, o art. 373 do CPC estabelece que o ônus probatório incumbe: ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; e ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. 9. No recurso sob julgamento, a partir do contexto fático delineado pelas instâncias ordinárias, verifica-se (I) que existem cláusulas contraditórias, as quais devem ser interpretadas em favor do aderente (recorrente); e (II) que o réu (recorrido) não se desincumbiu do ônus de comprovar a causa extintiva do direito do autor (recorrente). 10. Recurso especial conhecido e provido para reformar o acórdão estadual, julgando procedentes os pedidos autorais para condenar o recorrido ao pagamento da indenização no valor do equipamento segurado e das despesas efetuadas com a remoção, manutenção e guarda do salvado, subtraído o montante referente à sua comercialização. (STJ - REsp: 2150776 SP 2023/0197978-7, Relator.: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 03/09/2024, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/09/2024). (grifos acrescidos) Assim, aplicável ao caso em análise a regra de distribuição estativa do ônus da prova, conforme estabelecido pelo art. 373, do CPC. 2.2.2. DA LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM Segundo a jurisprudência do STJ, que adere à teoria da asserção, “a presença das condições da ação, entre elas a legitimidade ativa, deve ser apreciada à luz da narrativa contida na petição inicial, não se confundindo com o exame do direito material objeto da ação, a ser enfrentado mediante confronto dos elementos de fato e de prova apresentados pelas partes em litígio” (AgInt no RESP 1.710.937/DF, 3a Turma, DJe de 18/10/2019). Nesse sentido, no caso, verifica-se a legitimidade ativa do autor que, na qualidade de herdeiro, possui interesse na quitação do saldo devedor do financiamento habitacional, tendo em vista que a existência da dívida não quitada poderá comprometer seu direito fundamental à moradia. Ademais, a transmissão da herança aos herdeiros independe do ajuizamento de inventário, na medida em que esta transmite-se imediatamente com a abertura da sucessão pelo óbito do de cujus, consoante determina o art. 1.784, do Código Civil: “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.” Nesse sentido: INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. R. sentença apelada que condenou a construtora apelante na entrega das chaves do imóvel, impondo à seguradora o pagamento integral do saldo devedor existente em face da vendedora e da instituição financeira. APELAÇÃO DA CONSTRUTORA ré aduzindo a ilegitimidade ativa dos autores, sob o fundamento de que o ajuizamento da ação estaria condicionado à prévia abertura de inventário. Ação diretamente ajuizada pelos herdeiros do comprador buscando a posse do imóvel. Transmissão da herança aos herdeiros que independe do ajuizamento de inventário, na medida em que esta transmite-se imediatamente com a abertura da sucessão, consoante determina o art. 1.784 do Código Civil . Autores que ostentam interesse e legitimidade para o ajuizamento da demanda, na forma do art. 17 do CPC. Preliminar rejeitada. Tese de ilegitimidade apassiva. Condenação da vendedora na transferência da posse aos herdeiros, por ela retida, evidenciando-se sua legitimidade passiva ad causam. Preliminar rejeitada. Teórica impossibilidade de ingresso dos herdeiros na posse do imóvel pela existência de saldo devedor perante a construtora. Hipótese dos autos na qual já houve o financiamento do saldo devedor por instituição financeira, ocasião em que a vendedora expressamente transmitiu a posse ao comprador . Compromisso de compra e venda que não prevê a retomada da posse do imóvel, mas somente a negativação do nome civil do devedor. Vendedora que exigiu a constituição de fiador para garantir o pagamento do saldo não alcançado pelo financiamento. Incabível a retenção do imóvel pela vendedora, a quem compete a cobrança do alegado saldo devedor por meio de ação própria. APELAÇÃO DA SEGURADORA arguindo a carência de ação . Ausência de pedido administrativo que não descaracteriza o interesse processual dos autores, na medida em que a seguradora ofertou contestação oferecendo resistência ao pagamento da indenização securitária. Teórica perda do direito indenizatório pela ausência de comunicação do sinistro e descumprimento de obrigação contratual. Aplicação do art. 771 do Código Civil que pressupõe a possibilidade de minimização do dano por sua comunicação imediata e a má-fé do segurado, circunstâncias ausentes na hipótese dos autos . Apólice que impõe ao estipulante a obrigação de comunicar o sinistro e apresentar documentos. Ausência de descumprimento por parte dos autores. R. sentença apelada que determinou o pagamento pela seguradora do teórico saldo devedor existente perante a construtora . Cobertura da apólice que está limitada ao saldo devedor do financiamento imobiliário existente em face da instituição financeira estipulante. Indenização fixada que comporta modulação. Apelação da construtora desprovida, apelação da seguradora provida em parte. (TJ-SP - AC: 10049096220188260576 SP 1004909-62 .2018.8.26.0576, Relator.: Rômolo Russo, Data de Julgamento: 15/09/2021, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/09/2021). (grifos acrescidos) Assim, rejeito a preliminar em questão. 2.2.3. DA LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM A Caixa Seguradora S/A e a Caixa Econômica Federal possuem legitimidade para figurarem como rés na ação em que se discute o direito à quitação do financiamento habitacional, em razão de morte ou invalidez do mutuário, com cobertura do saldo devedor pelo seguro obrigatório. Nesse contexto, ambas devem compor o polo passivo do presente processo. A Caixa Econômica Federal, por ser responsável pela cobrança das parcelas mensais do contrato de financiamento habitacional, deve ser notificada sobre a ocorrência do sinistro e incumbir-se de receber o valor do seguro, aplicando-o na quitação ou amortização do débito, promovendo a baixa do financiamento habitacional. Já a seguradora tem o dever de verificar se o segurado atende aos requisitos para liberação da cobertura e, em caso afirmativo, repassar a indenização ao agente financeiro. Nesse sentido, segue precedente do TRF1 a seguir colacionado: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO (SFH). CONTRATO DE MÚTUO. COBERTURA SECURITÁRIA. INVALIDEZ PERMANENTE. LEGITIMIDADE PASSIVA DA SEGURADORA E DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL (CEF). INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SENTENÇA CONFIRMADA. APELAÇÕES DESPROVIDAS. 1. Segundo já decidiu este Tribunal, "A Caixa Seguradora S/A e Caixa Econômica Federal possuem legitimidade "passiva" para ocupar o pólo passivo de ação que busca a "cobertura" securitária do financiamento de imóvel adquirido pelas normas do Sistema Financeiro da Habitação e que cumula pedido de ressarcimento de prestações pagas a partir do sinistro, bem como o pagamento em dobro" ( AC 0032233-24 .2006.4.01.3800/MG Relator Desembargador Federal João Batista Moreira Quinta Turma, e-DJF1 de 26 .04.2013). 2. Caso em que tanto a CEF quanto a seguradora devem integrar o polo passivo da lide. A primeira, porque é dela a responsabilidade pela cobrança dos encargos mensais, relativamente ao contrato de financiamento habitacional, sendo certo que ela é quem deve ser informada a respeito de algum sinistro, estando encarregada de receber o valor do seguro e a aplicá-lo na solução ou na amortização da dívida, com baixa na hipoteca, mormente quando há pedido de restituição de encargos descontados após o sinistro. A segunda tem a obrigação de verificar se a parte preenche as condições necessárias à liberação da apólice de seguro, e, caso positivo, repassar a referida quantia ao agente financeiro. (...) (TRF-1 - AC: 00191028520104013300, Relator.: DESEMBARGADOR FEDERAL DANIEL PAES RIBEIRO, Data de Julgamento: 30/01/2023, 6ª Turma, Data de Publicação: PJe 07/02/2023 PAG PJe 07/02/2023 PAG) (grifos acrescidos) Afasto, pois, a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam suscitada pelas requeridas. 2.2.4. DA IMPUGNAÇÃO À GRATUIDADE DA JUSTIÇA Consoante o entendimento do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o benefício da justiça gratuita deve ser concedido à parte que perceba, mensalmente, valores líquidos de até 10 (dez) salários-mínimos. Confira-se o teor do seguinte julgado: ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. FGTS. CONVERSÃO DE REGIME JURÍDICO . GRATUIDADE DA JUSTIÇA. DEMONSTRAÇÃO DE HIPOSSUFICIÊNCIA. DECLARAÇÃO DE PRÓPRIO PUNHO. DESNECESSIDADE . PRESSUPOSTOS PARA O DEFERIMENTO. APELAÇÃO DO AUTOR PROVIDA. 1. A jurisprudência desta Corte possui entendimento no sentido de que o deferimento do benefício da gratuidade da justiça pressupõe renda limitada ao valor de 10 (dez) salários mínimos ( AC 0063148-77 .2015.4.01.3400, Desembargador Federal Souza Prudente, TRF1 - Quinta Turma, e-DJF1 11/07/2019; AC 0046755-82 .2012.4.01.3400, Desembargador Federal Daniel Paes Ribeiro, TRF1 - Sexta Turma, e-DJF1 25/03/2019). 2. Para o deferimento do pedido de gratuidade de justiça, a afirmação nos autos, pelo autor ou por advogado legalmente constituído, prescinde de declaração de próprio punho pela parte hipossuficiente, ressaltando que a declaração possui presunção de veracidade iuris tantum, cabendo sua desconstituição por prova em contrário ( AC 0002072-29.2013.4 .01.3301, Desembargadora Federal Gilda Sigmaringa Seixas, TRF1 - Primeira Turma, e-DJF1 15/12/2017; AC 0006743-49.2015.4 .01.3811, Desembargador Federal Souza Prudente, Trf1 - Quinta Turma, e-DJF1 29/05/2018). 3. Na espécie dos autos, a renda da parte autora em outubro de 2019 era de R$ 5 .768,01 (cinco mil, setecentos e sessenta e oito reais e um centavo), ou seja, aquém do limite de 10 (dez) salários mínimos (Id. 187460202 - fl. 23). Considerando a ausência de indicação pela parte ré de argumentos concretos e hábeis que, em tese, poderiam infirmar a alegada hipossuficiência, somadas à renda mensal inferior a 10 (dez) salários mínimos, evidencia-se a hipótese de concessão dos benefícios da gratuidade da justiça . 4. Apelação do autor a que se dá provimento para deferir a gratuidade da justiça. (TRF-1 - AC: 10011023820214014301, Relator.: DESEMBARGADORA FEDERAL DANIELE MARANHÃO COSTA, Data de Julgamento: 15/03/2023, 5ª Turma, Data de Publicação: PJe 20/03/2023 PAG PJe 20/03/2023 PAG) (grifos acrescidos). No caso em análise, a parte requerida não logrou comprovar que o autor percebe remuneração líquida acima de 10 (dez) salários-mínimos. Desse modo, rejeito a impugnação à justiça gratuita. 2.3. MÉRITO 2.3.1. DO DIREITO À INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA Cinge-se a questão em analisar o direito do autor em ser beneficiado com a indenização securitária em razão do falecimento de sua genitora, Sra. Ritiellen Pereira de Lima. O pedido foi negado pela seguradora sob alegação de que “no momento do acidente a segurada conduzia veículo no qual não tinha permissão para dirigir” (id. 2151769706 - Pág. 36). Fundamenta a negativa na cláusula de exclusão assim redigida: CLÁUSULA 8 - RISCOS EXCLUÍDOS DAS COBERTURAS DE NATUREZA CORPORAIS 8.1. Estão excluídos da cobertura do presente seguro os seguintes riscos de natureza corporal: (...) 0) A morte ou a invalidez total e permanente resultante de prática, por parte do Segurado, inclusive a condução ou pilotagem de veículos terrestres, aquáticos, aéreos e similares sem a devida habilitação legal ou com habilitação vencida e não renovada, a qualquer título. Insurge-se a parte autora contra a negativa, alegando que não há qualquer prova de que a falecida estivesse na condução da motocicleta, não sendo razoável que a seguradora faça essa dedução, sem qualquer evidência concreta. Nos contratos habitacionais, a contratação do seguro é obrigatória, uma vez que se busca garantir o objeto do contrato, com o pagamento do saldo devedor, nas hipóteses de ocorrência de morte ou invalidez permanente do mutuário. Vale dizer que, nesses casos, o seguro busca a proteção não apenas do segurado, mas também do próprio crédito, em benefício do sistema. Ocorrendo o sinistro por morte, cabe à seguradora quitar integralmente o saldo devedor, ou na proporção correspondente à participação do mutuário falecido na composição da renda familiar declarada, sob pena de esvaziar a eficácia do contrato de seguro obrigatório. Ao mutuário compete o pagamento regular das prestações e a comunicação do sinistro ao agente financeiro. No que se refere ao contrato de seguro, admite-se, em princípio, a existência de cláusulas que restrinjam ou limitem o pagamento da indenização, como nos casos em que a morte decorre de doença preexistente não declarada pelo segurado na contratação. Contudo, tais cláusulas restritivas só são válidas se não contrariarem normas legais ou desvirtuem a finalidade essencial do contrato de seguro. Dispõe o art. 768, do Código Civil, que “o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”. Sobre a interpretação desse dispositivo, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido que “a exoneração do dever da seguradora de pagamento da indenização do seguro de vida somente ocorrerá se a conduta direta do segurado configurar efetivo agravamento (culposo ou doloso) do risco objeto da cobertura contratada, consubstanciando causa determinante para a ocorrência do sinistro” (STJ - AgRg no REsp: 1483349 MA 2014/0153003-4, Relator.: Ministro MARCO BUZZI, Data de Julgamento: 25/11/2014, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/12/2014). Nesse sentido, em relação ao seguro de vida, a jurisprudência tem firmado entendimento de que a simples ausência de habilitação do condutor do veículo não caracteriza, por si só, agravamento do risco segurado, caso não haja prova de vínculo causal entre a falta de habilitação e o acidente que resultou na morte do segurado: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE COBRANÇA DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA EM CASO DE MORTE DE SEGURADO CAUSADA POR ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO - DECISÃO MONOCRÁTICA NEGANDO SEGUIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. INSURGÊNCIA DA SEGURADORA. 1. Perda do direito à garantia do segurado em caso de agravamento intencional do risco objeto do contrato de seguro (artigo 768 do Código Civil) . 1.1. A exoneração do dever da seguradora de pagamento da indenização do seguro de vida somente ocorrerá se a conduta direta do segurado configurar efetivo agravamento (culposo ou doloso) do risco objeto da cobertura contratada, consubstanciando causa determinante para a ocorrência do sinistro. Precedentes . 1.2. Nesse contexto, sobressai a jurisprudência das Turmas de Direito Privado no sentido de que a ausência de habilitação do segurado para dirigir veículo (infração administrativa tipificada no artigo 162 do Código Brasileiro de Trânsito) não configura, por si só, o agravamento intencional do risco do contrato de seguro de vida, apto a afastar a obrigação de indenizar da seguradora. 1 .3. Hipótese em que o Tribunal de origem, mantendo a sentença de procedência, considerou devida a indenização securitária, sob o fundamento de não ter sido demonstrado, pela seguradora, que a ausência da habilitação do segurado contribuíra, decisivamente, para a ocorrência do sinistro. Consonância entre o acórdão estadual e a jurisprudência desta Corte. Incidência da Súmula 83/STJ . 2. Agravo regimental desprovido. (STJ - AgRg no REsp: 1483349 MA 2014/0153003-4, Relator.: Ministro MARCO BUZZI, Data de Julgamento: 25/11/2014, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/12/2014) (grifos acrescidos) CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE PROCEDIMENTO ORDINÁRIO. SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. SEGURO HABITACIONAL . ÓBITO DO MUTUÁRIO EM ACIDENTE DE TRÂNSITO. LEGITIMIDADE ATIVA DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE. INEXISTÊNCIA DE HABILITAÇÃO PARA GUIAR O VEÍCULO ENVOLVIDO NO SINISTRO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE QUE RELAÇÃO DE CAUSALIDADE ENTRE A INABILITAÇÃO E O SINISTRO OCORRIDO . COBERTURA SECURITÁRIA. CABIMENTO. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA. REJEIÇÃO . I O cônjuge supérstite, bem assim, a companheira decorrente de união estável comprovada nos autos, tem legitimidade ativa para postular a cobertura securitária, para fins de quitação de contrato de mútuo habitacional, em razão do óbito do seu esposo. II De outra senda, na hipótese dos autos, não se encontrando em discussão a transferência de domínio do imóvel segurado, mas, tão somente, a declaração de quitação do saldo remanescente do contrato de financiamento imobiliário descrito na inicial, cumulado com pleito indenizatório a título de danos morais, em virtude do sinistro, com resultado morte do mutuário, com quem a autora mantinha união estável, conforme prova documental carreada para os presentes autos, a demanda poderá ser ajuizada pelos seus herdeiros regulares, em litisconsórcio ativo, ou, individualmente, por qualquer um deles, como no caso. Rejeição da preliminar de ilegitimidade ativa da demandante, suscitada pela Caixa Seguradora S/A, sob esse fundamento. III A orientação jurisprudencial já sedimentada no âmbito de nossos tribunais é no sentido de que a exoneração do dever da seguradora de pagamento da indenização do seguro de vida somente ocorrerá se a conduta direta do segurado configurar efetivo agravamento (culposo ou doloso) do risco objeto da cobertura contratada, consubstanciando causa determinante para a ocorrência do sinistro e de que a ausência de habilitação do segurado para dirigir veículo (infração administrativa tipificada no artigo 162 do Código Brasileiro de Trânsito) não configura, por si só, o agravamento intencional do risco do contrato de seguro de vida, apto a afastar a obrigação de indenizar da seguradora (AgRg no REsp 1483349/MA, Rel . Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 02/12/2014) IV No caso em exame, não demonstrada que a ausência de habilitação legal, por parte do segurado, para condução do veículo envolvido no sinistro de que resultou a sua morte, afigura-se cabível a cobertura securitária e consequente quitação integral do saldo devedor do contrato de financiamento celebrado com as promovidas Caixa Econômica Federal e Caixa Seguradora S/A. V Apelação desprovida. Sentença confirmada. A verba honorária, arbitrada pelo juízo monocrático, em desfavor das promovidas, em quantia correspondente a 10% (dez por cento) do valor da condenação, resta majorada no percentual de 2% (dois por cento), totalizando 12% (doze) por cento sobre o referido valor, devidamente atualizado, nos termos do § 11 do art . 85 do CPC vigente. (TRF-1 - AC: 10063373020184013803, Relator.: DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, Data de Julgamento: 31/08/2022, 5ª Turma, Data de Publicação: PJe 01/09/2022 PAG PJe 01/09/2022 PAG) (grifos acrescidos) CIVIL. APELAÇÕES. CONTRATO DE MÚTUO HABITACIONAL. PRETENSÃO DE LIQUIDAÇÃO DO SALDO DEVEDOR COM A COBERTURA SECURITÁRIA. ÓBITO DO MUTUÁRIO EM ACIDENTE DE TRÂNSITO. LEGITIMIDADE ATIVA DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE. DE CUJUS NÃO HABILITADO PARA GUIAR O VEÍCULO ENVOLVIDO NO SINISTRO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE QUE O SINISTRO DECORREU DA AUSÊNCIA DE HABILITAÇÃO DO MUTUÁRIO. COLISÃO COM ANIMAL SOLTO NA PISTA. CONDIÇÕES METEOROLÓGICAS DESFAVORÁVEIS. NÃO PROVIMENTO. 1. Apelações interpostas pela CEF e pela CAIXA SEGURADORA S/A, em face de sentença que julgou procedente o pedido deduzido pela autora, condenando as demandadas a liquidarem o saldo devedor de contrato de mútuo habitacional firmado por ela e seu esposo, com base em contrato de seguro de vida, em razão do óbito do mutuário. 2. O cônjuge supérstite tem legitimidade ativa para postular a cobertura securitária, para fins de quitação de contrato de mútuo habitacional, em razão do óbito do seu esposo, tendo ambos subscrito o financiamento. Rejeição da preliminar de ilegitimidade ativaad causam . 3. A cobertura securitária fora negada, porque o falecimento decorreu de acidente em rodovia, quando a motocicleta dirigida pelo mutuário se chocou com animal solto na pista, não tendo o condutor habilitação para dirigir esse tipo de veículo. 4. Na Cláusula Vigésima do contrato de mútuo habitacional, previu-se que, "durante a vigência deste contrato e até a liquidação da dívida, o (s) DEVEDOR (ES) concorda (m), e assim se obrigam, em manter e pagar os prêmios de seguro acrescidos de eventuais tributos, de acordo com estipulado na Apólice de Seguro contratada por livre escolha [ ...] MIP - morte decorrente de causas naturais ou acidentais e invalidez permanente ocorrida em data posterior à data da assinatura do contrato de financiamento do imóvel, causada por acidente pessoal ou doença, que determine a incapacidade total e permanente para o exercício da atividade laborativa principal do segurado, no momento do sinistro". No Parágrafo Terceiro dessa Cláusula, constou que: "A cobertura do seguro dar-se-á a partir da assinatura deste instrumento, regendo-se pelas cláusulas e condições constantes da Apólice, as quais foram pactuadas pelo (s) DEVEDOR (ES) e aceitas pela CAIXA, especialmente as de exclusão de cobertura securitária e forma de recálculo de prêmios de seguro [...]". No Parágrafo Quinto da mesma Cláusula, restou destacado que: "Em sendo contratada apólice de seguro oferecida pela CAIXA, o (s) DEVEDOR (ES) declara (m) que recebeu (ram), juntamente com o presente instrumento, cópia das condições especiais da apólice estipulada pela CAIXA devidamente rubricadas pelas partes, tomando ciência de todas as condições pactuadas". As páginas do contrato alusivas a essas regras estão devidamente subscritas pelos mutuários, assim como as relativas às condições do seguro. 5. Segundo a Cláusula Oitava da apólice de seguro, estão excluídas da cobertura de natureza corporal "a morte ou a invalidez total e permanente resultante de prática, por parte do Segurado, de atos contrários à lei, inclusive a condução ou pilotagem de veículos terrestres, aquáticos, aéreos e similares sem a devida habilitação legal ou com habilitação vencida e não renovada, a qualquer título". 6. O art. 768 do CC reza que "o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato" . 7. Interpretando esse dispositivo, o STJ vem entendendo que: "1.1. A exoneração do dever da seguradora de pagamento da indenização do seguro de vida somente ocorrerá se a conduta direta do segurado configurar efetivo agravamento (culposo ou doloso) do risco objeto da cobertura contratada, consubstanciando causa determinante para a ocorrência do sinistro [ ...] 1.2. Nesse contexto, sobressai a jurisprudência das Turmas de Direito Privado no sentido de que a ausência de habilitação do segurado para dirigir veículo (infração administrativa tipificada no artigo 162 do Código Brasileiro de Trânsito) não configura, por si só, o agravamento intencional do risco do contrato de seguro de vida, apto a afastar a obrigação de indenizar da seguradora" (AgRg no REsp nº 1483349/MA, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 02/12/2014) . No mesmo sentido, outro precedente do STJ: AgInt no AREsp 990.103/MT, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/02/2017, DJe 09/02/2017. 8 . No caso, é devida a indenização securitária, considerando que as demandadas não demonstraram que a ausência de habilitação do segurado contribuiu, decisivamente, para a ocorrência do sinistro. Com efeito, o acidente que levou o mutuário a óbito derivou de razões alheias à sua vontade, haja vista que, guiando a sua motocicleta, foi surpreendido com um cavalo solto na pista de rolamento, com o qual colidiu, sendo certo que as condições meteorológicas no momento do acidente não favoreciam a percepção do animal na via e, portanto, não davam condições ao motorista de desviar ou manobrar para evitar a colisão (segundo o BAT, havia nevoeiro/neblina). 9. Apelações não providas. (TRF-5 - AC: 08024365120154058000, Relator.: Desembargador Federal Élio Wanderley de Siqueira Filho, Data de Julgamento: 08/03/2018, 1ª Turma) (grifos acrescidos) Conforme destacado, estabelece o art. 373, do CPC, que o ônus probatório incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito, e ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Dessa feita, para a obtenção do prêmio estipulado na apólice de seguro, incumbia ao segurado/autor provar, nos termos do artigo 373, I, do Código de Processo Civil, a contratação do seguro, a ocorrência do sinistro e o efetivo prejuízo. Tais elementos restaram-se incontroversos nos autos. A controvérsia cinge-se quanto à ocorrência de fato impeditivo do direito do segurado/autor, cujo ônus probatório compete à parte requerida, nos termos do artigo 373, II, do CPC. Sob essa perspectiva, verifica-se que, no caso dos autos, não foram apresentadas provas indicativas da responsabilidade da segurada pelo acidente que culminou com a sua morte. Com efeito, as requeridas limitaram-se a sustentar a ausência de habilitação para a condução de motocicleta, sem acrescer outros fatores que pudessem caracterizar o incremento do risco. Ocorre que sequer há provas de que Ritiellen Pereira de Lima estava pilotando a motocicleta. Há apenas suposição decorrente do depoimento realizado pelo Sr. Rosiel Paiva Pereira, pai da mutuária, que informou em sede policial que suas filhas não são habilitadas, mas conduziam há tempos (id. 2151769706 - Pág. 43). De mais a mais, ainda que se admita que Ritiellen Pereira de Lima estava pilotando a motocicleta sem habilitação e que exista cláusula expressa prevendo a exclusão de cobertura nessa situação, essa previsão, por si só, não é suficiente para legitimar a recusa do pagamento da indenização securitária, sendo indispensável comprovar que a hipótese de exclusão prevista contratualmente tenha sido, de fato, o fator determinante para a ocorrência do sinistro. Importa ressaltar, para fins de argumentação, que o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 620, com o seguinte enunciado: “A embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida.” Os precedentes que embasaram essa súmula consolidam o entendimento de que a simples condição de embriaguez do segurado não afasta, por si só, o dever da seguradora de pagar a indenização contratada, sendo imprescindível a demonstração de que houve efetivo agravamento do risco em razão da embriaguez, servindo esta como causa determinante para o sinistro. Portanto, nota-se que a parte requerida não se desincumbiu satisfatoriamente de seu ônus probatório, razão pela qual se configura ilegítima a recusa da seguradora quanto ao pagamento do prêmio objeto do litígio, fazendo jus o autor à cobertura securitária pretendida para a quitação do financiamento habitacional. Destaca-se que cabe à Caixa Seguradora S.A, nos termos da Cláusula 22, item 22.1, da Apólice n. 1061000000019 (id. 2168945547), efetuar o pagamento da indenização securitária diretamente à CEF, a quem caberá aplicar os valores na solução da dívida. 2.3.2. DO PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS A indenização por danos morais prevista no art. 5º, V, da Constituição Federal, visa compensar lesão causada à imagem, à honra ou à estética da pessoa que sofreu o dano, mediante pagamento de um valor estimado em pecúnia. Desse modo, deve ser analisado o caso concreto para aferir se houve a ocorrência de algum ato ilícito, se esse ato causou dano e, ainda, se há nexo causal entre o ato e o dano, que implicaria responsabilidade da parte requerida em reparar os prejuízos resultantes do procedimento em sua atuação administrativa. Embora assista ao autor o direito ao recebimento da indenização securitária, não há fundamento para acolher o pedido de condenação das requeridas ao pagamento de indenização por danos morais. Isso porque, em regra, o simples inadimplemento de obrigação contratual não configura, por si só, violação a direitos de personalidade que justifique reparação extrapatrimonial. Apesar das alegações apresentadas, não se verifica qualquer conduta por parte das requeridas que tenha atingido a honra, a imagem ou a esfera íntima do autor, tornando inviável o deferimento de indenização por supostos danos morais. O dano moral se estabelece quando demonstrada a violação a direito subjetivo e efetivo abalo moral, em razão de procedimento flagrantemente abusivo ou ilegal, situação que, neste caso, não ocorreu. Desse modo, considerando que não restou demonstrado nos autos a violação a direito subjetivo e efetivo abalo moral, o autor não faz jus à indenização por danos morais. 3. DISPOSITIVO Ante o exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido formulado na petição inicial, extinguindo o feito com a resolução do mérito, nos termos do art. 487, I, do Código de Processo Civil, para o fim de condenar as requeridas a efetuarem a quitação integral do saldo devedor do contrato de financiamento habitacional n. 844441542422, desde a data da comunicação do sinistro, mediante o pagamento da indenização securitária. O pagamento da indenização securitária deverá ser feito diretamente pela Caixa Seguradora à Caixa Econômica Federal, consoante item 22.1 da Cláusula 22 da Apólice 106100000019. Tendo em conta o juízo de procedência (cognição exauriente), o direito à proteção à moradia e o tempo de tramitação de eventual recurso, ANTECIPO OS EFEITOS DA TUTELA para que a Caixa Econômica Federal se abstenha de realizar atos expropriatórios até ulterior deliberação judicial. Nos termos do artigo 85, § 2º e 86, do CPC, CONDENO as partes ao pagamento dos honorários advocatícios sucumbenciais, que arbitro em 10% (dez por cento) do valor da condenação, sendo que, deste montante, 80% (oitenta por cento) deverá ser pago pelas requeridas em favor do advogado do autor e 20% (vinte por cento) pelo autor aos advogados das requeridas. Contudo, esta última condenação ficará sobrestada nos moldes e prazo estabelecido no artigo 98, § 3º do CPC, por ser a parte autora beneficiária da justiça gratuita. Custas finais na mesma proporção, sendo a parte autora beneficiária de isenção legal (art. 4º, II, da Lei n. 9.289/96). Considerando o disposto no artigo 1.010, § 3º, do Código de Processo Civil, aqui aplicado subsidiariamente, em havendo interposição de recurso, intime-se a parte ex adversa para ciência da sentença, se ainda não o fez, bem como para apresentar contrarrazões, caso queira, no prazo legal. Decorrido o referido prazo, com ou sem manifestação, remetam-se os autos à Turma Recursal independentemente de novo despacho. Com o trânsito em julgado, arquivem-se os autos. Intimem-se. Cumpra-se. Itaituba, Pará. ALEXSANDER KAIM KAMPHORST Juiz Federal
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Processo nº 1016395-98.2023.4.01.4100
ID: 311912234
Tribunal: TRF1
Órgão: 2ª Vara Federal Cível da SJRO
Classe: PROCEDIMENTO COMUM CíVEL
Nº Processo: 1016395-98.2023.4.01.4100
Data de Disponibilização:
01/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
ITALO HENRIQUE MACENA BARBOZA
OAB/RO XXXXXX
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CAROLINE PONTES BEZERRA
OAB/RO XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Seção Judiciária de Rondônia 2ª Vara Federal Cível da SJRO SENTENÇA TIPO "A" PROCESSO: 1016395-98.2023.4.01.4100 CLASSE: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7) POLO ATIVO: NATA…
PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Seção Judiciária de Rondônia 2ª Vara Federal Cível da SJRO SENTENÇA TIPO "A" PROCESSO: 1016395-98.2023.4.01.4100 CLASSE: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7) POLO ATIVO: NATASHA TAVARES SILVEIRA e outros REPRESENTANTES POLO ATIVO: CAROLINE PONTES BEZERRA - RO9267 e ITALO HENRIQUE MACENA BARBOZA - RO11004 POLO PASSIVO:FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA e outros SENTENÇA I. RELATÓRIO Trata-se de ação de procedimento comum ajuizada por NATASHA TAVARES SILVEIRA em face da UNIÃO FEDERAL e FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDONIA – UNIR, objetivando transferência do curso de Medicina da UFAC para o mesmo curso na UNIR. Alega, em síntese, que: i) é casada com EDUARDO DE OLIVEIRA BRAGA e ambos são genitores de A. T. D. O. B., que tem 04 (quatro) anos de idade e foi diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista; ii) o genitor é estudante do curso de Direito na UNIR e a autora foi aprovada, em 2022, para o curso de Medicina na UFAC (Universidade Federal do Acre), cursando-o desde então; iii) possui artrite reumatoide que ocasionou incapacidade para o trabalho e inviabilizou os deslocamentos frequentes entre Rio Branco e Porto Velho; iv) a ausência da mãe tem impactado negativamente no desenvolvimento psicoemocional da criança; v) tentou realizar transferência para a UNIR, todavia a instituição não tem previsão para realizar processo seletivo de transferência; vi) realizou consulta à UNIR, com base na Lei de Acesso à Informação e constatou a existência de vagas ociosas no curso de Medicina, amparando seu pedido de transferência. A UNIR aduziu que: i) a autora não possui direito à transferência pretendida, tendo em vista que é necessário concorrer às vagas remanescentes por meio de processo seletivo estabelecido em edital específico, não podendo ser aberta exceção fora dos ditames legais, aplicáveis a todos os estudantes; ii) está com Processo Seletivo de Transferência aberto (id. 1834545193). Confirmado que não houve perda superveniente do interesse de agir (id. 1871403652), decisão de id. 1929744670 deferiu o pedido de tutela de urgência e da gratuidade da justiça. A União impugnou a gratuidade da justiça e alegou: ilegitimidade passiva e personalidade jurídica própria da Instituição Federal de Ensino Superior (id. 2031904681). Não foi apresentada réplica. Intimadas, as requeridas informaram não terem provas a produzir e a autor requereu oitiva de testemunhas (ids. 2145131081, 2145279205 e 2145325150). Decisão de id. 2167743994 indeferiu a prova requerida e determinou a intimação das partes para alegações finais. As requeridas reafirmaram as considerações iniciais (ids. 2168556399 e 2172003807) e a autora não se manifestou. II. FUNDAMENTAÇÃO A parte autora objetiva a transferência compulsória entre cursos de medicina de Instituições Federais de Ensino, em razão do estado de saúde próprio e da filha menor de idade. Primeiramente, cumpre-nos analisar: - Ilegitimidade passiva da União Federal Não há que se falar em ilegitimidade passiva da União, visto que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família promovê-la e incentivá-la, nos termos do art. 205 da CF. Assim, a União Federal é responsável pela supervisão e fiscalização das instituições de ensino superior, atuando por meio do Ministério da Educação - MEC, bem como da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior - SERES. Logo, rejeito a preliminar. - Impugnação ao pedido de gratuidade Da análise dos elementos concretos existentes nos autos, verifica-se que não está suficientemente provada a suficiência de recursos da parte impugnada para arcar com o ônus da sucumbência porventura decorrente do processo. O § 3º do art. 99 do CPC prevê que: “Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural”. Somente “havendo elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão da gratuidade” o benefício deve ser indeferido (art. 99, § 2º). Assim, presume-se verdadeira a insuficiência alegada e ante a ausência de prova inequívoca em contrário, ônus do qual a impugnante não se desincumbiu (art. 373, II, c/c § 3º do art. 99, CPC), é de se preservar, no caso, a garantia constitucional de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF). Rejeito a impugnação. Sem mais questões prefaciais, passemos ao mérito. No caso em análise, verifica-se que o mérito já foi suficientemente dirimido pela decisão de id. 1929744670 e, por esse motivo, deve ser adotada como fundamento desta sentença a argumentação expendida naquele decisum: “No caso em foco, verifico a presença da probabilidade do direito alegado. Pretende a parte autora a obtenção de transferência compulsória entre cursos de Medicina de instituições de ensino congêneres (ambas universidades públicas federais), em razão do seu quadro clínico e de sua filha, para que possa ficar próxima da sua família, que reside em Porto Velho. Para tanto, fundamenta seu pedido recorrendo ao direito à saúde, à educação e à integridade familiar, todos constitucionalmente assegurados. A autora é estudante do curso de medicina na Universidade Federal do Acre e requer transferência para a Universidade Federal de Rondônia. Juntou aos autos laudos médicos atestando suas limitações em razão da doença que a acomete (Id. 1820704187), a qual tem inviabilizado o deslocamento frequente entre as cidades, bem como o recente diagnóstico de autismo de sua filha (Id. 1820704184), de 4 anos, que demanda mais cuidados, impactando negativamente a sua ausência no desenvolvimento psicoemocional da criança. De acordo com art. 49 da Lei n. 9.394/1996, é pressuposto necessário para transferência entre instituições de ensino a prévia aprovação em prova de transferência, confira-se: Art. 49. As instituições de educação superior aceitarão a transferência de alunos regulares, para cursos afins, na hipótese de existência de vagas, e mediante processo seletivo. Parágrafo único. As transferências ex officio dar-se-ão na forma da lei. Por sua vez, a transferência de ofício ocorrerá nas hipóteses previstas na Lei n. 9.536/1997, quais sejam: Art. 1º A transferência ex officio a que se refere o parágrafo único do art. 49 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, será efetivada, entre instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino, em qualquer época do ano e independente da existência de vaga, quando se tratar de servidor público federal civil ou militar estudante, ou seu dependente estudante, se requerida em razão de comprovada remoção ou transferência de ofício, que acarrete mudança de domicílio para o município onde se situe a instituição recebedora, ou para localidade mais próxima desta. Parágrafo único. A regra do caput não se aplica quando o interessado na transferência se deslocar para assumir cargo efetivo em razão de concurso público, cargo comissionado ou função de confiança. Entretanto, a questão posta nos autos exige uma interpretação não só no plano da legislação ordinária, mas também em nível constitucional. A Constituição Federal garante a todos o direito fundamental à saúde, à educação e à unidade familiar, previstas nos art. 196, 205 e 226 da CF. Nesse contexto enquadra-se a pretensão da Impetrante, que não postula a transferência de instituição de ensino por mera vontade, mas na demonstrada necessidade de se manter na sua cidade de origem em face do seu estado de saúde, bem como da sua filha menor, recomendando-se a reunião do núcleo familiar na busca de estabilidade necessária ao regular desenvolvimento de seus estudos, encontrando-se, desse modo, o direito postulado pela impetrante afinado com os direitos fundamentais à vida, à saúde e à educação. Assim, respeitado o critério de congeneridade das instituições de ensino envolvidas, na medida em que ambas são públicas, há de se amparar, neste caso, as referidas garantias constitucionais, como forma de proteção à unidade familiar, base fundamental da sociedade, bem como à saúde e educação, sobrepondo qualquer requisito legal, administrativo e/ou burocrático, que possa inibir os valores constitucionalmente assegurados. Conforme demonstrado pela requerente, não há processo de transferência entre as instituições que considere as limitações de saúde suas e de sua filha, de modo que a transferência intentada não importa ofensa à isonomia, já que, tratando-se de situação peculiar, a requerente não está em igualdade de condições para concorrência no processo regular de transferência. Ademais, da medida não resulta qualquer prejuízo às instituições de ensino superior. Nesse sentido, entendimento do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em casos semelhantes: ENSINO SUPERIOR. TRANSFERÊNCIA ENTRE INSTITUIÇÕES DE ENSINO. MOTIVO DE DOENÇA. SITUAÇÃO CONSOLIDADA. 1. Na sentença, confirmada liminar, foi deferida segurança para determinar que os Impetrados procedam a imediata transferência da Impetrante do curso de Medicina no Centro Universitário de Mineiros - Fundação Integrada Municipal de Ensino Superior, em Mineiros/GO para o curso de Medicina na UFMT, com sua matrícula no período correspondente ao equivalente e compatível com sua grade curricular/histórico escolar, permitindo sua frequência às aulas. 2. A sentença está baseada em que: a) (...) a pretensão está calcada na busca de tranquilidade necessária ao regular desenvolvimento de seus estudos, em face do seu estado de saúde, visto que acometida por doenças psíquicas e do trato urinário, sendo necessário um adequado tratamento médico que, sem dúvida, encontrará melhores resultados quando realizado próximo aos seus familiares, notadamente seus genitores que residem na cidade de Cuiabá; b) inexistindo, na espécie, o óbice da não - congeneridade, na medida em que são públicas ambas as instituições de ensino envolvidas, há de se privilegiar, neste caso, as referidas garantias constitucionais, como forma de proteção à família, base fundamental da sociedade, a sobrepor-se a qualquer requisito legal, administrativo e/ou burocrático, que possa inibir o seu regular exercício, não resultando daí qualquer prejuízo à qualquer das instituições de ensino superior, mas, sim, um evidente proveito social. 3. A liminar foi deferida em 11/12/2019, confirmada pela sentença. A impetrante deve estar prestes a concluir o curso de Medicina. O Superior Tribunal de Justiça e esta Corte admitem a preservação da situação consolidada nos casos em que a restauração da estrita legalidade implicaria mais danos sociais do que a manutenção do fato consumado pelo decurso do tempo. STJ: AgRg no REsp. 1.467.314/PR, Relatora Ministra Assusete Magalhães, 2T, DJe 09/09/2015; AgRg no Ag 1.338.054/SC, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1T, DJe 05/11/2015; AgInt no REsp 1.402.122/PB, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1T, DJe 11/10/2016; AgRg no AREsp 460.157/PI, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, 2T, DJe de 26/03/2014; AgRg no REsp 1.467.032/RJ, Relator Ministro Sérgio Kukina, 1T, DJe de 11/11/2014; AgRg no REsp 1.498.315/PB, Relatora Ministra Assusete Magalhães, 2T, DJe 03/09/2015. TRF1: AC 0007905-31.2013.4.01.3300/BA, Relator Desembargador Federal Jirair Aram Meguerian, 5T, e-DJF1 23/01/2019; AC 0005851-38.2013.4.01.3900/PA, Relator Desembargador Federal Daniel Paes Ribeiro, 6T, e-DJF1 04/12/2018; AMS 0029283-09.2014.4.01.3300/BA, Relator Desembargador Federal Souza Prudente, 5T, e-DJF1 06/11/2018. 4. Negado provimento à apelação e à remessa necessária, esta tida por interposta. (TRF-1 - AC: 10146108820194013600, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA, Data de Julgamento: 16/05/2022, 6ª Turma, 18/05/2022) ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE RITO ORDINÁRIO. ENSINO SUPERIOR. MEDICINA. TRANSFERÊNCIA ENTRE INSTITUIÇÕES CONGÊNERES. ESTUDANTE MÃE DE RECÉM-NASCIDO. INCOMPATIBILIDADE DOS ESTUDOS COM OS CUIDADOS COM O FILHO. PRETENSÃO DE RESIDIR PRÓXIMO À FAMÍLIA. DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO, À MATERNIDADE E À PROTEÇÃO DO NÚCLEO FAMILIAR. DEVER DO ESTADO. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. ANULAÇÃO DA SENTENÇA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PROTELATÓRIOS E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. MULTAS AFASTADAS. APELAÇÃO PROVIDA EM PARTE. DEFERIMENTO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA RECURSAL ESPECÍFICA. 1. Controvérsia sobre a existência de direito de estudante matriculada no curso de medicina da Universidade Estadual de Goiás, Campus de Itumbiara, no qual ingressou no 1º semestre de 2020, de transferência para a Universidade Federal do Tocantins - Campus de Palmas, cidade onde reside a sua família e onde alega ser possível obter auxílio para os cuidados com seu filho pequeno, do qual engravidou durante o curso e que nasceu em 24/12/2020. 2. O direito à educação é direito de todos e dever do Estado e da família e deve ser promovido e incentivado com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, devendo esse direito à educação e aprendizado ser garantido ao longo da vida (arts. 205 e 206, IX, da CF). 3. O diploma constitucional também estabelece que a família é a base da nossa sociedade, detentora de especial proteção do Estado, sendo dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (arts. 226 e 227, da CF). O art. 229, por sua vez, dispõe expressamente sobre o dever dos pais de assistir, criar e educar os filhos menores. 4. Levando-se em conta os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil de construção de uma sociedade livre e justa solidária, o direito fundamental à educação, à proteção do núcleo familiar e à maternidade, e a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais previstas também em tratados e convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, forçoso concluir ser imperioso que o Estado proporcione e garanta o direito fundamental ao ensino, por meio da transferência voluntária entre instituições de ensino congêneres e, simultaneamente, como garante constitucional da família, base da sociedade brasileira, permita que os genitores exerçam seu dever de assistência, criação e educação de seus filhos menores, desde que devidamente comprovada a situação excepcional de impossibilidade de conciliação desse múnus constitucional com o direito à educação. (arts. 3º, I, e 5º, § 1º, da CF) 5. Caracteriza cerceamento de defesa a ausência de oportunidade para a parte autora produzir as provas direcionadas a demonstrar os fatos constitutivos de seu direito, não sendo o caso de julgamento antecipado do pedido diante da existência de matéria fática a depender de melhores esclarecimentos. 6. Constatada a necessidade de dilação probatória para realização da perícia técnica pleiteada pela apelante perante o juízo de primeiro grau, a fim de que, por meio de laudo social e psicológico, seja demonstrada sua incapacidade de prestar a assistência e cuidados necessários a seu filho de tenra idade (9 meses) e, concomitantemente, frequentar curso universitário de medicina, com carga horária em tempo integral, em cidade diversa da qual residem seus familiares e de outras provas que sejam aptas a demonstrar a participação do pai na vida do menor, deve ser anulada a sentença com determinação de retorno para abertura da fase de instrução. 7. Considerando o suporte jurídico constitucional, a congeneridade das instituições de ensino e o fato de as aulas presenciais terem se iniciado no dia 08/11/2021, deve ser concedida a antecipação da tutela recursal específica para determinar a transferência e matrícula da autora apelante no curso superior de medicina da Universidade Federal do Tocantins, Campus Palmas. 8. Apelação provida em parte para anular a sentença, com devolução dos autos à origem para devida instrução probatória, de acordo com o devido processo legal, afastando-se a condenação à multa aplicada por litigância de má-fé e à multa fixada em razão do imputado caráter protelatório dos embargos de declaração, e para, de logo, deferir a antecipação da tutela recursal específica para determinar a transferência e matrícula da autora apelante no curso superior de medicina da Universidade Federal do Tocantins, Campus Palmas, a fim de que possa frequentar o curso de medicina até o julgamento final da demanda. (AC 1003649-54.2021.4.01.4300, JUÍZA FEDERAL KÁTIA BALBINO DE CARVALHO FERREIRA (CONV.), TRF1 - QUINTA TURMA, 24/11/2021) Assim, demonstrada a relevância do fundamento do pedido, o risco da demora é patente, já que eventual atraso na implementação da medida concretizará o afastamento familiar que, justamente, a requerente visa a evitar, bem assim prejuízo à situação própria de saúde evidenciada nos autos. No mais, a medida assecuratória não é irreversível, uma vez que passível de cassação. Ante o exposto, DEFIRO o pedido de antecipação dos efeitos da tutela para determinar à ré que proceda à transferência da autora, NATASHA TAVARES SILVEIRA, do curso de Medicina na UFAC para o curso de Medicina na UNIR, com sua matrícula no próximo semestre letivo, compatível com sua grade curricular e histórico escolar, sob pena de aplicação de multa diária, nos termos do art. 139, IV, do CPC, sem prejuízo da responsabilização civil, criminal e administrativa do agente responsável pelo cumprimento da ordem (art. 77 do CPC)”. Ademais, não há nos autos prova de existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, cabível às requeridas, nos termos do art. 373, II, do CPC. Assim, considerando que não surgiu qualquer elemento fático e/ou jurídico capaz de contrariar as premissas fixadas na supramencionada decisão, deve ser mantido o entendimento por seus próprios termos. III – DISPOSITIVO Ante o exposto, confirmo a tutela concedida e determino que a UNIR transfira definitivamente a autora para o seu curso de Medicina, assim como, expeça o diploma após a conclusão desse. Extingo o processo, com resolução do mérito, nos termos do art. 487, I, do Código de Processo Civil. Condeno as requeridas ao pagamento de honorários advocatícios, pro rata, que fixo em 10% (dez por cento) do valor da causa, nos termos do art. 85, § 2º do CPC. Juros e correção monetária pelo Manual de Cálculos da Justiça Federal. Havendo recurso de apelação, à parte recorrida para contrarrazões. Tudo cumprido, remetam-se ao TRF. Esgotadas as vias recursais, intimem-se as partes, nada requerido, arquivem-se os autos. Publique-se. Intimem-se. Cumpra-se. Porto Velho/RO, data da assinatura digital. SHAMYL CIPRIANO Juiz Federal
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Processo nº 1000391-06.2025.4.01.4103
ID: 281015777
Tribunal: TRF1
Órgão: Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Vilhena-RO
Classe: PROCEDIMENTO COMUM CíVEL
Nº Processo: 1000391-06.2025.4.01.4103
Data de Disponibilização:
27/05/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
KATIA COSTA TEODORO
OAB/MG XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Subseção Judiciária de Vilhena-RO Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Vilhena-RO SENTENÇA TIPO "A" PROCESSO: 1000391-06.2025.4.01.4103 CLASSE: PROCEDIMENTO COMUM …
PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Subseção Judiciária de Vilhena-RO Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Vilhena-RO SENTENÇA TIPO "A" PROCESSO: 1000391-06.2025.4.01.4103 CLASSE: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7) POLO ATIVO: JENNIFHER CRISTINA SOUZA SANTANA REPRESENTANTES POLO ATIVO: KATIA COSTA TEODORO - MG76466 POLO PASSIVO:UNIÃO FEDERAL e outros SENTENÇA I. RELATÓRIO Trata-se de ação em rito ordinário ajuizada por Jennifher Cristina Souza Santana em face da União, do Estado de Rondônia e do Município de Vilhena/RO visando, em sede de tutela de urgência, à realização de procedimento cirúrgico. Alega a parte autora, em síntese, que: a) foi diagnostica com um aneurisma cerebral e uma infecção (leucócitos em 15.160 e 92% de segmentados); b) foi entrado em contato com neurocirurgião, via whatasap, que orientou quanto à prescrição e quanto à gravidade do quadro, solicitando vaga com urgência para HRV mantendo-se paciente imóvel; c) em que pese a solicitação de vaga no HRV – Hospital Regional de Vilhena, com UTI, ao contato entre médico da UPA e neurocirurgião Dr. Tiago Albonete, foi informado que no HRV, não seria possível a realização do processo cirúrgico da autora, sendo que aquela cirurgia somente seria feita em Porto Velho, que dista há 700km de Vilhena; d) em avaliação do neurocirurgião, o quadro era grave, sendo que a parte autora não poderia ser transferida para a cidade de Porto Velho, em razão da possibilidade de ser acometida por lesões cerebrais em razão do transporte; e) fora transferida para hospital Cooperar, da rede privada, onde foi novamente avaliada, realizando-se, ainda, uma angiotomografia na qual confirmou-se o aneurisma cerebral roto (rompido), e a prescrição de necessidade de de intervenção cirúrgica para drenagem do aneurismo, sendo a parte autora encaminhada para UTI. Afirma que o valor estimado da cirurgia, com honorários médicos e de equipe assistente, centro cirúrgico, internação em UTI, internação hospitalar, medicamentos e materiais necessários tem uma valor estimado em R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). Haja vista que apenas os materiais possuem orçamentos de R$ 93.397,00 + 4.365,00, sendo que não há empresa especializada que venda esses materiais em Vilhena. Já os honorários médicos ficam no montante de R$ 40.000,00 (quarenta mil reais). Quanto ao hospital, ainda não se é possível mensurar, pois o valor será aferido ao final da internação, contudo, a diária da UTI custa cerca de 7.000,00 (sete mil reais), sendo que é estimado pelo médico uma permanência de 3 a 5 dias de UTI + 3 a 5 dias de internação em quarto, a depender da resposta da paciente. O centro cirúrgico, por fim, está estimado em aproximadamente 10.000,00 (dez mil reais). Requer, assim, bloqueio de recursos públicos suficientes para custeio dos valores integrais do tratamento ou, subsidiariamente, embora seja essa medida menos frutífera e de maior risco à vida da parte autora, determinar aos requeridos a imediata realização do procedimento cirúrgico da parte autora na cidade de Vilhena ou depositar o valor estimado para a cirurgia, uma vez que o procedimento necessitado pela parte autora não é realizado na cidade de Vilhena e a invibiabilidade de sua remoção para a capital, em razão do seu grave estado de saúde, impossibilita que a cirurgia seja feita na capital do estado, onde, supostamente, o serviço seria oferecido. Juntou documentos. Requereu justiça gratuita. Decisão ID 2172059941 deferiu a tutela de urgência a fim de determinar que o Estado de Rondônia e o Município de Vilhena/RO, no prazo de de 24 horas, realizasse o procedimento cirúrgico necessário na cidade de Vilhena/RO. Pontuou-se, ainda: Deverão os entes, diligentemente e administrativamente, comunicar-se com a família para informar a possibilidade de realização na rede pública de saúde. Adverte-se, desde já, que a não realização da cirurgia no prazo dado implicará a realização no Hospital Cooperar onde a parte autora encontra-se hospitalizada, o que será custeado, solidariamente, pelos requeridos. Manifestação do Município de Vilhena/RO ao ID 2172129036 requereu a reconsideração da Decisão a fim de destinar a obrigação de arcar com os custos somente à União e/ou ao Estado de Rondônia, na forma da jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais e mesmo do Supremo Tribunal Federal (Tema 1234, inteligência do item “3” e seguintes e Tema 793). A União manifestou-se ao ID 2172854842. Contestação do Estado de Rondônia ao ID 2173061837. Contestação apresentada pela União ao ID 2174640228 arguiu, preliminarmente, falta de interesse de agir em relação à União. Réplica apresentada pela parte autora ao ID 2178513733, apresentando, ainda, os valores gastos para a realização da cirurgia em rede privada. Ao ID 2182022208 a parte autora requer tutela de urgência para fins de ressarcimento dos valores pagos. Vieram os autos conclusos. É o relatório. Decido. II. FUNDAMENTAÇÃO Ilegitimidade Município de Vilhena e União Nos autos do RE n. 855.178/SE (Tema n. 793/STF, de Repercussão Geral) o Supremo Tribunal Federal consignou que o “tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente”. Os embargos declaratórios opostos nos referidos autos, cujo julgamento não alterou o entendimento outrora firmado, foram assim ementados: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. DESENVOLVIMENTO DO PROCEDENTE. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA NAS DEMANDAS PRESTACIONAIS NA ÁREA DA SAÚDE. DESPROVIMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. 2. A fim de otimizar a compensação entre os entes federados, compete à autoridade judicial, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, direcionar, caso a caso, o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. 3. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União. Precedente específico: RE 657.718, Rel. Min. Alexandre de Moraes. 4. Embargos de declaração desprovidos. (RE 855178 ED, Relator(a): LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 23/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-090 DIVULG 15-04-2020 PUBLIC 16-04-2020.) Há registro expresso em ementa sobre a possibilidade de os entes federados serem demandados isolada ou conjuntamente. No particular, mencione-se que, ainda que tenha sido apresentada, no voto de lavra do Ministro Edson Fachin – relator para o acórdão, proposta que poderia implicar o litisconsórcio passivo necessário com a presença da União, tal premissa não integrou a conclusão do julgamento (STJ, CC Nº 179563 - PR (2021/0146394-6), Rel. Min. Francisco Falcão, p. 20/05/2021). Após o julgamento do Tema 793 pelo Supremo Tribunal Federal (RE 855.178), o STF passou a julgar monocraticamente a matéria, entendendo que a solidariedade permite que se acione qualquer ente político. A título exemplificativo, cito as seguintes decisões: STF, RCL 43156, Relator Min. ROSA WEBER, publicação 06/10/2020; STF, ARE 1286269, Relator Min. ROBERTO BARROSO, publicação 01/10/2020, STF, ARE 789664, Relator Min. CELSO DE MELLO, julgamento em 18/08/2020. Além disso, o Superior Tribunal de Justiça, tendo em vista o Tema 793 do STF, já pacificou sua jurisprudência no sentido de que - ressalvada a hipótese em que o medicamento não possui registro na ANVISA (caso em que excepcionalmente a União será litisconsorte passiva necessária) -, é solidária a responsabilidade pelo fornecimento de tratamentos e medicamentos no âmbito do SUS, razão pela qual cabe à parte autora escolher contra qual ou quais entes deseja demandar. Haja vista a solidariedade dos entes públicos nas demandas de saúde, não há de se falar em ilegitimidade do Município de Vilhena/RO ou falta de interesse de agir em relação à União. Ausência de indeferimento administrativo Melhor sorte não tem a alegação de ausência de indeferimento administrativo. A parte autora foi atendida, em um primeiro momento, no Hospital Regional, credenciado ao SUS, e foi informada a impossibilidade de realização da cirurgia neste hospital e na cidade de Vilhena/RO. A impossibilidade é confirmada, inclusive, não só pela falta de cumprimento da determinação da tutela, mas pela ausência de comprovação de que a parte autora poderia ter realizado a cirurgia em alguma rede credenciada do SUS na Cidade de Vilhena/RO. Ultrapassada as preliminares, passa-se ao mérito. O direito à saúde está garantido na Constituição Federal (arts. 196 e 198), enquanto a Lei n. 8.080/90 é explícita ao estabelecer o dever do Estado de prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício (art. 2º). A propósito, uma vez que “sendo o Sistema Único de Saúde (SUS) composto pela União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, impõe-se o reconhecimento da responsabilidade solidária dos aludidos entes federativos, de modo que qualquer um deles tem legitimidade para figurar no pólo passivo das demandas que objetivam assegurar o acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros.” (STJ, REsp 674803/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Segunda Turma, j. em 15.02.2007, p. 06.03.2007 p. 251). Confiram-se os precedentes: CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. REQUISITOS PRESENTES. SATISFATIVIDADE DA MEDIDA. EXCEPCIONALIDADE. UNIÃO FEDERAL, ESTADOS, MUNICÍPIOS E DISTRITO FEDERAL. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. I --A União Federal, solidariamente com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, está legitimada para as causas que versem sobre o fornecimento de medicamento, em razão de, também, compor o Sistema Único de Saúde - SUS. Precedentes. II - A prescrição de medicamento, na dosagem e quantidade indicadas pelo médico responsável pelo acompanhamento da autora, é medida que se impõe, possibilitando-lhe o exercício do seu direito à vida, à saúde e à assistência médica, como garantia fundamental assegurada em nossa Carta Magna, a sobrepor-se a qualquer outro interesse de cunho político e/ou material. Precedentes. III. A antecipação da tutela poderá ser concedida, liminar ou incidentalmente, nos termos dos arts. 294, parágrafo único, e 300, caput, do novo CPC, afigurando-se legítimo o seu deferimento, quando presentes os requisitos legais para a sua concessão, como no caso.IV - Agravo regimental desprovido. (TRF1, AGA 0005492-46.2016.4.01.0000/MG, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZ PRUDENTE, Quinta Turma, p. 04/05/2016). (g.n.) Relativamente ao adiantamento da prestação jurisdicional, plenamente possível a tutela específica da obrigação de fazer contra a Fazenda Pública, quando houver o cumprimento dos requisitos do art. 300 do CPC. Afinal de contas, é pacífico o entendimento segundo o qual “A concessão de medidas judiciais de urgência, tendentes a assegurar a realização de tratamentos médicos e o fornecimento de medicamentos, nas hipóteses excepcionais em que comprovado o risco iminente à saúde e à vida do cidadão, não viola a proibição de concessão de liminar que esgote, no todo ou em parte, o objeto da ação (Lei 8.437/92, art. 1º, § 3º), admitindo-se, em atenção aos princípios da razoabilidade, do devido processo legal substantivo e da efetividade da jurisdição, o deferimento de liminar satisfativa, ou antecipação de tutela parcialmente irreversível (CPC, art. 273, § 2º), quando tal providência seja imprescindível para evitar perecimento de direito” (TRF1, AC 0002313-74.2011.4.01.3300, Rel. Conv. Juiz Federal Roberto Carlos de Oliveira, Sexta Turma, p. 19/12/2018). CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO. QUIMIOTERAPIA E RADIOTERAPIA. CANCER NO RETO. NECESSIDADE DE CONCESSÃO DO TRATAMENTO DEMONSTRADA POR PROVA DOCUMENTAL. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. NEGATIVA DE VIGÊNGIA: ARTS. 7º, 8º, 9º, 16, 17 E 18 DA LEI 8.080/90. PREQUESTIONAMENTO: VIOLAÇÃO AOS ARTS. 198, I, 6º E 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SENTENÇA MANTIDA. 1.Nos termos do art. 196 da Constituição da República, incumbe ao Estado, em todas as suas esferas, prestar assistência à saúde da população, configurando essa obrigação, consoante entendimento pacificado do Supremo Tribunal Federal, responsabilidade solidária entre os entes da Federação. Portanto, é possível o ajuizamento da ação contra um, alguns ou todos os entes estatais. Nesse sentido rejeito a preliminar de ilegitimidade passiva da União. 2. Consoante se extrai da Constituição Federal de 1988, à Saúde foi dispensado o status de direito social fundamental (art. 6º), atrelado ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana, consubstanciando-se em "direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" (art. 196). 3.É responsabilidade do Poder Publico, independentemente de qual seja o ente publico em questão, garantir a saúde ao cidadão. No caso em análise, a obrigação de fazer consistiu em assegurar a realização do tratamento médico indicado ao caso da parte autora e indispensável ao seu pleno restabelecimento, por meio do Hospital São Marcos, com cobertura pelo Sistema Único de Saúde/SUS, devendo as despesas correrem, a princípio, por conta da União, as quais poderão ser oportunamente descontadas dos repasses obrigatórios do SUS ao estado de origem da parte autora, conforme autorização do art. 160, parágrafo único da Constituição Federal. 4. Recurso de apelação e remessa oficial conhecido e desprovido. (TRF1, AC 0003871-13.2014.4.01.4000/PI, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL KASSIO NUNES MARQUES, Sexta Turma, p. 27/04/2016). (g.n.) Assim, incumbe ao Poder Público o dever de garantir a observância desse direito público subjetivo, por meio de políticas públicas que visem à proteção e recuperação da saúde, daí que a divisão de atribuições entre os entes federados não pode ser arguida em desfavor do cidadão, pois só tem validade internamente entre eles. No caso concreto, traz-se à baila fundamentação da Decisão que deferiu a tutela: A demanda, de certa forma, se divide em duas. A priori, em relação à obrigação de fazer quanto à possibilidade de condenação do entes requeridos à realização da cirurgia, conforme assegurado na Constituição da República, uma vez que, como dito, deve ser privilegiado o tratamento oferecido pelo SUS. Essa, sem dúvidas, deve ser a primeira determinação. Por outro lado, há também o pedido quanto à obrigação de pagar. Quanto ao pedido de pagamento de todo o tratamento, tem-se que sua análise é precoce. Certo é que se realizará a cirurgia, seja pela rede pública, seja pela rede privada. O pedido de bloqueio, por outro lado, deve ser analisado como um pedido de ressarcimento de valores para custeio de todo o tratamento, seja pela devolução de valores honrados pela parte autora, seja pelo pagamento aos prestadores de serviços. No momento, o mais assertivo, presumindo-se que a quitação de instrumentos e serviços podem acontecer a posteriori, é realizar-se a cirurgia e o tratamento necessário e após analisar o quantum devido pelos entes públicos. Isso porque, a uma, trata-se de expediente distribuído em uma sexta-feira. Assim, ainda que em uma postura diligente deste Juízo, considerando-se todas burocracias de bloqueios judiciais, nenhum valor seria possível se transferir de imediato. A duas e, principalmente, porque à falta de manifestação dos requeridos, não é de conhecimento deste Juízo a possibilidade da realização da cirurgia no Hospital Cooperar utilizando-se de toda a sistemática do SUS, haja vista eventualmente tratar-se de hospital credenciado. Repito, o procedimento deverá ser realizado na maior brevidade possível, postergando-se, apenas, incerto ressarcimento de valores, seja por transferência direta, seja por ressarcimento via SUS. O deferimento da tutela determinou que o Estado de Rondônia e o Município de Vilhena/RO adotasse as medidas necessárias para realização do procedimento cirúrgico na cidade de Vilhena/RO, haja vista a impossibilidade de transferência, visando, assim, a não realização em rede privada de saúde. Ocorre que a determinação não fora atendida, o que acarretou a cirurgia em Hospital particular, com valores arcados pela parte autora, conforme notas fiscais juntadas. A demanda deve ser processada como ressarcimento de despesas médicas, portanto. Se a internação privada se deu em razão da omissão do serviço público. Logo, essas despesas serão suportadas desde o início da internação, haja vista a necessidade dos entes públicos em prestar assistência à saúde, vejamos: REO 00014778220124058400, Rel. Des. Fed. MARCELO NAVARRO, DJE 24/04/2013: "DIREITO CONSTITUCIONAL À SAÚDE. DEVER DA UNIÃO, ESTADOS E MUNICÍPIOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. RESSARCIMENTO DE DESPESAS MÉDICAS DECORRENTES DE INTERNAÇÃO EM UTI DA REDE PRIVADA, EM FACE DE AUSÊNCIA DE VAGA NA REDE PÚBLICA. POSSIBILIDADE. 1 .Remessa oficial em face de sentença que deferiu pedido autoral no sentido do reembolso de despesas médicas contraídas na rede privada, em face da ausência de leitos de UTI na rede pública. 2. No caso, o demandante, que veio a falecer posteriormente, sendo substituído por seus sucessores, foi acometido de AVC, agravado pelo fato de ser portador de outras complicações, tais como: Arritmia Cardíaca e Mal de Alzheimer, o que motivou a sua internação no Natal Hospital Center, em razão da ausência de leito de UTI na Rede Pública, na forma de Laudo Médico constante às fls. 18, que relata ter o autor idade avançada, (83 anos), dependendo, pois, de terceiros para seus hábitos diários. 3. Nos moldes em que dispõe o art. 196 da Lei Maior, é obrigação do Estado - assim entendido União, Estados, Distrito Federal e Municípios - assegurar às pessoas desprovidas de recursos financeiros o acesso à medicação e ao atendimento necessário ao seu tratamento médico. 4. A legitimidade para figurar no pólo passivo da demanda é de qualquer um dos entes federativos que integram o Sistema Único de Saúde, independentemente da atividade que será exercida por cada um deles. 5. Tendo-se comprovado nos autos a urgência de internação e a necessidade da realização de despesas médicas, correta a sentença que condena os entes federativos, no caso a União, o Estado do Rio Grande do Norte e o Município de Natal a, solidariamente, custearem as despesas médicas contraídas pelo requerente. 6. Remessa oficial improvida." Ocorre que, tratando-se de contas da saúde pública, o STF, ao apreciar o RE 666.094/DF, por unanimidade lhe deu parcial provimento para a reformar em parte o acórdão recorrido, impondo que o ressarcimento da prestadora privada seja limitado ao máximo os valores de referência fixados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, utilizados para o ressarcimento ao SUS pelos serviços prestados para os segurados dos planos de saúde. Essa decisão deu origem ao tema 1.033 tem a seguinte redação: "O ressarcimento de serviços de saúde prestados por unidade privada em favor de paciente do Sistema Único de Saúde, em cumprimento de ordem judicial, deve utilizar como critério o mesmo que é adotado para o ressarcimento do Sistema Único de Saúde por serviços prestados a beneficiários de planos de saúde". Essa decisão da Suprema Corte, que tem repercussão geral, criou um fator limitador para o ressarcimento das despesas decorrentes de internações na rede privada, impostas por decisões judiciais. O STF decidiu que o ressarcimento das internações na rede privada determinado pelas decisões judiciais deverá adotar a mesma regra de ressarcimento devida pelos planos de saúde ao SUS, prevista no artigo 32, §1.ºda lei 9.656/98, com redação dada pela lei 12.469/11, ou seja, os deverá ser utilizado os valores previstos na Regra de Valoração para o ressarcimento obrigatório feito pelas operadoras de planos de saúde pelos atendimentos de seus segurados prestados pelo SUS. Um dos efeitos dessa decisão do STF é que não é mais ponderável o bloqueio cautelar de verbas públicas para o ressarcimento da internação hospitalar na rede privada, pois os valores dessa condenação deverão ser apurados em liquidação de sentença, levando em consideração a conta hospitalar apresentada, com o detalhamento de todos os serviços, procedimentos e produtos utilizados, com a consequente e necessária auditoria pela respectiva Secretaria Municipal de Saúde, que fará a sua precificação nos termos na Regra de Valoração prevista em tabela da ANS. III. DISPOSITIVO Do exposto: a) afasto as preliminares arguidas; b) julgo a demanda parcialmente procedente a fim de determinar que os requeridos ressarçam os valores custeados pela parte autora para tratamento em rede privada de saúde, extinguindo o feito com resolução do mérito, nos termos do art. 487, I do CPC. c) indefiro o pedido da parte autora de tutela antecipada para ressarcimento dos valores. O ressarcimento da internação hospitalar na rede privada dessa condenação deverão ser apurados em liquidação de sentença, levando em consideração a conta hospitalar apresentada, com o detalhamento de todos os serviços, procedimentos e produtos utilizados, com a consequente e necessária auditoria pela respectiva Secretaria Municipal de Saúde, que fará a sua precificação nos termos da Regra de Valoração prevista em tabela da ANS. Considerando que a parte autora já apresentou as notas fiscais, deverão os entes públicos quando da manifestação dos valores apresentados, em cumprimento de sentença, apresentar a precificação nos termos da Regra de Valoração prevista em tabela da ANS, observando o Tema 1.033 do Supremo Tribunal Federal. Em caso de interposição de recurso, oportunize-se o contraditório. Devidamente processado, encaminhem-se os autos ao Eg. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Vilhena/RO, data e assinaturas eletrônicas. JUIZ FEDERAL
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Processo nº 0005667-38.2015.4.01.3504
ID: 321964822
Tribunal: TRF1
Órgão: Gab. 33 - DESEMBARGADOR FEDERAL RAFAEL PAULO
Classe: APELAçãO CíVEL
Nº Processo: 0005667-38.2015.4.01.3504
Data de Disponibilização:
10/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
PAULO ROBERTO RODRIGUES DE OLIVEIRA
OAB/GO XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 0005667-38.2015.4.01.3504 PROCESSO REFERÊNCIA: 0005667-38.2015.4.01.3504 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) POLO ATIVO: LUCAS MAGALHAES DE A…
JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 0005667-38.2015.4.01.3504 PROCESSO REFERÊNCIA: 0005667-38.2015.4.01.3504 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) POLO ATIVO: LUCAS MAGALHAES DE ALMEIDA e outros REPRESENTANTES POLO ATIVO: PAULO ROBERTO RODRIGUES DE OLIVEIRA - GO43694-A POLO PASSIVO:UNIÃO FEDERAL e outros REPRESENTANTES POLO PASSIVO: PAULO ROBERTO RODRIGUES DE OLIVEIRA - GO43694-A RELATOR(A):RAFAEL PAULO SOARES PINTO PODER JUDICIÁRIO Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 33 - DESEMBARGADOR FEDERAL RAFAEL PAULO Processo Judicial Eletrônico APELAÇÃO CÍVEL (198) n. 0005667-38.2015.4.01.3504 R E L A T Ó R I O O Exmo. Sr. Desembargador Federal RAFAEL PAULO(Relator): Trata-se de Apelações interpostas pela Comissão Nacional de Energia Nuclear - CNEN pela União e pelo Ministério Público Federal – MPF e recurso adesivo interposto pelo autor contra sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos da inicial, reconhecendo-o como vítima do acidente radiológico com o Césio 137, e condenando a União ao pagamento de pensão especial e ao pagamento de indenização por danos morais, de forma solidária entre os réus, no valor de R$ 30.000,00. Em suas razões recursais, a CNEN sustenta, em síntese, a ilegitimidade passiva, a ausência de nexo causal entre o acidente e as enfermidades apresentadas pelo autor, além da inexistência de responsabilidade objetiva ou subjetiva. Requer a total improcedência dos pedidos e, subsidiariamente, a redução do valor dos danos morais e a manutenção dos honorários sem majoração. A União alega igualmente a inexistência de nexo causal, impugnando o reconhecimento do autor como vítima e, portanto, a concessão do benefício da pensão especial prevista na Lei 9.425/96. Argumenta também que a dedução da pensão sobre o valor da indenização por danos morais encontra respaldo legal no art. 4º da referida Lei e que não há justificativa para majoração dos danos morais. O autor interpôs recurso adesivo, no qual requer a revisão do enquadramento legal da pensão, para que receba o valor previsto no art, 2º, I, da Lei 9.425/96, ao invés do inciso IV, sob o argumento de que possui incapacidade laborativa parcial e definitiva. Pleiteia ainda a majoração dos danos morais para patamar entre R$ 50.000,00 e R$ 100.000,00, e a inaplicabilidade da dedução do valor da pensão sobre a indenização por danos morais, por se tratar de verbas de natureza distinta. Por fim, requer a majoração dos honorários recursais, com fundamento no art. 85, §11, do CPC. Além disso, sobreveio apelação do Ministério Público Federal, na qual se alega, em preliminar, a nulidade absoluta da sentença, por ausência de intimação do Parquet para acompanhamento do feito, apesar de manifestação expressa nesse sentido. Requer o reconhecimento da nulidade dos atos processuais posteriores àquela manifestação, com a consequente remessa dos autos à origem para reabertura da instrução e regular intimação do MPF, nos termos do art. 279 do CPC. Contrarrazões apresentadas. É o relatório. PODER JUDICIÁRIO Processo Judicial Eletrônico Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 33 - DESEMBARGADOR FEDERAL RAFAEL PAULO APELAÇÃO CÍVEL (198) n. 0005667-38.2015.4.01.3504 V O T O O Exmo. Sr. Desembargador Federal RAFAEL PAULO(Relator): Cinge-se a questão quanto ao reconhecimento da condição do autor como vítima do acidente radioativo ocorrido em Goiânia/GO, no ano de 1987, com a consequente concessão da pensão especial prevista na Lei n. 9.425/1996, além da reparação por danos morais, sob o fundamento de omissão estatal. O Ministério Público Federal alega nulidade da sentença, com base na ausência de sua intimação para acompanhar o feito, especialmente após manifestação expressa de interesse em intervir como fiscal da ordem jurídica, nos termos dos arts. 178, II, e 279 do CPC. Todavia, verifica-se nos autos, fl. 184 ID 116054126, manifestação ministerial em que informa ciência da designação de perícia médica sem apresentação de quesitos complementares. Assim, não se verifica prejuízo concreto à sua atuação, tampouco houve demonstração de que os atos processuais foram praticados à sua revelia de forma a comprometer o contraditório ou a ampla defesa. Ademais, o parquet apresentou razões recursais, que foram integralmente recebidas e examinadas, tendo-lhe sido assegurado o pleno exercício de sua função institucional. Rejeito, portanto, a preliminar de nulidade da sentença. Quanto à ilegitimidade para figurar no polo passivo do feito, a legitimidade da CNEN é induvidosa. Nesse sentido já decidiu o eg. STJ: (...) IV - A CNEN é parte legítima para figurar no polo passivo da ação, diante da classificação do Césio 137 e da legislação referente às competências daquele órgão - Leis n. 4.118/1962 e 6.189/1974. (REsp n. 1.989.211/GO, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 7/3/2023, DJe de 10/3/2023.) grifo nosso A Lei n. 9.425/1996 estabelece critérios objetivos para o enquadramento de beneficiários da pensão especial. O art. 3º da referida lei determina que a caracterização como vítima do acidente radioativo deve ser realizada mediante parecer conclusivo da junta médica oficial, vinculada ao C.A.R.A., com supervisão do Ministério Público Federal. A sentença julgou parcialmente procedentes os pedidos iniciais, reconhecendo o direito à pensão especial prevista no art. 2º, IV, da Lei 9.425/96, e fixando indenização por danos morais em R$ 30.000,00. Determinou, ainda, a dedução dos valores da pensão no montante da indenização, nos termos do art. 4º da mesma norma. O autor é filho de Mauro Magalhães de Almeida, sargento da PM/GO, diretamente envolvido nos trabalhos de socorro às vítimas do acidente e na remoção do lixo radioativo das áreas afetadas, fls. 20 e 37, tendo sido promovido por ato de bravura, fls. 20, 23 e 37 ID 116054126. O laudo médico, fl. 32 ID 116054126, indica que o autor apresenta as seguintes enfermidades: Retinografia colorida: OD: Retina colada, Papila com escavação aparentemente fisiológica. Mácula com aspecto normal. OE: Retina colada, Papila com tração de vasos em direção à região macular. Presença de grande cicatriz com fibrose superiormente à lesão compatível com lesão antiga de toxoplasmose ou toxocaríase. Constam nos autos laudos periciais elaborados por Junta Médica Oficial do Centro de Assistência dos Radioacidentados – CARA, datados de 23/10/2014 e 09/08/2017, ambos com conclusão pela inexistência de nexo causal entre as patologias apresentadas pelo autor e a exposição à radiação ionizante decorrente do acidente com o Césio-137, além de registrarem que o periciado nasceu seis anos após o referido acidente, não tendo sido contaminado nem irradiado. Ressalto que, em que pese o autor receber pensão estadual nos termos da Lei n. 10.977/89, concedida por força de decisão judicial (Ofício nº 001/2016, emitido pela Secretaria Estadual da Saúde do Estado de Goiás, fl. 122, ID 11605412), com consequente cadastro no Centro de Assistência aos Radioacidentados – CARA como paciente pertencente ao grupo de vítimas do acidente com o Césio-137, conforme bem explicitado pela junta médica oficial, os critérios estabelecidos no art. 2º, inciso IV, da Lei nº 9.425/96 são diferentes dos ali previstos, nos seguintes termos: Art. 2° A pensão será concedida do seguinte modo: (...) IV - 150 (cento e cinqüenta) UFIR para os descendentes de pessoas irradiadas ou contaminadas que vierem a nascer com alguma anomalia em decorrência da exposição comprovada dos genitores ao CÉSIO 137; - grifo nosso É pacífico que este Tribunal admite que o juiz decida com fundamento na verossimilhança das alegações, com base na teoria da redução do módulo de prova, desde que haja, ao menos, indícios da exposição à substância (AC 0015539-41.2005.4.01.3500/GO, Rel. Des. Federal João Batista Moreira, Rel. Conv. Juíza Federal Rogéria Maria Castro Debelli, Quinta Turma, e-DJF1, p. 12, de 23/11/2015; AC 0015550-70.2005.4.01.3500/GO, Rel. Des. Federal Jirair Aram Meguerian, Sexta Turma, e-DJF1, p. 918, de 26/04/2013). Contudo, mesmo que se adote a teoria da redução do módulo de prova, é imprescindível a demonstração de que seja, ao menos, provável a relação de causalidade entre a enfermidade e os efeitos da radiação. Embora o autor sustente que nasceu com moléstia crônica por seu pai ter sido contaminado à época e que suas doenças seriam decorrentes dessa exposição transgeracional, não se desincumbiu do seu ônus probatório, nos termos do art. 373, I do CPC, o que veda, por conseguinte, a concessão de pensão especial com fulcro na Lei 9.425/96. Nesse sentido: APELAÇÃO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. FILHO DE POLICIAL MILITAR. ACIDENTE RADIOLÓGICO. CÉSIO-137. LEI FEDERAL N. 9.425/96. PENSÃO VITALÍCIA. NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE EVENTO DANOSO E ENFERMIDADE. LAUDO DESFAVORÁVEL. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. A CNEN possui legitimidade passiva ad causam, conforme entendimento firmado por este Regional. Confira-se: EDAC 0001241-05.2009.4.01.3500, DESEMBARGADOR FEDERAL RAFAEL PAULO SOARES PINTO, TRF1 - DÉCIMA-PRIMEIRA TURMA, PJe 04/06/2024; AC 0002664-78.2001.4.01.3500, DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA, Relator convocado JUIZ FEDERAL GLAUCIO MACIEL, TRF1, T6, PJe 11/08/2021. 2. No caso, a parte autora afirma que seu genitor foi responsável pelo isolamento do local contaminado, trabalhando no centro de Goiânia/GO e, posteriormente, fazendo a segurança do depósito de Abadia de Goiás/GO, onde os rejeitos radioativos foram depositados, sem que lhe fosse fornecido o equipamento de proteção individual, o que acarretou a contaminação da respectiva família. Aduz que, em razão da contaminação, seu pai recebe as pensões especiais estadual e federal, eis que preenchidos os requisitos legais. 3. A discussão é sobre o direito, ou não, à pensão vitalícia federal da Lei n. 9.425/96. Nos exatos termos do art. 3º retro, a comprovação da qualidade para percepção do benefício pleiteado "deverá ser feita por meio de junta médica oficial, a cargo da Fundação Leide das Neves Ferreira, com sede em Goiânia". 4. Consta do laudo pericial psiquiátrico que o autor "apresenta diagnóstico anterior de Retardo Mental leve CID F/70", "sem nexo de causalidade com o acidente radiológico". Por sua vez, a Junta Médica Oficial foi unânime ao indeferir o pedido de enquadramento na Lei 9.425/96 (fls. 250/254, rolagem única). 5. Mister destacar que as respostas aos quesitos 9 e 10, em fls. 252, rolagem única, enfatizam que "o periciado não trabalhou em locais contaminados pelo césio 137" e "as enfermidades do periciado não são consideradas decorrentes de exposição do seu pai à radiação ionizante". 6. A parte autora não se desincumbiu do seu ônus probatório, nos termos do art. 373, I do Código de Ritos, pois, conforme destacado em laudo pericial, não existe nexo de causalidade entre o acidente do Césio-137 e a enfermidade apresentada pelo lado autor, o que veda, por conseguinte, a concessão de pensão especial com fulcro na Lei 9.425/96. 7. Apelação desprovida. (AC 0034167-92.2016.4.01.3500, DESEMBARGADOR FEDERAL URBANO LEAL BERQUO NETO TRF1 - NONA TURMA, PJe 18/11/2024 PAG) – grifo nosso Quanto ao dano moral, também não merece acolhida. A responsabilidade civil objetiva do Estado encontra amparo no art. 37, § 6º da Constituição Federal, e exige, cumulativamente, a ocorrência do dano, a conduta estatal e o nexo de causalidade entre ambos, o que, conforme mencionado não se comprovou, nos autos. Quanto ao recuso adesivo da parte autora, os pedidos encontram-se prejudicados, tendo em vista o afastamento da própria condenação. Ante o exposto, voto por rejeitar a preliminar de nulidade suscitada pelo Ministério Público Federal, dar provimento às apelações da União e da CNEN, para, respectivamente, julgar improcedentes os pedidos formulados na petição inicial, bem como negar provimento à apelação do Ministério Público Federal e ao recurso adesivo do autor. Inversão do ônus da sucumbência, com a condenação do demandante ao pagamento de honorários advocatícios fixados no mínimo legal sobre o valor atualizado da causa, nos termos do art. 85, § 2º, do CPC. É como voto. PODER JUDICIÁRIO Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 33 - DESEMBARGADOR FEDERAL RAFAEL PAULO Processo Judicial Eletrônico PROCESSO: 0005667-38.2015.4.01.3504 PROCESSO REFERÊNCIA: 0005667-38.2015.4.01.3504 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) POLO ATIVO: LUCAS MAGALHAES DE ALMEIDA e outros REPRESENTANTES POLO ATIVO: PAULO ROBERTO RODRIGUES DE OLIVEIRA - GO43694-A POLO PASSIVO:UNIÃO FEDERAL e outros REPRESENTANTES POLO PASSIVO: PAULO ROBERTO RODRIGUES DE OLIVEIRA - GO43694-A E M E N T A DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. APELAÇÃO CÍVEL E RECURSO ADESIVO. ACIDENTE RADIOATIVO. EXPOSIÇÃO AO CÉSIO-137. PENSÃO ESPECIAL. DANO MORAL. NEXO CAUSAL NÃO COMPROVADO. IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS INICIAIS. RECURSOS PROVIDOS. 1. Apelações interpostas além de recurso adesivo do autor, contra sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos da inicial, reconhecendo-o como vítima do acidente com o Césio-137 ocorrido em Goiânia/GO, no ano de 1987. A sentença condenou a União ao pagamento de pensão especial e de indenização por danos morais, de forma solidária com os demais réus, no valor de R$ 30.000,00. 2. Há três questões em discussão: (i) saber se há nulidade processual por ausência de intimação do Ministério Público Federal; (ii) saber se o autor faz jus à pensão especial prevista na Lei nº 9.425/1996, como vítima do acidente com o Césio-137; e (iii) saber se é devida indenização por danos morais decorrentes do evento radioativo. 3. Não se verifica nulidade da sentença por ausência de intimação do MPF. Consta nos autos manifestação ministerial após a designação de perícia médica, sem apresentação de quesitos complementares. Ademais, o Ministério Público apresentou apelação, o que demonstra a inexistência de prejuízo processual. 4. A CNEN é parte legítima para figurar no polo passivo da ação, diante da classificação do Césio 137 e da legislação referente às competências daquele órgão - Leis n. 4.118/1962 e 6.189/1974. (REsp n. 1.989.211/GO, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 7/3/2023, DJe de 10/3/2023.) Preliminar de ilegitimidade passiva da CNEN rejeitada. 5. A concessão da pensão especial, prevista no art. 2º, IV, da Lei nº 9.425/1996, exige comprovação de anomalia decorrente de exposição comprovada de genitores ao Césio-137. O autor, nascido seis anos após o acidente, não demonstrou nexo causal entre suas enfermidades e a exposição de seu pai à radiação. Os laudos da junta médica oficial do CARA afastaram qualquer relação causal entre as moléstias e o acidente radioativo. O autor não se desincumbiu do seu ônus probatório, nos termos do art. 373, I do CPC, o que veda, por conseguinte, a concessão de pensão especial com fulcro na Lei 9.425/96. 6. A inexistência de nexo causal também afasta a responsabilidade civil objetiva do Estado, nos termos do art. 37, § 6º, da CF/1988. Assim, não é cabível indenização por danos morais. 7. Prejudicadas as pretensões deduzidas no recurso adesivo do autor, uma vez que afastada a própria condenação. 8. Apelações da União e da CNEN providas para julgar improcedentes os pedidos da inicial. Apelação do Ministério Público Federal e recurso adesivo do autor desprovidos. Condenação do autor ao pagamento de honorários advocatícios, fixados no mínimo legal sobre o valor atualizado da causa. A C Ó R D Ã O Decide a Décima Primeira Turma, à unanimidade, dar provimento aos recursos de apelação da União e da CNEN, negar provimento à apelação do Ministério Público Federal e ao recurso adesivo do autor, nos termos do voto do relator. Desembargador Federal RAFAEL PAULO Relator
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Processo nº 0002451-29.2016.4.01.3603
ID: 311074700
Tribunal: TRF1
Órgão: 2ª Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Sinop-MT
Classe: PROCEDIMENTO COMUM CíVEL
Nº Processo: 0002451-29.2016.4.01.3603
Data de Disponibilização:
30/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
ADRIANA VANDERLEI POMMER
OAB/MT XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Subseção Judiciária de Sinop-MT 2ª Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Sinop-MT SENTENÇA TIPO "A" PROCESSO: 0002451-29.2016.4.01.3603 CLASSE: PROCEDIMENTO COMUM C…
PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Subseção Judiciária de Sinop-MT 2ª Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Sinop-MT SENTENÇA TIPO "A" PROCESSO: 0002451-29.2016.4.01.3603 CLASSE: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7) POLO ATIVO: NEUSA GIACOMELLI REPRESENTANTES POLO ATIVO: ADRIANA VANDERLEI POMMER - MT14810/O POLO PASSIVO:INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS - IBAMA S E N T E N Ç A 1. R e l a t ó r i o Trata-se de ação anulatória proposta por NEUSA GIACOMELLI,em face do INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS - IBAMA, visando à suspensão liminar e posterior anulação do Auto de Infração nº 9051009/E e do Termo de Embargo nº 675701/E, subsidiariamente requer a conversão da multa em serviços de melhoria da qualidade do meio ambiente. Em síntese dos argumentos apresentados em defesa de sua pretensão, disse que não houve desmatamento da Floresta Amazônica, mas sim limpeza regular em área consolidada, a qual era permitida mediante apresentação de laudo técnico — providência que, segundo afirma, foi devidamente adotada. Sustenta, ainda, que a propriedade se encontra documentalmente regularizada, possuindo Cadastro Ambiental Rural (CAR) e Autorização Provisória de Funcionamento (APF), além de o autuado ter firmado termo de compromisso com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA), aderindo ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). Argumenta que, por se tratar de limpeza em área consolidada, o auto de infração seria nulo em razão de erro na descrição do ilícito, uma vez que não teria havido supressão de vegetação nativa, pois esta foi removida antes de 22 de julho de 2008. Ainda, o autor alega que teria ocorrido a prescrição da pretensão punitiva, considerando que a autuação foi lavrada mais de dez anos após a ocorrência dos fatos que lhe deram origem. Além disso, alega que o processo administrativo estaria eivado de nulidades, em razão da ausência de notificação prévia ao autuado para apresentação de defesa, especialmente com vistas à juntada de documentação que comprovasse a consolidação da área. Alega, também, que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) não teria competência para autuar e embargar atividade previamente licenciada pela SEMA/MT. Sustenta que o valor da multa aplicada é desproporcional e desarrazoado. Afirma, ainda, que o embargo não se aplica nos casos em que a infração ambiental ocorre fora de áreas de preservação permanente ou de reserva legal, salvo se envolver vegetação nativa. No caso concreto, defende que o suposto ilícito teria ocorrido em área agropastoril e que, ademais, não há risco de novas infrações ambientais, uma vez que o imóvel se encontra devidamente licenciado. A tutela de urgência foi parcialmente deferida para suspender o termo de embargo n° 675701-E, ao argumento de que os mapas satelitais que acompanham a dinâmica de desmate demonstram uma provável antropização anterior a 22 de julho de 2008. Devidamente citado, o réu apresentou contestação à pretensão deduzida. Preliminarmente, alegou a ausência de interesse de agir. No mérito, sustentou a inexistência de prescrição da pretensão punitiva, uma vez que a autuação, ocorrida em 2014, refere-se a fato ocorrido em 2013, ou seja, entre o fato e a autuação não transcorreu o prazo de cinco anos. Além disso, defendeu a competência do órgão ambiental para proceder à autuação. Afirmou que o autor não possui Licença Ambiental válida e que o imóvel autuado não está devidamente regularizado. Nesse ponto, destacou que o CAR juntado aos autos demonstra reserva legal inferior ao exigido pela legislação. Alegou, ainda, que não se trata de área consolidada, tampouco de limpeza de pasto, visto que não foram encontradas gramíneas forrageiras que caracterizassem pastagem, o que afastaria a aplicação do Decreto Estadual nº 2.151/2014. Ademais, argumentou que o laudo apresentado para autorizar a limpeza de pasto consiste em mero documento particular, cujas irregularidades foram apontadas pelos agentes autuantes, especialmente no que se refere à ausência de amostras da vegetação que comprovassem a hipótese de dispensa de licença ambiental. Ressaltou que não foi comprovado o requisito de inexistência de 50 indivíduos com mais de 10 cm de DAP por hectare, baseando-se o laudo apenas em fotografia com pouca profundidade de campo. Alegou, ainda, que o CAR é documento meramente declaratório, não significando, por si só, o cumprimento das normas ambientais. Da mesma forma, sustentou que a Autorização Provisória de Funcionamento (APF) não constitui fundamento suficiente para revogação dos efeitos da medida cautelar de embargo imposta pelo IBAMA. Argumentou que o Decreto Estadual nº 230/2015 afronta o Código Florestal, o qual exige a obtenção de Licença Ambiental, sendo que a criação da APF representaria verdadeira burla à legislação federal. Por fim, invocou a proibição do retrocesso ambiental. Sustentou que o artigo 67 não deve ser interpretado genericamente, como se conferisse anistia aos ilícitos praticados, e que apenas com a adesão ao PRA e após o exame das formalidades pela autoridade ambiental é que as sanções impostas a infrações cometidas antes de 22 de julho de 2008 poderiam ser suspensas — o que, segundo ele, não ocorreu no caso concreto. Defendeu, ainda, a manutenção do embargo, com vistas à regeneração da área degradada, e a inexistência de vícios no processo administrativo. Além de contestar, o Ibama ofertou reconvenção. Contra a decisão que deferiu parcialmente a tutela, o Ibama interpôs agravo de instrumento n° 0050806-15.2016.4.01.0000. A parte autora requereu o julgamento antecipado do feito, sob o argumento de que a prova documental, fundamentada em análise técnica conclusiva realizada pela SEMA/MT, é suficiente para confirmar a inexistência de infração ambiental, uma vez que a referida Secretaria emitiu parecer informando tratar-se de área consolidada. A ausência de interesse de agir foi afastada por decisão fundamentada. Na mesma decisão, foi indeferido o pedido de intervenção de ANTÔNIO GALVAN como amicus curiae, bem como determinada a intimação do Ibama para se manifestar sobre a prova documental juntada pela parte autora, a qual inclui parecer da SEMA, CAR definitivo, APF e TCA. O Ibama manifestou-se pelo julgamento antecipado da lide, aduzindo que a APF foi cancelada e que o CAR se encontra suspenso. Em seguida, a parte autora reiterou o pedido de julgamento antecipado da lide, com fundamento na ocorrência da prescrição da pretensão punitiva. A alegação de prescrição punitiva foi conhecida, mas julgada improcedente, diante da não ocorrência da prescrição quinquenal — cujo último marco interruptivo deu-se em 04/06/2019 — e da inexistência de prescrição intercorrente, cujo último ato interruptivo também ocorreu em 04/06/2019. A decisão supracitada foi impugnada por meio de embargos de declaração, os quais foram parcialmente acolhidos apenas para determinar a exclusão de páginas dos autos. Todavia, as alegações referentes à ocorrência de prescrição foram fundamentadamente rejeitadas. Intimados, a parte autora apresentou alegações finais. Em síntese, a parte autora alegou que houve prescrição da pretensão punitiva administrativa e penal, prescrição intercorrente. Nesse ponto, contestou a decisão de ID n° 795308472, que afastou a prescrição trienal da pretensão punitiva, sob o argumento de que atos administrativos datados de 2016 e 2017 (um ofício e um despacho) teriam interrompido a contagem do prazo. Sustenta que tais atos não são hábeis para interromper o curso prescricional, pois: (i) o ofício de 2016 não foi produzido no bojo do processo em questão, mas sim em outro procedimento e apenas juntado aos autos posteriormente; (ii) o despacho de 2017 apenas remanejou o processo internamente, sem impulsionar a instrução ou julgamento; (iii) entre 2014 (data da ciência da autuação) e 2021 não houve qualquer ato instrutório ou decisório válido por parte do IBAMA; e (iv) o parecer técnico de 2019 foi produzido mais de quatro anos após a autuação. Além disso, ratificam-se os argumentos apresentados na petição inicial, notadamente: a inexistência do ilícito, demonstrada pela comprovação de que a área já se encontrava desmatada desde 2005, sem regeneração de vegetação nativa até 2014; a consolidação da área, comprovada por meio da apresentação do CAR estadual e federal, da adesão ao PRA e de imagens de satélite anteriores a 2008; a incompetência do IBAMA, sob a alegação de que, tratando-se de área licenciada pela SEMA/MT, o referido órgão federal não teria competência para autuar; a validade do laudo técnico, elaborado conforme o Decreto Estadual nº 2.151/2014, com inventário florestal e ausência de árvores com DAP superior a 10 cm; e a desproporcionalidade da multa, com questionamento do seu cálculo com base no art. 50 do Decreto nº 6.514/2008, defendendo-se a aplicação do art. 53, que estabelece o valor de R$ 300,00 por hectare. A seguir, sobreveio despacho determinando a intimação da parte autora para que juntasse aos autos o processo administrativo nº 02054.000346/2014-11, considerando que seus andamentos haviam sido analisados apenas até a decisão referida (ID 795308472). Após a juntada do processo administrativo, foi aberta vista ao réu. Por fim, os autos vieram conclusos. É o relatório. Decido. 2. F u n d a m e n t a ç ã o 2.1 Da reconvenção Além de contestar, o réu opôs reconvenção, requerendo a condenação da reconvinda a diversas prestações de ordem reparatória e compensatória em decorrência do dano ambiental que lhe é imputado. Sem embargo do entendimento do IBAMA no sentido de que a ação civil pública em questão pode ser ajuizada por meio de reconvenção em autos de ação anulatória de auto de infração ambiental, tal posicionamento não é o mais adequado, segundo a jurisprudência pátria. É que a demanda reconvencional ora proposta possui natureza de ação civil pública, na medida em que tutela a proteção ao meio ambiente (interesse difuso) e inexiste conexão entre esta ação, que visa à declaração de nulidade de auto de infração e de termo de embargo, lavrados com respaldo do poder de polícia da autarquia, e eventual ação civil pública com intuito de compelir o infrator à reparação do dano ambiental, obrigação pautada na responsabilidade por dano difuso. São controvérsias distintas, originárias de causas de pedir e pedidos que não se relacionam. Assim, afastada a possibilidade de conexão entre as ações, não se mostra adequada a utilização da via reconvencional, diante da literalidade da disciplina acerca do instituto, que estabelece, além da identidade de partes da ação inicial, a necessidade de que o objeto da reconvenção seja conexo ao objeto da causa originária ou ao fundamento da defesa. Confira-se a disciplina do art. 343 do CPC, que aborda o instituto: Art. 343. Na contestação, é lícito ao réu propor reconvenção para manifestar pretensão própria, conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa. Ademais, observe-se que nesta ação o IBAMA responde em nome próprio e se relaciona ao exercício do poder de polícia que lhe confere a lei. Na ação civil pública, embora a autarquia seja legitimada a figurar no polo ativo, o faz em nome da coletividade, para preservar direito difuso. Não se configura, portanto, a identidade subjetiva entre uma ação e outra, já que aqui responde por interesse individual, lá por interesse coletivo. Essa diversidade de sujeitos inviabiliza a via reconvencional. Além da ausência de conexão e de identidade bilateral entre as demandas, o indeferimento da reconvenção oposta pelo IBAMA se justifica por outros aspectos objetivos, haja vista que o instituto processual tem por essência a economia processual, que não se verifica quando se pretende instaurar discussão totalmente alheia ao objeto da ação, inclusive que demanda instrução probatória independente. Nesse sentido: PJe. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO. MULTA. RECONVENÇÃO. NÃO ADMISSÃO. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. LEI 9.873/99, ART. 1º, §1º. AUSÊNCIA DE CAUSA INTERRUPTIVA. SENTENÇA MANTIDA. 1. A reconvenção é instituto processual que tem por escopo a economia e a eficiência do processo, cuja utilização submete-se a condições de procedibilidade próprias, não sendo adequada a sua utilização em se tratando de lides que não tenham relação de conexão e que venham retardar a solução da ação originária, nos termos do que dispõe o art. 343 do CPC. 2. É de se impor a manutenção da sentença que indeferiu a petição inicial relativamente à reconvenção, que pretende instaurar discussão totalmente destoante do objeto da ação, que inclusive demanda instrução probatória independente e mais complexa. Essa distinção a inviabilizar a pretensão reconvencional se evidencia ao se analisar o objeto da ação quanto à nulidade do ato administrativo pautado no poder de polícia, cuja sanção tem natureza administrativa, e àquela tratada na reconvenção, que objetiva condenação do infrator por danos difusos ao meio ambiente, de natureza eminentemente cível, afastando-se, destarte, qualquer possibilidade de conexão com o objeto da ação primeira ou ao fundamento da defesa. 3. Nos termos do art. do §1º do art. 1º da Lei 9.873/99, “incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada (...)”, regra reforçada pelo art. 21, § 2º, do Decreto nº 6.514/2008. 4. Ficou demonstrado nos autos que o processo administrativo permaneceu absolutamente paralisado entre os despachos proferidos em 18/01/2012 e em 29/06/2015, não havendo nenhum marco interruptivo do prazo prescricional, sendo de se impor o reconhecimento da prescrição intercorrente da pretensão punitiva da Administração. 5. Mostra-se desnecessária a incursão acerca da definição da natureza instrutória ou não dos despachos proferidos, diante da ausência de qualquer ato administrativo entre um marco e outro, situação que evidencia, sem grande esforço, estar configurada a prescrição intercorrente da pretensão punitiva, em consonância com a interpretação autorizada das causas interruptivas elencadas pelo art. 2º, II, da Lei nº 9.873/99. 6. Não incide na hipótese a tese de imprescritibilidade, porquanto restrita a situações que versem sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente, de natureza cível, enquanto a discussão em enfrentamento tem natureza administrativa, com prazo prescricional estipulado na norma de regência para o exercício da pretensão punitiva da Administração. 7. Remessa necessária e apelação do IBAMA a que se nega provimento, mantendo integralmente a sentença de primeiro grau. (AP nº 1001775-59.2019.4.01.3603 – Relatora Desembargadora Federal Daniele Maranhão Costa – Quinta Turma – julgado em 02/09/2020). Com efeito, a atividade instrutória da demanda principal é bastante simples, podendo ser feita por meio de documentos, quando muito demanda a realização de prova pericial bastante singela, cujo escopo seria o de aferir precipuamente a data em que foi realizada a supressão da vegetação na área autuada e se ali existem vestígios de culturas anteriores, suficientes para caracterizá-la como consolidada. Já a instrução da demanda reconvencional é muito mais ampla, tem por objeto a responsabilidade civil pela reparação, para cuja delimitação é necessário que se realize um verdadeiro diagnóstico ambiental, que aponte, não só a dimensão da área de vegetação degradada e a data dos fatos, como na demanda principal, mas também as providências de gerenciamento ambiental a serem adotadas como medidas preventivas e mitigadoras de novos impactos, bem como as providências a serem efetivamente empregadas para a reparação do dano, verificando a existência de espécies nativas no local, o tempo de execução e os tipos de árvores a serem utilizadas em eventual recomposição, até mesmo para possibilitar a discussão a respeito dos custos da recuperação e valores relativos à indenização, no caso de impossibilidade de reparação do dano. Em certa medida, a reconvenção oposta pelo IBAMA traz, incidentalmente, para o processo judicial, questões que tipicamente devem ser tratadas no âmbito do PRAD, alargando, de tal maneira, o objeto de cognição da lide, que acaba por exercer uma função absolutamente antitética à eficiência e economicidade processual para que foi ontologicamente concebida. Diante de todo o exposto, conclui-se que não se mostra apropriado no caso em análise a veiculação do instituto processual da reconvenção, que se submete a condições próprias de procedibilidade, as quais não se fazem presentes no caso em tela. Assim, ausente o pressuposto processual de constituição válido do processo, a petição inicial da reconvenção deve ser indeferida. 2.2.Da demanda principal 2.2.1. Preliminares a) Da prescrição da pretensão punitiva no âmbito do processo administrativo n° 02054.000346/2014-11. Nas alegações finais e na manifestação de ID nº 2184188688, a parte autora reitera a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva no âmbito do processo administrativo nº 02054.000346/2014-11. Todavia, compulsando os autos, verifica-se que a consumação da prescrição administrativa foi objeto da decisão de ID nº 795308472, a qual julgou parcialmente o mérito e indeferiu o pedido de declaração de prescrição da pretensão punitiva estatal, sob o fundamento de que a prescrição quinquenal foi interrompida em 20/10/2014, 15/06/2016, 15/05/2017 e 04/06/2016, ao passo que a prescrição intercorrente foi interrompida em 20/10/2014, 15/06/2016, 16/05/2017 e 04/06/2019. Além disso, a referida decisão consignou que, se a reprovabilidade da conduta é mais acentuada a ponto de merecer a reprimenda do Direito Penal — espécie subsidiária do Direito Sancionador —, não se afigura razoável que o autuado seja beneficiado com um prazo prescricional mais curto, quando sua conduta, na realidade, é mais gravosa do que a mera infração administrativa, que não possui duplo efeito (penal-administrativo). Com efeito, no tocante à prescrição administrativa, a parte autora, nas alegações finais, repete fundamentos anteriormente expostos nos embargos de declaração de ID nº 826344084, os quais foram rejeitados de forma fundamentada na decisão de ID nº 1951140691. Demais disso, não consta nos autos a interposição de recurso contra a decisão que julgou parcialmente o mérito. Desse modo, no que se refere à análise da prescrição administrativa — até o último marco interruptivo da prescrição trienal e quinquenal, ocorrido em 04/06/2019 —, tem-se por configurada a coisa julgada. Assim, eventual alegação de ocorrência de prescrição administrativa nos autos do processo administrativo nº 02054.000346/2014-11 após 04/06/2019 somente poderá ser veiculada por meio de ação autônoma. 2.2.2. Mérito a) Da limpeza de pasto em área consolidada e do vício de descrição do ilícito (fato) (ausência de fato gerador). O código florestal (Lei 12.651, de 25 de maio de 2012) atribuiu tratamento diferenciado ao passivo ambiental anterior a 22 de julho de 2008, ressaltando a “importância da função estratégica da atividade agropecuária e do papel das florestas e demais formas de vegetação nativa na sustentabilidade, no crescimento econômico...” (art. 1º-A, II, CFL). O artigo 59, §§ 4º e 5º, do CFL, preconiza que, após a adesão ao Programa de Regularização Ambiental-PRA e enquanto estiverem sendo cumpridos os termos firmados em compromisso com o órgão ambiental, o proprietário ou possuidor não poderá ser autuado pelas infrações ambientais decorrentes de supressão irregular de vegetação em área de preservação permanente, de reserva legal e de uso restrito anteriores a 22 de julho de 2008, bem como que as sanções decorrentes de infrações dessa natureza e condição serão suspensas a partir da assinatura do termo de compromisso e durante seu cumprimento. Veja-se: Art. 59. A União, os Estados e o Distrito Federal deverão implantar Programas de Regularização Ambiental (PRAs) de posses e propriedades rurais, com o objetivo de adequá-las aos termos deste Capítulo. (Redação dada pela Lei 13.887, de 2019) (Vide ADC Nº 42) (Vide ADIN Nº 4.902) (...) § 4º No período entre a publicação desta Lei e o vencimento do prazo de adesão do interessado ao PRA, e enquanto estiver sendo cumprido o termo de compromisso, o proprietário ou possuidor não poderá ser autuado por infrações cometidas antes de 22 de julho de 2008, relativas à supressão irregular de vegetação em Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito. (Redação dada pela Lei nº 14.595, de 2023) § 5º A partir da assinatura do termo de compromisso, serão suspensas as sanções decorrentes das infrações mencionadas no § 4º deste artigo e, cumpridas as obrigações estabelecidas no PRA ou no termo de compromisso para a regularização ambiental das exigências desta Lei, nos prazos e condições neles estabelecidos, as multas referidas neste artigo serão consideradas como convertidas em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente, regularizando o uso de áreas rurais consolidadas conforme definido no PRA. (Vide ADIN Nº 4.937) (Vide ADC Nº 42) (Vide ADIN Nº 4.902) (...) Tal entendimento deve ser aplicado às multas e também à medida cautelar ambiental de embargo de área. A interpretação de diversos dispositivos do Novo Código Florestal leva à conclusão de que não se pode obstar o desenvolvimento de atividades rurais que já estavam em curso antes de 22 de julho de 2008, ainda que promovidas em Área de Reserva Legal ou de Preservação Permanente. De um lado, o art. 61-A, caput e § 15, do novo Código Florestal permite a continuidade das atividades agrossilvipastoris desenvolvidas em Áreas de Preservação Permanente consolidadas (em 22 de julho de 2008), ao menos até o termo final do prazo de adesão, ou implementação das obrigações assumidas, junto ao Programa de Regularização Ambiental. Confira-se: Art. 61-A. Nas Áreas de Preservação Permanente, é autorizada, exclusivamente, a continuidade das atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008. § 15. A partir da data da publicação desta Lei e até o término do prazo de adesão ao PRA de que trata o § 2o do art. 59, é autorizada a continuidade das atividades desenvolvidas nas áreas de que trata o caput, as quais deverão ser informadas no CAR para fins de monitoramento, sendo exigida a adoção de medidas de conservação do solo e da água. De outro lado, o § 3º do art. 17 do aludido Código Florestal somente determina a suspensão imediata das atividades em Área de Reserva Legal irregularmente desmatadas após 22 de julho de 2008. Demais disso, o art. 42 daquele Código permite a conversão das multas impostas em razão de desmatamento sem autorização, ocorrido antes de 22 de julho de 2008, nas áreas em que não era vedada a supressão da vegetação. Como se vê, tais dispositivos deixam clara a intenção do legislador em suspender todas as medidas administrativas decorrentes da supressão irregular de vegetação ocorrida antes de 22 de julho de 2008, e não somente as multas ambientais, sendo que, a partir da assinatura do TCA, as relações entre o particular infrator e o Poder público passarão a ser regidas pelos termos de compromisso ambiental pactuados. No estado de Mato Grosso, a adesão ao Programa de Regularização Ambiental deve ser requerida quando da inscrição da propriedade ou posse no Cadastro Ambiental Rural, o que é feito eletronicamente. Entretanto, o requerimento de adesão ao Programa de Regularização Ambiental é apenas o primeiro dos atos do procedimento administrativo de regularização, seguindo-se da necessidade de análise e validação das informações declaradas no CAR, identificação da cobertura vegetal, fixação do percentual, alocação, delimitação e registro das áreas de Reserva Legal, Preservação Permanente, Uso Restrito e eventual resolução de sobreposições de áreas. Por fim, a apresentação da proposta de regularização dos passivos ambientais de Áreas de Preservação Permanente, Reserva Legal ou Uso Restrito, pelo proprietário e/ou possuidor rural, e sua respectiva aprovação, resultará na assinatura do correspondente Termo de Compromisso Ambiental. Como se vê, a conclusão do procedimento de adesão ao PRA, para fins de regularização ambiental, é naturalmente demorada, sendo tal prazo dilatado ainda por eventos circunstanciais, como ocorreu com os milhares de protocolos simultâneos de pedidos de regularização ambiental quando da instauração do programa no estado de Mato Grosso. Ainda no ano de 2019, a Secretária do Meio Ambiente solicitou audiência com os juízes desta Subseção Judiciária, oportunidade em que demonstrou as dificuldades de dar vazão aos mais de 58 mil pedidos de adesão ao PRA, então em análise. Por meio do Ofício n.° 996/2019, documentou a existência de termo de compromisso ambiental (TCA) firmado entre órgão ambiental e o Ministério Público, no qual ficou definido plano de ação, com estimativa de conclusão apenas no ano de 2023, para análise, validação e encaminhamento para regularização ambiental dos cadastros de imóveis rurais (CAR) protocolados no órgão. Diante desse cenário, decidi que, tratando-se de área comprovadamente consolidada, a partir do protocolo do pedido de adesão ao PRA, porquanto esta era a única medida que dependia exclusivamente do particular, os demandantes fariam jus à aplicação do regime jurídico correspondente às normas de transição do Código Florestal, com a consequente suspensão das penalidades decorrentes de infrações contra flora ocorridas antes de 22 de julho de 2008. E, mesmo com o término do prazo assinalado no plano de trabalho elaborado pela SEMA, como parte integrante do TAC firmado com o Ministério Público, os fundamentos do entendimento anteriormente adotado permanecem inalterados, porquanto, em consultas realizadas ao sítio eletrônico da SEMA, na rede mundial de computadores, vê-se que muitos dos pedidos de adesão ao PRA, feitos pelos particulares que demandam perante este juízo, ainda não superaram as etapas necessárias para a assinatura do Termo de Compromisso Ambiental, estando com o CAR ativo, mas pendentes de análises diversas. Dessa forma, para casos de áreas comprovadamente consolidadas, a suspensão das penalidades, na forma do art. 59 do Código Florestal, deve ocorrer independentemente da assinatura do termo de compromisso ou sua validação pelo órgão estadual, sendo bastante a adesão da parte autora ao Programa de Regularização Ambiental, por meio eletrônico. Uma vez manifestada à intenção de adesão ao PRA, como primeira providência para a regularização do passivo ambiental anterior a 22 de julho de 2008, todas as medidas de polícia da Administração devem permanecer suspensas até o cumprimento do plano de recuperação ambiental ou rescisão do TCA. No caso dos autos, em 14/10/2014, a parte autora foi autuada pelo IBAMA por destruir 527,31 hectares de floresta nativa do bioma amazônico, sem autorização da autoridade ambiental. Além do auto de infração nº 9051009/E, a área foi embargada por meio do Termo de Embargo nº 675701/E. Contudo, a parte autora sustenta que a autuação é ilegítima, sob o argumento de que não se trata de supressão de vegetação nativa, mas, sim, de mera limpeza de pastagem em área consolidada. Afirma que, nos termos do Decreto Estadual nº 2.151/2014, que dispensava autorização da SEMA para limpeza de pasto em área consolidada, providenciou laudo técnico com a finalidade de viabilizar a referida limpeza, conforme exigido pelo decreto. Alega, ainda, que a área não pode ser considerada abandonada, tampouco ocupada por vegetação nativa, tendo em vista que foi aberta entre 2003 e 2005, com a conclusão da limpeza no ano de 2005, sendo o solo convertido para uso como pastagem entre 2006 e 2007. Sustenta que a área foi arrendada em seguida e sofreu incêndios criminosos no ano de 2010. Pois bem. A parte autora busca a anulação de ato administrativo. Nesse contexto, convém destacar que a presunção de legitimidade do ato administrativo é um dos princípios fundamentais do Direito Administrativo e significa que todo ato praticado pela Administração Pública goza, a priori, de presunção de veracidade e de conformidade com a legalidade. Diante disso, cabe ao administrado (particular) provar que o ato administrativo é inválido, ilegal ou inverídico. Ademais, cumpre observar que o art. 373 do CPC distribui o ônus da prova de acordo com a natureza da alegação de fato a ser comprovada, competindo ao autor demonstrar o fato constitutivo do direito que afirma possuir. No caso em apreço, em duas oportunidades (ID nº 2025925183 – págs. 141 e 165), a parte autora requereu o julgamento antecipado do mérito, alegando que a prova documental anexada aos autos — especialmente o parecer da SEMA, de 17/01/2018, imagens de satélite e o Laudo Técnico — comprova tratar-se de área consolidada. Com efeito, tanto no que se refere à alegação de área consolidada quanto à de limpeza de pasto, a prova adequada à demonstração das afirmações do autor é a prova pericial. Todavia, tendo em vista que a parte autora pleiteia o julgamento antecipado do feito, passo à análise da prova documental apresentada com o objetivo de demonstrar que não houve desmate de vegetação nativa (art. 50 do Decreto nº 6.514/2008), mas apenas a limpeza de área consolidada. Inicialmente, cumpre asseverar que o laudo particular de 12/10/2015, apresentado pelo autor (ID nº 335277887 – págs. 115-131), por ter sido produzido por iniciativa da própria parte interessada, possui força probatória mitigada, não podendo constituir o principal fundamento do convencimento do juízo. Nesse mesmo sentido já se manifestou o egrégio Superior Tribunal de Justiça: PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUTÁRIO. ICMS. ENERGIA ELÉTRICA. AUSÊNCIA DE PRÉVIA COMPROVAÇÃO ACERCA DA REALIZAÇÃO DE "ATIVIDADES INDUSTRIAIS" POR EMPRESA COMERCIAL. MANDAMUS INSTRUÍDO COM LAUDO PERICIAL CONFECCIONADO UNILATERALMENTE. DOCUMENTO QUE, POR SI SÓ, NÃO É APTO A COMPROVAR O DIREITO ALEGADO. 1. A prova documental contida nos autos (laudo técnico de fls. 58/64, faturas de energia elétrica e estatuto social da impetrante) não é apta a comprovar que parte da energia elétrica consumida pela impetrante é utilizada em processo de industrialização. No que se refere ao laudo técnico de fls. 58/64, verifica-se que ele foi produzido unilateralmente pela impetrante. Assim, tal laudo, por si só, não constitui prova pré-constituída suficiente para afastar a presunção de legitimidade do ato administrativo de fl. 69, que reconheceu como indevido o aproveitamento de créditos de ICMS, na forma efetuada pela impetrante. Nesse sentido: RMS 20.494/MG, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 11.12.2006. 2. Tratando-se de mandado de segurança, cuja finalidade é a proteção de direito líquido e certo, não se admite dilação probatória, porquanto não comporta a fase instrutória, sendo necessária a juntada de prova pré-constituída apta a demonstrar, de plano, o direito alegado. 3. Ademais, cumpre registrar que a Primeira Seção/STJ, ao apreciar o REsp 1.117.139/RJ (Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 18.2.2010), aplicando a sistemática prevista no art. 543-C do CPC, c/c a Resolução 8/2008 - Presidência/STJ, firmou entendimento no sentido de que as atividades de panificação e congelamento de alimentos, realizadas por estabelecimento comercial, não se caracterizam como processo de industrialização, razão pela qual inexiste direito ao creditamento do ICMS recolhido em relação à energia elétrica consumida na realização de tais atividades. 4. Recurso ordinário não provido. (RMS 27.635/GO, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/04/2011, DJe 27/04/2011). Dessa forma, é imprescindível que as informações constantes nos laudos apresentados pela parte autora sejam corroboradas por outros elementos probatórios constantes dos autos, com densidade suficiente para afastar a presunção de legitimidade e veracidade que reveste os atos administrativos impugnados. O autor apresentou laudo particular subscrito pela engenheira florestal Izanete Weisshaupt (ID nº 335277887 – págs. 116-120), que, com base em imagens capturadas pelo satélite LANDSAT-5 (órbita 226/069) e tratadas via software ARC GIS, conclui, de forma sintetizada, que: em 1998 teve início a ocupação do imóvel com desmatamento parcial; entre 2003 e 2004 ocorreu extração seletiva e intensa de madeira, com uso de motosserras e limpeza semimecanizada; a área foi praticamente toda desmatada nesse período; entre 2005 e 2007, utilizou-se fogo para limpeza, introdução de pastagem e início da atividade pecuária; as imagens indicam degradação do pasto e surgimento de vegetação invasora ("juquira"); entre 2010 e 2011 houve incêndio generalizado no pasto e na vegetação brotada, causando nova degradação; e, em 2014, realizou-se limpeza mecanizada da área para substituição da pastagem por lavoura de grãos, sendo que as imagens de 16/05 e 20/08 registram ações sucessivas de remoção de vegetação invasora e preparo do solo. Ainda, a parte autora juntou aos autos laudo técnico de limpeza de pastagem (ID n° 335277887 - págs. 102-108), produzido em 25/03/2014, assinado pelo engenheiro florestal Pedro Luiz Bezerra Pedroso, que conclui que se trata de área consolidada apta a limpeza de pasto, dispensada de autorização, nos termos do Decreto Estadual n° 2.151/2014. Além disso, a parte autora juntou aos autos parecer técnico de análise do CAR, datado de 17/01/2018 (ID nº 2025925183 – págs. 146-153). Em síntese, o parecer relata que, com base nas informações declaradas pelo cadastrante e nas imagens de satélite, houve extração intensiva de madeira na área embargada entre 2003 e 2004, realizada de forma semimecanizada, com uso de motosserras e priorização de árvores maduras e de grande porte. Após essa etapa, a área teria sido limpa com o uso de fogo, prática que se estendeu até o ano de 2005. Posteriormente, o solo teria sido convertido para uso como pastagem, no qual se observou, em momento posterior, a presença de plantas invasoras (arbustos e cipós), popularmente conhecidas como "juquira". Consta no parecer emitido pela SEMA contestação quanto à cobertura do solo indicada pela parte autora: “Contesto a cobertura de solo indicado por Vossa Senhoria, vide-se o laudo de caracterização de área e as imagens de satélite em anexo. Laudo e ART em anexo.” (ID nº 2025925183 – pág. 149). Ainda segundo o parecer da SEMA, a declaração apresentada foi elaborada em 2014, a pedido da advogada da parte autora, considerando que a área foi embargada naquele mesmo ano pelo IBAMA, e que a parte autora não localizou o contrato de arrendamento da propriedade. A propósito, com relação ao valor probante do parecer da SEMA/MT, ainda que se trate de órgão licenciador, convém destacar que o sistema processual brasileiro, especialmente após o Código de Processo Civil de 2015, adota como regra o sistema do livre convencimento motivado do juiz (art. 371 do CPC), segundo o qual o magistrado pode valorar livremente as provas, desde que fundamente sua decisão. Em outras palavras, a prova tarifada (cuja eficácia e valor probatório são previamente definidos em lei) não é a regra no direito brasileiro. Nesse passo, o parecer emitido pela SEMA/MT também deve ser analisado em conjunto com os demais elementos constantes nos autos. Dito isso, passo a análise do processo administrativo n° 02054.000346/2014-11, que apura os fatos que deram origem à autuação. Consta no relatório de fiscalização, em 22/05/2014, a equipe vistoriou in loco a área embargada, tendo realizado medições apenas na parte onde os arbustos estavam tombados, que totalizava 240 hectares. Posteriormente, com a análise das imagens de satélite datadas de 20/08/2014, constatou-se que, além dos 240 hectares iniciais, havia área aberta correspondente a mais 527,31 hectares, totalizando 927,31 hectares de vegetação suprimida. O referido relatório de fiscalização também informa que, na área embargada, havia formação típica de floresta amazônica, com vegetação de características heterogêneas, e que, até o ano de 2013, a cobertura vegetal encontrava-se intacta e em estágio avançado de regeneração natural, não caracterizando, portanto, área consolidada. Constam nos autos do processo administrativo ambiental imagens de satélite que evidenciam a presença de cobertura vegetal em 17/08/2013 e a ausência dessa cobertura em 20/08/2014 (ID nº 2184189081 – pág. 11). Ademais, ao processo administrativo foi juntado o Anexo da Notificação n° 137816/ CLPR/SGF/2013, emitida pela SEMA/MT (ID nº 2184189081 – pág. 13), no âmbito do processo administrativo nº 302766/2009, em que figura como interessada a parte autora, e que se refere à área embargada (ID nº 2184189081 – pág. 15). No referido documento, registra-se que, no ano de 2005, a área apresentou características de exploração eventual (uso do fogo), sem evidência de corte raso, tendo ocorrido posterior regeneração natural, de forma que, em 2013, a vegetação apresentava características de integridade. Com efeito, tanto o laudo particular quanto o parecer da SEMA/MT foram emitidos após a autuação (14/10/2014) e após a provável supressão da vegetação, ocorrida em 2013. O laudo particular foi elaborado em 12/10/2015, enquanto o parecer da SEMA data de 17/01/2018. Por sua vez, o laudo técnico referente à limpeza de pasto foi emitido em 25/03/2014, também posteriormente à provável supressão da vegetação em 2013. Soma-se a isso o fato de que o parecer da SEMA foi produzido a pedido da parte autora, com base em imagens apresentadas por ela. Embora mencione que a abertura da área tenha ocorrido entre 2003 e 2005, não há referência a eventos ocorridos no ano de 2013. Da mesma forma, o laudo particular, igualmente solicitado pela parte autora, analisou exclusivamente imagens de satélite, ao passo que a fiscalização do Ibama, além da análise por imagens, realizou vistoria in loco em 22/05/2014. Além disso, a própria SEMA, no Anexo da Notificação n° 137816 I CLPR/SGF/2013, afirmou que não se tratava de área consolidada, pois, em 2013, houve regeneração natural, conferindo à área características de vegetação intacta. Nesse ponto, ressalte-se que, embora o Anexo da Notificação n° 137816 I CLPR/SGF/2013, tenha mencionado a abertura da área com fogo, o anexo afirma que em 2013 a área já havia sido regenerada. Pela análise dos documentos acostados aos autos, infere-se que a supressão da vegetação ocorreu no ano de 2013, quando a área já havia recuperado as características de vegetação nativa (floresta). Além disso, entre o provável término da abertura da área, em 2005, e a supressão da vegetação, em 2013, decorreram mais de oito anos — prazo superior ao regime de pousio de cinco anos, nos termos do art. 3º, inciso IV, da Lei nº 12.651/2012 —, sendo possível a regeneração natural da floresta, o que afasta a consolidação da área. Por oportuno, não se ignora que o art. 1º, inciso VIII do Decreto Estadual n° 2.151/2014, dispensava a autorização para limpeza de pastagem em áreas consolidadas, com a retirada de plantas oportunistas e invasoras, em áreas de regeneração natural com até 50 (cinquenta) indivíduos por hectare, cujo Diâmetro à Altura do Peito (DAP) seja de, no máximo, 10 (dez) centímetros, sem a derrubada de árvores adultas. Entretanto, o dispensado deveria ter elaborado laudo técnico com a finalidade de comprovar os requisitos previstos no art. 1º, inciso VIII, do Decreto Estadual nº 2.151/2014. No caso dos autos, o laudo técnico referente à limpeza de pasto, que conclui tratar-se de área consolidada (conforme já mencionado), não se coaduna com as demais provas constantes nos autos. Ademais, foi emitido posteriormente à data da infração. Portanto, a alegação de regularidade da autorização para limpeza da área, com base no referido laudo técnico, revela-se frágil para afastar a presunção de legitimidade dos atos administrativos impugnados. Prosseguindo, considerando que a autuação e os embargos ocorreram em 2014, afasta-se a alegação de prescrição da pretensão punitiva, nos termos da Lei nº 9.873/1999. Por fim, conforme consulta realizada no endereço eletrônico https://monitoramento.sema.mt.gov.br/simcar/tecnico.app/publico/car, verifica-se que a SEMA/MT suspendeu o CAR MT 72009/2019, referente ao qual foi emitido parecer técnico em 17/01/2018, já juntado aos autos. Com efeito, a suspensão do referido CAR evidencia que a área não está regularizada documentalmente. Ademais, os documentos apresentados pela parte autora não se mostram suficientes para afastar a presunção de legitimidade da autuação. A partir dos elementos constantes dos autos, infere-se que houve supressão de vegetação após a regeneração da floresta, ocorrida no ano de 2013, o que descaracteriza a área como consolidada. Consequentemente, não prospera a alegação de que a intervenção consistiu em mera limpeza de pastagem. Cumpre ressaltar que o laudo técnico de limpeza de pasto foi produzido unilateralmente pela parte autora, o que lhe confere valor probatório reduzido. Além disso, suas conclusões não se harmonizam com os demais elementos constantes dos autos, especialmente com o relatório de fiscalização e com o Anexo da Notificação nº 137816/CLPR/SGF/2013. Ainda, tratando-se de supressão de vegetação, conclui-se que não há erro na descrição fática do ilícito ambiental. Ressalte-se que, nos termos do art. 100, § 1º, do Decreto nº 6.514/2008, o vício insanável que nulifica a autuação é aquele cuja correção implicaria modificação do fato descrito no auto de infração, o que não se verifica na hipótese dos autos, haja vista que os documentos acostados comprovam a ocorrência de supressão indevida de vegetação. Diante de todo o exposto, rejeitam-se as alegações de área consolidada, de mera limpeza de pastagem e de vício na descrição da autuação (ausência de fato gerador). b) Dos vícios no processo administrativo (ofensa à ampla defesa e contraditório No âmbito ambiental, o poder de polícia se concretiza por meio de ações de 202592518 fiscalização, licenciamento, embargo de atividades ilegais, aplicação de multas, apreensões, interdições, autuações e outras medidas restritivas, com base na Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente) e no Decreto nº 6.514/2008, que regulamenta infrações e sanções administrativas ambientais. O contraditório e a ampla defesa são, como regra, postergados no processo administrativo ambiental federal. Nos termos do art. 70 § 3º da Lei n° 9.605/1998, a autoridade ambiental que tiver conhecimento de infração ambiental é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante processo administrativo próprio, sob pena de corresponsabilidade. Após a autuação, o autuado será intimado acerca da autuação e poderá, no prazo de vinte dias, contado da data da ciência da autuação, oferecer defesa ou impugnação contra o auto de infração (arts. 96 e 113 do Decreto n° 6.514/2008). Com efeito, a violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa ocorre quando não são asseguradas às partes as oportunidades de participar ativamente do processo administrativo, comprometendo a justiça e a legalidade das decisões, que se caracteriza pela ausência de notificação ou intimação, falta de acesso a informações processuais e cerceamento de defesa (impossibilidade de apresentar defesa técnica adequada). No caso dos autos, a parte autora alega que o processo administrativo estaria eivado de nulidades em razão da ausência de notificação prévia ao autuado para apresentação de defesa, especialmente com vistas à juntada de documentação que comprovasse a consolidação da área. Contudo, não prospera a alegação da parte autora. Isso porque a notificação prévia não é condição de validade da autuação, tampouco possui previsão no ordenamento jurídico ambiental. Por outro lado, no processo administrativo n.º 02054.000346/2014-11, a autuação ocorreu em 14/10/2014, e a autuada foi notificada por meio postal em 20/10/2014 (ID n.º 2184189081 – pág. 17). Nesse ponto, convém destacar que, embora a notificação postal tenha sido recebida por terceiro, a apresentação de defesa administrativa, por meio de advogado devidamente constituído, em 03/11/2015 (ID n.º 2184189081 – pág. 26), confirma que a autuada foi regularmente notificada. Além disso, não consta nos autos qualquer impedimento de acesso ao processo administrativo. Portanto, não se verifica ofensa ao contraditório e à ampla defesa que possa viciar o processo administrativo. c) Da incompetência do Ibama para autuar Com efeito, a competência para a fiscalização ambiental é comum a todos os entes federativos, conforme o artigo 23 da Constituição Federal. Nesse passo, a Lei Complementar nº 140/2011 não exclui a atuação do IBAMA em atividades já licenciadas por outros órgãos. Aliás, o E. STF no julgamento da n° ADI 4757, asseverou que: “, (...) a prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ou autorização ambiental não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, desde que comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória. (...)1 No caso dos autos, a parte autora alega que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) não teria competência para autuar e embargar atividade previamente licenciada pela SEMA/MT, nos termos da LC n° 140/2011. Contudo, não assiste razão à parte autora. Com efeito, em que pese a SEMA/MT, órgão licenciador, tenha emitido parecer no processo do CARMT n° 72009/2017, em 17/01/2018, não realizou vistoria na propriedade autuada. Ainda, a análise ocorreu apenas com base nas informações prestadas pela parte autora com a finalidade de instrução do processo judicial. Ainda, no anexo da Notificação nº 137816/2013 (ID nº 2184189081 – pág. 13), emitida pela SEMA no ano de 2013, foi indeferida a solicitação de limpeza de pasto. Todavia, não foi determinada nem realizada qualquer diligência in loco. Com efeito, não há nos autos notícia de atos fiscalizatórios promovidos pela SEMA/MT na área embargada no ano de 2013, tampouco nos anos subsequentes, tendo o órgão se manifestado sobre a propriedade apenas no ano de 2018, e isso em razão de provocação da parte autora. Nesse contexto, estando caracterizada a deficiência fiscalizatória do ente licenciador, deve ser mantida a atuação supletiva do Ibama. d) Do valor da multa A parte autora sustenta que o valor da multa aplicada é desproporcional e desarrazoado. Alega que a penalidade, fixada no montante de R$ 2.640.000,00 (dois milhões, seiscentos e quarenta mil reais), foi imposta sem critérios claros e sem a devida fundamentação, além de superar significativamente o valor do imóvel embargado, que possui aproximadamente 1.100 hectares e valor de mercado estimado em R$ 728.000,00 (setecentos e vinte e oito mil reais). Pois bem. De acordo com o art. 225, § 3º, da Constituição Federal, as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, às sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. O art. 70 da Lei nº 9.605/1998 define infração administrativa ambiental como toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente. Portanto, não apenas as atividades lesivas ao meio ambiente tipificadas como crime, nos arts. 29 a 69 da referida lei, configuram infração administrativa, mas também qualquer afronta às normas que regulam ou proíbem o uso de recursos naturais. Nos termos do art. 6º da Lei nº 9.605/1998, para imposição de multa, a autoridade competente deve considerar a gravidade do fato, levando em conta os motivos da infração e suas consequências para a saúde pública e o meio ambiente, os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da legislação ambiental e sua situação econômica. Com efeito, a Lei nº 9.605/1998 é regulamentada pelo Decreto nº 6.514/2008, que tipifica as infrações ambientais e estabelece os valores das respectivas multas, os quais variam entre R$ 50,00 (cinquenta reais) e R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais), conforme dispõe o art. 9º do referido decreto. Nesse contexto, o Decreto nº 6.514/2008 prevê infrações com penalidades mínimas de R$ 50,00, como exemplificado no art. 76, inciso I, bem como infrações com penalidades máximas de R$ 50.000.000,00, a exemplo do art. 61. No caso concreto, conforme relatório de fiscalização, a multa foi aplicada com base nos arts. 50 e 60 do Decreto nº 6.514/2008. O art. 50 do mencionado decreto estabelece que será aplicada multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por hectare ou fração de floresta de preservação especial destruída sem a devida autorização. Na hipótese dos autos, a multa foi fixada no valor de R$ 5.000,00 por hectare sobre uma área de 527,31 hectares (considerando a fração), totalizando R$ 2.640.000,00 (dois milhões, seiscentos e quarenta mil reais). Assim, a dosimetria da multa aplicada observa os critérios estabelecidos no Decreto nº 6.514/2008, não havendo extrapolação dos limites legais. Com efeito, evidenciado que o valor da multa imposta respeitou as balizas legais, inexiste ilicitude por parte da Administração e, portanto, “é inviável considerar como desproporcional penalidade legalmente adequada, cabendo ao juízo de discricionariedade e ao arbítrio - não arbitrariedade - do Executivo a devida ponderação da "gravidade das infrações", conforme texto legal, descabendo ao Judiciário interferir nesse mérito administrativo” (AgInt no REsp 1865164/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/12/2020, DJe 18/12/2020, g.n.). Por fim, a multa em caráter confiscatório é aquela que, ao ser aplicada, ultrapassa determinados limites estabelecidos pela jurisprudência e pela legislação, de modo que se assemelha a um confisco do patrimônio do contribuinte. No caso dos autos, a multa foi aplicada com fundamento no poder de polícia ambiental, respeitou a as balizas legais, descaracterizando o caráter confiscatório. Nesses termos, a autuação deve ser mantida. e) Da manutenção do termo de embargo O embargo administrativo ambiental é uma medida sancionatória e acautelatória, aplicada com o objetivo de impedir a continuidade de danos ambientais, propiciar a regeneração do meio ambiente e viabilizar a recuperação de áreas degradadas. Essa medida pode ser adotada tanto no momento da lavratura do auto de infração, como medida cautelar (art. 101, inciso II, do Decreto nº 6.514/2008, e art. 72, inciso VII, da Lei nº 9.605/1998), quanto no julgamento do auto de infração, como sanção decorrente da infração cometida (art. 72, inciso VII, da Lei nº 9.605/1998). A finalidade do embargo é, portanto, proteger o meio ambiente por meio da interrupção de atividades que estejam causando danos, permitindo a recuperação da área afetada. O art. 16, § 2º do Decreto n° 6.514/2008 dispõe que: “§ 2º Não se aplicará a medida administrativa cautelar de embargo de obra, de atividade, ou de área, nos casos em que a infração de que trata o caput se der fora da área de preservação permanente ou reserva legal, salvo quando se tratar de desmatamento ou queima não autorizada de vegetação nativa. (Redação dada pelo Decreto nº 12.189, de 2024)” Os efeitos do embargo cessam quando a área ou atividade embargada é regularizada, ou seja, quando são cumpridas as exigências legais para a recuperação ambiental e a regularização das atividades, conforme disposto no art. 15-B do Decreto nº 6.514/2008. No caso dos autos, a parte autora sustenta que embargo não se aplica nos casos em que a infração ambiental ocorre fora de áreas de preservação permanente ou de reserva legal, salvo se envolver vegetação nativa. Disse que o suposto ilícito teria ocorrido em área agropastoril e que, ademais, não há risco de novas infrações ambientais, uma vez que o imóvel se encontra devidamente licenciado. No caso dos autos, o conjunto probatório evidencia tratar-se de desmatamento em área de vegetação nativa. Ademais, o CAR/MT nº 72009/2017, apresentado pela parte autora, encontra-se suspenso pela SEMA/MT, o que demonstra que a propriedade não está devidamente regularizada. Além disso, a análise dos documentos apresentados pela parte autora não permite concluir que a área tenha se regenerado completamente. Dessa forma, estando caracterizada a infração ambiental, o embargo deve ser mantido, com vistas à regeneração da área embargada. f) Da conversão da multa A conversão da multa ambiental federal consiste na substituição da penalidade pecuniária por serviços voltados à preservação, melhoria ou recuperação do meio ambiente, conforme previsto no art. 72, § 4º, da Lei nº 9.605/1998. Essa conversão pode ser realizada de forma direta, com execução pelo próprio autuado, ou indireta, mediante adesão a projetos previamente selecionados pelo órgão ambiental. Trata-se de medida discricionária da administração pública, o que significa que sua aplicação depende da análise da autoridade competente, com base nos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e nas circunstâncias do caso concreto. A decisão deve considerar, por exemplo, a gravidade da infração e a condição econômica do infrator. A conversão não é automática: exige requerimento formal do autuado durante o processo administrativo, conforme disposto nos arts. 142 e 145 do Decreto nº 6.514/2008. A administração deve fundamentar sua decisão, especialmente em caso de indeferimento, para assegurar a legalidade e a transparência do ato. Com efeito, a substituição da pena de multa por medidas alternativas insere-se no campo da discricionariedade da administração pública. Nessa perspectiva, não cabe ao Poder Judiciário, no exercício do controle de legalidade, interferir no mérito do ato administrativo. Nesse sentido: PROCESSUAL CIVIL. AMBIENTAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO ORDINÁRIA . AUTO DE INFRAÇÃO. GUARDA DOMÉSTICA DE PÁSSARO SILVESTRE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICÁVEL . LEGALIDADE E HIGIDEZ DA AUTUAÇÃO. CONVERSÃO DA PENALIDADE DE MULTA EM PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE CONSERVAÇÃO AMBIENTAL. MÉRITO ADMINISTRATIVO. ATO DISCRICIONÁRIO . ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONFRONTO COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. DECISÃO MANTIDA. I - Na origem trata-se de ação contra Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, pleiteando, em suma, a anulação do auto de infração do qual resultou a imposição de multa ambiental por cometimento de infração consistente na manutenção de pássaro silvestre em cativeiro . II - A sentença julgou o pedido improcedente. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região reformou parcialmente a sentença para determinar a conversão da penalidade de multa em prestação de serviços de conservação ambiental. III - A circunstância versada não encontra óbice na Súmula n. 7 desta Corte . IV - O exame da pretensão recursal apresentada pelo Ibama, fundamentada essencialmente na arguição de ofensa a dispositivos legais e aplicação de tese estritamente jurídica, prescinde da emissão de juízo sobre os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, bem como do revolvimento de matéria fática, exigindo apenas a revaloração jurídica dos fatos e provas incontroversos. V - O Tribunal a quo, ao refutar a tese de insignificância da conduta lesiva ao meio ambiente, reconheceu a legalidade e higidez do auto de infração que culminou na imposição da sanção em apreço. VI - Diante da situação delineada, o aresto vergastado encontra-se em dissonância com o entendimento consolidado desta Corte Superior, firme no sentido de que a substituição da pena de multa por medidas alternativas situa-se no âmbito da discricionariedade da administração pública, não possibilitando ao Poder Judiciário, nos limites do controle de legalidade, imiscuir-se no mérito administrativo, notadamente quando não atendidos os pressupostos e requisitos necessários ao deferimento da conversão. VII - Correta, portanto, a decisão recorrida que conheceu parcialmente do recurso especial para, nessa parte, dar-lhe provimento para reconhecer a legalidade da multa outrora imposta, julgando improcedente a ação originária . VIII - Agravo interno improvido. (STJ - AgInt no AREsp: 2186223 MG 2022/0248267-4, Relator.: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 21/11/2023, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/11/2023) Deveras, no que se refere ao pedido de conversão da multa em prestação de serviços voltados à melhoria e à qualidade do meio ambiente, cabe ao Poder Judiciário apenas a análise dos aspectos relacionados à legalidade do ato, não sendo sua atribuição determinar o deferimento do pedido, o qual deve ser analisado pela autarquia ambiental competente. Diante disso, desacolho o pedido subsidiário de conversão da multa em prestação de serviços voltados à melhoria e à qualidade do meio ambiente, ressalvada a possibilidade de a parte autora requerer a conversão por meio administrativo. Assim, é improcedente a pretensão deduzida na inicial. Diante dos fundamentos supracitados, revogo a tutela de urgência concedida (ID n° 335277887 - págs. 170-171). 3. D i s p o s i t i v o Por todo o exposto: (a) julgo extinta SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO a reconvenção, nos termos do art. 485, I e IV do CPC; (b) deixo de condenar o reconvinte em custas e honorários, por força do art. 18 da Lei n. 7.347/85; (c) julgo a demanda principal extinta COM RESOLUÇÃO DE MÉRITO, nos termos do art. 487, I, do CPC, e IMPROCEDENTES OS PEDIDOS deduzidos na inicial. Condeno a parte autora ao pagamento de honorários de sucumbência fixados no percentual mínimo previsto nas alíneas I a V, §3º, artigo 85, do CPC/2015, escalonados na forma do § 5º do mesmo dispositivo legal e a serem calculados sobre o valor atualizado da causa; Custas finais pela parte autora. Intime-se o gerente do Ibama em Sinop/MT para restauração dos efeitos do termo de embargo n° 675701/E. Sentença dispensada de remessa necessária. Intimem-se as partes. Interposto recurso, intime-se o recorrido para apresentar contrarrazões, no prazo de 15(quinze) dias e, após, remetam-se os autos ao e. TRF1. Com o trânsito em julgado, nada sendo requerido no prazo de 15 (quinze) dias, arquivem-se. Comunique-se o relator do Agravo de instrumento n° 0050806-15.2016.4.01.0000. Cumpra-se. Sinop/MT, datado eletronicamente Assinado eletronicamente MARCEL QUEIROZ LINHARES Juiz Federal da 2ª Vara _____________________________________________________________________________________________________ ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023
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Processo nº 1037175-40.2023.4.01.0000
ID: 292902517
Tribunal: TRF1
Órgão: Gab. 16 - DESEMBARGADOR FEDERAL FLAVIO JARDIM
Classe: AGRAVO DE INSTRUMENTO
Nº Processo: 1037175-40.2023.4.01.0000
Data de Disponibilização:
09/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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LUIS INACIO LUCENA ADAMS
OAB/DF XXXXXX
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CAROLINA MAR AZEVEDO
OAB/AM XXXXXX
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IVAN DE SOUZA QUEIROZ
OAB/AM XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDI…
JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDIGENA MURA REPRESENTANTE(S) POLO ATIVO: IVAN DE SOUZA QUEIROZ - AM4297 POLO PASSIVO:Ministério Público Federal (Procuradoria) e outros REPRESENTANTE(S) POLO PASSIVO: CAROLINA MAR AZEVEDO - AM8627-A, LUIS INACIO LUCENA ADAMS - DF29512-A, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133, GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133 e GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882 RELATOR(A):FLAVIO JAIME DE MORAES JARDIM PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 RELATÓRIO Agravo de Instrumento interposto em 14.9.2023, pelo Conselho Indígena Mura (CIM), contra decisão da 1ª Vara Federal do Amazonas (id. – ID 1769860076), que suspendeu o resultado de consulta ao povo indígena Mura até que fossem cumpridos requisitos ambientais, legais e constitucionais, no contexto da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). A ação, na origem, busca a anulação da Licença Prévia emitida pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas- IPAAM à Potássio do Brasil Ltda. referente à exploração de silvinita/potássio em Autazes/AM, alegando incompetência do órgão emissor e ausência de consulta prévia aos povos indígenas afetados. O agravante argumenta que a decisão violou sua autonomia, destacando que a consulta foi conduzida conforme protocolo próprio e recursos próprios, com representantes de 46 aldeias. Sustenta que a suspensão judicial desrespeita o resultado soberano da consulta, gera prejuízos financeiros e configura cerceamento de defesa. O CIM defende ainda que os direitos minerários da empresa foram desmembrados de terras indígenas, afastando a necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração mineral. Ao final, requer efeito suspensivo à decisão agravada, permitindo a conclusão e consideração da consulta nos autos antes de eventual sentença. Defende a existência de prejuízos irreparáveis caso o processo seja decidido sem incorporar o resultado da consulta, e reafirma o pedido de Justiça Gratuita, por ser entidade sem fins lucrativos. Foi requerida, ainda, a gratuidade de justiça. Após a distribuição, por meio da petição id. 347816151, foram juntadas atas de reuniões realizadas nos dias 15, 16, 18 e 22.8.2023, nas quais o agravante alega que foi dado início dado procedimento de consulta para representantes de 46 aldeias. Despacho de id. 348177162 intimou os agravados a apresentar contrarrazões e sobrestou a análise do pedido de liminar. Antes de escoado o prazo, o agravante apresentou petição (id. 350573644) comunicando que o Povo Mura de Autazes, nos dias 21 e 22.09.2023, finalizou a Consulta sobre o Projeto Potássio Autazes e outras questões relevantes, de acordo com a ata anexa. Destacou que foi aprovado o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta. Informou, ainda, que foi aprovado pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil faça a mineração. Requereu, assim, a atribuição de efeito suspensivo ao agravo. A Potássio do Brasil Ltda. apresentou as contrarrazões de id. 360785149. Noticiou a existência de decisão da Presidência do TRF1, a qual, nos autos da SLS nº 1040729-80.2023.4.01.0000, suspendeu a decisão original, entendendo que a paralisação antecipada do licenciamento interfere na competência administrativa e nas normas constitucionais que regulam a exploração mineral em terras indígenas. No mais, a Potássio do Brasil Ltda. adere aos argumentos do agravante, solicitando a reforma da decisão agravada. O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) apresentou as contrarrazões de id. 367016144, aduzindo que o projeto e suas jazidas estão a 8 km das terras indígenas mais próximas e que a legislação atual estabelece o critério territorial para definir competências ambientais. Assim, considera desnecessária a autorização do Congresso Nacional, pois não há exploração direta em terras indígenas. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. O IBAMA apresentou a petição id. 368864139 informando carecer de interesse em apresentar contrarrazões em face do mencionado recurso de agravo de instrumento, uma vez que sua posição nos autos de origem sempre foi no sentido de que não possui competência legal para conduzir o licenciamento ambiental em questão e, tampouco, para intervir no âmbito da consulta livre, prévia e informada que deve ser realizada perante a comunidade indígena que venha a ser afetada pelo empreendimento. A FUNAI protocolou a manifestação de id. 369353129. Inicialmente, a FUNAI argumenta pela perda superveniente do objeto do agravo, uma vez que nova decisão foi proferida pelo juízo de origem, abordando fatos e fundamentos distintos, como a inexistência de consulta válida com participação de todos os indígenas afetados, especialmente da Comunidade Lago Soares. A decisão, prolatada por meio do id. 190941615, relata coações, pressões e irregularidades promovidas pela empresa Potássio do Brasil e seus representantes. Entre as medidas adotadas, destaca-se a suspensão do licenciamento ambiental pelo IPAAM e de atos vinculados ao empreendimento, além da fixação de multas e proibição de práticas coercitivas. No mérito, a FUNAI defende a manutenção da decisão agravada, ressaltando que a consulta ao povo Mura é imprescindível, mas deve observar a inclusão de todas as comunidades potencialmente afetadas. A instituição destaca a necessidade de conclusão dos estudos demarcatórios da Terra Indígena Lago do Soares e Urucurituba, conduzidos por grupo técnico da FUNAI, para garantir a legitimidade e abrangência da consulta. Por fim, a FUNAI solicita, em preliminar, o não conhecimento do agravo por perda de objeto e, subsidiariamente, o seu desprovimento, mantendo a decisão que suspendeu o resultado da consulta e os atos administrativos relacionados ao empreendimento até o cumprimento dos requisitos legais. A ORGANIZAÇÃO DE LIDERANÇAS INDÍGENAS MURA DE CAREIRO DA VÁRZEA - OLIMCV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES apresentou a manifestação de id. 357658659. Defenderam a ilegitimidade e a invalidade da consulta realizada para aprovação do Projeto Potássio Autazes, apontando graves violações ao Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Mura de Autazes e Careiro da Várzea. O documento destaca que o Conselho Indígena Mura (CIM), ao conduzir a consulta, ignorou a inclusão de comunidades contrárias ao projeto, como a Aldeia Soares, e promoveu reuniões com fortes indícios de coação, pressão e manipulação, em desrespeito às diretrizes estabelecidas no protocolo previamente aprovado pelas comunidades. Além disso, aponta a participação irregular de representantes da empresa Potássio do Brasil Ltda., prática vedada no contexto das reuniões internas. As lideranças contrárias ao empreendimento denunciaram promessas de compensações financeiras, irregularidades na condução das consultas e a tentativa de impor um novo protocolo de consulta para fragmentar a representação do povo Mura, excluindo as aldeias do município de Careiro da Várzea. A defesa ressalta ainda que a consulta não foi realizada de forma ampla, livre e informada, como determina a Convenção 169 da OIT. Em termos jurídicos, as contrarrazões pedem o reconhecimento da nulidade do resultado da consulta e a manutenção da decisão judicial de suspensão do licenciamento ambiental e de atos administrativos relacionados ao projeto até que sejam cumpridos os requisitos legais e constitucionais, com participação efetiva de todas as comunidades afetadas. O parecer id. 373711134, ofertado pelo MPF, pugna pelo desprovimento do agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura por perda superveniente do objeto. É o relatório. PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL FLÁVIO JARDIM - Relator: I. Estão preenchidos os requisitos de admissibilidade. A peça, subscrita por profissional legalmente habilitado, (a) foi protocolada no prazo legal. O agravante requereu seja o preparo dispensado em razão da hipossuficiência, o que defiro. Conheço do Recurso. II. A decisão agravada, datada de 25.8.2023, no que interessa (id. 1769860076): III. Este agravo foi protocolado pelo Conselho Indígena Mura – CIM e visa a suspender os efeitos da decisão agravada de id. 1769860076, proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, movida pelo MPF. Contra essa decisão, também foram interpostos os seguintes recursos: (i) AI nº 1039810-91.2023.4.01.0000, protocolado pela Potássio do Brasil Ltda. (ii) AI nº 1042776-27.2023.4.01.0000, protocolado pelo Ibama; (iii) Ai nº 1043035-22.2023.4.01.0000, protocolado pela União. No agravo, é postulado que a decisão agravada seja reformada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". III.a. A Relevância do Projeto Potássio-Autazes Consoante destacou a União em petição protocolizada nestes autos, "o Projeto Autazes foi habilitado, na forma do Decreto nº 10.657/2021, pelo Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos – CTAPME, para integrar a política de apoio ao licenciamento ambiental de projetos de investimento para a produção de Minerais Estratégicos – Pró Minerais Estratégicos, em 28 de setembro de 2021." [1] Segundo o que assevera a União, "[d]e acordo o que dispõe o Decreto nº 10.657/2021, os projetos minerários habilitados na Política de Pró-Minerais Estratégicos são considerados prioritários ao país em razão dos seguintes critérios (art. 2º): i) alto percentual de importação para suprimento de setores vitais da economia; ii) aplicação em produtos e processos de alta tecnologia e iii) vantagens comparativas e essencial para a geração de superavit da balança comercial do país." [id.] A União complementa que o projeto "visa a exploração de minério cloreto de potássio, fertilizante fundamental para a agricultura nacional." [id.] Pelas informações prestadas, "o Brasil importa 95% do cloreto de potássio que utiliza para fertilização do solo, ostentado o título de maior importador mundial de potássio, com 10,45 milhões de toneladas adquiridas em 2019, de acordo com dados do Ministério da Economia." [id.] A previsão da empresa é de "atender cerca de 25% do consumo nacional do minério, reduzindo a dependência interna do produto por mais de 30 anos." [id.] A União ainda aponta que a relevância do projeto foi exacerbada com o recente cenário de guerra entre Ucrânia-Rússia: "Ocorre que as recentes sanções econômicas impostas à Bielorrússia, responsável por ¼ de toda produção mundial de cloreto de potássio, gerou enorme preocupação no setor agroindustrial brasileiro em razão da possível escassez do minério, o que poderá impactar o custo de produção e, consequentemente, o aumento do preço dos alimentos. Observa-se, assim, que o desenvolvimento de projetos minerários com capacidade de aumentar significativamente a oferta de fertilizantes ao mercado interno, reduzindo a dependência estrangeira, é essencial para a proteção dos pequenos produtores de alimentos e da população mais vulnerável à variação de preço dos alimentos. [...] Além disso, há apenas três grandes players produtores no mundo, sendo que em dois deles, Rússia e Bielorrússia, há interferência dos governos na atuação internacional das empresas. As duas últimas crises mundiais de fertilizantes, em que os preços ao produtor rural aumentaram mais de 150% em menos de seis meses, ocorreram por ocasião da atuação das empresas de fertilizantes potássicos. Na atual crise de fertilizantes, o primeiro nutriente a faltar para o Brasil foi o potássio." [id.] Segundo o ente público, há altíssima dependência nacional de fertilizantes estrangeiros, o que torna o país ainda mais vulnerável, pois os grandes produtores agrícolas mundiais possuem autonomia no fornecimento de fertilizantes: "O Brasil vem presenciando, nos últimos anos, um forte aumento nas importações de fertilizantes. Estima-se que, em 2020, mais de 80% dos que foram consumidos no Brasil são de origem estrangeira, respondendo a produção nacional por menos de 20% da demanda do país. Estrategicamente, todos os países que são grandes produtores agrícolas no mundo, têm autonomia no fornecimento de fertilizantes, uma vez que produzem, no mínimo, 50% da sua demanda anual, exceto o Brasil. A dependência se agrava quando se verifica que o Brasil deverá responder por quase metade da produção mundial de alimentos nos próximos anos, aumentando proporcionalmente a demanda por fertilizantes. Atualmente, o Brasil é o quarto consumidor global de fertilizantes, responsável por cerca de 8% desse volume e é o maior importador mundial, ou seja, é o país com a maior dependência externa por fertilizantes." [id.] A variação de preços da commodity é também apontada como fator de preocupação, tendo em vista que há ciclos de crises mundiais que elevam os preços a níveis acima do padrão: "Aumentos nos preços desses insumos acontecem em ciclos de crises mundiais, como em 2008 e 2021, períodos em que foram registrados os maiores preços da história. Esse cenário impacta negativamente na competividade dos produtos agrícolas brasileiros, pois os fertilizantes já ocupam mais de 40% do custo de produção de culturas importantes como soja, milho e algodão, que compõem as principais exportações do agronegócio brasileiro, tornando o produto nacional menos competitivo." [id.] Assim, a conclusão da União é a de que "o Projeto Autazes pode proporcionar ao Brasil uma arrancada em direção à segurança do fornecimento de fertilizante potássicos para o país." [id.] Abaixo, as características físicas do projeto: Vale ressaltar que se cuida de empreendimento significativamente menor do que, por exemplo, a UHE Belo Monte, que possui dois reservatórios de regularização, com área total de 478 km², sendo 274 km² do leito original do Rio Xingu. Os dois reservatórios são o Reservatório Xingu, com 359 km², e o Reservatório Intermediário, com 119 km. É, desde já, importante destacar que no caso Comunidade Indígena Yakye vs. Paraguai, decidido em 17.6.2005, a Corte Interamericana de Direitos Humanos assentou que a propriedade indígena pode sofrer restrições quando presente interesse social e um objetivo estatal legítimo. Confira-se trecho do voto: Constam dos autos, ainda, diversas matérias jornalísticas de 2022 informando problemas de escassez do cloreto de potássio no mercado mundial, devido à guerra na Ucrânia (id. 970735666). No volume 3, consta ainda a Nota n. 00144/2023/CONJUR-MAPA/CGU/AGU, a qual atesta que a demanda por fertilizantes potássicos aumentará bastante nos próximos anos e que a produção nacional está decaindo: O documento ainda atesta que o Projeto Autazes está intimamente ligado com caros direitos fundamentais de índole social e com os fundamentos da ordem econômica, os quais incumbe a Administração dar concretude: Por fim, requer-se a aplicação do art. 20 da LINDB no julgamento desta ACP n. 0019192-92.2016.4.01.3200: "Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas." Diante do quadro apresentado, sem resolver a questão sobre o local em que será instalado o projeto minerário é ou não terra indígena, há aparência de que o projeto possui interesse social, eis que visa a fornecer insumos para a agricultura -, e também persegue um objetivo estatal legítimo, podendo ser executado inclusive se estiver em terras indígenas, desde que obedecida a legislação brasileira. III.b. O Conselho Indígena Mura - CIM e a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV O Conselho Indígena Mura - CIM é inequivocamente a entidade representativa dos Mura que residem em Autazes. Da mesma forma, a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV é a organização que representa os Mura no município do Careiro da Várzea. Essa circunstância é inequívoca dos autos e está consignada no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Careiro da Várzea, Amazonas. Confira-se à fl. 30, no capítulo "Quem Fala Em Nome dos Mura?": "Apesar de a Constituição Federal garantir que nossas terras sejam demarcadas, o Estado ainda não demarcou todas. A demarcação é nossa maior luta. "Mas nós sabemos que temos direito à nossa autodeterminação e ao autogoverno. A Constituição Federal de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, e a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, de 2007, assinadas pelo Brasil, garantem nosso direito ao autogoverno: somente nós, Mura, podemos decidir quem representa nossas aldeias e nosso povo. Por isso criamos as nossas organizações. As aldeias da região onde fica o município de Autazes se reúnem nas assembleias do Conselho Indígena Mura - CIM, e as aldeias que ficam na região onde está o município do Careiro da Várzea se reúnem nas assembleias da Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea, OLIMCV. Estas nossas organizações são um direito nosso, assegurado pela Constituição Federal (art. 5º): temos o direito de nos organizar livremente e de tomar nossas decisões de maneira soberana e autônoma nas assembleias das nossas organizações. Quando os não-índios querem elaborar um projeto, medida ou lei, são obrigados a nos consultar antes, sem nos pressionar e nos informando sobre todos os detalhes da proposta. Para começar esse diálogo, que é a consulta prévia, os não-índios " III.c. As Entidades Representativas e o Poder de Fala dos Povos Originários Nos termos do art. 32 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, são as instituições representativas dos povos originários que devem falar pelos indígenas em fases de consulta. Confira-se: "1. Os povos indígenas têm o direito de determinar e de elaborar as prioridades e estratégias para o desenvolvimento ou a utilização de suas terras ou territórios e outros recursos. 2. Os Estados realizarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas próprias instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre e informado antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particularmente em relação ao desenvolvimento, à utilização ou à exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo. 3. Os Estados estabelecerão mecanismos eficazes para a reparação justa e equitativa dessas atividades, e serão adotadas medidas apropriadas para mitigar suas consequências nocivas nos planos ambiental, econômico, social, cultural ou espiritual." Também no caso do Povo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Equador, sentença de 27 de junho de 2012, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi expressamente consignado que “os Estados devem incorporar essas normas aos processos de consulta prévia, de maneira a gerar canais de diálogos sustentados, efetivos e confiáveis com os povos indígenas nos procedimentos de consulta e participação por meio de suas instituições representativas." Sendo assim, como as consultas e cooperação entre indígenas devem ser verbalizadas por meio das suas instituições representativas, não há dúvidas de que, no caso em concreto, quem deve falar sobre os interesses dos Muras de Autazes é o CIM e pelos Mura de Careiro da Várzea é a OLIMCV. A própria decisão de id. 925987687, do Juízo de origem, reconhece que o CIM é a instituição que representa parte do Povo Indígena Mura nestes autos: III.d. A Abrangência do Dever de Consulta, a Inexistência do Poder de Veto e o Momento Adequado Sobre a abrangência do dever de consulta, no document Handbook for ILO Triparte Constituents - Understanding the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), publicado pela OIT, com a finalidade de responder questões essenciais sobre a Convenção 169, é dito que um dos principais desafios da convenção é garantir que consultas apropriadas sejam realizadas antes da adoção de medidas legislativas ou administrativas que provavelmente afetarão diretamente os povos indígenas e tribais [2]. Segundo o que decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos em Garífuna Triunfo de La Cruz e seus membros vs. Honduras, os elementos essenciais do direito de consulta são “a) o caráter prévio da consulta; b) a boa-fé e a finalidade de chegar a um acordo; c) a consulta adequada e acessível; d) o estudo de impacto ambiental; e e) a consulta informada.” É incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública. Essa ideia é pedagogicamente explicada na obra "The Oxford Handbook of International Enviromental Law", de Lavanya Rajamani e Jacqueline Peel, ao tratar da Convenção 169 da OIT (pág. 739): "Governments shall consult, 'in good faith...with the objective of achieving agreement or consent to the proposed measures' when considering legislative or administrative measures which may affect Indigenous peoples directly. Special measures to safeguard persons, institutions, property, labour, cultures, and environment of the Indigenous peoples shall not be contrary to the freelyexpressed wishes of the peoples concerned. The Convention acknowleges Indigenous peoples to be distinct polities within states". Em tradução livre: "Os governos deverão consultar, 'de boa fé... com o objetivo de chegar a acordo ou consentimento para as medidas propostas' ao considerar medidas legislativas ou administrativas que possam afetar diretamente os povos indígenas. Medidas especiais para salvaguardar pessoas, instituições, propriedades, trabalho, culturas e meio ambiente dos povos indígenas não devem ser contrárias aos desejos livremente expressos dos povos envolvidos. A Convenção reconhece os povos indígenas como entidades políticas distintas dentro dos Estados". Portanto, devem os indígenas expressar livremente seus modos de criar, fazer e viver, nos termos do art. 216, II, da Constituição e devem ser ouvidos propriamente quando puderem ser afetados por medidas que os impactem. Mas não basta. É indispensável que suas ideias, expressadas num ambiente livre e sem intimidações, sejam consideradas pelo órgão ambiental e pelo poder público, como um todo, ao analisar o licenciamento e/ou autorização para uma obra ou empreendimento que puderem afetar tais comunidades tradicionais. Em outras palavras, esse poder de fala (livre) dos indígenas gera, em contrapartida, um dever de escuta das autoridades envolvidas. É importante esclarecer, porém, que isso não significa a existência de um poder de veto por parte da comunidade indígena. Realizar a consulta é uma obrigação convencional, com força supra legal. Acatar necessariamente a integralidade do que for demandado não parece ser, ao menos pelo que constatei da jurisprudência do STF e do que consta em documentos da própria OIT. Confira-se, nesse sentido, o que já decidiu o STF, no julgamento da PET 3388 ED/RR: "70. Por fim, conforme observado pelo Ministro Gilmar Mendes, a relevância da consulta às comunidades indígenas “não significa que as decisões dependam formalmente da aceitação das comunidades indígenas como requisito de validade” (fl. 799). Os índios devem ser ouvidos e seus interesses devem ser honesta e seriamente considerados. Disso não se extrai, porém, que a deliberação tomada, ao final, só possa valer se contar com a sua aquiescência . Em uma democracia, as divergências são normais e esperadas. Nenhum indivíduo ou grupo social tem o direito subjetivo de determinar sozinho a decisão do Estado. Não é esse tipo de prerrogativa que a Constituição atribuiu aos índios. 71. A mesma lógica se aplica em matéria ambiental, que também mereceu proteção diferenciada por parte do constituinte. Por isso mesmo, e com a devida vênia em relação à posição da embargante (fl. 16.165), não há um problema a priori no fato de que “as tradições e costumes indígenas” sejam considerados como “apenas mais um fator, a ser sopesado pela autoridade ambiental”. Em verdade, essa é uma circunstância inerente à unidade do sistema constitucional, que promove a tutela de um conjunto variado de interesses e direitos que, em diversas situações, podem entrar em rota de colisão. Ao não instituir uma hierarquia rígida ou estática entre tais elementos, a Constituição impõe a necessidade de que a concordância entre eles seja produzida em cada contexto específico, à luz de suas peculiaridades. 72. Assim, como responsável pela administração das áreas de preservação, o Instituto Chico Mendes não pode decidir apenas com base nos interesses dos indígenas, devendo levar em conta as exigências relacionadas à tutela do meio ambiente. Nesse cenário, é de fato possível – como afirma a embargante – que “o administrador da unidade de conservação, até pela sua posição institucional, ponha em primeiro plano a tutela ambiental, em detrimento do direito das comunidades indígenas”. Contudo, é igualmente possível que isso não ocorra, não cabendo a este Tribunal antecipar o erro, a negligência ou a má-fé. Em qualquer caso, os índios, suas comunidades e o próprio Ministério Público poderão recorrer ao Poder Judiciário sempre que reputarem inválida uma decisão do Instituto (ou de qualquer outra autoridade)." (Emb. Decl. na Petição 3.388/RR, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 23.10.2013) No mesmo sentido, são os comentários feitos no documento editado em 2019, pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, intitulado Excerpts from reports and comments of the ILO Supervisory Bodies - Applying the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), disponível no site da organização: Confira-se o que está dito nas fls. 48-49 do referido documento: "Concerning the nature of consultation, from the review of the preparatory work concerning Convention No. 169 and from the review of the wording of the two authoritative texts of the Convention, the Committee concludes that it was the intention of the drafters of the Convention that the obligation to consult under the Convention was intended to mean that: 1) consultations must be formal, full and exercised in good faith; 26 there must be a genuine dialogue between governments and indigenous and tribal peoples characterized by communication and understanding, mutual respect, good faith and the sincere wish to reach a common accord; 2) appropriate procedural mechanisms have to be put in place at the national level and they have to be in a form appropriate to the circumstances; 3) consultations have to be undertaken through indigenous and tribal peoples’ representative institutions as regards legislative and administrative measures; 4) consultations have to be undertaken with the objective of reaching agreement or consent to the proposed measures It is clear from the above that pro forma consultations or mere information would not meet the requirements of the Convention. At the same time, such consultations do not imply a right to veto, nor is the result of such consultations necessarily the reaching of agreement or consent." [3] A tradução livre deste trecho é a seguinte: "Quanto à natureza da consulta, da revisão dos trabalhos preparatórios relativos à Convenção nº 169 e da análise dos textos das duas versões autorizadas da Convenção, o Comitê conclui que os redatores da Convenção tinham a intenção de que a obrigação de consultar sob a Convenção significasse o seguinte: as consultas devem ser formais, completas e exercidas de boa fé; deve haver um diálogo genuíno entre os governos e os povos indígenas e tribais caracterizado pela comunicação e entendimento mútuos, respeito mútuo, boa fé e o sincero desejo de alcançar um acordo comum; mecanismos procedimentais apropriados devem ser estabelecidos no nível nacional e devem estar em uma forma adequada às circunstâncias; as consultas devem ser realizadas por meio das instituições representativas dos povos indígenas e tribais no que se refere a medidas legislativas e administrativas; as consultas devem ser realizadas com o objetivo de alcançar acordo ou consentimento quanto às medidas propostas. É claro a partir do exposto que consultas meramente formais ou simples fornecimento de informações não satisfariam os requisitos da Convenção. Ao mesmo tempo, tais consultas não implicam um direito de veto, nem o resultado dessas consultas necessariamente é o alcance de um acordo ou consentimento." É essencial, assim, deixar claro que a opção pelo empreendimento, ou não, é do Poder Público e a ele compete, respeitando os termos da Constituição e da legislação, licenciá-lo. Por fim, sobre o momento da consulta, no caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador, decidido em 27.12.2012, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi também referido que o “requisito de consulta prévia implica que essa consulta deva ser realizada antes de tomar-se a medida, ou executar o projeto suscetível de afetar as comunidades [...] e que as comunidades sejam envolvidas o quanto antes no processo”. III.e. Análise das alegações do agravo de instrumento Pois bem, apresentados estes esclarecimentos introdutórios, passa-se ao exame do agravo. Como dito, no recurso, é postulada a reforma da decisão agravada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". Ou seja, o que se deseja é que seja reconhecida como válida da consulta efetivada, bem como que seja definido que a área do projeto não é terra indígena, consequencia lógica para se afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional (art. 231, § 3º, CF). III.e.1. O Processo de Consulta no Caso Concreto O processo de consulta, no caso em questão, demandou anos para ser realizado. Pela análise dos autos, é possível perceber que o anúncio da descoberta das minas se deu 2010 e 2013 e o Estudo de Impacto Ambiental foi concluído em 2015 (id. 296953002), assim como a emissão da licença prévia pelo IPAAM, cuja validade é questionada na origem. Como a Ação Civil Pública nº 0019192-92.2016.4.01.3200 foi ajuizada em 2016, todo o processo de consulta foi acompanhado pelo Juízo. Antes de iniciar a fase de consulta, em 7.5.2018, foi determinada a suspensão de qualquer atividade de prospecção por parte da Potássio do Brasil Ltda., para que fosse iniciada a construção de um protocolo de consulta. O Juízo inclusive homologou a designação um antropólogo, o Dr. Bruno Walter Caporrino, para mediar, facilitar e presidir os trabalhos de construção do protocolo de consulta, tendo este sido remunerado pela Potássio do Brasil Ltda. Tanto a FUNAI, como o DNPM foram devidamente cientificados do procedimento definido. Confira-se o inteiro teor da decisão (id. 297015035): Ou seja, o presente caso apresenta uma particularidade em relação aos que normalmente são judicializados: toda a fase de consulta foi acompanhada pelo Juízo. É interessante verificar também o inteiro teor dos relatórios das oficinas realizadas nas aldeias, cuja elaboração coube ao Dr. Bruno Walter Caporrino. São trabalhos bastante extensos e ricos em em destacar o procedimento que estava sendo levado a efeito pelo perito. Por exemplo, o relatório constante do id. 297015043, protocolado nos autos em 2018, contém 169 páginas e é encaminhado por meio do ofício abaixo, com os seguintes termos: As seguintes aldeias foram visitadas: Ao todo, foram 19 atividades: Posteriormente, ainda houve a protocolização de relatórios complementares em 2019 (fls. 1255 - 1719 - id. 297031909). Após, houve uma Assembleia de Aprovação do Protocolo de Consulta e Consentimento Mura em 18.6.2019. A Lista de presença está à fl. 1.780-1.810 e a ata ás fls. 1.758-1779 - id. 297031909. Há juntada de DVDs com a audiência gravada e também de cópia impressa do protocolo (fls. 1.825-1.880 - id. 297047874). O procedimento foi plenamente aceito por todas as partes envolvidas, chegando o MPF, na petição de 11.9.2019 (fl. 1.906-1.909) a afirmar que se cuida de relevante momento para o Estado democrático de direito. Frise-se que as aldeias do Soares e Careiro receberam Oficinas, conforme acima relatado. Ficou também expresso que o princípio da vinculação ao aos termos do referido instrumento deveria reger a relação e que estava sendo inaugurado um interesse diálogo das fontes: Posteriormente, foi realizada audiência judicial na qual foi acordado que a Potássio do Brasil Ltda. entregaria até o dia 18.11.2019 a proposta do empreendimento oficialmente ao CIM e à OLIMCV. Confira-se a parte final da ata: Ato contínuo, em 18.11.2019, foi protocolada petição pela Potássio do Brasil Ltda. comunicando a entrega do material ao CIM e ao OLIMCV, as quais responderam confirmando o recebimento da documentação e dando o aceite no início do processo de consulta (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). O protocolo também foi feito perante a Justiça Federal, o MPF e o perito do juízo foi copiado nos emails. Em relação às características do empreendimento, foi informado o seguinte em documentos acostados aos autos: Após, com o início da pandemia da COVID-19, o processo sofreu atrasos e apenas foi retomado em 2021, depois da vacinação dos Mura. Foi apresentado orçamento da consulta, equivalente a R$ 1.258.687,90 (id. 637592027). Foi estabelecido um cronograma de reuniões com dos Povos Mura informado pelo CIM (id. 830734065), sendo que o plano era a conclusão até o final de maio de 2022: Após, foi realizada inspeção judicial em 29.3.2022 (Relatório - id. 1061672277) o que representou mais uma paralisação no processo. O ponto mais relevante consignado foi o seguinte: Em seguida, houve notícia de que o MPF protocolou a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200, mediante a qual pleiteia que seja concluída a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Ato contínuo, petição de 20.9.2022, o MPF relatou a existência de pressões e coações por parte da empresa sobre os povos indígenas de Autazes e região e a sobreposição da exploração minerária pretendida pela Potássio do Brasil Ltda. ao referido território tradicional indígena. Ademais, aduziu o MPF que as estruturas minerárias seriam construídas a aproximadamente dois quilômetros da área de moradia (casas da aldeia Soares), e dentro da área indígena reivindicada, território de uso tradicional do povo Mura. Nesse contexto, requer a suspensão da licença expedida quanto ao Projeto Potássio Amazonas/Autazes, bem como a suspensão do procedimento de consulta prévia até finalização do procedimento de demarcação do território (ACP 1015595-88.2022.4.01.3200), no qual haveria liminar concedida. Sobre esse pedido, a FUNAI se manifestou sobre a ausência de indícios de tradicionalidade (id. 1419622747): Após, em 16.2.2023, a FUNAI fez juntar aos autos documento intitulado Análise Cartográfica nº 138/2023, mediante a qual apresentou as seguintes conclusões (id. 1496199359): Veja-se, então, que se diz expressamente que há uma área de sobreposição, mas ao mesmo tempo afirma-se que há uma distância de 2,52 km da aldeia Soares da base de exploração. Foi também apontada uma área de influência considerada uma área de 10 km a partir da área total do “Projeto Potássio Amazonas – Autazes”, nos termos do Anexo I da Portaria Interministerial nº 60/2015 da FUNAI. O mapa trazido na inicial permite a compreensão da área: É curioso notar que a existência de indígenas e também de não indígenas na área do Lago do Soares foi identificada quando da demarcação da Terra Indígena Jauary, mas não entendeu-se que o local onde será instalado a base de exploração da Potássio do Brasil Ltda. não deveria ser abarcado no perímetro da respectiva terra. Confira-se a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): É importante perceber também que, segundo informações da FUNAI, o município de Autazes possui mais de 20 terras indígenas regularizadas ou em processo de demarcação. Ou seja, não é um município em relação ao qual já não se tenham sido feitas delimitações de áreas de tradicionalidade indígena. Além disso, é válido destacar que no Caso Povos Kaliña e Lokono VS. Suriname, decidido em 2015, ficou estabelecido que “para efeitos de delimitação, demarcação e titulação do território tradicional [...], a Corte estima que o direito à propriedade dos povos indígenas e tribais contempla garantias plenas sobre os territórios que tradicionalmente possuíram, ocuparam e utilizaram para exercer sua própria forma de vida, subsistência, tradições, cultura e desenvolvimento como povos”. No entanto a Corte assinalou que “sem prejuízo do exposto, existiriam outras áreas tradicionais complementares ou adicionais às que tenham tido acesso para suas atividades tradicionais ou de subsistência (que, caso seja conveniente, podem compartilhar outras finalidades), a respeito das quais se deve garantir, pelo menos, o acesso e uso, na medida em que seja cabível.” Ou seja, para a CIDH, nem toda área área que os indígenas utilizem para subsistência ou mesmo habitem configura necessariamente uma Terra Indígena. Chama a atenção o fato de que a própria inspeção judicial constatou a presença de populações ribeirinhas na região do Lago do Soares, as quais, ao que parece, estão lá também há muitos anos, sendo que existe uma convivência aparentemente harmoniosa: Na inicial da ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 é também reconhecida a existência de indígenas e ribeirinhos, tendo em vista que há aldeias e povoados na região: No caso acima a Corte também constatou que “efetivamente, dentro do território que os Povos Kaliña e Lokono alegam ser seu território tradicional, haveria, pelo menos 10 assentamentos maroons que estariam excluídos dessa queixa, a saber: 1) Albina; 2) Papatam; 3) Mankelekampu; 4) Mariakondre; 5) Eduardkondre; 6) Akoloikondre; 7) Bamboesi; 8) Koni; 9) Moengotapu; e 10) Adjoemakondre [...]. No entanto, a Corte não dispõe de informação suficiente que lhe permita esclarecer os argumentos relacionados a possíveis assentamentos maroons em: 1) Bilokondre; 2) Krontokondre; 3) Soke; 4) Pakirakondre; 5) Mopikondre; 6) Onikaikondre; 7) Manjabong; 8) Bonikondre ou Baajoebekampu; 9) Nengrekriki; 10) Solegakampu; e 11) Brunswijkkamp […]” E disse que, “sem prejuízo do exposto, sendo que é dever do Estado delimitar os territórios tradicionais, cabe a ele, mediante um processo consultivo e mediante as medidas necessárias de caráter administrativo e legais, conforme as normas internacionais na matéria, primeiramente delimitar os territórios que cabem aos Povos Kaliña e Lokono, em conformidade com o parágrafo 139 desta sentença, para assim proceder a sua demarcação e titulação, garantindo seu uso e gozo efetivo. Para isso, o Estado também deve respeitar os direitos que possam assistir aos povos tribais ou a seus membros na área. Para isso, o Estado deverá desenvolver, de comum acordo com as comunidades indígenas e maroons, regras de convivência pacíficas e harmoniosas no território em questão.” Por fim, o CIM, em 25.9.2023, protocolou petição comunicando que (i) aprovou o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta, bem como que (ii) aprovou pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil Ltda. faça a mineração. Eis a petição (id. 1829380152): Em anexo, foi apresentado o Relatório das Lideranças Mura de Autazes (id. 1829380154): Não houve juntada de documento de aprovação ou de rejeição do OLIMCV. Houve inclusive alteração do Protocolo de Consulta, excluindo a participação do OLIMCV, ou seja, dos Mura do município do Careiro da Várzea, em relação à deliberação da agravante. III.e.2. A Validade da Consulta Efetivada Cumpre examinar a validade da Consulta efetivada. Com efeito, foi devidamente reconhecido com ao CIM compete emitir manifestação de vontade sobre o Povo Mura de Autazes. Pela dicção do art. 6º da Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, “ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”. Não parecem existir argumentos que possam permitir que, ao menos em sede de cognição sumária, que a consulta realizada ao povo CIM não tenha sido efetuada com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. Como se depreendeu do histórico acima, houve um amplo debate com o Povo Mura de Autazes para entender o que significava o processo de consulta, compreender a relevância de examinar o projeto e também os direitos que terão frente a ele. O processo foi iniciado há quase 10 anos. Há notícias de oficinas, reuniões, audiências públicas. A aparência é que tenha sido um processo livre, eis que ainda houve acompanhamento judicial das etapas, algo que não é o usual. Seguiu-se, assim, o que havia determinado a FUNAI (fl. 1362 - id. 297018889): Não há notícia de que o CIM tenha alterado o posicionamento externado na petição acima. Este Relator recebeu as lideranças em seu Gabinete em Audiência e tudo foi reafirmado. Apesar de a consulta ter sido realizada após a emissão da licença prévia pelo IPAAM, ela foi feita antes de concretizado qualquer ato de instalação e exploração do empreendimento. Houve inclusive acordo judicial suspendendo as etapas, até que fosse concluída a Consulta. A licença prévia ainda continha como condicionante de que era necessária a apresentação do estudo de componente indígena à Funai. Confira-se (id. 296936996 - fl. 242): Não se pode, então, dizer que a consulta não obedeceu ao momento adequado. No caso concreto, não há realisticamente como ter existido uma consulta anterior à que foi realizada, uma vez que foi feita durante os estudos para ser decidir sobre a viabilidade ou não da obra. Ou seja, fase meramente preliminar, sem qualquer ato de execução, quando já identificados os riscos do empreendimento e quando ainda há um tempo "adequado para a discussão interna nas comunidades, para oferecer uma resposta adequada ao Estado". Além disso, os indígenas aparentemente tiveram amplo acesso à documentação do empreendimento, ao EIA/RIMA, ao Estudo de Componente Indígena e tiveram ampla chance de compreender o que está sendo proposto. Não se pode dizer que a realização de consulta por meio de audiências públicas não cumpre a obrigação de adequadamente consultar os povos. Os procedimentos apropriados exigidos pela Convenção são aqueles que os indígenas acharem apropriados. Se a audiência pública for assim considerada, não há porque concluir que não é adequado para o fim pretendido. Não há nada que imponha uma forma de consulta diversa, salvo a vontade dos indígenas. Por fim, chama a atenção de que o Protocolo de Consulta tenha sido alterado no curso do processo para separar o consentimento entre o CIM, o qual, como dito acima, inequivocamente representa os Mura que residem em Autazes, e a OLIMCV, entidade representativa que representa os Mura no município de Careiro da Várzea. Esta alteração, contudo, não tem o condão de retirar a validade da consulta efetivada. Isso, porque pela leitura dos autos, percebe-se que a própria Funai sempre se manifestou no sentido de que a população indígena potencialmente afetada era a dos Mura de Autazes. Confira-se o seguinte trecho, por exemplo (fl. 1.362 – id. 297018889), em que é dito que os indígenas que deveriam ser consultados são os da Terra Indígena Jauary e Paracuhuba, as quais, consoante a Análise Cartográfica nº 138/2023, são as que estão próximas do empreendimento: Além disso, o fato de que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, dissidência do CIM, não tenham se manifestado junto com o CIM não impede que eles expressamente se pronunciem sobre a consulta. A documentação dos autos comprova que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, então parte do CIM, receberam todos os documentos relativos ao empreendimento (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). A OLIMCV inclusive confirmou o recebimento do e-mail (id. 297047889 – p. 33): Existe a comprovação de que foram recebidas diversas unidades do protocolo de consulta, requerimento de despesas para realização de reuniões (id. 297018967): Confira-se, ainda, o seguinte documento (id. 637592035): É preciso dizer que a proteção dos povos e terras indígenas é permanente para o Estado Brasileiro. A mera circunstância de que a consulta foi realizada não satisfaz a obrigação permanente de assistência e proteção desses povos, ouvindo-os sempre de boa-fé e atendendo, quando possível, as demandas pleiteadas. O que se estabelece é um diálogo permanente e não momentâneo. Se novas dúvidas surgirem, se problemas antes não imaginados forem detectados, competirá ao Estado Brasileiro lidar com as questões e sanar esses problemas, de forma a dar ampla concretude aos direitos e garantias dos povos originários. Assim, caso a OLIMCV logre comprovar que a delimitação da Funai está de que os Mura de Careiro da Várzea deveriam também ser obrigatoriamente consultados, ainda que não haja notícias de que nenhuma aldeia será diretamente impactada pelo trajeto, tal diálogo tem totais condições de ainda ser estabelecido de maneira satisfatória, com a implantação de reparações necessárias, mesmo com o projeto em curso. Adicionalmente , também é de se considerar que o fato de os Mura da aldeia do Lago de Soares, situada em Autazes, terem ficado vencidos na alteração do protocolo de consulta e, posteriormente, terem decidido romper com a autoridade constituída, qual seja, o CIM, não invalida a alteração. No modelo deliberativo adotado pelos Mura de Autazes, não há exigência de unanimidade para a aprovação da alteração, a qual, é certo, inviabilizaria a conclusão do processo. Não é possível invalidar a alteração do protocolo de consulta somente porque os Mura do Lago de Soares, submetidos, incontroversamente, à data da deliberação, à autoridade do CIM, discordam da decisão. Chancelar a nulidade da alteração diante da discordância de uma parcela dos indígenas afetados representaria a inviabilização da construção de um protocolo de consulta e de qualquer deliberação, especialmente em relação a litígios complexos, vide o caso dos autos. Na obra Constitutional Strategies, o Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Berkeley, Robert Cooter, aponta as deficiências de um sistema baseado na regra da unanimidade: “O poder de barganha depende das consequências da falha na negociação. Se uma negociação é frustrada, cada parte deve fazer o seu melhor sem a cooperação dos demais. As partes que se beneficiam menos da cooperação terão o maior poder de barganha. Como uma parte pode ter êxito sem a cooperação das demais depende da regra da ação coletiva. Primeiramente, considere a regra da unanimidade. Negociações frustradas na regra da unanimidade paralisam as ações coletivas. Consequentemente, quando barganham sob a regra da unanimidade, as regiões e as coletividades com menor necessidade de cooperação podem demandar as melhores condições.[...] A força da negociação está nas mãos dos membros potenciais de uma coalizão majoritária. Quando se negocia sob uma regra de maioria, as regiões e as localidades dentro da coalizão interna podem demandar melhores condições de cooperação dos externos”. Por fim, é importante ter em mente que tanto os povos originários representados pela OLIMCV e pela Organização dos Mura do Lago do Soares tiveram amplo tempo e conhecimento do Projeto Autazes e podem ainda se pronunciar formalmente nos autos de origem sobre o que pensam a respeito do assunto. A circunstância de que houve uma ruptura do formato conjunto de todas as organizações de deliberação do Protocolo de Consulta em nada impede que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares emitam qualquer opinião sobre o Projeto nesses autos judiciais, tampouco que apresentem essa manifestação de vontade a qualquer órgão estatal. Há, ao meu sentir, um deslocamento do debate, como se a circunstância de a alteração do Protocolo represente a inviabilização de que essa emissão de vontade não possa mais ocorrer, o que não faz qualquer sentido. Em verdade, a ausência de manifestação formal sobre o tema da consulta para depois se alegar que a Consulta não ocorreu representa um veto em branco ao Projeto, pois se busca evitar a consolidação de uma etapa necessária deslocando o foco do debate. É importante ressaltar que a CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. Veja-se que essas organizações não alegam que não estão devidamente informadas, que não tiveram tempo para se reunir ou debater, que não receberam documentos, que não tiveram como debater o projeto com órgãos estatais ou com a empresa. O que se alega simplesmente é que o CIM não poderia ter aprovado isoladamente o projeto, sem que se diga se aprovam ou desaprovam e por quais razões. Veja o que disse a CIDH no caso Pueblo Indígena U’WA y sus miembros VS. Colombia: 191. Nos casos em que – tendo os Estados promovido a consulta de boa-fé e em conformidade com os padrões previamente estabelecidos (supra, parágrafos 168 a 178 e 190) – o povo indígena se recuse a participar, deverá ser considerado que o povo indígena está em desacordo com a atividade objeto da consulta e, portanto, a obrigação da consulta será considerada esgotada. Além disso, os Estados devem garantir que as medidas adotadas sejam proporcionais e respeitem o princípio da igualdade e da não discriminação, levando também em consideração a natureza da medida e seu impacto no território e na cultura. Do mesmo modo, os Estados devem garantir o acesso à justiça em relação às medidas que possam afetar diretamente um povo indígena ou tribal, a fim de verificar se a consulta prévia foi realizada em conformidade com as obrigações internacionais do Estado e com a jurisprudência desta Corte. Caso o povo indígena tenha se recusado a participar da consulta, a autoridade judicial deverá verificar se o Estado tomou medidas específicas e agiu de boa-fé para realizar a consulta prévia, livre e informada, e se, nesse contexto, a atividade restringe de forma desproporcional os direitos do povo indígena ou tribal. Tradução livre de: 191. En los casos en los que –habiendo los Estados impulsado la consulta de buena fe y conforme a los estándares previamente señalados (supra, párrs. 168 a 178 y 190)— el pueblo indígena se niegue a participar, deberá considerarse que el pueblo indígena está en desacuerdo con la actividad objeto de la consulta, y por lo tanto la obligación de la consulta se tendrá por agotada271. Además, los Estados deben garantizar que las medidas adoptadas sean proporcionales y respeten el principio de igualdad y no discriminación, tomando además en consideración la naturaleza de la medida y su impacto en el territorio y la cultura272. Asimismo, los Estados deben garantizar el acceso a la justicia frente a las medidas que puedan afectar directamente a un pueblo indígena o tribal, a fin de verificarse si la consulta previa fue realizada de conformidad con las obligaciones internacionales del Estado y la jurisprudencia de esta Corte. En caso de que el pueblo se haya negado a participar en la consulta, la autoridad judicial deberá verificar si el Estado tomó medidas específicas y de buena fe a fin de realizar la consulta previa, libre e informada, y si en ese contexto la actividad limita de forma desproporcionada los derechos del pueblo indígena o tribal. Fonte: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_530_esp.pdf Sendo assim, deve-se considerar que a etapa de consulta foi adequadamente cumprida e que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares, por não emitirem pronunciamento expresso sobre os termos da consulta, apesar de cientes dessa prerrogativa – uma vez que participaram da elaboração do protocolo de consulta –, bem como dos termos do projeto, uma vez que receberam da Potássio o e-mail contendo todas as informações -, simplesmente se recusaram a participar. Por tal razão, os órgãos estatais devem considerar que recusaram o projeto, sem que isso implique poder de veto. Frise-se que a ausência da manifestação dessas associações não exime o Estado de proteger legitimamente os indígenas que habitam nas aldeias que representam. Como disse a União no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000, “todos os impactos ambientais e socioculturais do empreendimento sobre o povo mura do Lago de Soares e da Vila de Urucurituba estão sendo devidamente tratados no licenciamento ambiental em curso. Durante o licenciamento, foi elaborado estudo do Componente Indígena, indicando as consequências sociais e ambientais do empreendimento, bem como apresentados formas de mitigação/compensação” (id. 274290022 – fl. 39). Ante esse quadro, ao menos em juízo preliminar, não há razões para concluir que o Estado Brasileiro não cumpriu os seus compromissos internacionais de respeito aos direitos humanos indígenas em relação ao projeto de aprovação da licença prévia do empreendimento em questão, uma vez que procedeu adequadamente quanto à consulta destes povos. III.e.3. A Competência para Licenciar o Empreendimento A decisão agravada ainda consignou ser o IBAMA o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto. Creio estar a compreensão equivocada e que o correto entendimento foi abordado de forma minuciosa pela União quando da interposição do Agravo de Instrumento n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que será julgado na mesma oportunidade deste recurso. Coaduno com a fundamentação exposta pela União, pelo que integro-a às razões de decidir deste agravo. A Lei Complementar 140, de 8 de dezembro de 2011, regulamenta a competência dos entes federativos em questões ambientais, estabelecendo diretrizes para cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Alinhada à Constituição Federal, a norma aborda ações administrativas conjuntas relacionadas à proteção do meio ambiente, combate à poluição e preservação de recursos naturais, como florestas, fauna e flora. Essa norma promoveu uma divisão clara de competências, reduzindo conflitos especialmente no âmbito do licenciamento ambiental, que antes era regulado majoritariamente pela Resolução 237 do CONAMA. A lei determina que apenas um órgão será responsável pela aprovação, fiscalização e eventual sanção, assegurando celeridade, transparência e segurança jurídica no processo de licenciamento. A lei também prevê instrumentos de cooperação, como consórcios públicos, convênios e delegações de competências, desde que o ente delegado disponha de estrutura técnica e conselho ambiental adequados. A simplificação do licenciamento ambiental permite que empreendimentos poluidores ou potencialmente degradantes sejam licenciados pelo órgão competente de qualquer nível federativo, inclusive municipal, promovendo eficiência administrativa. Confira-se os dispositivos da norma que tratam sobre a competência de cada ente federativo, sobretudo com relação ao licenciamento ambiental: Art. 7º São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: a) localizados ou desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; b) localizados ou desenvolvidos no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva; c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; d) localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pela União, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados; f) de caráter militar, excetuando-se do licenciamento ambiental, nos termos de ato do Poder Executivo, aqueles previstos no preparo e emprego das Forças Armadas, conforme disposto na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999; g) destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen); ou h) que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento; -.-.- Art. 8° São ações administrativas dos Estados: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7° e 9°; XV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pelo Estado, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); -.-.- Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade; ou b) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); Dito isso, peço licença para transcrever a argumentação da União nos autos do AI n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que adoto como razões de decidir: "[p]ercebe-se que a LC nº 140/2011 trouxe diferentes critérios definidores de competência para cada ente (União – localização e tipo de atividade; Município – alcance do impacto ambiental; Estado – residual). Cada critério não se confunde com os demais e não tem aplicação a outros entes federativos. Da leitura do art. 8º, XIV depreende-se que aquilo que não estiver expressamente taxado como sendo competência da União (art. 7º) ou dos Municípios (art. 9º) é competência dos Estados-membros (caráter residual). Por isso, nada mais natural do que ler as competências contidas na LC nº 140 de forma restritiva ou literal em relação a União e Municípios. Como destacou o TRF da 1ª Região, ao tratar da interpretação restritiva em caso envolvendo competência para licenciamento ambiental, assim como na Constituição, “o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal.” (TRF da 1a Região, 5a T., v.u., AC 0000267- 95.2005.4.01.3600, rel. Des. João Batista Moreira, j. em 17/08/2011, eDJF1 26/08/2011, p. 153.) Dessa forma, não cabem considerações expansivas da competência da União, devendo o intérprete trabalhar com o texto dado pela LC 140, não podendo usar argumentos não previstos expressamente na lei. Na perspectiva da LC n. 140/2011, a competência para licenciamento será federal apenas quando estiver configurada uma das hipóteses previstas no art. 7º, XIV, que estabelece apenas critério de localização e de tipo de atividade ou no caso de empreendimentos que atendam a tipologia prevista na alínea "h" (atualmente definida no Decreto nº 8.437, de 22 de abril de 2015). Percebe-se, portanto, que para que haja competência federal para licenciamento prevista no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140/2011 (Terra Indígena), deve-se atender ao critério da localização do empreendimento – não tendo aplicação o critério do alcance dos impactos: Art. 7° São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: (...) c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; Quando o legislador quis adotar o critério do âmbito do impacto ambiental da atividade ou empreendimento, o fez de forma explícita: Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade Percebe-se, claramente, que o legislador adotou o critério do alcance do impacto ambiental no art. 9º, XIV, “a” da LC nº 140 como definidor apenas da competência para licenciamento dos Municípios. Já no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140 constata-se que não houve menção alguma ao âmbito de impacto do empreendimento, mas apenas à localização e ao desenvolvimento da atividade: “localizados ou desenvolvidos em terras indígenas”. Se quisesse adotar o critério do impacto ambiental para competência federal, o legislador teria definido que são ações administrativas da União promover o licenciamento de empreendimentos e atividades que causem ou possam causar impacto ambiental em Terra Indígena. Não o fez. Optou pelo critério da localização. Houve, portanto, silêncio eloquente do legislador, que, em relação ao licenciamento de atividades em Terra Indígena optou por afastar o critério do alcance do impacto e adotar exclusivamente o critério da localização do empreendimento. Ou seja, a competência somente será fixada como federal quando o empreendimento estiver localizado dentro da Terra Indígena, não se aplicando o critério de impacto ambiental para fixação da competência federal. O empreendimento tratado na demanda está localizado e será desenvolvido completamente fora de Terra Indígena (demarcada e em demarcação). Em relação à INSTRUÇÃO NORMATIVA CONJUNTA Nº 1, de 22 de fevereiro de 2021 da Funai, mencionada no despacho a que a Juíza faz referência na decisão agravada, destaca-se que o ato dispõe sobre os procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor seja organização indígena. O que reforça que a competência federal se dá no caso de empreendimento localizado ou desenvolvido no interior de terra indígena – e não de atividades que possam afetar terra indígena. Ademais, as áreas de influência direta e indireta dos impactos ambientais do empreendimento devem vir definidas no EIA, que é elaborado por equipe multidisciplinar habilitada, responsável tecnicamente pelos estudos apresentados. No caso do empreendimento em tela, verifica-se que o EIA apresentado definiu a área de influência dos impactos ambientais do empreendimento em dois quilômetros quadrados (2 km²) no Projeto Autazes. O empreendimento, como demonstrado anteriormente, encontra-se a 8 km dos limites de terras indígenas demarcadas e em demarcação. Quanto à Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, imperioso tecermos alguns comentários. Inicialmente, importante destacar que a referida portaria estabelece procedimentos administrativos para oitiva da FUNAI, da Fundação Cultural Palmares, do IPHAN e do Ministério da Saúde em licenciamentos ambientais que já são de competência do Ibama. A portaria não estabelece, portanto, critério para definição de competência, mas apenas regras e procedimentos administrativos para a oitiva dos mencionados entes e órgãos. Assim, no curso de licenciamento que já está ocorrendo perante o Ibama: (a) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra quilombola, deverá haver manifestação da Fundação Cultural Palmares, (b) se constatada a ocorrência de bens culturais acautelados em âmbito federal na área de influência da atividade, deverá haver manifestação do IPHAN, (c) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra indígena, deverá haver manifestação da FUNAI e (d) se o empreendimento localizar-se em município pertencente à área de risco ou endêmica para malária, deverá haver oitiva do Ministério da Saúde. Percebe-se claramente que a portaria não fixa critérios de definição de competência para licenciamento pelo Ibama. Não se cogita competência do Ibama para licenciar empreendimento pelo simples fato de impactar em terra quilombola, afetar bens culturais acautelados no âmbito federal ou estar localizado em área de risco de malária. Assim, a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Do mesmo modo, a presunção de intervenção em terra quilombola, quando o empreendimento estiver no raio de 10 km (art. 3º, § 2º, II c/c Anexo I), obviamente, também não gera competência automática do Ibama, gerando apenas a necessidade de oitiva da Fundação Cultural Palmares. (...) A Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, portanto, não prevê competência da União (IBAMA) para licenciar quando se presume a intervenção em terra indígena (ou em terra quilombola ou em área de risco de malária ou em área com bens culturais acautelados) pelo fato do empreendimento estar localizado no raio de 10 km. A referida norma infralegal não atrai a competência do IBAMA por ausência de previsão no art. 7º da L.C 140/11, gerando apenas a exigência de oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), e não usurpação da competência para licenciar. Nesse ponto, importante diferenciar o critério para definição de competência para licenciamento, qual seja, a localização dentro de Terra Indígena, que deve ser interpretado restritivamente (art. 7º, XIV, “c” e art. 8º XIV), do critério para realização de Estudo de Componente Indígena ou de Consulta Prévia a povos indígenas e comunidades tradicionais, que é qualquer medida suscetível de afetá-los, o que admite uma interpretação mais elástica e, inclusive, foi objeto de concordância entre as partes para a sua realização. Percebe-se, então, que a hipótese normativa do art. 7º, XIV, inciso “c” da Lei Complementar n. 140 se aplica exclusivamente aos projetos localizados no interior de terras indígenas. No caso de empreendimento fora de terra indígena, a competência será do órgão ambiental estadual, mesmo que haja necessidade de ECI, de Consulta Prévia e haja reflexo na TI". Entendo correta assim a conclusão a que chegou a União, a partir da leitura da legislação, de que a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Afora esse aspecto, existe precedente do STF, com eficácia vinculante, que expressamente abordou a questão e reconheceu que é possível que um órgão ambiental estadual licencie um empreendimento em um caso em que efeitos indiretos para comunidades indígenas possam ocorrer. Foi justamente a ADI 4.757, que analisou a constitucionalidade da Lei Complementar nº 140/2011. Confira-se a ementa: CONSTITUCIONAL. AMBIENTAL. FEDERALISMO COOPERATIVO. COMPETÊNCIA COMUM EM MATÉRIA AMBIENTAL. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 23 CF. LEI COMPLEMENTAR Nº 140/2011. FEDERALISMO ECOLÓGICO. DESENHO INSTITUCIONAL DA REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS FUNDADO NA COOPERAÇÃO. RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE. DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE. DEVERES FUNDAMENTAIS DE PROTEÇÃO COMO PARÂMETRO NORMATIVO DE CONTROLE DE VALIDADE (ARTS. 23, PARÁGRAFO ÚNICO, 225, CAPUT, § 1º). RACIONALIDADE NO QUADRO ORGANIZATIVO DAS COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS. EFICIÊNCIA E COORDENAÇÃO DO AGIR ADMINISTRATIVO. VALORES CONSTITUCIONAIS. PODER DE POLÍCIA AMBIENTAL DE LICENCIAMENTO E ATIVIDADES FISCALIZATÓRIAS. EXISTÊNCIA E CAPACIDADE INSTITUCIONAL DOS ÓRGÃOS AMBIENTAIS COMO REQUISITO DA REGRA GERAL DE COMPETÊNCIA INSTITUÍDA NA LEI COMPLEMENTAR. ATUAÇÃO SUPLETIVA E SUBSIDIÁRIA. TUTELA EFETIVA E ADEQUADA DO MEIO AMBIENTE. LIMITES DA COGNIÇÃO JURISDICIONAL NO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO FEDERAL ATRIBUÍDA AO § 4º DO ART. 14 E AO 3º DO ART. 17. PROCEDÊNCIA PARCIAL. 1. A Lei Complementar nº 140/2011 disciplina a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora, em resposta ao dever de legislar prescrito no art. 23, III, VI e VI, da Constituição Federal. No marco da Política Nacional do Meio Ambiente, instituída pela Lei nº 6.938/1981, e da forma federalista de organização do Estado constitucional e ecológico, a Lei Complementar nº 140/2011 foi a responsável pelo desenho institucional cooperativo de atribuição das competências executivas ambientais aos entes federados. 2. Legitimidade ativa da Associação Nacional dos Servidores de Carreira de Especialista em Meio Ambiente e Pecma (ASIBAMA). Inegável a representatividade nacional da associação requerente, assim como a observância do requisito da pertinência temática para discutir questões versando alteração estrutural do sistema normativo de proteção do meio ambiente, conforme descrito no art. 3º, VI, do Estatuto Social juntado ao processo, quando do ajuizamento da presente ação. Reconhecimento da legitimidade da associação autora na ADI 4.029 (caso Instituto Chico Mendes). 3. O Supremo Tribunal Federal, acerca do alcance normativo do parágrafo único do art. 65 do texto constitucional, definiu interpretação jurídica no sentido de que o retorno à Casa iniciadora apenas deve ocorrer quando a Casa revisora, em seu processo deliberativo, aprovar modificação substancial do conteúdo do projeto de lei. Afastado, no caso, o vício de inconstitucionalidade formal do § 3º do art. 17. 4. Da interpretação do art. 225 da Constituição Federal, fundamento normativo do Estado de Direito e governança ambiental, infere-se estrutura jurídica complexa decomposta em duas direções normativas. A primeira voltada ao reconhecimento do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, em uma perspectiva intergeracional. A segunda relacionada aos deveres de proteção e responsabilidades atribuídos aos poderes constituídos, aos atores públicos e à sociedade civil em conjunto. A preservação da ordem constitucional vigente de proteção do meio ambiente, densificada nos seus deveres fundamentais de proteção, impõe-se, pois, como limite substantivo ao agir legislativo e administrativo. O que significa dizer que tanto a Política Nacional do Meio Ambiente, em todas as suas dimensões, quanto o sistema organizacional e administrativo responsável pela sua implementação, a exemplo do Sistema Nacional do Meio Ambiente, dos Conselhos Nacionais, Estaduais e Municipais, devem traduzir os vetores normativos do constitucionalismo ecológico e do federalismo cooperativo. 5. A Lei Complementar nº 140/2011, em face da intricada teia normativa ambiental, aí incluídos os correlatos deveres fundamentais de tutela, logrou equacionar o sistema descentralizado de competências administrativas em matéria ambiental com os vetores da uniformidade decisória e da racionalidade, valendo-se para tanto da cooperação como superestrutura do diálogo interfederativo. Cumpre assinalar que referida legislação não trata sobre os deveres de tutela ambiental de forma genérica e ampla, como disciplina o art. 225, §1º, IV, tampouco regulamenta o agir legislativo, marcado pela repartição concorrente de competências, inclusive no tocante à normatização do licenciamento em si. 6. O modelo federativo ecológico em matéria de competência comum material delineado pela Lei Complementar nº 140/2011 revela quadro normativo altamente especializado e complexo, na medida em que se relaciona com teia institucional multipolar, como o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), e com outras legislações ambientais, como a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) e a Lei de Infrações penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente (Lei nº 9.605/1998). O diálogo das fontes revela-se nesse quadro como principal método interpretativo. 7. Na repartição da competência comum ( 23, III, VI e VII CF), não cabe ao legislador formular disciplina normativa que exclua o exercício administrativo de qualquer dos entes federados, mas sim que organize a cooperação federativa, assegurando a racionalidade e a efetividade nos encargos constitucionais de proteção dos valores e direitos fundamentais. Ademais, os arranjos institucionais derivados do federalismo cooperativo facilita a realização dos valores caros ao projeto constitucional brasileiro, como a democracia participativa, a proteção dos direitos fundamentais e a desconcentração vertical de poderes, como fórmula responsiva aos controles social e institucional. Precedentes. 8. O nível de ação do agir político-administrativo nos domínios das competências partilhadas, próprio do modelo do federalismo cooperativo, deve ser medido pelo princípio da subsidiariedade. Ou seja, na conformação dos arranjos cooperativos, a ação do ente social ou político maior no menor, justifica-se quando comprovada a incapacidade institucional desse e demonstrada a eficácia protetiva daquele. Todavia, a subsidiariedade apenas apresentará resultados satisfatórios caso haja forte coesão entre as ações dos entes federados. Coesão que é exigida tanto na dimensão da alocação das competências quanto na dimensão do controle e fiscalização das capacidades institucionais dos órgãos responsáveis pela política pública. 9. A Lei Complementar nº 140/2011 tal como desenhada estabelece fórmulas capazes de assegurar a permanente cooperação entre os órgãos administrativos ambientais, a partir da articulação entre as dimensões estáticas e dinâmicas das competências comuns atribuídas aos entes federados. Desse modo, respeitada a moldura constitucional quanto às bases do pacto federativo em competência comum administrativa e quanto aos deveres de proteção adequada e suficiente do meio ambiente, salvo as prescrições dos arts. 14, § 4º, e 17, § 3º, que não passam no teste de validade constitucional. 10. No § 4º do art. 14, o legislador foi insuficiente em sua regulamentação frente aos deveres de tutela, uma vez que não disciplinou qualquer consequência para a hipótese da omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental. Até mesmo porque para a hipótese de omissão do agir administrativo no processo de licenciamento, o legislador ofereceu, como afirmado acima, resposta adequada consistente na atuação supletiva de outro ente federado, prevista no art. 15. Desse modo, mesmo resultado normativo deve incidir para a omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental, disciplinado no referido § 4º do art. 14. 11. Um dos princípios fundamentais do funcionamento do sistema legal de tutela do meio ambiente é o da atuação supletiva do órgão federal, seja em matéria de licenciamento seja em matéria de controle e fiscalização das atividades ou empreendimentos potencialmente poluidores ou degradantes do meio ambiente. No exercício da cooperação administrativa, portanto, cabe atuação suplementar – ainda que não conflitiva – da União com a dos órgãos estadual e municipal. As potenciais omissões e falhas no exercício da atividade fiscalizatória do poder de polícia ambiental por parte dos órgãos que integram o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) não são irrelevantes e devem ser levadas em consideração para constituição da regra de competência fiscalizatória. Diante das características concretas que qualificam a maioria dos danos e ilícitos ambientais de impactos significativos, mostra-se irrazoável e insuficiente regra que estabeleça competência estática do órgão licenciador para a lavratura final do auto de infração. O critério da prevalência de auto de infração do órgão licenciador prescrito no § 3º do art. 17 não oferece resposta aos deveres fundamentais de proteção, nas situações de omissão ou falha da atuação daquele órgão na atividade fiscalizatória e sancionatória, por insuficiência ou inadequação da medida adotada para prevenir ou reparar situação de ilícito ou dano ambiental. 12. O juízo de constitucionalidade não autoriza afirmação no sentido de que a escolha legislativa é a melhor, por apresentar os melhores resultados em termos de gestão, eficiência e efetividade ambiental, mas que está nos limites da moldura constitucional da conformação decisória. Daí porque se exige dos poderes com funções precípuas legislativas e normativas o permanente ajuste da legislação às particularidades e aos conflitos sociais. 13. A título de obter dictum faço apelo ao legislador para a implementação de estudo regulatório retrospectivo acerca da Lei Complementar nº 140/2011, em diálogo com todos os órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente, como método de vigilância legislativa e posterior avaliação para possíveis rearranjos institucionais. Sempre direcionado ao compromisso com a normatividade constitucional ambiental e federativa. Ademais, faço também o apelo ao legislador para o adimplemento constitucional de legislar sobre a proteção e uso da Floresta Amazônia (art. 225, § 4º), região que carece de efetiva e especial regulamentação, em particular das atividades fiscalizadoras, frente às características dos crimes e ilícitos ambientais na região da Amazônia Legal. 14. Improcedência dos pedidos de declaração de inconstitucionalidade dos arts. 4º, V e VI, 7º, XIII, XIV, “h”, XV e parágrafo único, 8º, XIII e XIV, 9º, XIII e XIV, 14 § 3º, 15, 17, caput e §§ 2º, 20 e 21, Lei Complementar nº 140/2011 e, por arrastamento, da integralidade da legislação. 15. Procedência parcial da ação direta para conferir interpretação conforme à Constituição Federal: (i) ao § 4º do art. 14 da Lei Complementar nº 140/2011 para estabelecer que a omissão ou mora administrativa imotivada e desproporcional na manifestação definitiva sobre os pedidos de renovação de licenças ambientais instaura a competência supletiva dos demais entes federados nas ações administrativas de licenciamento e na autorização ambiental, como previsto no art. 15 e (ii) ao § 3º do art. 17 da Lei Complementar nº 140/2011, esclarecendo que a prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ou autorização ambiental não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, desde que comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória. (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023) Importante destacar que também esta Corte já decidiu no sentido de que a competência será do órgão ambiental estadual nos casos em que o empreendimento está localizado fora de terra indígena. Confira-se: DIREITO ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. USINA HIDRELÉTRICA. LICENCIAMENTO. COMPETÊNCIA, EM REGRA, DE ENTIDADE ESTADUAL. CONSTRUÇÃO FORA DE TERRA INDÍGENA E IMPACTOS REGIONAIS INDIRETOS. COMPETÊNCIA FEDERAL TAXATIVAMENTE PREVISTA EM LEI E EM RESOLUÇÃO DO IBAMA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE JUSTIFIQUEM COMPETÊNCIA DA AUTARQUIA FEDERAL. SENTENÇA QUE ACOLHE ORIENTAÇÃO EM SENTIDO OPOSTO. APELAÇÃO. RECEBIMENTO SÓ NO EFEITO DEVOLUTIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM QUE SE PRETENDE TAMBÉM EFEITO SUSPENSIVO. PROVIMENTO. (...) 3. Emerge dos autos que a PCH Paranatinga II não está projetada em rio da União (o que, aliás, não seria determinante de competência do IBAMA para o licenciamento) e nem em terras indígenas, apenas encontrando-se a relativa distância de terras indígenas ("33,81 km da Terra dos Parabubure, 62,52 km da Marechal Rondon e 94,12 km do Parque Nacional do Xingu"). Também emerge claro que o impacto ambiental em outro Estado é indireto. A pouca potencialidade para atingir gravemente, mesmo de forma indireta, terras indígenas, uma região inteira ou outro Estado-membro pode ser deduzida do tamanho do lago (336,8 ha), área à qual foram reduzidos os 1.290 ha inicialmente previstos, questão esta não apreciada na sentença. 4. Algum impacto a construção da usina trará à bacia do Rio Xingu e a terras indígenas, mas esses impactos são indiretos, não afastando a competência da entidade estadual para o licenciamento. (...) justifica-se a competência do IBAMA quando o empreendimento esteja sendo desenvolvido em terras indígenas, não o que possa refletir sobre terras indígenas. O próprio juiz diz que há "prova irrefutável de que o empreendimento questionado nesta lide trará conseqüências ambientais e sociais para os povos e terras indígenas que lhe são próximos". (...) 6. Na Constituição as competências materiais da União vêm expressas (enumeradas), ficando para os Estados-membros e Distrito Federal as competências remanescentes, significando dizer que em regra (por exclusão das competências da União, taxativamente previstas) as competências são dos Estados-membros. Assim na Constituição, o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal. (...) 8. Provimento ao agravo de instrumento, com atribuição de efeito suspensivo à apelação. (TRF da 1ª Região. Processo Numeração Única: 0020981-75.2006.4.01.0000. AG 2006.01.00.020856-8 / MT; AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA. Órgão: QUINTA TURMA. Publicação: 09/11/2006 DJ P. 65. Data Decisão: 20/09/2006) Com efeito, vale destacar trechos relevantes do referido julgado: "(...) Assim, conforme se extrai da legislação supracitada, não seria o caso de competência do IBAMA para conduzir o licenciamento. Isso porque as atividades do empreendimento, embora estejam localizadas a relativa proximidade das comunidades indígenas mencionadas pelo Ministério Público Federal, não se situam em terras indígenas. (...) o empreendimento não está inserido em terras indígenas, estando dispensada a atuação do IBAMA com fundamento no disposto no inciso I do artigo 4º acima transcrito. (...) Portanto, a Lei Complementar nº 140/2011 veio reafirmar as regras de distribuição de competências trazidas pela Resolução nº 237/97 de forma que resta afastada a competência do IBAMA para licenciamento das atividades". Frise-se que não há qualquer alegação de insuficiência ou incapacidade técnica do órgão ambiental estadual do Amazonas para licenciar o empreendimento, o que justifica a manutenção da competência. Ao Ibama, no entanto, ainda que não tenha a competência para licenciar, remanesce um dever de vigilância, podendo impor condicionantes adicionais que julgue adequadas. Confira-se trecho do voto da Ministra Rosa Weber (fl. 85): Assim, considerando o empreendimento objeto da lide se encontra a cerca de 8 quilômetros dos limites de terras indígenas demarcadas, a competência para processar o licenciamento não é do ente federal. Nesse sentido, deve prevalecer o argumento do IBAMA no sentido de que "não compete ao IBAMA o licenciamento ambiental do projeto de mineração Potássio do Brasil por não se desenvolver ou estar localizado em terra indígena, regra prevista no artigo 7º, inciso XIV, alínea c, da Complementar n. 140/2011 como atribuição do ente federal, razão pela qual merece reforma a decisão atacada para definir a atribuição legal do IPAAM para conduzir o licenciamento ambiental em questão". Por fim, não há alegação de que alguma condicionante específica deveria ter sido exigida pelo IPAAM e não foi, o que poderia demandar a competência supletiva do IBAMA. Aparentemente, as condicionantes foram adequadas, consoante se extrai da leitura da Licença Prévia n. 54/15: Confira-se, expressamente, a existência das condicionantes indígenas: Vale ressaltar que o caso em questão em nada se assemelha com o julgado do STF no RE 1.379.751, caso do licenciamento da Usina de Belo Monte, uma vez que lá foi discutida a ausência de consulta aos povos indígenas afetados antes da edição do Decreto Legislativo 778, de 13 de julho de 2005, o qual autorizou o Poder Executivo a implantar o Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte, localizado em trecho do Rio Xingu, no Estado do Pará, antes da necessária oitiva às comunidades afetadas. Aqui houve a oitiva e foi realizada no momento adequado, como se expôs acima. Afora esse aspecto, no caso acima, não houve discussão sobre competência para licenciamento, uma vez que este coube ao IBAMA e não ao órgão ambiental do Pará. Tampouco existe similaridade com o que decidido pelo STJ no AgInt no REsp 1.390.476/PR, citado pelo voto divergente, em que expressamente se assentou que o licenciamento de terminal portuário seria do IBAMA e não do órgão ambiental por conta de diversos fatores, como a circunstância de que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva, nos termos do art. 7º, XIV, ‘a’, da LC 140/2011. Essa situação fática não está presente neste caso. Confira-se: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA. IBAMA. ATIVIDADE DE TERMINAL PORTUÁRIO QUE PODE CAUSAR SIGNIFICATIVO IMPACTO AMBIENTAL. CONTROVÉRSIA RESOLVIDA, PELO TRIBUNAL DE ORIGEM, À LUZ DAS PROVAS DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO, NA VIA ESPECIAL. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara Recurso Especial interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC/73. II. Na origem, "o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública (...) em face do Instituto Ambiental do Paraná e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, requerendo a declaração da competência do órgão ambiental federal - IBAMA, para que assuma a presidência do procedimento do licenciamento ambiental até então conduzido pelo órgão ambiental estadual (IAP), em virtude de manifesta incompetência deste órgão". O Tribunal de origem reformou a sentença, que havia reconhecido a competência do órgão estadual para o licenciamento ambiental. III. O entendimento firmado, à luz das provas dos autos, pelo Tribunal a quo - no sentido de que, "considerando que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva; que o empreendimento, por situar-se em área contígua a terras indígenas, trará impactos a essa comunidade; que serão afetados bens que apresentam relevância histórica e cultural e, por fim, que há potencial de dano ambiental de caráter regional, conclui-se que a competência para o licenciamento ambiental é do IBAMA, razão pela qual deve ser reformada a sentença que julgou improcedente a ação" - não pode ser revisto, pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial, sob pena de ofensa ao comando inscrito na Súmula 7 desta Corte. Precedentes do STJ. IV. Agravo interno improvido. (AgInt no REsp n. 1.390.476/PR, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 29/4/2020, DJe de 5/5/2020.) IV. A Reivindicação da Terra Indígena Soares/Urucurituba Como dito, o MPF propôs a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 na qual alega que omissão estatal na regularização fundiária de Terra Indígena Soares/Urucurituba, mesmo diante de robustas provas documentais e antropológicas que confirmariam a ocupação tradicional. A área encontra-se sob forte pressão devido à exploração de silvinita pela empresa Potássio do Brasil Ltda., que, segundo relatórios técnicos, ameaça o equilíbrio ambiental e o modo de vida das comunidades indígenas. O pedido se baseia na violação de direitos fundamentais dos povos indígenas e no risco iminente de danos irreversíveis ao meio ambiente e à preservação cultural. A FUNAI, apesar de reiterados ofícios e manifestações do MPF, não deu andamento ao processo demarcatório, acarretando prejuízos irreparáveis às comunidades tradicionais. O MPF requereu a suspensão deste processo para fins de aguardar o posicionamento da Diretoria de Proteção Territorial (DPT) Funai sobre o tema relativo a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Além disso, o MPF reiterou, de todo modo, o pedido anteriormente feito sobre a necessidade de suspensão de todo processo judicial, e consequentemente da consulta nos moldes da Convenção 169 da OIT, enquanto a questão prejudicial da demarcação da terra indígena Soares/Urucurituba não for definida pelo juízo. Com todas as vênias, entendo que essa pretensão não merece prosperar. A uma, pois já foi longamente exposto que, historicamente, a posição da FUNAI foi contrária à pretensão de demarcação daquela área (1419622747): Foi ainda devidamente assinalado que aquela área já havia sido estudada quando da delimitação dos limites da Terra Indígena Jauary, bem como que a área, apesar de conter alguns indígenas, também possui população ribeirinhas, o que pode inclusive levar a se concluir não ser Terra Tradicional. Confira-se novamente a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): A União também aduziu a inexistência de fumus boni iuris na petição de agravo protocolada no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000 (id. 274290019): Como aqui se está a examinar o feito em sede de cognição sumária, frente aos prejuízos que o atraso do projeto pode gerar para os objetivos estatais legítimos, é de se concluir que não se faz concretizada aparência legítima de direito a ponto de legitimar a suspensão. Se não se está diante de Terra Indígena demarcada, inclusive sequer limitada, estando o projeto em seu estágio inicial, não se pode presumir que seja Terra Indígena e, portanto, que haja necessidade de autorização do Congresso Nacional para o prosseguimento do empreendimento. Caso seja definido que se trata Terra Indígena, creio que será necessária a edição de autorização do Congresso Nacional, a qual deverá disciplinar a validade dos atos concretos praticados enquanto a demarcação ainda não havia sido concluída, consideradas, sobretudo, as peculiaridades do empreendimento expostas nos autos tais quais confirmadas no Estudo de Componente Indígena: Observe-se que no caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) vs. Argentina, de 2020, a CIDH assentou que “embora a Convenção não possa ser interpretada de modo a impedir que o Estado realize, por si ou por meio de terceiros, projetos e obras sobre o território, seu impacto não pode, em nenhum caso, privar os membros dos povos indígenas e tribais da capacidade de garantir sua própria sobrevivência.” Os dados acima sobre as características do projeto afastam, ao menos em juízo cautelar, qualquer receio de que possa haver impacto na garantia dos Mura e Ribeirinhos do Lago do Soares de prosseguir com o estilo de vida que hoje levam, tampouco garantir a sua subsistência. Não há nenhum indício de que exista a preocupação exposta pelo Ministro Alexandre de Moraes no sentido de que as terras indígenas próximas ao empreendimento serão tornadas “inóspitas, direta ou indiretamente, ou prejudica[rão] drasticamente a cultura e a qualidade de vida das populações indígenas que habitam a região" (RE 1.379.751/PA, Rel. Min. Alexandre de Moraes). A necessidade de estabelecimento de um regime de transição é uma compreensão do texto do art. 231, § 6º, da CF/88: Art. 231. [...] § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. Confiram-se, ainda, as conclusões apresentadas pelo DNPM (FL. 1.531 – id. 297015018): Cabe lembrar o art. 20 da Lei nº 6.001/1973: Art. 20. Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante enumerados, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, em área indígena, determinada a providência por decreto do Presidente da República. 1º A intervenção poderá ser decretada: a) para pôr termo à luta entre grupos tribais; b) para combater graves surtos epidêmicos, que possam acarretar o extermínio da comunidade indígena, ou qualquer mal que ponha em risco a integridade do silvícola ou do grupo tribal; c) por imposição da segurança nacional; d) para a realização de obras públicas que interessem ao desenvolvimento nacional; e) para reprimir a turbação ou esbulho em larga escala; f) para a exploração de riquezas do subsolo de relevante interesse para a segurança e o desenvolvimento nacional. 2º A intervenção executar-se-á nas condições estipuladas no decreto e sempre por meios suasórios, dela podendo resultar, segundo a gravidade do fato, uma ou algumas das medidas seguintes: a) contenção de hostilidades, evitando-se o emprego de força contra os índios; b) deslocamento temporário de grupos tribais de uma para outra área; c) remoção de grupos tribais de uma para outra área. 3º Somente caberá a remoção de grupo tribal quando de todo impossível ou desaconselhável a sua permanência na área sob intervenção, destinando-se à comunidade indígena removida área equivalente à anterior, inclusive quanto às condições ecológicas. 4º A comunidade indígena removida será integralmente ressarcida dos prejuízos decorrentes da remoção. 5º O ato de intervenção terá a assistência direta do órgão federal que exercita a tutela do índio. Assim, não há aparência de necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, não sendo caso de incidência do § 3º do art. 231 da CF/88. V. Conclusão Em face do exposto, ante a ausência de fumus boni iuris, dou provimento ao agravo de instrumento para, reformando a decisão agravada de id. 1769860076, considerar (i) válidos a consulta e o consentimento emanado pelo CIM, como representativo do Povo Mura de Autazes e, em consequência, o requisito da Convenção 169 da OIT; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciar o empreendimento e a validade de todos os atos até agora praticados; (iii) afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional e autorizar o prosseguimento do projeto. É como voto. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator [1] Id. 904360588. [2] Cf. file:///C:/Users/DS93/Downloads/wcms_205225.pdf. [3] Cf. https://ilo.primo.exlibrisgroup.com/discovery/delivery/41ILO_INST:41ILO_V2/126506 9900002676. PODER JUDICIÁRIO Processo Judicial Eletrônico Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 17 - DESEMBARGADORA FEDERAL KÁTIA BALBINO AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) n. 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO VISTA A EXMA. SRA. DESEMBARGADORA FEDERAL KATIA BALBINO: Pedi vista dos autos para melhor examinar as questões fático-jurídicas que motivaram a interposição do agravo de instrumento em apreço. De início, sem prejuízo de assinalar minha integral anuência com o voto do Relator quanto à relevância do Projeto Potássio-Autazes, entendo que as questões a serem dirimidas na insurgência perpassam apenas pelo juízo de adequação da decisão agravada ao contexto fático-processual que justificou a sua prolação. Feito o registro, cumpre também esclarecer que o recurso ora examinado foi interposto pelo Conselho Indígena Mura contra a decisão pela qual o juízo de origem, em caráter dispositivo, assim deliberou: “15. Pelo exposto, reitero decisões anteriores de que o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto Potássio é o IBAMA, reitero que exploração mineral em Terra Indígena depende de autorização do legislador constituinte (do Congresso Nacional) e que o IPAAM não é o órgão ambiental competente para o empreendimento que tem o poder de afetar o bioma, a biomassa, o estoque de carbono, a alteração de recursos hídricos da maior bacia nacional, e portanto tem o poder de gerar mudanças climáticas irreversíveis. 16. A Consulta aos povos indígenas afetados depende da vontade do povo, decorrente da sua autonomia de deliberar seus interesses diante desse e de qualquer empreendimento. Todavia, eventual resultado fica desde já suspenso enquanto não houver o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados na presente decisão. 17. Sem o mínimo início dos requisitos, não haverá inspeção judicial, a qual fica por ora suspensa, mas advirto que poderá ser remarcada em caso de violência ou indícios de violações que importem em ruptura da ordem. 18. Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Tal o contexto, o agravante confronta as seguintes diretrizes decisórias: i) suspensão do procedimento de consulta aos povos indígenas levada a efeito; ii) necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração da área em que se pretende realizar o empreendimento. Passo, assim, a analisar tais questões: - Da suspensão dos procedimentos de consulta – a perda do objeto do agravo de instrumento, quanto ao ponto. O exame dos autos indica que a decisão agravada foi proferida em 25/08/2023. Por outro lado, a leitura do referido comando permite a compreensão de que a questão referente à consulta aos povos indígenas foi abordada pelo juízo a quo por um prisma abstrato de sua validade, em perspectiva com os demais requisitos tidos como necessários para a exploração em litígio (autorização do Congresso Nacional e competência do IBAMA para o licenciamento). É dizer, a julgadora da origem não se manifestou de forma concreta sobre aspectos materiais e formais afetos à consulta que o agravante tem com validamente realizada, pontuando, isto sim, que a validade do referido procedimento deve ser examinada de forma contextualizada com os demais requisitos para a implementação do empreendimento. Tanto assim, que a parte final do comando censurado dispõe (destaquei em itálico): “Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Ocorre que, após a prolação do referido decisum, a magistrada que conduz o processo principal se debruçou de forma mais aprofundada sobre a questão referente à consulta aos povos indígenas e, nos termos da decisão ID 1913974193, proferida em 16.11.2023, consignou (destaques sublinhados acrescidos): “Diante de todo o tumulto (mediante coação, intimidações, pressões indevidas e oferecimento de vantagens) causado pelo CIM e por prepostos da empresa ré, conforme depoimentos colhidos e mencionados no parecer ministerial, defiro o pleito ministerial e determino a imediata suspensão do procedimento de licenciamento ambiental por parte do IPAAM, bem como o da consulta ilegítima realizada após desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta, bem como de qualquer ato de avanço dos trâmites para a implementação do empreendimento da empresa Potássio do Brasil S/A em Autazes, em razão dos vícios mencionados e dos riscos de conflitos e morte que a continuação dos trâmites do empreendimento minerário neste cenário acarretam ao povo Mura na região, ficando expresso que o juízo federal não confere qualquer validade à alteração esdrúxula do Protocolo construído de forma legítima por TODO O POVO MURA.” Como se vê, após a prolação da decisão agravada, o juízo a quo proferiu novo comando com caráter substitutivo do anterior, vindo a apresentar fundamentação mais aprofundada e amparada em elementos concretos sobre as razões de seu convencimento. Em outras palavras, a avaliação no plano concreto da consulta tida como realizada absorveu a deliberação anterior, esta fundada apenas em fatores afetos ao procedimento no plano abstrato. Assim, porque proferida decisão ulterior que a um só tempo incorporou e ampliou as razões contidas na decisão agravada, resulta demonstrada a perda do objeto do recurso tirado contra o aludido comando. Anoto, por fim, que tanto o MPF quanto a Funai já se manifestaram nos autos em sentido concorde com a compreensão ora externada (cf. ID 423687013 e ID 369353129). - Subsidiariamente, ao não conhecimento do recurso Ainda que se supere a questão preliminar já analisada, entendo que a decisão agravada deve ser mantida nos termos em que proferida, salientando, nesse ponto, que sua avaliação deve ser feita com base no exato sentido e alcance nela consignados. Melhor explicando, foi acima esclarecido que na decisão agravada o juízo a quo consignou que “eventual resultado” da consulta ficaria suspenso enquanto não houvesse “o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados” na decisão. Claro, portanto que, na decisão agravada, a julgadora de primeiro grau não empreendeu juízo de valoração da consulta efetivamente levada a efeito, tendo suspendido seus efeitos em razão da necessidade de observância concomitante de outros requisitos tidos como necessários para o licenciamento do empreendimento. Ocorre que a parte agravante não enfrentou de forma suficiente as razões externadas no comando recorrido, restringindo-se a defender a validade da consulta que alega já ter sido realizada, bem assim a desnecessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área em que será realizada a exploração mineral discutida na ação principal. Ora, a decisão agravada, como já afirmado, não positivou em nenhum momento a invalidade factual da consulta debatida (isso só foi feito na decisão posterior), tendo suspendido os respectivos efeitos em razão da necessidade de atendimento de outros requisitos que seriam com ela concorrentes. Um desses requisitos, a competência do Ibama para o licenciamento, não foi (e nem poderia ter sido, por ausência de legitimidade recursal) sequer objeto do presente agravo de instrumento. Assim sendo, ainda que superado o óbice relativo à perda do objeto do recurso, quanto ao ponto, este não pode ser conhecido, diante da ausência de enfrentamento da fundamentação decisória no sentido de que os efeitos da consulta somente poderiam ser efetivados em conjunto com o atendimento dos demais requisitos para a exploração da área, nomeadamente a autorização do Ibama. - Do exame residual do mérito da decisão agravada De todo modo, também na hipótese em que venha a ser desconsiderada a ausência de enfrentamento, pelo agravante, das razões decisórias, o recurso não deve ser provido. Com efeito, os documentos encartados no processo principal revelam uma evidente divisão entre as aldeias dos indígenas Mura, tratando-se de dissenso que compromete a conclusão pela validade do procedimento de consulta que neste agravo se tem como concretizado. Nesse sentido, tomando-se como exemplo a assembleia realizada em 21 e 22/09/2023, mencionada no voto do Exmo. Relator, temos que embora registrada em seu relatório a presença de diversos integrantes da comunidade Mura para debater sobre a implementação do projeto Potássio-Autazes, inclusive com a indicação de participação de cinco entidades representativas (CIM – Conselho Indígena Mura; OASIM – Organização dos Agentes de Saúde; OPIM – Organização dos Professores Indígenas Mura; OEIMA – Organização dos Estudantes Mira de Autazes; APIMA – Associação dos Produtores Indígenas Mura de Autazes), o referido documento foi subscrito por apenas quatro pessoas, dentre elas o coordenador geral do CIM (ora agravante) e um advogado. Inexiste, no documento, a indicação nominal de quem seriam as pessoas presentes no encontro, tendo sido mencionados, tão somente, o quantitativo dessas por aldeia. Também não há registro de ata assemblear, tampouco de subscrição, nesse ou em nenhum outro documento, da alegada aprovação majoritária para a implementação do projeto em debate nos autos principais. É dizer, a referência à aprovação do projeto consta apenas do relatório confeccionado após a assembleia, no qual não se identifica a assinatura da quase totalidade das pessoas que dela teriam participado. Por outro lado, como bem observado pelo Exmo. Relator, é certo que a efetivação da consulta às comunidades indígenas não pressupõe a anuência destas com o respectivo objeto. Todavia, a efetivação plena da consulta reclama a escuta efetiva das referidas comunidades, escuta essa que há de ser valorada em sua perspectiva substancial e não simplesmente formal. Nesse sentido, reportando-me mais uma vez ao voto do Relator, “[É] incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública.” Ocorre que o cenário dos autos não indica a realização dessa escuta efetiva do procedimento de consulta, este que, ao que se infere inclusive da divisão verificada entre os representantes da comunidade Mura, vinha sendo protagonizada, em um primeiro momento, pelo CIM (ora agravante), entidade que vem reiterada e insistentemente se manifestando pela implementação do Projeto Potássio-Autazes. Oportuno ser registrado que os autos principais indicam a adoção de diversos procedimentos tendentes à efetivação de um processo de consulta regular, mostrando-se plausível, neste momento de exame provisório do tema, a inferência de que muitos dos atos praticados sejam efetivamente válidos. Ocorre que o entendimento – precário – da validade de parte dos atos praticados não leva, obviamente, ao reconhecimento automático da validade de todo o processo de consulta. A propósito, em sua segunda decisão proferida sobre o tema a magistrada da origem refere-se à ocorrência de uma "desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta”, posicionamento indicativo de que, por sua ótica, o referido protocolo vinha sendo posto em prática de forma adequada, até que a partir de determinado momento veio a ser desconfigurado em sua essência e finalidade. Esse fato reforça, portanto, o posicionamento no sentido de que a validade de atos pretéritos do Protocolo de Consulta não pode induzir ao reconhecimento de sua validade como um todo. Isso posto, existem dúvidas no mínimo razoáveis acerca da legitimidade do procedimento sob enfoque, ao menos no que se refere à valoração do posicionamento divergente de parte significativa da comunidade Mura. Note-se que a validade (nos planos formal e substancial) desse procedimento tem como premissa a oitiva de todas as comunidades afetadas, levando-se em conta, no mais que possível, as peculiaridades de cada uma delas, além das razões que justificarem seus respectivos posicionamentos. Veja-se, em abono dessa conclusão, que a análise cartográfica 138/2023, juntada aos autos pela Funai e transcrita no voto do Relator, indica que o Projeto Potássio-Autazes encontra-se em distâncias diferentes das diversas comunidades afetadas, sendo que, especificamente em relação à “Aldeia Soares”, cujos representantes se posicionaram em sentido contrário ao do ora agravante, a indicação no mencionado documento é pela “sobreposição da área de influência” e pela distância de apenas 2,52 km entre a planta do projeto e a área em que situada a própria aldeia (a menor distância, ao que se infere, entre todas as comunidades afetadas). Na mesma linha, atente-se para o teor das seguintes passagens da decisão de ID 1913974193 dos autos principais, proferida após a decisão agravada: “O Povo Mura afetado pelo grande empreendimento Potássio, na forma do Protocolo legitimamente aprovado por sua totalidade de comunidades, sequer começou a ser consultado. Especialmente o Povo Mura da Comunidade Lago Soares, onde foi fincada a primeira perfuração para fins de pedido de concessão de lavra e licenças prévia, de instalação e de operação, o povo não foi ouvido em nenhuma das etapas da Consulta. Em inspeção judicial realizada por esta Magistrada, confirmei a tese dos autos de que é exatamente no Lago Soares que parte a pretensão de instalação do Projeto Potássio e essa comunidade não foi ouvida até a presente data, sendo ilegítima qualquer conclusão sem sua participação.” (...) “4.1. Alegam, o MPF, a organização OLIM CV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES, uma série de ilícitos em tese perpetrados pela empresa Requerida Potássio do Brasil. Defendem ocorrência de má fé, assédio, danos psicológicos, danos morais, coação manipulação e intimidação contra indígenas Mura. As alegações são de extrema gravidade e antes mesmo de ouvidos o MPF e a requerida, é dever do juízo adotar providências preliminares para determinar a imediata suspensão dos vícios, pois que a sua continuação pode gerar danos irreversíveis aos povos originários envolvidos, além da transfiguração do meio ambiente, cultura, tradição e do seu modo de vida. 4.2. As provas anexadas com a manifestação da parte interessada (OLIMCV e Comunidade Lago Soares) bem como aquelas referidas pelo MPF em seu Parecer, demonstram inclusive a presença do Presidente da Potássio do Brasil em reuniões com indígenas Mura, levando ideias destorcidas e contrárias ao ordenamento jurídico, além de descumprir claramente decisão constante de ata de audiência onde ficou consignado que a empresa não poderia praticar coação contra os indígenas. Desde a feitura do Protocolo, o Povo Mura assentou expressamente: "não queremos ser pressionados e coagidos". 4.3. São mais de 12 - doze- mil indígenas Mura afetados com o empreendimento, dos quais nem 1% chegou a participar da reunião onde correu uma lista de presença depois transfigurada em lista de aprovação, havendo clara pressão de cerca de dez indivíduos - alguns já identificados e ouvidos no Ministério Público Federal ( ID 1914447184 - Parecer) - no sentido de distorcer a realidade e retirar o direito de participação da imensa maioria dos indígenas nesse complexo processo de Consulta Livre e Informada. Conforme as provas anexadas, o indígena Cleber (ou Kleber) age como um doa encarregados de praticar coação e manipulação. A conduta pode vir a configurar crime, seja pelo 'modus operandi' de alteração da realidade fática e jurídica, seja por escarnecer as tradições culturais fixadas no Protocolo de Consulta ( lei 60001-73, art. 58, I). 4.4. Ainda, o senhor Kleber Mura vem afirmando que a empresa Potássio do Brasil LTDA. realizou uma promessa de pagamento de supostos royalties pela extração do minério em troca da aprovação do empreendimento, por parte das comunidades indígenas. Cumpre esclarecer que para que comunidades tradicionais ou indígenas recebam royalties por grandes empreendimentos exploradores em suas terras, é necessário primeiramente cumprir os passos da lei, não sendo faculdade de nenhuma empresa oferecer vantagens ou promessas de pagamentos, os quais já são fixados pelo legislador em casos de exploração mineral. Em síntese, na hipótese de futura operação licenciada do empreendimento, os roylties que eventualmente serão pagos decorrem de deliberação do legislador e não são mera faculdade da empresa Potássio do Brasil, a qual está causando tumulto, manipulação e pressão indevida em comunidade em situação de vulnerabilidade, o que deve cessar IMEDIATAMENTE. 4.5. Na manifestação trazida ao conhecimento do juízo, haveria indígena Mura recebendo 5 - cinco - mil reais da empresa Potássio, enquanto outros estariam recebendo 10 - dez- mil reais, tudo com o intuito de coagir e manipular as comunidades afetadas para o fim de aprovar o empreendimento, gerando uma confusão entre Consentimento Livre e Informado e licenciamento prévio, de licença de instalação e licença de operação, que a essa altura, estão fazendo parecer como um só fato jurídico quando são atos distintos. A transfiguração dos fatos jurídicos precisa imediatamente ser quebrada para evitar um dano irreversível aos povos originários, à sua cultura, modo de vida e tradição. 4.6. Dessa forma, diante de tanto vícios de consentimento explícitos, trazidos a juízo por indígenas Mura que habitam o principal Lago (Soares) a ser afetado pelo empreendimento, bem como pela organização OLIMCV, tudo isso faz-nos concluir que a tese manejada de ilegitimidade e nulidade do resultado de uma suposta consulta é inevitavelmente pertinente. Sem consulta válida, na forma do Protocolo definido POR TODO O POVO MURA ( e não por uma dúzia de pessoas com fortes indícios de estarem cooptadas) não há que falar em licença prévia válida. Isso porque a consulta depende da vontade livre do povo e decorre da sua autodeterminação em deliberar acerca de seus interesses diante de qualquer empreendimento que possa impactar seu modo de vida, conforma já definiu o STF. 4.7. Portanto, de imediato recebo a manifestação e o Parecer acima aduzidos, determino a manifestação de todas as partes em dez dias sobre o que entenderem pertinente e desde já adoto as deliberações abaixo para o fim de resguardar a dignidade e integridade do Povo Mura, alvo de um processo de coação, manipulação e intimidação. a) Determino a imediata suspensão de qualquer atitude de coação, manipulação, fraude, intimidação, ameaça, pressão e cooptação contra indígenas Mura, praticadas pela empresa requerida ou por quem quer que haja em seu mando. Fixo desde já multa de cem mil reais por cada dia de descumprimento da presente decisão, a contar da intimação da presente decisão. b) Fixo desde já multa de um milhão de reais a ser custeada pela Empresa Potássio do Brasil Ltda, pelo descumprimento dos deveres assumidos durante as audiências de conciliação perante o Juízo, em especial por realizar pressão indevida sobre o povo Mura com o comparecimento pessoal do seu presidente em reuniões internas das comunidades sobre o assunto tratado nos autos, o que já foi vedado pelo juízo. A multa incidirá sobre o dia de comparecimento do Presidente da Potássio, em reunião vedada pelo Protocolo de Consulta e será revertida a favor da Organização requerente e comunidade Lago Soares, pro rata.” A reforçar o posicionamento da julgadora que conduz o processo na origem, as cartas abertas juntadas nos ID 1914200677, 1914200678, 1914200679 indicam a discordância de várias aldeias com os rumos do procedimento. Da mesma forma, confira-se o que foi expressamente consignado no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Carneiro da Várzea (ID1914200682 dos autos principais): Trata-se, com efeito, de diretrizes contidas no Protocolo de Consulta construído para o exame do Projeto Potássio-Autazes. Pois em que pese a clareza dos termos acima transcritos, há no processo principal fortes indícios da participação ativa de “não-índios” no “processo de convencimento” da comunidade Mura (inclusive na assembleia realizada nos dias 21 e 22/08/2023), bem assim de que parte das lideranças não levou em conta, como deveria ter levado segundo as normas protocolares acima transcritas, a opinião do conjunto da comunidade indígena afetada. Com todo esse cenário, tenho que o exame realizado em sede de agravo de instrumento tirado contra uma decisão marcada por seu caráter de provisoriedade e de instrumentalidade para a bom desenrolar do processo, deve ser feito com a adoção de uma postura cautelosa quanto aos riscos do reconhecimento da validade do procedimento de consulta que está na berlinda, ante a irreversibilidade das medidas que eventualmente sejam tomadas com base nessa conclusão (no mínimo precipitada). Isso quer dizer que, diante das incertezas quanto à validade do caráter conclusivo da consulta, o Poder Judiciário deve assumir uma posição preventiva quanto aos possíveis prejuízos que venham a ser causados. Aqui tomando por empréstimo – e por analogia – o ensinamento Délton Winter de Carvalho, tenho como necessária a conclusão de que a alta probabilidade de comprometimento futuro de direitos fundamentais das comunidades indígenas afetadas pelo empreendimento em causa enseja a adoção das medidas preventivas necessárias – tais como as que adotadas pelo juízo de primeiro grau –, “a fim de evitar a concretização dos danos ou minimizar as consequências futuras daqueles já efetivados”. Não procede, portanto, a compreensão de que eventuais prejuízos futuros poderão ensejar indenização por perdas e danos, na medida em que a finalidade precípua da atuação jurisdicional em casos como o presente deve ser a de evitar que o dano ocorra e não simplesmente compensá-lo. Pensar diferente, com todas as vênias, seria abrir a caixa de Pandora para uma pletora de ilegalidades que poderiam ser cometidas sob o escudo de uma incerta indenização reparatória. Não bastasse tudo isso, a eventual validade das deliberações obtidas em assembleias realizadas sob a condução do CIM não pode, em princípio, vincular as comunidades que não são pelo referido conselho representadas. Assim, a eficácia de tais deliberações, para fins de reconhecimento da oitiva real de todas as comunidades afetadas, seria condicionada à obtenção de manifestações convergentes daquelas que não vinculadas ao agravante. Da necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da Terra Indígena – ausência de legitimidade recursal, quanto ao ponto Como já antecipado, a decisão agravada não empreendeu exame qualitativo da consulta que a parte agravante considera legítima, restringindo-se a suspender seus efeitos ante a necessidade de observância de requisitos externos ao referido procedimento. Dentre as externalidades mencionadas na decisão agravada, a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi invocada como pressuposto para a implementação do Projeto Potássio-Autazes, que tem como principal interessado os responsáveis pelo empreendimento. Ainda que se diga que a parte agravante teria algum interesse na implementação no projeto, pelos possíveis benefícios que ele poderia proporcionar, tal não significa que, processualmente, caiba a ela defender a sua concretização. A ilustrar esse entendimento, tome-se como exemplo a hipótese em que o órgão ambiental responsável pelo licenciamento apresente alguma condicionante para o seu deferimento. Diante de tal situação, caberá apenas à agravada Potássio do Brasil Ltda. questionar judicialmente o óbice levantado, falecendo ao Conselho nestes autos agravante legitimidade para o enfrentamento da hipotética decisão administrativa. Mutatis mutandis, é exatamente essa a situação ora analisada, pois a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi levantada como óbice para o licenciamento do projeto discutido, diante do entendimento que ele seria realizado em terras indígenas. Não cabe, portanto, ao Conselho Mura, defender aquilo que em última análise se mostra como de interesse da empresa, o que seja, a implementação de seu empreendimento econômico. Por outro lado, o Conselho agravante não representa a totalidade da Comunidade Mura, mas apenas parte dela, daí porque não possui legitimidade para se manifestar sobre os efeitos do empreendimento nas áreas não alcançadas por sua representação. Em resumo, não cabe ao CIM questionar a avaliação feita pelo juízo processante acerca da repercussão de um projeto empresarial do qual não faz parte, em áreas ocupadas por comunidades que não representa. A legitimidade recursal da agravante, portanto, em relação ao que é objeto do agravo de instrumento, está adstrita à validade de sua manifestação no procedimento de consulta, tema já analisado no tópico anterior deste voto. Conclusão Diante do exposto, julgo prejudicado o agravo de instrumento em relação à suspensão dos efeitos da consulta realizada, diante da prolação de decisão judicial posterior. Na hipótese de superação desse ponto preliminar, não conheço do agravo, por deficiência de fundamentação e, se também afastado esse obstáculo, nego provimento ao recurso. De outro modo, não conheço do agravo de instrumento no que se refere à necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área onde será implementado o projeto, por ausência de legitimidade recursal. Por fim, deixo de me manifestar acerca da questão relativa à competência para o licenciamento do empreendimento, por se tratar de tema estranho ao objeto da insurgência em apreço. É como voto. Desa. Federal KATIA BALBINO Relatora CARVALHO, DéltonWinter de. Dano Ambiental Futuro: A responsabilização Pelo Risco Ambiental. 2ª ed. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2013, pp. 187/202 PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 Processo Referência: 0019192-92.2016.4.01.3200 AGRAVANTE: CONSELHO INDIGENA MURA AGRAVADO: DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUCAO MINERAL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (PROCURADORIA), INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS - IBAMA, INSTITUTO DE PROTECAO AMBIENTAL DO AMAZONAS, POTASSIO DO BRASIL LTDA., FUNDACAO NACIONAL DO INDIO - FUNAI, UNIÃO FEDERAL, ESTADO DO AMAZONAS EMENTA DIREITO AMBIENTAL E DIREITOS INDÍGENAS. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSULTA PRÉVIA AO POVO INDÍGENA MURA. EXPLORAÇÃO MINERAL. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA ESTADUAL. RECONHECIMENTO DE CONSULTA VÁLIDA. PROSSEGUIMENTO DO PROJETO. 1. Agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura (CIM) contra decisão que suspendeu os efeitos da consulta ao povo indígena Mura sobre o Projeto Potássio Autazes, condicionando sua validade ao cumprimento de requisitos ambientais, legais e constitucionais, no bojo de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). 2. Pretensão do agravante de obter efeito suspensivo para reconhecer a validade da consulta realizada, conduzida pelo CIM, e afastar exigências relacionadas à autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas, bem como discutir a competência do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) no licenciamento ambiental do empreendimento. 3. O debate circunscreve-se às seguintes questões: (i) validade da consulta ao povo indígena Mura de Autazes, realizada com base no protocolo próprio; (ii) competência do IPAAM para o licenciamento ambiental do empreendimento; e (iii) necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, considerando a localização do projeto em área não demarcada como terra indígena. 4. Reconhecida a legitimidade do Conselho Indígena Mura (CIM) como entidade representativa das aldeias de Autazes para conduzir a consulta, nos termos da Convenção 169 da OIT, considerando que o processo observou protocolos definidos com acompanhamento judicial. A ausência de pronunciamento de outras comunidades não invalida a consulta, mas mantém a obrigação do Estado de dialogar continuamente com os povos afetados. A CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. 5. A competência do IPAAM para licenciamento ambiental foi reafirmada, uma vez que o empreendimento está localizado fora de terras indígenas demarcadas, observando-se os critérios da Lei Complementar nº 140/2011. A distância de poucos quilômetros entre o projeto e a terra indígena mais próxima não configura causa de deslocamento de competência ao IBAMA, o qual, no entanto, possui o dever de vigilância em relação ao licenciamento estadual. Não há dados que permitam concluir que o órgão ambiental estadual não tem a qualificação ou a estruturação necessária para proceder ao licenciamento, tampouco foram apontadas omissões nas condicionantes fixadas na Licença Prévia, que expressamente consideraram o componente indígena. 6. O STF, na ADI 4.757/DF, expressamente reconheceu a existência do "dever de vigilância da União quanto aos licenciamentos de responsabilidade dos Estados, cujas atividades ou empreendimentos possam causar impactos ambientais indiretos relevantes em áreas indígenas ou unidades de conservação. A exemplo, as atividades de mineração ou empreendimentos hidrelétricos, cujas poluições sonoras ou dos leitos de rios possam impactar a preservação adequada das referidas áreas." O STF acrescentou que, "[n]esse ponto, competirá, com efeito, à União averiguar as capacidades institucionais do órgão ambiental estadual para proceder com o licenciamento, em especial as condicionalidades para a emissão da licença, considerados esses impactos indiretos, que não raras vezes demandam alta espeficiação de instrumentos técnicos e de profissionais" (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023, p. 85 do acórdão). 7. A inexistência de terra indígena demarcada ou delimitada na área do empreendimento afasta a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, conforme art. 231, § 3º, da Constituição Federal, ainda que se instaure processo demarcatório, enquanto não concluído. 8. Agravo de instrumento provido para: (i) considerar válida a consulta realizada pelo CIM como representativo do povo indígena Mura de Autazes e considerar cumprida a obrigação de consultar; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciamento ambiental do empreendimento; (iii) afastar a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração no caso em análise; e (iv) autorizar o prosseguimento do projeto minerário, sem prejuízo de novas medidas para assegurar a proteção aos direitos indígenas e ambientais. ACÓRDÃO Decide a Sexta Turma, por maioria, dar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do voto do Relator. Brasília/DF, data e assinatura eletrônicas. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator
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Processo nº 1037175-40.2023.4.01.0000
ID: 292902542
Tribunal: TRF1
Órgão: Gab. 16 - DESEMBARGADOR FEDERAL FLAVIO JARDIM
Classe: AGRAVO DE INSTRUMENTO
Nº Processo: 1037175-40.2023.4.01.0000
Data de Disponibilização:
09/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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LUIS INACIO LUCENA ADAMS
OAB/DF XXXXXX
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CAROLINA MAR AZEVEDO
OAB/AM XXXXXX
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IVAN DE SOUZA QUEIROZ
OAB/AM XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDI…
JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDIGENA MURA REPRESENTANTE(S) POLO ATIVO: IVAN DE SOUZA QUEIROZ - AM4297 POLO PASSIVO:Ministério Público Federal (Procuradoria) e outros REPRESENTANTE(S) POLO PASSIVO: CAROLINA MAR AZEVEDO - AM8627-A, LUIS INACIO LUCENA ADAMS - DF29512-A, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133, GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133 e GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882 RELATOR(A):FLAVIO JAIME DE MORAES JARDIM PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 RELATÓRIO Agravo de Instrumento interposto em 14.9.2023, pelo Conselho Indígena Mura (CIM), contra decisão da 1ª Vara Federal do Amazonas (id. – ID 1769860076), que suspendeu o resultado de consulta ao povo indígena Mura até que fossem cumpridos requisitos ambientais, legais e constitucionais, no contexto da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). A ação, na origem, busca a anulação da Licença Prévia emitida pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas- IPAAM à Potássio do Brasil Ltda. referente à exploração de silvinita/potássio em Autazes/AM, alegando incompetência do órgão emissor e ausência de consulta prévia aos povos indígenas afetados. O agravante argumenta que a decisão violou sua autonomia, destacando que a consulta foi conduzida conforme protocolo próprio e recursos próprios, com representantes de 46 aldeias. Sustenta que a suspensão judicial desrespeita o resultado soberano da consulta, gera prejuízos financeiros e configura cerceamento de defesa. O CIM defende ainda que os direitos minerários da empresa foram desmembrados de terras indígenas, afastando a necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração mineral. Ao final, requer efeito suspensivo à decisão agravada, permitindo a conclusão e consideração da consulta nos autos antes de eventual sentença. Defende a existência de prejuízos irreparáveis caso o processo seja decidido sem incorporar o resultado da consulta, e reafirma o pedido de Justiça Gratuita, por ser entidade sem fins lucrativos. Foi requerida, ainda, a gratuidade de justiça. Após a distribuição, por meio da petição id. 347816151, foram juntadas atas de reuniões realizadas nos dias 15, 16, 18 e 22.8.2023, nas quais o agravante alega que foi dado início dado procedimento de consulta para representantes de 46 aldeias. Despacho de id. 348177162 intimou os agravados a apresentar contrarrazões e sobrestou a análise do pedido de liminar. Antes de escoado o prazo, o agravante apresentou petição (id. 350573644) comunicando que o Povo Mura de Autazes, nos dias 21 e 22.09.2023, finalizou a Consulta sobre o Projeto Potássio Autazes e outras questões relevantes, de acordo com a ata anexa. Destacou que foi aprovado o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta. Informou, ainda, que foi aprovado pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil faça a mineração. Requereu, assim, a atribuição de efeito suspensivo ao agravo. A Potássio do Brasil Ltda. apresentou as contrarrazões de id. 360785149. Noticiou a existência de decisão da Presidência do TRF1, a qual, nos autos da SLS nº 1040729-80.2023.4.01.0000, suspendeu a decisão original, entendendo que a paralisação antecipada do licenciamento interfere na competência administrativa e nas normas constitucionais que regulam a exploração mineral em terras indígenas. No mais, a Potássio do Brasil Ltda. adere aos argumentos do agravante, solicitando a reforma da decisão agravada. O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) apresentou as contrarrazões de id. 367016144, aduzindo que o projeto e suas jazidas estão a 8 km das terras indígenas mais próximas e que a legislação atual estabelece o critério territorial para definir competências ambientais. Assim, considera desnecessária a autorização do Congresso Nacional, pois não há exploração direta em terras indígenas. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. O IBAMA apresentou a petição id. 368864139 informando carecer de interesse em apresentar contrarrazões em face do mencionado recurso de agravo de instrumento, uma vez que sua posição nos autos de origem sempre foi no sentido de que não possui competência legal para conduzir o licenciamento ambiental em questão e, tampouco, para intervir no âmbito da consulta livre, prévia e informada que deve ser realizada perante a comunidade indígena que venha a ser afetada pelo empreendimento. A FUNAI protocolou a manifestação de id. 369353129. Inicialmente, a FUNAI argumenta pela perda superveniente do objeto do agravo, uma vez que nova decisão foi proferida pelo juízo de origem, abordando fatos e fundamentos distintos, como a inexistência de consulta válida com participação de todos os indígenas afetados, especialmente da Comunidade Lago Soares. A decisão, prolatada por meio do id. 190941615, relata coações, pressões e irregularidades promovidas pela empresa Potássio do Brasil e seus representantes. Entre as medidas adotadas, destaca-se a suspensão do licenciamento ambiental pelo IPAAM e de atos vinculados ao empreendimento, além da fixação de multas e proibição de práticas coercitivas. No mérito, a FUNAI defende a manutenção da decisão agravada, ressaltando que a consulta ao povo Mura é imprescindível, mas deve observar a inclusão de todas as comunidades potencialmente afetadas. A instituição destaca a necessidade de conclusão dos estudos demarcatórios da Terra Indígena Lago do Soares e Urucurituba, conduzidos por grupo técnico da FUNAI, para garantir a legitimidade e abrangência da consulta. Por fim, a FUNAI solicita, em preliminar, o não conhecimento do agravo por perda de objeto e, subsidiariamente, o seu desprovimento, mantendo a decisão que suspendeu o resultado da consulta e os atos administrativos relacionados ao empreendimento até o cumprimento dos requisitos legais. A ORGANIZAÇÃO DE LIDERANÇAS INDÍGENAS MURA DE CAREIRO DA VÁRZEA - OLIMCV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES apresentou a manifestação de id. 357658659. Defenderam a ilegitimidade e a invalidade da consulta realizada para aprovação do Projeto Potássio Autazes, apontando graves violações ao Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Mura de Autazes e Careiro da Várzea. O documento destaca que o Conselho Indígena Mura (CIM), ao conduzir a consulta, ignorou a inclusão de comunidades contrárias ao projeto, como a Aldeia Soares, e promoveu reuniões com fortes indícios de coação, pressão e manipulação, em desrespeito às diretrizes estabelecidas no protocolo previamente aprovado pelas comunidades. Além disso, aponta a participação irregular de representantes da empresa Potássio do Brasil Ltda., prática vedada no contexto das reuniões internas. As lideranças contrárias ao empreendimento denunciaram promessas de compensações financeiras, irregularidades na condução das consultas e a tentativa de impor um novo protocolo de consulta para fragmentar a representação do povo Mura, excluindo as aldeias do município de Careiro da Várzea. A defesa ressalta ainda que a consulta não foi realizada de forma ampla, livre e informada, como determina a Convenção 169 da OIT. Em termos jurídicos, as contrarrazões pedem o reconhecimento da nulidade do resultado da consulta e a manutenção da decisão judicial de suspensão do licenciamento ambiental e de atos administrativos relacionados ao projeto até que sejam cumpridos os requisitos legais e constitucionais, com participação efetiva de todas as comunidades afetadas. O parecer id. 373711134, ofertado pelo MPF, pugna pelo desprovimento do agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura por perda superveniente do objeto. É o relatório. PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL FLÁVIO JARDIM - Relator: I. Estão preenchidos os requisitos de admissibilidade. A peça, subscrita por profissional legalmente habilitado, (a) foi protocolada no prazo legal. O agravante requereu seja o preparo dispensado em razão da hipossuficiência, o que defiro. Conheço do Recurso. II. A decisão agravada, datada de 25.8.2023, no que interessa (id. 1769860076): III. Este agravo foi protocolado pelo Conselho Indígena Mura – CIM e visa a suspender os efeitos da decisão agravada de id. 1769860076, proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, movida pelo MPF. Contra essa decisão, também foram interpostos os seguintes recursos: (i) AI nº 1039810-91.2023.4.01.0000, protocolado pela Potássio do Brasil Ltda. (ii) AI nº 1042776-27.2023.4.01.0000, protocolado pelo Ibama; (iii) Ai nº 1043035-22.2023.4.01.0000, protocolado pela União. No agravo, é postulado que a decisão agravada seja reformada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". III.a. A Relevância do Projeto Potássio-Autazes Consoante destacou a União em petição protocolizada nestes autos, "o Projeto Autazes foi habilitado, na forma do Decreto nº 10.657/2021, pelo Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos – CTAPME, para integrar a política de apoio ao licenciamento ambiental de projetos de investimento para a produção de Minerais Estratégicos – Pró Minerais Estratégicos, em 28 de setembro de 2021." [1] Segundo o que assevera a União, "[d]e acordo o que dispõe o Decreto nº 10.657/2021, os projetos minerários habilitados na Política de Pró-Minerais Estratégicos são considerados prioritários ao país em razão dos seguintes critérios (art. 2º): i) alto percentual de importação para suprimento de setores vitais da economia; ii) aplicação em produtos e processos de alta tecnologia e iii) vantagens comparativas e essencial para a geração de superavit da balança comercial do país." [id.] A União complementa que o projeto "visa a exploração de minério cloreto de potássio, fertilizante fundamental para a agricultura nacional." [id.] Pelas informações prestadas, "o Brasil importa 95% do cloreto de potássio que utiliza para fertilização do solo, ostentado o título de maior importador mundial de potássio, com 10,45 milhões de toneladas adquiridas em 2019, de acordo com dados do Ministério da Economia." [id.] A previsão da empresa é de "atender cerca de 25% do consumo nacional do minério, reduzindo a dependência interna do produto por mais de 30 anos." [id.] A União ainda aponta que a relevância do projeto foi exacerbada com o recente cenário de guerra entre Ucrânia-Rússia: "Ocorre que as recentes sanções econômicas impostas à Bielorrússia, responsável por ¼ de toda produção mundial de cloreto de potássio, gerou enorme preocupação no setor agroindustrial brasileiro em razão da possível escassez do minério, o que poderá impactar o custo de produção e, consequentemente, o aumento do preço dos alimentos. Observa-se, assim, que o desenvolvimento de projetos minerários com capacidade de aumentar significativamente a oferta de fertilizantes ao mercado interno, reduzindo a dependência estrangeira, é essencial para a proteção dos pequenos produtores de alimentos e da população mais vulnerável à variação de preço dos alimentos. [...] Além disso, há apenas três grandes players produtores no mundo, sendo que em dois deles, Rússia e Bielorrússia, há interferência dos governos na atuação internacional das empresas. As duas últimas crises mundiais de fertilizantes, em que os preços ao produtor rural aumentaram mais de 150% em menos de seis meses, ocorreram por ocasião da atuação das empresas de fertilizantes potássicos. Na atual crise de fertilizantes, o primeiro nutriente a faltar para o Brasil foi o potássio." [id.] Segundo o ente público, há altíssima dependência nacional de fertilizantes estrangeiros, o que torna o país ainda mais vulnerável, pois os grandes produtores agrícolas mundiais possuem autonomia no fornecimento de fertilizantes: "O Brasil vem presenciando, nos últimos anos, um forte aumento nas importações de fertilizantes. Estima-se que, em 2020, mais de 80% dos que foram consumidos no Brasil são de origem estrangeira, respondendo a produção nacional por menos de 20% da demanda do país. Estrategicamente, todos os países que são grandes produtores agrícolas no mundo, têm autonomia no fornecimento de fertilizantes, uma vez que produzem, no mínimo, 50% da sua demanda anual, exceto o Brasil. A dependência se agrava quando se verifica que o Brasil deverá responder por quase metade da produção mundial de alimentos nos próximos anos, aumentando proporcionalmente a demanda por fertilizantes. Atualmente, o Brasil é o quarto consumidor global de fertilizantes, responsável por cerca de 8% desse volume e é o maior importador mundial, ou seja, é o país com a maior dependência externa por fertilizantes." [id.] A variação de preços da commodity é também apontada como fator de preocupação, tendo em vista que há ciclos de crises mundiais que elevam os preços a níveis acima do padrão: "Aumentos nos preços desses insumos acontecem em ciclos de crises mundiais, como em 2008 e 2021, períodos em que foram registrados os maiores preços da história. Esse cenário impacta negativamente na competividade dos produtos agrícolas brasileiros, pois os fertilizantes já ocupam mais de 40% do custo de produção de culturas importantes como soja, milho e algodão, que compõem as principais exportações do agronegócio brasileiro, tornando o produto nacional menos competitivo." [id.] Assim, a conclusão da União é a de que "o Projeto Autazes pode proporcionar ao Brasil uma arrancada em direção à segurança do fornecimento de fertilizante potássicos para o país." [id.] Abaixo, as características físicas do projeto: Vale ressaltar que se cuida de empreendimento significativamente menor do que, por exemplo, a UHE Belo Monte, que possui dois reservatórios de regularização, com área total de 478 km², sendo 274 km² do leito original do Rio Xingu. Os dois reservatórios são o Reservatório Xingu, com 359 km², e o Reservatório Intermediário, com 119 km. É, desde já, importante destacar que no caso Comunidade Indígena Yakye vs. Paraguai, decidido em 17.6.2005, a Corte Interamericana de Direitos Humanos assentou que a propriedade indígena pode sofrer restrições quando presente interesse social e um objetivo estatal legítimo. Confira-se trecho do voto: Constam dos autos, ainda, diversas matérias jornalísticas de 2022 informando problemas de escassez do cloreto de potássio no mercado mundial, devido à guerra na Ucrânia (id. 970735666). No volume 3, consta ainda a Nota n. 00144/2023/CONJUR-MAPA/CGU/AGU, a qual atesta que a demanda por fertilizantes potássicos aumentará bastante nos próximos anos e que a produção nacional está decaindo: O documento ainda atesta que o Projeto Autazes está intimamente ligado com caros direitos fundamentais de índole social e com os fundamentos da ordem econômica, os quais incumbe a Administração dar concretude: Por fim, requer-se a aplicação do art. 20 da LINDB no julgamento desta ACP n. 0019192-92.2016.4.01.3200: "Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas." Diante do quadro apresentado, sem resolver a questão sobre o local em que será instalado o projeto minerário é ou não terra indígena, há aparência de que o projeto possui interesse social, eis que visa a fornecer insumos para a agricultura -, e também persegue um objetivo estatal legítimo, podendo ser executado inclusive se estiver em terras indígenas, desde que obedecida a legislação brasileira. III.b. O Conselho Indígena Mura - CIM e a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV O Conselho Indígena Mura - CIM é inequivocamente a entidade representativa dos Mura que residem em Autazes. Da mesma forma, a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV é a organização que representa os Mura no município do Careiro da Várzea. Essa circunstância é inequívoca dos autos e está consignada no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Careiro da Várzea, Amazonas. Confira-se à fl. 30, no capítulo "Quem Fala Em Nome dos Mura?": "Apesar de a Constituição Federal garantir que nossas terras sejam demarcadas, o Estado ainda não demarcou todas. A demarcação é nossa maior luta. "Mas nós sabemos que temos direito à nossa autodeterminação e ao autogoverno. A Constituição Federal de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, e a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, de 2007, assinadas pelo Brasil, garantem nosso direito ao autogoverno: somente nós, Mura, podemos decidir quem representa nossas aldeias e nosso povo. Por isso criamos as nossas organizações. As aldeias da região onde fica o município de Autazes se reúnem nas assembleias do Conselho Indígena Mura - CIM, e as aldeias que ficam na região onde está o município do Careiro da Várzea se reúnem nas assembleias da Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea, OLIMCV. Estas nossas organizações são um direito nosso, assegurado pela Constituição Federal (art. 5º): temos o direito de nos organizar livremente e de tomar nossas decisões de maneira soberana e autônoma nas assembleias das nossas organizações. Quando os não-índios querem elaborar um projeto, medida ou lei, são obrigados a nos consultar antes, sem nos pressionar e nos informando sobre todos os detalhes da proposta. Para começar esse diálogo, que é a consulta prévia, os não-índios " III.c. As Entidades Representativas e o Poder de Fala dos Povos Originários Nos termos do art. 32 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, são as instituições representativas dos povos originários que devem falar pelos indígenas em fases de consulta. Confira-se: "1. Os povos indígenas têm o direito de determinar e de elaborar as prioridades e estratégias para o desenvolvimento ou a utilização de suas terras ou territórios e outros recursos. 2. Os Estados realizarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas próprias instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre e informado antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particularmente em relação ao desenvolvimento, à utilização ou à exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo. 3. Os Estados estabelecerão mecanismos eficazes para a reparação justa e equitativa dessas atividades, e serão adotadas medidas apropriadas para mitigar suas consequências nocivas nos planos ambiental, econômico, social, cultural ou espiritual." Também no caso do Povo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Equador, sentença de 27 de junho de 2012, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi expressamente consignado que “os Estados devem incorporar essas normas aos processos de consulta prévia, de maneira a gerar canais de diálogos sustentados, efetivos e confiáveis com os povos indígenas nos procedimentos de consulta e participação por meio de suas instituições representativas." Sendo assim, como as consultas e cooperação entre indígenas devem ser verbalizadas por meio das suas instituições representativas, não há dúvidas de que, no caso em concreto, quem deve falar sobre os interesses dos Muras de Autazes é o CIM e pelos Mura de Careiro da Várzea é a OLIMCV. A própria decisão de id. 925987687, do Juízo de origem, reconhece que o CIM é a instituição que representa parte do Povo Indígena Mura nestes autos: III.d. A Abrangência do Dever de Consulta, a Inexistência do Poder de Veto e o Momento Adequado Sobre a abrangência do dever de consulta, no document Handbook for ILO Triparte Constituents - Understanding the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), publicado pela OIT, com a finalidade de responder questões essenciais sobre a Convenção 169, é dito que um dos principais desafios da convenção é garantir que consultas apropriadas sejam realizadas antes da adoção de medidas legislativas ou administrativas que provavelmente afetarão diretamente os povos indígenas e tribais [2]. Segundo o que decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos em Garífuna Triunfo de La Cruz e seus membros vs. Honduras, os elementos essenciais do direito de consulta são “a) o caráter prévio da consulta; b) a boa-fé e a finalidade de chegar a um acordo; c) a consulta adequada e acessível; d) o estudo de impacto ambiental; e e) a consulta informada.” É incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública. Essa ideia é pedagogicamente explicada na obra "The Oxford Handbook of International Enviromental Law", de Lavanya Rajamani e Jacqueline Peel, ao tratar da Convenção 169 da OIT (pág. 739): "Governments shall consult, 'in good faith...with the objective of achieving agreement or consent to the proposed measures' when considering legislative or administrative measures which may affect Indigenous peoples directly. Special measures to safeguard persons, institutions, property, labour, cultures, and environment of the Indigenous peoples shall not be contrary to the freelyexpressed wishes of the peoples concerned. The Convention acknowleges Indigenous peoples to be distinct polities within states". Em tradução livre: "Os governos deverão consultar, 'de boa fé... com o objetivo de chegar a acordo ou consentimento para as medidas propostas' ao considerar medidas legislativas ou administrativas que possam afetar diretamente os povos indígenas. Medidas especiais para salvaguardar pessoas, instituições, propriedades, trabalho, culturas e meio ambiente dos povos indígenas não devem ser contrárias aos desejos livremente expressos dos povos envolvidos. A Convenção reconhece os povos indígenas como entidades políticas distintas dentro dos Estados". Portanto, devem os indígenas expressar livremente seus modos de criar, fazer e viver, nos termos do art. 216, II, da Constituição e devem ser ouvidos propriamente quando puderem ser afetados por medidas que os impactem. Mas não basta. É indispensável que suas ideias, expressadas num ambiente livre e sem intimidações, sejam consideradas pelo órgão ambiental e pelo poder público, como um todo, ao analisar o licenciamento e/ou autorização para uma obra ou empreendimento que puderem afetar tais comunidades tradicionais. Em outras palavras, esse poder de fala (livre) dos indígenas gera, em contrapartida, um dever de escuta das autoridades envolvidas. É importante esclarecer, porém, que isso não significa a existência de um poder de veto por parte da comunidade indígena. Realizar a consulta é uma obrigação convencional, com força supra legal. Acatar necessariamente a integralidade do que for demandado não parece ser, ao menos pelo que constatei da jurisprudência do STF e do que consta em documentos da própria OIT. Confira-se, nesse sentido, o que já decidiu o STF, no julgamento da PET 3388 ED/RR: "70. Por fim, conforme observado pelo Ministro Gilmar Mendes, a relevância da consulta às comunidades indígenas “não significa que as decisões dependam formalmente da aceitação das comunidades indígenas como requisito de validade” (fl. 799). Os índios devem ser ouvidos e seus interesses devem ser honesta e seriamente considerados. Disso não se extrai, porém, que a deliberação tomada, ao final, só possa valer se contar com a sua aquiescência . Em uma democracia, as divergências são normais e esperadas. Nenhum indivíduo ou grupo social tem o direito subjetivo de determinar sozinho a decisão do Estado. Não é esse tipo de prerrogativa que a Constituição atribuiu aos índios. 71. A mesma lógica se aplica em matéria ambiental, que também mereceu proteção diferenciada por parte do constituinte. Por isso mesmo, e com a devida vênia em relação à posição da embargante (fl. 16.165), não há um problema a priori no fato de que “as tradições e costumes indígenas” sejam considerados como “apenas mais um fator, a ser sopesado pela autoridade ambiental”. Em verdade, essa é uma circunstância inerente à unidade do sistema constitucional, que promove a tutela de um conjunto variado de interesses e direitos que, em diversas situações, podem entrar em rota de colisão. Ao não instituir uma hierarquia rígida ou estática entre tais elementos, a Constituição impõe a necessidade de que a concordância entre eles seja produzida em cada contexto específico, à luz de suas peculiaridades. 72. Assim, como responsável pela administração das áreas de preservação, o Instituto Chico Mendes não pode decidir apenas com base nos interesses dos indígenas, devendo levar em conta as exigências relacionadas à tutela do meio ambiente. Nesse cenário, é de fato possível – como afirma a embargante – que “o administrador da unidade de conservação, até pela sua posição institucional, ponha em primeiro plano a tutela ambiental, em detrimento do direito das comunidades indígenas”. Contudo, é igualmente possível que isso não ocorra, não cabendo a este Tribunal antecipar o erro, a negligência ou a má-fé. Em qualquer caso, os índios, suas comunidades e o próprio Ministério Público poderão recorrer ao Poder Judiciário sempre que reputarem inválida uma decisão do Instituto (ou de qualquer outra autoridade)." (Emb. Decl. na Petição 3.388/RR, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 23.10.2013) No mesmo sentido, são os comentários feitos no documento editado em 2019, pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, intitulado Excerpts from reports and comments of the ILO Supervisory Bodies - Applying the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), disponível no site da organização: Confira-se o que está dito nas fls. 48-49 do referido documento: "Concerning the nature of consultation, from the review of the preparatory work concerning Convention No. 169 and from the review of the wording of the two authoritative texts of the Convention, the Committee concludes that it was the intention of the drafters of the Convention that the obligation to consult under the Convention was intended to mean that: 1) consultations must be formal, full and exercised in good faith; 26 there must be a genuine dialogue between governments and indigenous and tribal peoples characterized by communication and understanding, mutual respect, good faith and the sincere wish to reach a common accord; 2) appropriate procedural mechanisms have to be put in place at the national level and they have to be in a form appropriate to the circumstances; 3) consultations have to be undertaken through indigenous and tribal peoples’ representative institutions as regards legislative and administrative measures; 4) consultations have to be undertaken with the objective of reaching agreement or consent to the proposed measures It is clear from the above that pro forma consultations or mere information would not meet the requirements of the Convention. At the same time, such consultations do not imply a right to veto, nor is the result of such consultations necessarily the reaching of agreement or consent." [3] A tradução livre deste trecho é a seguinte: "Quanto à natureza da consulta, da revisão dos trabalhos preparatórios relativos à Convenção nº 169 e da análise dos textos das duas versões autorizadas da Convenção, o Comitê conclui que os redatores da Convenção tinham a intenção de que a obrigação de consultar sob a Convenção significasse o seguinte: as consultas devem ser formais, completas e exercidas de boa fé; deve haver um diálogo genuíno entre os governos e os povos indígenas e tribais caracterizado pela comunicação e entendimento mútuos, respeito mútuo, boa fé e o sincero desejo de alcançar um acordo comum; mecanismos procedimentais apropriados devem ser estabelecidos no nível nacional e devem estar em uma forma adequada às circunstâncias; as consultas devem ser realizadas por meio das instituições representativas dos povos indígenas e tribais no que se refere a medidas legislativas e administrativas; as consultas devem ser realizadas com o objetivo de alcançar acordo ou consentimento quanto às medidas propostas. É claro a partir do exposto que consultas meramente formais ou simples fornecimento de informações não satisfariam os requisitos da Convenção. Ao mesmo tempo, tais consultas não implicam um direito de veto, nem o resultado dessas consultas necessariamente é o alcance de um acordo ou consentimento." É essencial, assim, deixar claro que a opção pelo empreendimento, ou não, é do Poder Público e a ele compete, respeitando os termos da Constituição e da legislação, licenciá-lo. Por fim, sobre o momento da consulta, no caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador, decidido em 27.12.2012, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi também referido que o “requisito de consulta prévia implica que essa consulta deva ser realizada antes de tomar-se a medida, ou executar o projeto suscetível de afetar as comunidades [...] e que as comunidades sejam envolvidas o quanto antes no processo”. III.e. Análise das alegações do agravo de instrumento Pois bem, apresentados estes esclarecimentos introdutórios, passa-se ao exame do agravo. Como dito, no recurso, é postulada a reforma da decisão agravada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". Ou seja, o que se deseja é que seja reconhecida como válida da consulta efetivada, bem como que seja definido que a área do projeto não é terra indígena, consequencia lógica para se afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional (art. 231, § 3º, CF). III.e.1. O Processo de Consulta no Caso Concreto O processo de consulta, no caso em questão, demandou anos para ser realizado. Pela análise dos autos, é possível perceber que o anúncio da descoberta das minas se deu 2010 e 2013 e o Estudo de Impacto Ambiental foi concluído em 2015 (id. 296953002), assim como a emissão da licença prévia pelo IPAAM, cuja validade é questionada na origem. Como a Ação Civil Pública nº 0019192-92.2016.4.01.3200 foi ajuizada em 2016, todo o processo de consulta foi acompanhado pelo Juízo. Antes de iniciar a fase de consulta, em 7.5.2018, foi determinada a suspensão de qualquer atividade de prospecção por parte da Potássio do Brasil Ltda., para que fosse iniciada a construção de um protocolo de consulta. O Juízo inclusive homologou a designação um antropólogo, o Dr. Bruno Walter Caporrino, para mediar, facilitar e presidir os trabalhos de construção do protocolo de consulta, tendo este sido remunerado pela Potássio do Brasil Ltda. Tanto a FUNAI, como o DNPM foram devidamente cientificados do procedimento definido. Confira-se o inteiro teor da decisão (id. 297015035): Ou seja, o presente caso apresenta uma particularidade em relação aos que normalmente são judicializados: toda a fase de consulta foi acompanhada pelo Juízo. É interessante verificar também o inteiro teor dos relatórios das oficinas realizadas nas aldeias, cuja elaboração coube ao Dr. Bruno Walter Caporrino. São trabalhos bastante extensos e ricos em em destacar o procedimento que estava sendo levado a efeito pelo perito. Por exemplo, o relatório constante do id. 297015043, protocolado nos autos em 2018, contém 169 páginas e é encaminhado por meio do ofício abaixo, com os seguintes termos: As seguintes aldeias foram visitadas: Ao todo, foram 19 atividades: Posteriormente, ainda houve a protocolização de relatórios complementares em 2019 (fls. 1255 - 1719 - id. 297031909). Após, houve uma Assembleia de Aprovação do Protocolo de Consulta e Consentimento Mura em 18.6.2019. A Lista de presença está à fl. 1.780-1.810 e a ata ás fls. 1.758-1779 - id. 297031909. Há juntada de DVDs com a audiência gravada e também de cópia impressa do protocolo (fls. 1.825-1.880 - id. 297047874). O procedimento foi plenamente aceito por todas as partes envolvidas, chegando o MPF, na petição de 11.9.2019 (fl. 1.906-1.909) a afirmar que se cuida de relevante momento para o Estado democrático de direito. Frise-se que as aldeias do Soares e Careiro receberam Oficinas, conforme acima relatado. Ficou também expresso que o princípio da vinculação ao aos termos do referido instrumento deveria reger a relação e que estava sendo inaugurado um interesse diálogo das fontes: Posteriormente, foi realizada audiência judicial na qual foi acordado que a Potássio do Brasil Ltda. entregaria até o dia 18.11.2019 a proposta do empreendimento oficialmente ao CIM e à OLIMCV. Confira-se a parte final da ata: Ato contínuo, em 18.11.2019, foi protocolada petição pela Potássio do Brasil Ltda. comunicando a entrega do material ao CIM e ao OLIMCV, as quais responderam confirmando o recebimento da documentação e dando o aceite no início do processo de consulta (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). O protocolo também foi feito perante a Justiça Federal, o MPF e o perito do juízo foi copiado nos emails. Em relação às características do empreendimento, foi informado o seguinte em documentos acostados aos autos: Após, com o início da pandemia da COVID-19, o processo sofreu atrasos e apenas foi retomado em 2021, depois da vacinação dos Mura. Foi apresentado orçamento da consulta, equivalente a R$ 1.258.687,90 (id. 637592027). Foi estabelecido um cronograma de reuniões com dos Povos Mura informado pelo CIM (id. 830734065), sendo que o plano era a conclusão até o final de maio de 2022: Após, foi realizada inspeção judicial em 29.3.2022 (Relatório - id. 1061672277) o que representou mais uma paralisação no processo. O ponto mais relevante consignado foi o seguinte: Em seguida, houve notícia de que o MPF protocolou a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200, mediante a qual pleiteia que seja concluída a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Ato contínuo, petição de 20.9.2022, o MPF relatou a existência de pressões e coações por parte da empresa sobre os povos indígenas de Autazes e região e a sobreposição da exploração minerária pretendida pela Potássio do Brasil Ltda. ao referido território tradicional indígena. Ademais, aduziu o MPF que as estruturas minerárias seriam construídas a aproximadamente dois quilômetros da área de moradia (casas da aldeia Soares), e dentro da área indígena reivindicada, território de uso tradicional do povo Mura. Nesse contexto, requer a suspensão da licença expedida quanto ao Projeto Potássio Amazonas/Autazes, bem como a suspensão do procedimento de consulta prévia até finalização do procedimento de demarcação do território (ACP 1015595-88.2022.4.01.3200), no qual haveria liminar concedida. Sobre esse pedido, a FUNAI se manifestou sobre a ausência de indícios de tradicionalidade (id. 1419622747): Após, em 16.2.2023, a FUNAI fez juntar aos autos documento intitulado Análise Cartográfica nº 138/2023, mediante a qual apresentou as seguintes conclusões (id. 1496199359): Veja-se, então, que se diz expressamente que há uma área de sobreposição, mas ao mesmo tempo afirma-se que há uma distância de 2,52 km da aldeia Soares da base de exploração. Foi também apontada uma área de influência considerada uma área de 10 km a partir da área total do “Projeto Potássio Amazonas – Autazes”, nos termos do Anexo I da Portaria Interministerial nº 60/2015 da FUNAI. O mapa trazido na inicial permite a compreensão da área: É curioso notar que a existência de indígenas e também de não indígenas na área do Lago do Soares foi identificada quando da demarcação da Terra Indígena Jauary, mas não entendeu-se que o local onde será instalado a base de exploração da Potássio do Brasil Ltda. não deveria ser abarcado no perímetro da respectiva terra. Confira-se a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): É importante perceber também que, segundo informações da FUNAI, o município de Autazes possui mais de 20 terras indígenas regularizadas ou em processo de demarcação. Ou seja, não é um município em relação ao qual já não se tenham sido feitas delimitações de áreas de tradicionalidade indígena. Além disso, é válido destacar que no Caso Povos Kaliña e Lokono VS. Suriname, decidido em 2015, ficou estabelecido que “para efeitos de delimitação, demarcação e titulação do território tradicional [...], a Corte estima que o direito à propriedade dos povos indígenas e tribais contempla garantias plenas sobre os territórios que tradicionalmente possuíram, ocuparam e utilizaram para exercer sua própria forma de vida, subsistência, tradições, cultura e desenvolvimento como povos”. No entanto a Corte assinalou que “sem prejuízo do exposto, existiriam outras áreas tradicionais complementares ou adicionais às que tenham tido acesso para suas atividades tradicionais ou de subsistência (que, caso seja conveniente, podem compartilhar outras finalidades), a respeito das quais se deve garantir, pelo menos, o acesso e uso, na medida em que seja cabível.” Ou seja, para a CIDH, nem toda área área que os indígenas utilizem para subsistência ou mesmo habitem configura necessariamente uma Terra Indígena. Chama a atenção o fato de que a própria inspeção judicial constatou a presença de populações ribeirinhas na região do Lago do Soares, as quais, ao que parece, estão lá também há muitos anos, sendo que existe uma convivência aparentemente harmoniosa: Na inicial da ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 é também reconhecida a existência de indígenas e ribeirinhos, tendo em vista que há aldeias e povoados na região: No caso acima a Corte também constatou que “efetivamente, dentro do território que os Povos Kaliña e Lokono alegam ser seu território tradicional, haveria, pelo menos 10 assentamentos maroons que estariam excluídos dessa queixa, a saber: 1) Albina; 2) Papatam; 3) Mankelekampu; 4) Mariakondre; 5) Eduardkondre; 6) Akoloikondre; 7) Bamboesi; 8) Koni; 9) Moengotapu; e 10) Adjoemakondre [...]. No entanto, a Corte não dispõe de informação suficiente que lhe permita esclarecer os argumentos relacionados a possíveis assentamentos maroons em: 1) Bilokondre; 2) Krontokondre; 3) Soke; 4) Pakirakondre; 5) Mopikondre; 6) Onikaikondre; 7) Manjabong; 8) Bonikondre ou Baajoebekampu; 9) Nengrekriki; 10) Solegakampu; e 11) Brunswijkkamp […]” E disse que, “sem prejuízo do exposto, sendo que é dever do Estado delimitar os territórios tradicionais, cabe a ele, mediante um processo consultivo e mediante as medidas necessárias de caráter administrativo e legais, conforme as normas internacionais na matéria, primeiramente delimitar os territórios que cabem aos Povos Kaliña e Lokono, em conformidade com o parágrafo 139 desta sentença, para assim proceder a sua demarcação e titulação, garantindo seu uso e gozo efetivo. Para isso, o Estado também deve respeitar os direitos que possam assistir aos povos tribais ou a seus membros na área. Para isso, o Estado deverá desenvolver, de comum acordo com as comunidades indígenas e maroons, regras de convivência pacíficas e harmoniosas no território em questão.” Por fim, o CIM, em 25.9.2023, protocolou petição comunicando que (i) aprovou o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta, bem como que (ii) aprovou pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil Ltda. faça a mineração. Eis a petição (id. 1829380152): Em anexo, foi apresentado o Relatório das Lideranças Mura de Autazes (id. 1829380154): Não houve juntada de documento de aprovação ou de rejeição do OLIMCV. Houve inclusive alteração do Protocolo de Consulta, excluindo a participação do OLIMCV, ou seja, dos Mura do município do Careiro da Várzea, em relação à deliberação da agravante. III.e.2. A Validade da Consulta Efetivada Cumpre examinar a validade da Consulta efetivada. Com efeito, foi devidamente reconhecido com ao CIM compete emitir manifestação de vontade sobre o Povo Mura de Autazes. Pela dicção do art. 6º da Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, “ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”. Não parecem existir argumentos que possam permitir que, ao menos em sede de cognição sumária, que a consulta realizada ao povo CIM não tenha sido efetuada com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. Como se depreendeu do histórico acima, houve um amplo debate com o Povo Mura de Autazes para entender o que significava o processo de consulta, compreender a relevância de examinar o projeto e também os direitos que terão frente a ele. O processo foi iniciado há quase 10 anos. Há notícias de oficinas, reuniões, audiências públicas. A aparência é que tenha sido um processo livre, eis que ainda houve acompanhamento judicial das etapas, algo que não é o usual. Seguiu-se, assim, o que havia determinado a FUNAI (fl. 1362 - id. 297018889): Não há notícia de que o CIM tenha alterado o posicionamento externado na petição acima. Este Relator recebeu as lideranças em seu Gabinete em Audiência e tudo foi reafirmado. Apesar de a consulta ter sido realizada após a emissão da licença prévia pelo IPAAM, ela foi feita antes de concretizado qualquer ato de instalação e exploração do empreendimento. Houve inclusive acordo judicial suspendendo as etapas, até que fosse concluída a Consulta. A licença prévia ainda continha como condicionante de que era necessária a apresentação do estudo de componente indígena à Funai. Confira-se (id. 296936996 - fl. 242): Não se pode, então, dizer que a consulta não obedeceu ao momento adequado. No caso concreto, não há realisticamente como ter existido uma consulta anterior à que foi realizada, uma vez que foi feita durante os estudos para ser decidir sobre a viabilidade ou não da obra. Ou seja, fase meramente preliminar, sem qualquer ato de execução, quando já identificados os riscos do empreendimento e quando ainda há um tempo "adequado para a discussão interna nas comunidades, para oferecer uma resposta adequada ao Estado". Além disso, os indígenas aparentemente tiveram amplo acesso à documentação do empreendimento, ao EIA/RIMA, ao Estudo de Componente Indígena e tiveram ampla chance de compreender o que está sendo proposto. Não se pode dizer que a realização de consulta por meio de audiências públicas não cumpre a obrigação de adequadamente consultar os povos. Os procedimentos apropriados exigidos pela Convenção são aqueles que os indígenas acharem apropriados. Se a audiência pública for assim considerada, não há porque concluir que não é adequado para o fim pretendido. Não há nada que imponha uma forma de consulta diversa, salvo a vontade dos indígenas. Por fim, chama a atenção de que o Protocolo de Consulta tenha sido alterado no curso do processo para separar o consentimento entre o CIM, o qual, como dito acima, inequivocamente representa os Mura que residem em Autazes, e a OLIMCV, entidade representativa que representa os Mura no município de Careiro da Várzea. Esta alteração, contudo, não tem o condão de retirar a validade da consulta efetivada. Isso, porque pela leitura dos autos, percebe-se que a própria Funai sempre se manifestou no sentido de que a população indígena potencialmente afetada era a dos Mura de Autazes. Confira-se o seguinte trecho, por exemplo (fl. 1.362 – id. 297018889), em que é dito que os indígenas que deveriam ser consultados são os da Terra Indígena Jauary e Paracuhuba, as quais, consoante a Análise Cartográfica nº 138/2023, são as que estão próximas do empreendimento: Além disso, o fato de que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, dissidência do CIM, não tenham se manifestado junto com o CIM não impede que eles expressamente se pronunciem sobre a consulta. A documentação dos autos comprova que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, então parte do CIM, receberam todos os documentos relativos ao empreendimento (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). A OLIMCV inclusive confirmou o recebimento do e-mail (id. 297047889 – p. 33): Existe a comprovação de que foram recebidas diversas unidades do protocolo de consulta, requerimento de despesas para realização de reuniões (id. 297018967): Confira-se, ainda, o seguinte documento (id. 637592035): É preciso dizer que a proteção dos povos e terras indígenas é permanente para o Estado Brasileiro. A mera circunstância de que a consulta foi realizada não satisfaz a obrigação permanente de assistência e proteção desses povos, ouvindo-os sempre de boa-fé e atendendo, quando possível, as demandas pleiteadas. O que se estabelece é um diálogo permanente e não momentâneo. Se novas dúvidas surgirem, se problemas antes não imaginados forem detectados, competirá ao Estado Brasileiro lidar com as questões e sanar esses problemas, de forma a dar ampla concretude aos direitos e garantias dos povos originários. Assim, caso a OLIMCV logre comprovar que a delimitação da Funai está de que os Mura de Careiro da Várzea deveriam também ser obrigatoriamente consultados, ainda que não haja notícias de que nenhuma aldeia será diretamente impactada pelo trajeto, tal diálogo tem totais condições de ainda ser estabelecido de maneira satisfatória, com a implantação de reparações necessárias, mesmo com o projeto em curso. Adicionalmente , também é de se considerar que o fato de os Mura da aldeia do Lago de Soares, situada em Autazes, terem ficado vencidos na alteração do protocolo de consulta e, posteriormente, terem decidido romper com a autoridade constituída, qual seja, o CIM, não invalida a alteração. No modelo deliberativo adotado pelos Mura de Autazes, não há exigência de unanimidade para a aprovação da alteração, a qual, é certo, inviabilizaria a conclusão do processo. Não é possível invalidar a alteração do protocolo de consulta somente porque os Mura do Lago de Soares, submetidos, incontroversamente, à data da deliberação, à autoridade do CIM, discordam da decisão. Chancelar a nulidade da alteração diante da discordância de uma parcela dos indígenas afetados representaria a inviabilização da construção de um protocolo de consulta e de qualquer deliberação, especialmente em relação a litígios complexos, vide o caso dos autos. Na obra Constitutional Strategies, o Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Berkeley, Robert Cooter, aponta as deficiências de um sistema baseado na regra da unanimidade: “O poder de barganha depende das consequências da falha na negociação. Se uma negociação é frustrada, cada parte deve fazer o seu melhor sem a cooperação dos demais. As partes que se beneficiam menos da cooperação terão o maior poder de barganha. Como uma parte pode ter êxito sem a cooperação das demais depende da regra da ação coletiva. Primeiramente, considere a regra da unanimidade. Negociações frustradas na regra da unanimidade paralisam as ações coletivas. Consequentemente, quando barganham sob a regra da unanimidade, as regiões e as coletividades com menor necessidade de cooperação podem demandar as melhores condições.[...] A força da negociação está nas mãos dos membros potenciais de uma coalizão majoritária. Quando se negocia sob uma regra de maioria, as regiões e as localidades dentro da coalizão interna podem demandar melhores condições de cooperação dos externos”. Por fim, é importante ter em mente que tanto os povos originários representados pela OLIMCV e pela Organização dos Mura do Lago do Soares tiveram amplo tempo e conhecimento do Projeto Autazes e podem ainda se pronunciar formalmente nos autos de origem sobre o que pensam a respeito do assunto. A circunstância de que houve uma ruptura do formato conjunto de todas as organizações de deliberação do Protocolo de Consulta em nada impede que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares emitam qualquer opinião sobre o Projeto nesses autos judiciais, tampouco que apresentem essa manifestação de vontade a qualquer órgão estatal. Há, ao meu sentir, um deslocamento do debate, como se a circunstância de a alteração do Protocolo represente a inviabilização de que essa emissão de vontade não possa mais ocorrer, o que não faz qualquer sentido. Em verdade, a ausência de manifestação formal sobre o tema da consulta para depois se alegar que a Consulta não ocorreu representa um veto em branco ao Projeto, pois se busca evitar a consolidação de uma etapa necessária deslocando o foco do debate. É importante ressaltar que a CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. Veja-se que essas organizações não alegam que não estão devidamente informadas, que não tiveram tempo para se reunir ou debater, que não receberam documentos, que não tiveram como debater o projeto com órgãos estatais ou com a empresa. O que se alega simplesmente é que o CIM não poderia ter aprovado isoladamente o projeto, sem que se diga se aprovam ou desaprovam e por quais razões. Veja o que disse a CIDH no caso Pueblo Indígena U’WA y sus miembros VS. Colombia: 191. Nos casos em que – tendo os Estados promovido a consulta de boa-fé e em conformidade com os padrões previamente estabelecidos (supra, parágrafos 168 a 178 e 190) – o povo indígena se recuse a participar, deverá ser considerado que o povo indígena está em desacordo com a atividade objeto da consulta e, portanto, a obrigação da consulta será considerada esgotada. Além disso, os Estados devem garantir que as medidas adotadas sejam proporcionais e respeitem o princípio da igualdade e da não discriminação, levando também em consideração a natureza da medida e seu impacto no território e na cultura. Do mesmo modo, os Estados devem garantir o acesso à justiça em relação às medidas que possam afetar diretamente um povo indígena ou tribal, a fim de verificar se a consulta prévia foi realizada em conformidade com as obrigações internacionais do Estado e com a jurisprudência desta Corte. Caso o povo indígena tenha se recusado a participar da consulta, a autoridade judicial deverá verificar se o Estado tomou medidas específicas e agiu de boa-fé para realizar a consulta prévia, livre e informada, e se, nesse contexto, a atividade restringe de forma desproporcional os direitos do povo indígena ou tribal. Tradução livre de: 191. En los casos en los que –habiendo los Estados impulsado la consulta de buena fe y conforme a los estándares previamente señalados (supra, párrs. 168 a 178 y 190)— el pueblo indígena se niegue a participar, deberá considerarse que el pueblo indígena está en desacuerdo con la actividad objeto de la consulta, y por lo tanto la obligación de la consulta se tendrá por agotada271. Además, los Estados deben garantizar que las medidas adoptadas sean proporcionales y respeten el principio de igualdad y no discriminación, tomando además en consideración la naturaleza de la medida y su impacto en el territorio y la cultura272. Asimismo, los Estados deben garantizar el acceso a la justicia frente a las medidas que puedan afectar directamente a un pueblo indígena o tribal, a fin de verificarse si la consulta previa fue realizada de conformidad con las obligaciones internacionales del Estado y la jurisprudencia de esta Corte. En caso de que el pueblo se haya negado a participar en la consulta, la autoridad judicial deberá verificar si el Estado tomó medidas específicas y de buena fe a fin de realizar la consulta previa, libre e informada, y si en ese contexto la actividad limita de forma desproporcionada los derechos del pueblo indígena o tribal. Fonte: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_530_esp.pdf Sendo assim, deve-se considerar que a etapa de consulta foi adequadamente cumprida e que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares, por não emitirem pronunciamento expresso sobre os termos da consulta, apesar de cientes dessa prerrogativa – uma vez que participaram da elaboração do protocolo de consulta –, bem como dos termos do projeto, uma vez que receberam da Potássio o e-mail contendo todas as informações -, simplesmente se recusaram a participar. Por tal razão, os órgãos estatais devem considerar que recusaram o projeto, sem que isso implique poder de veto. Frise-se que a ausência da manifestação dessas associações não exime o Estado de proteger legitimamente os indígenas que habitam nas aldeias que representam. Como disse a União no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000, “todos os impactos ambientais e socioculturais do empreendimento sobre o povo mura do Lago de Soares e da Vila de Urucurituba estão sendo devidamente tratados no licenciamento ambiental em curso. Durante o licenciamento, foi elaborado estudo do Componente Indígena, indicando as consequências sociais e ambientais do empreendimento, bem como apresentados formas de mitigação/compensação” (id. 274290022 – fl. 39). Ante esse quadro, ao menos em juízo preliminar, não há razões para concluir que o Estado Brasileiro não cumpriu os seus compromissos internacionais de respeito aos direitos humanos indígenas em relação ao projeto de aprovação da licença prévia do empreendimento em questão, uma vez que procedeu adequadamente quanto à consulta destes povos. III.e.3. A Competência para Licenciar o Empreendimento A decisão agravada ainda consignou ser o IBAMA o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto. Creio estar a compreensão equivocada e que o correto entendimento foi abordado de forma minuciosa pela União quando da interposição do Agravo de Instrumento n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que será julgado na mesma oportunidade deste recurso. Coaduno com a fundamentação exposta pela União, pelo que integro-a às razões de decidir deste agravo. A Lei Complementar 140, de 8 de dezembro de 2011, regulamenta a competência dos entes federativos em questões ambientais, estabelecendo diretrizes para cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Alinhada à Constituição Federal, a norma aborda ações administrativas conjuntas relacionadas à proteção do meio ambiente, combate à poluição e preservação de recursos naturais, como florestas, fauna e flora. Essa norma promoveu uma divisão clara de competências, reduzindo conflitos especialmente no âmbito do licenciamento ambiental, que antes era regulado majoritariamente pela Resolução 237 do CONAMA. A lei determina que apenas um órgão será responsável pela aprovação, fiscalização e eventual sanção, assegurando celeridade, transparência e segurança jurídica no processo de licenciamento. A lei também prevê instrumentos de cooperação, como consórcios públicos, convênios e delegações de competências, desde que o ente delegado disponha de estrutura técnica e conselho ambiental adequados. A simplificação do licenciamento ambiental permite que empreendimentos poluidores ou potencialmente degradantes sejam licenciados pelo órgão competente de qualquer nível federativo, inclusive municipal, promovendo eficiência administrativa. Confira-se os dispositivos da norma que tratam sobre a competência de cada ente federativo, sobretudo com relação ao licenciamento ambiental: Art. 7º São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: a) localizados ou desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; b) localizados ou desenvolvidos no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva; c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; d) localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pela União, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados; f) de caráter militar, excetuando-se do licenciamento ambiental, nos termos de ato do Poder Executivo, aqueles previstos no preparo e emprego das Forças Armadas, conforme disposto na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999; g) destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen); ou h) que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento; -.-.- Art. 8° São ações administrativas dos Estados: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7° e 9°; XV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pelo Estado, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); -.-.- Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade; ou b) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); Dito isso, peço licença para transcrever a argumentação da União nos autos do AI n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que adoto como razões de decidir: "[p]ercebe-se que a LC nº 140/2011 trouxe diferentes critérios definidores de competência para cada ente (União – localização e tipo de atividade; Município – alcance do impacto ambiental; Estado – residual). Cada critério não se confunde com os demais e não tem aplicação a outros entes federativos. Da leitura do art. 8º, XIV depreende-se que aquilo que não estiver expressamente taxado como sendo competência da União (art. 7º) ou dos Municípios (art. 9º) é competência dos Estados-membros (caráter residual). Por isso, nada mais natural do que ler as competências contidas na LC nº 140 de forma restritiva ou literal em relação a União e Municípios. Como destacou o TRF da 1ª Região, ao tratar da interpretação restritiva em caso envolvendo competência para licenciamento ambiental, assim como na Constituição, “o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal.” (TRF da 1a Região, 5a T., v.u., AC 0000267- 95.2005.4.01.3600, rel. Des. João Batista Moreira, j. em 17/08/2011, eDJF1 26/08/2011, p. 153.) Dessa forma, não cabem considerações expansivas da competência da União, devendo o intérprete trabalhar com o texto dado pela LC 140, não podendo usar argumentos não previstos expressamente na lei. Na perspectiva da LC n. 140/2011, a competência para licenciamento será federal apenas quando estiver configurada uma das hipóteses previstas no art. 7º, XIV, que estabelece apenas critério de localização e de tipo de atividade ou no caso de empreendimentos que atendam a tipologia prevista na alínea "h" (atualmente definida no Decreto nº 8.437, de 22 de abril de 2015). Percebe-se, portanto, que para que haja competência federal para licenciamento prevista no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140/2011 (Terra Indígena), deve-se atender ao critério da localização do empreendimento – não tendo aplicação o critério do alcance dos impactos: Art. 7° São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: (...) c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; Quando o legislador quis adotar o critério do âmbito do impacto ambiental da atividade ou empreendimento, o fez de forma explícita: Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade Percebe-se, claramente, que o legislador adotou o critério do alcance do impacto ambiental no art. 9º, XIV, “a” da LC nº 140 como definidor apenas da competência para licenciamento dos Municípios. Já no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140 constata-se que não houve menção alguma ao âmbito de impacto do empreendimento, mas apenas à localização e ao desenvolvimento da atividade: “localizados ou desenvolvidos em terras indígenas”. Se quisesse adotar o critério do impacto ambiental para competência federal, o legislador teria definido que são ações administrativas da União promover o licenciamento de empreendimentos e atividades que causem ou possam causar impacto ambiental em Terra Indígena. Não o fez. Optou pelo critério da localização. Houve, portanto, silêncio eloquente do legislador, que, em relação ao licenciamento de atividades em Terra Indígena optou por afastar o critério do alcance do impacto e adotar exclusivamente o critério da localização do empreendimento. Ou seja, a competência somente será fixada como federal quando o empreendimento estiver localizado dentro da Terra Indígena, não se aplicando o critério de impacto ambiental para fixação da competência federal. O empreendimento tratado na demanda está localizado e será desenvolvido completamente fora de Terra Indígena (demarcada e em demarcação). Em relação à INSTRUÇÃO NORMATIVA CONJUNTA Nº 1, de 22 de fevereiro de 2021 da Funai, mencionada no despacho a que a Juíza faz referência na decisão agravada, destaca-se que o ato dispõe sobre os procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor seja organização indígena. O que reforça que a competência federal se dá no caso de empreendimento localizado ou desenvolvido no interior de terra indígena – e não de atividades que possam afetar terra indígena. Ademais, as áreas de influência direta e indireta dos impactos ambientais do empreendimento devem vir definidas no EIA, que é elaborado por equipe multidisciplinar habilitada, responsável tecnicamente pelos estudos apresentados. No caso do empreendimento em tela, verifica-se que o EIA apresentado definiu a área de influência dos impactos ambientais do empreendimento em dois quilômetros quadrados (2 km²) no Projeto Autazes. O empreendimento, como demonstrado anteriormente, encontra-se a 8 km dos limites de terras indígenas demarcadas e em demarcação. Quanto à Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, imperioso tecermos alguns comentários. Inicialmente, importante destacar que a referida portaria estabelece procedimentos administrativos para oitiva da FUNAI, da Fundação Cultural Palmares, do IPHAN e do Ministério da Saúde em licenciamentos ambientais que já são de competência do Ibama. A portaria não estabelece, portanto, critério para definição de competência, mas apenas regras e procedimentos administrativos para a oitiva dos mencionados entes e órgãos. Assim, no curso de licenciamento que já está ocorrendo perante o Ibama: (a) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra quilombola, deverá haver manifestação da Fundação Cultural Palmares, (b) se constatada a ocorrência de bens culturais acautelados em âmbito federal na área de influência da atividade, deverá haver manifestação do IPHAN, (c) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra indígena, deverá haver manifestação da FUNAI e (d) se o empreendimento localizar-se em município pertencente à área de risco ou endêmica para malária, deverá haver oitiva do Ministério da Saúde. Percebe-se claramente que a portaria não fixa critérios de definição de competência para licenciamento pelo Ibama. Não se cogita competência do Ibama para licenciar empreendimento pelo simples fato de impactar em terra quilombola, afetar bens culturais acautelados no âmbito federal ou estar localizado em área de risco de malária. Assim, a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Do mesmo modo, a presunção de intervenção em terra quilombola, quando o empreendimento estiver no raio de 10 km (art. 3º, § 2º, II c/c Anexo I), obviamente, também não gera competência automática do Ibama, gerando apenas a necessidade de oitiva da Fundação Cultural Palmares. (...) A Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, portanto, não prevê competência da União (IBAMA) para licenciar quando se presume a intervenção em terra indígena (ou em terra quilombola ou em área de risco de malária ou em área com bens culturais acautelados) pelo fato do empreendimento estar localizado no raio de 10 km. A referida norma infralegal não atrai a competência do IBAMA por ausência de previsão no art. 7º da L.C 140/11, gerando apenas a exigência de oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), e não usurpação da competência para licenciar. Nesse ponto, importante diferenciar o critério para definição de competência para licenciamento, qual seja, a localização dentro de Terra Indígena, que deve ser interpretado restritivamente (art. 7º, XIV, “c” e art. 8º XIV), do critério para realização de Estudo de Componente Indígena ou de Consulta Prévia a povos indígenas e comunidades tradicionais, que é qualquer medida suscetível de afetá-los, o que admite uma interpretação mais elástica e, inclusive, foi objeto de concordância entre as partes para a sua realização. Percebe-se, então, que a hipótese normativa do art. 7º, XIV, inciso “c” da Lei Complementar n. 140 se aplica exclusivamente aos projetos localizados no interior de terras indígenas. No caso de empreendimento fora de terra indígena, a competência será do órgão ambiental estadual, mesmo que haja necessidade de ECI, de Consulta Prévia e haja reflexo na TI". Entendo correta assim a conclusão a que chegou a União, a partir da leitura da legislação, de que a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Afora esse aspecto, existe precedente do STF, com eficácia vinculante, que expressamente abordou a questão e reconheceu que é possível que um órgão ambiental estadual licencie um empreendimento em um caso em que efeitos indiretos para comunidades indígenas possam ocorrer. Foi justamente a ADI 4.757, que analisou a constitucionalidade da Lei Complementar nº 140/2011. Confira-se a ementa: CONSTITUCIONAL. AMBIENTAL. FEDERALISMO COOPERATIVO. COMPETÊNCIA COMUM EM MATÉRIA AMBIENTAL. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 23 CF. LEI COMPLEMENTAR Nº 140/2011. FEDERALISMO ECOLÓGICO. DESENHO INSTITUCIONAL DA REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS FUNDADO NA COOPERAÇÃO. RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE. DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE. DEVERES FUNDAMENTAIS DE PROTEÇÃO COMO PARÂMETRO NORMATIVO DE CONTROLE DE VALIDADE (ARTS. 23, PARÁGRAFO ÚNICO, 225, CAPUT, § 1º). RACIONALIDADE NO QUADRO ORGANIZATIVO DAS COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS. EFICIÊNCIA E COORDENAÇÃO DO AGIR ADMINISTRATIVO. VALORES CONSTITUCIONAIS. PODER DE POLÍCIA AMBIENTAL DE LICENCIAMENTO E ATIVIDADES FISCALIZATÓRIAS. EXISTÊNCIA E CAPACIDADE INSTITUCIONAL DOS ÓRGÃOS AMBIENTAIS COMO REQUISITO DA REGRA GERAL DE COMPETÊNCIA INSTITUÍDA NA LEI COMPLEMENTAR. ATUAÇÃO SUPLETIVA E SUBSIDIÁRIA. TUTELA EFETIVA E ADEQUADA DO MEIO AMBIENTE. LIMITES DA COGNIÇÃO JURISDICIONAL NO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO FEDERAL ATRIBUÍDA AO § 4º DO ART. 14 E AO 3º DO ART. 17. PROCEDÊNCIA PARCIAL. 1. A Lei Complementar nº 140/2011 disciplina a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora, em resposta ao dever de legislar prescrito no art. 23, III, VI e VI, da Constituição Federal. No marco da Política Nacional do Meio Ambiente, instituída pela Lei nº 6.938/1981, e da forma federalista de organização do Estado constitucional e ecológico, a Lei Complementar nº 140/2011 foi a responsável pelo desenho institucional cooperativo de atribuição das competências executivas ambientais aos entes federados. 2. Legitimidade ativa da Associação Nacional dos Servidores de Carreira de Especialista em Meio Ambiente e Pecma (ASIBAMA). Inegável a representatividade nacional da associação requerente, assim como a observância do requisito da pertinência temática para discutir questões versando alteração estrutural do sistema normativo de proteção do meio ambiente, conforme descrito no art. 3º, VI, do Estatuto Social juntado ao processo, quando do ajuizamento da presente ação. Reconhecimento da legitimidade da associação autora na ADI 4.029 (caso Instituto Chico Mendes). 3. O Supremo Tribunal Federal, acerca do alcance normativo do parágrafo único do art. 65 do texto constitucional, definiu interpretação jurídica no sentido de que o retorno à Casa iniciadora apenas deve ocorrer quando a Casa revisora, em seu processo deliberativo, aprovar modificação substancial do conteúdo do projeto de lei. Afastado, no caso, o vício de inconstitucionalidade formal do § 3º do art. 17. 4. Da interpretação do art. 225 da Constituição Federal, fundamento normativo do Estado de Direito e governança ambiental, infere-se estrutura jurídica complexa decomposta em duas direções normativas. A primeira voltada ao reconhecimento do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, em uma perspectiva intergeracional. A segunda relacionada aos deveres de proteção e responsabilidades atribuídos aos poderes constituídos, aos atores públicos e à sociedade civil em conjunto. A preservação da ordem constitucional vigente de proteção do meio ambiente, densificada nos seus deveres fundamentais de proteção, impõe-se, pois, como limite substantivo ao agir legislativo e administrativo. O que significa dizer que tanto a Política Nacional do Meio Ambiente, em todas as suas dimensões, quanto o sistema organizacional e administrativo responsável pela sua implementação, a exemplo do Sistema Nacional do Meio Ambiente, dos Conselhos Nacionais, Estaduais e Municipais, devem traduzir os vetores normativos do constitucionalismo ecológico e do federalismo cooperativo. 5. A Lei Complementar nº 140/2011, em face da intricada teia normativa ambiental, aí incluídos os correlatos deveres fundamentais de tutela, logrou equacionar o sistema descentralizado de competências administrativas em matéria ambiental com os vetores da uniformidade decisória e da racionalidade, valendo-se para tanto da cooperação como superestrutura do diálogo interfederativo. Cumpre assinalar que referida legislação não trata sobre os deveres de tutela ambiental de forma genérica e ampla, como disciplina o art. 225, §1º, IV, tampouco regulamenta o agir legislativo, marcado pela repartição concorrente de competências, inclusive no tocante à normatização do licenciamento em si. 6. O modelo federativo ecológico em matéria de competência comum material delineado pela Lei Complementar nº 140/2011 revela quadro normativo altamente especializado e complexo, na medida em que se relaciona com teia institucional multipolar, como o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), e com outras legislações ambientais, como a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) e a Lei de Infrações penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente (Lei nº 9.605/1998). O diálogo das fontes revela-se nesse quadro como principal método interpretativo. 7. Na repartição da competência comum ( 23, III, VI e VII CF), não cabe ao legislador formular disciplina normativa que exclua o exercício administrativo de qualquer dos entes federados, mas sim que organize a cooperação federativa, assegurando a racionalidade e a efetividade nos encargos constitucionais de proteção dos valores e direitos fundamentais. Ademais, os arranjos institucionais derivados do federalismo cooperativo facilita a realização dos valores caros ao projeto constitucional brasileiro, como a democracia participativa, a proteção dos direitos fundamentais e a desconcentração vertical de poderes, como fórmula responsiva aos controles social e institucional. Precedentes. 8. O nível de ação do agir político-administrativo nos domínios das competências partilhadas, próprio do modelo do federalismo cooperativo, deve ser medido pelo princípio da subsidiariedade. Ou seja, na conformação dos arranjos cooperativos, a ação do ente social ou político maior no menor, justifica-se quando comprovada a incapacidade institucional desse e demonstrada a eficácia protetiva daquele. Todavia, a subsidiariedade apenas apresentará resultados satisfatórios caso haja forte coesão entre as ações dos entes federados. Coesão que é exigida tanto na dimensão da alocação das competências quanto na dimensão do controle e fiscalização das capacidades institucionais dos órgãos responsáveis pela política pública. 9. A Lei Complementar nº 140/2011 tal como desenhada estabelece fórmulas capazes de assegurar a permanente cooperação entre os órgãos administrativos ambientais, a partir da articulação entre as dimensões estáticas e dinâmicas das competências comuns atribuídas aos entes federados. Desse modo, respeitada a moldura constitucional quanto às bases do pacto federativo em competência comum administrativa e quanto aos deveres de proteção adequada e suficiente do meio ambiente, salvo as prescrições dos arts. 14, § 4º, e 17, § 3º, que não passam no teste de validade constitucional. 10. No § 4º do art. 14, o legislador foi insuficiente em sua regulamentação frente aos deveres de tutela, uma vez que não disciplinou qualquer consequência para a hipótese da omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental. Até mesmo porque para a hipótese de omissão do agir administrativo no processo de licenciamento, o legislador ofereceu, como afirmado acima, resposta adequada consistente na atuação supletiva de outro ente federado, prevista no art. 15. Desse modo, mesmo resultado normativo deve incidir para a omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental, disciplinado no referido § 4º do art. 14. 11. Um dos princípios fundamentais do funcionamento do sistema legal de tutela do meio ambiente é o da atuação supletiva do órgão federal, seja em matéria de licenciamento seja em matéria de controle e fiscalização das atividades ou empreendimentos potencialmente poluidores ou degradantes do meio ambiente. No exercício da cooperação administrativa, portanto, cabe atuação suplementar – ainda que não conflitiva – da União com a dos órgãos estadual e municipal. As potenciais omissões e falhas no exercício da atividade fiscalizatória do poder de polícia ambiental por parte dos órgãos que integram o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) não são irrelevantes e devem ser levadas em consideração para constituição da regra de competência fiscalizatória. Diante das características concretas que qualificam a maioria dos danos e ilícitos ambientais de impactos significativos, mostra-se irrazoável e insuficiente regra que estabeleça competência estática do órgão licenciador para a lavratura final do auto de infração. O critério da prevalência de auto de infração do órgão licenciador prescrito no § 3º do art. 17 não oferece resposta aos deveres fundamentais de proteção, nas situações de omissão ou falha da atuação daquele órgão na atividade fiscalizatória e sancionatória, por insuficiência ou inadequação da medida adotada para prevenir ou reparar situação de ilícito ou dano ambiental. 12. O juízo de constitucionalidade não autoriza afirmação no sentido de que a escolha legislativa é a melhor, por apresentar os melhores resultados em termos de gestão, eficiência e efetividade ambiental, mas que está nos limites da moldura constitucional da conformação decisória. Daí porque se exige dos poderes com funções precípuas legislativas e normativas o permanente ajuste da legislação às particularidades e aos conflitos sociais. 13. A título de obter dictum faço apelo ao legislador para a implementação de estudo regulatório retrospectivo acerca da Lei Complementar nº 140/2011, em diálogo com todos os órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente, como método de vigilância legislativa e posterior avaliação para possíveis rearranjos institucionais. Sempre direcionado ao compromisso com a normatividade constitucional ambiental e federativa. Ademais, faço também o apelo ao legislador para o adimplemento constitucional de legislar sobre a proteção e uso da Floresta Amazônia (art. 225, § 4º), região que carece de efetiva e especial regulamentação, em particular das atividades fiscalizadoras, frente às características dos crimes e ilícitos ambientais na região da Amazônia Legal. 14. Improcedência dos pedidos de declaração de inconstitucionalidade dos arts. 4º, V e VI, 7º, XIII, XIV, “h”, XV e parágrafo único, 8º, XIII e XIV, 9º, XIII e XIV, 14 § 3º, 15, 17, caput e §§ 2º, 20 e 21, Lei Complementar nº 140/2011 e, por arrastamento, da integralidade da legislação. 15. Procedência parcial da ação direta para conferir interpretação conforme à Constituição Federal: (i) ao § 4º do art. 14 da Lei Complementar nº 140/2011 para estabelecer que a omissão ou mora administrativa imotivada e desproporcional na manifestação definitiva sobre os pedidos de renovação de licenças ambientais instaura a competência supletiva dos demais entes federados nas ações administrativas de licenciamento e na autorização ambiental, como previsto no art. 15 e (ii) ao § 3º do art. 17 da Lei Complementar nº 140/2011, esclarecendo que a prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ou autorização ambiental não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, desde que comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória. (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023) Importante destacar que também esta Corte já decidiu no sentido de que a competência será do órgão ambiental estadual nos casos em que o empreendimento está localizado fora de terra indígena. Confira-se: DIREITO ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. USINA HIDRELÉTRICA. LICENCIAMENTO. COMPETÊNCIA, EM REGRA, DE ENTIDADE ESTADUAL. CONSTRUÇÃO FORA DE TERRA INDÍGENA E IMPACTOS REGIONAIS INDIRETOS. COMPETÊNCIA FEDERAL TAXATIVAMENTE PREVISTA EM LEI E EM RESOLUÇÃO DO IBAMA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE JUSTIFIQUEM COMPETÊNCIA DA AUTARQUIA FEDERAL. SENTENÇA QUE ACOLHE ORIENTAÇÃO EM SENTIDO OPOSTO. APELAÇÃO. RECEBIMENTO SÓ NO EFEITO DEVOLUTIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM QUE SE PRETENDE TAMBÉM EFEITO SUSPENSIVO. PROVIMENTO. (...) 3. Emerge dos autos que a PCH Paranatinga II não está projetada em rio da União (o que, aliás, não seria determinante de competência do IBAMA para o licenciamento) e nem em terras indígenas, apenas encontrando-se a relativa distância de terras indígenas ("33,81 km da Terra dos Parabubure, 62,52 km da Marechal Rondon e 94,12 km do Parque Nacional do Xingu"). Também emerge claro que o impacto ambiental em outro Estado é indireto. A pouca potencialidade para atingir gravemente, mesmo de forma indireta, terras indígenas, uma região inteira ou outro Estado-membro pode ser deduzida do tamanho do lago (336,8 ha), área à qual foram reduzidos os 1.290 ha inicialmente previstos, questão esta não apreciada na sentença. 4. Algum impacto a construção da usina trará à bacia do Rio Xingu e a terras indígenas, mas esses impactos são indiretos, não afastando a competência da entidade estadual para o licenciamento. (...) justifica-se a competência do IBAMA quando o empreendimento esteja sendo desenvolvido em terras indígenas, não o que possa refletir sobre terras indígenas. O próprio juiz diz que há "prova irrefutável de que o empreendimento questionado nesta lide trará conseqüências ambientais e sociais para os povos e terras indígenas que lhe são próximos". (...) 6. Na Constituição as competências materiais da União vêm expressas (enumeradas), ficando para os Estados-membros e Distrito Federal as competências remanescentes, significando dizer que em regra (por exclusão das competências da União, taxativamente previstas) as competências são dos Estados-membros. Assim na Constituição, o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal. (...) 8. Provimento ao agravo de instrumento, com atribuição de efeito suspensivo à apelação. (TRF da 1ª Região. Processo Numeração Única: 0020981-75.2006.4.01.0000. AG 2006.01.00.020856-8 / MT; AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA. Órgão: QUINTA TURMA. Publicação: 09/11/2006 DJ P. 65. Data Decisão: 20/09/2006) Com efeito, vale destacar trechos relevantes do referido julgado: "(...) Assim, conforme se extrai da legislação supracitada, não seria o caso de competência do IBAMA para conduzir o licenciamento. Isso porque as atividades do empreendimento, embora estejam localizadas a relativa proximidade das comunidades indígenas mencionadas pelo Ministério Público Federal, não se situam em terras indígenas. (...) o empreendimento não está inserido em terras indígenas, estando dispensada a atuação do IBAMA com fundamento no disposto no inciso I do artigo 4º acima transcrito. (...) Portanto, a Lei Complementar nº 140/2011 veio reafirmar as regras de distribuição de competências trazidas pela Resolução nº 237/97 de forma que resta afastada a competência do IBAMA para licenciamento das atividades". Frise-se que não há qualquer alegação de insuficiência ou incapacidade técnica do órgão ambiental estadual do Amazonas para licenciar o empreendimento, o que justifica a manutenção da competência. Ao Ibama, no entanto, ainda que não tenha a competência para licenciar, remanesce um dever de vigilância, podendo impor condicionantes adicionais que julgue adequadas. Confira-se trecho do voto da Ministra Rosa Weber (fl. 85): Assim, considerando o empreendimento objeto da lide se encontra a cerca de 8 quilômetros dos limites de terras indígenas demarcadas, a competência para processar o licenciamento não é do ente federal. Nesse sentido, deve prevalecer o argumento do IBAMA no sentido de que "não compete ao IBAMA o licenciamento ambiental do projeto de mineração Potássio do Brasil por não se desenvolver ou estar localizado em terra indígena, regra prevista no artigo 7º, inciso XIV, alínea c, da Complementar n. 140/2011 como atribuição do ente federal, razão pela qual merece reforma a decisão atacada para definir a atribuição legal do IPAAM para conduzir o licenciamento ambiental em questão". Por fim, não há alegação de que alguma condicionante específica deveria ter sido exigida pelo IPAAM e não foi, o que poderia demandar a competência supletiva do IBAMA. Aparentemente, as condicionantes foram adequadas, consoante se extrai da leitura da Licença Prévia n. 54/15: Confira-se, expressamente, a existência das condicionantes indígenas: Vale ressaltar que o caso em questão em nada se assemelha com o julgado do STF no RE 1.379.751, caso do licenciamento da Usina de Belo Monte, uma vez que lá foi discutida a ausência de consulta aos povos indígenas afetados antes da edição do Decreto Legislativo 778, de 13 de julho de 2005, o qual autorizou o Poder Executivo a implantar o Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte, localizado em trecho do Rio Xingu, no Estado do Pará, antes da necessária oitiva às comunidades afetadas. Aqui houve a oitiva e foi realizada no momento adequado, como se expôs acima. Afora esse aspecto, no caso acima, não houve discussão sobre competência para licenciamento, uma vez que este coube ao IBAMA e não ao órgão ambiental do Pará. Tampouco existe similaridade com o que decidido pelo STJ no AgInt no REsp 1.390.476/PR, citado pelo voto divergente, em que expressamente se assentou que o licenciamento de terminal portuário seria do IBAMA e não do órgão ambiental por conta de diversos fatores, como a circunstância de que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva, nos termos do art. 7º, XIV, ‘a’, da LC 140/2011. Essa situação fática não está presente neste caso. Confira-se: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA. IBAMA. ATIVIDADE DE TERMINAL PORTUÁRIO QUE PODE CAUSAR SIGNIFICATIVO IMPACTO AMBIENTAL. CONTROVÉRSIA RESOLVIDA, PELO TRIBUNAL DE ORIGEM, À LUZ DAS PROVAS DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO, NA VIA ESPECIAL. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara Recurso Especial interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC/73. II. Na origem, "o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública (...) em face do Instituto Ambiental do Paraná e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, requerendo a declaração da competência do órgão ambiental federal - IBAMA, para que assuma a presidência do procedimento do licenciamento ambiental até então conduzido pelo órgão ambiental estadual (IAP), em virtude de manifesta incompetência deste órgão". O Tribunal de origem reformou a sentença, que havia reconhecido a competência do órgão estadual para o licenciamento ambiental. III. O entendimento firmado, à luz das provas dos autos, pelo Tribunal a quo - no sentido de que, "considerando que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva; que o empreendimento, por situar-se em área contígua a terras indígenas, trará impactos a essa comunidade; que serão afetados bens que apresentam relevância histórica e cultural e, por fim, que há potencial de dano ambiental de caráter regional, conclui-se que a competência para o licenciamento ambiental é do IBAMA, razão pela qual deve ser reformada a sentença que julgou improcedente a ação" - não pode ser revisto, pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial, sob pena de ofensa ao comando inscrito na Súmula 7 desta Corte. Precedentes do STJ. IV. Agravo interno improvido. (AgInt no REsp n. 1.390.476/PR, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 29/4/2020, DJe de 5/5/2020.) IV. A Reivindicação da Terra Indígena Soares/Urucurituba Como dito, o MPF propôs a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 na qual alega que omissão estatal na regularização fundiária de Terra Indígena Soares/Urucurituba, mesmo diante de robustas provas documentais e antropológicas que confirmariam a ocupação tradicional. A área encontra-se sob forte pressão devido à exploração de silvinita pela empresa Potássio do Brasil Ltda., que, segundo relatórios técnicos, ameaça o equilíbrio ambiental e o modo de vida das comunidades indígenas. O pedido se baseia na violação de direitos fundamentais dos povos indígenas e no risco iminente de danos irreversíveis ao meio ambiente e à preservação cultural. A FUNAI, apesar de reiterados ofícios e manifestações do MPF, não deu andamento ao processo demarcatório, acarretando prejuízos irreparáveis às comunidades tradicionais. O MPF requereu a suspensão deste processo para fins de aguardar o posicionamento da Diretoria de Proteção Territorial (DPT) Funai sobre o tema relativo a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Além disso, o MPF reiterou, de todo modo, o pedido anteriormente feito sobre a necessidade de suspensão de todo processo judicial, e consequentemente da consulta nos moldes da Convenção 169 da OIT, enquanto a questão prejudicial da demarcação da terra indígena Soares/Urucurituba não for definida pelo juízo. Com todas as vênias, entendo que essa pretensão não merece prosperar. A uma, pois já foi longamente exposto que, historicamente, a posição da FUNAI foi contrária à pretensão de demarcação daquela área (1419622747): Foi ainda devidamente assinalado que aquela área já havia sido estudada quando da delimitação dos limites da Terra Indígena Jauary, bem como que a área, apesar de conter alguns indígenas, também possui população ribeirinhas, o que pode inclusive levar a se concluir não ser Terra Tradicional. Confira-se novamente a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): A União também aduziu a inexistência de fumus boni iuris na petição de agravo protocolada no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000 (id. 274290019): Como aqui se está a examinar o feito em sede de cognição sumária, frente aos prejuízos que o atraso do projeto pode gerar para os objetivos estatais legítimos, é de se concluir que não se faz concretizada aparência legítima de direito a ponto de legitimar a suspensão. Se não se está diante de Terra Indígena demarcada, inclusive sequer limitada, estando o projeto em seu estágio inicial, não se pode presumir que seja Terra Indígena e, portanto, que haja necessidade de autorização do Congresso Nacional para o prosseguimento do empreendimento. Caso seja definido que se trata Terra Indígena, creio que será necessária a edição de autorização do Congresso Nacional, a qual deverá disciplinar a validade dos atos concretos praticados enquanto a demarcação ainda não havia sido concluída, consideradas, sobretudo, as peculiaridades do empreendimento expostas nos autos tais quais confirmadas no Estudo de Componente Indígena: Observe-se que no caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) vs. Argentina, de 2020, a CIDH assentou que “embora a Convenção não possa ser interpretada de modo a impedir que o Estado realize, por si ou por meio de terceiros, projetos e obras sobre o território, seu impacto não pode, em nenhum caso, privar os membros dos povos indígenas e tribais da capacidade de garantir sua própria sobrevivência.” Os dados acima sobre as características do projeto afastam, ao menos em juízo cautelar, qualquer receio de que possa haver impacto na garantia dos Mura e Ribeirinhos do Lago do Soares de prosseguir com o estilo de vida que hoje levam, tampouco garantir a sua subsistência. Não há nenhum indício de que exista a preocupação exposta pelo Ministro Alexandre de Moraes no sentido de que as terras indígenas próximas ao empreendimento serão tornadas “inóspitas, direta ou indiretamente, ou prejudica[rão] drasticamente a cultura e a qualidade de vida das populações indígenas que habitam a região" (RE 1.379.751/PA, Rel. Min. Alexandre de Moraes). A necessidade de estabelecimento de um regime de transição é uma compreensão do texto do art. 231, § 6º, da CF/88: Art. 231. [...] § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. Confiram-se, ainda, as conclusões apresentadas pelo DNPM (FL. 1.531 – id. 297015018): Cabe lembrar o art. 20 da Lei nº 6.001/1973: Art. 20. Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante enumerados, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, em área indígena, determinada a providência por decreto do Presidente da República. 1º A intervenção poderá ser decretada: a) para pôr termo à luta entre grupos tribais; b) para combater graves surtos epidêmicos, que possam acarretar o extermínio da comunidade indígena, ou qualquer mal que ponha em risco a integridade do silvícola ou do grupo tribal; c) por imposição da segurança nacional; d) para a realização de obras públicas que interessem ao desenvolvimento nacional; e) para reprimir a turbação ou esbulho em larga escala; f) para a exploração de riquezas do subsolo de relevante interesse para a segurança e o desenvolvimento nacional. 2º A intervenção executar-se-á nas condições estipuladas no decreto e sempre por meios suasórios, dela podendo resultar, segundo a gravidade do fato, uma ou algumas das medidas seguintes: a) contenção de hostilidades, evitando-se o emprego de força contra os índios; b) deslocamento temporário de grupos tribais de uma para outra área; c) remoção de grupos tribais de uma para outra área. 3º Somente caberá a remoção de grupo tribal quando de todo impossível ou desaconselhável a sua permanência na área sob intervenção, destinando-se à comunidade indígena removida área equivalente à anterior, inclusive quanto às condições ecológicas. 4º A comunidade indígena removida será integralmente ressarcida dos prejuízos decorrentes da remoção. 5º O ato de intervenção terá a assistência direta do órgão federal que exercita a tutela do índio. Assim, não há aparência de necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, não sendo caso de incidência do § 3º do art. 231 da CF/88. V. Conclusão Em face do exposto, ante a ausência de fumus boni iuris, dou provimento ao agravo de instrumento para, reformando a decisão agravada de id. 1769860076, considerar (i) válidos a consulta e o consentimento emanado pelo CIM, como representativo do Povo Mura de Autazes e, em consequência, o requisito da Convenção 169 da OIT; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciar o empreendimento e a validade de todos os atos até agora praticados; (iii) afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional e autorizar o prosseguimento do projeto. É como voto. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator [1] Id. 904360588. [2] Cf. file:///C:/Users/DS93/Downloads/wcms_205225.pdf. [3] Cf. https://ilo.primo.exlibrisgroup.com/discovery/delivery/41ILO_INST:41ILO_V2/126506 9900002676. PODER JUDICIÁRIO Processo Judicial Eletrônico Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 17 - DESEMBARGADORA FEDERAL KÁTIA BALBINO AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) n. 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO VISTA A EXMA. SRA. DESEMBARGADORA FEDERAL KATIA BALBINO: Pedi vista dos autos para melhor examinar as questões fático-jurídicas que motivaram a interposição do agravo de instrumento em apreço. De início, sem prejuízo de assinalar minha integral anuência com o voto do Relator quanto à relevância do Projeto Potássio-Autazes, entendo que as questões a serem dirimidas na insurgência perpassam apenas pelo juízo de adequação da decisão agravada ao contexto fático-processual que justificou a sua prolação. Feito o registro, cumpre também esclarecer que o recurso ora examinado foi interposto pelo Conselho Indígena Mura contra a decisão pela qual o juízo de origem, em caráter dispositivo, assim deliberou: “15. Pelo exposto, reitero decisões anteriores de que o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto Potássio é o IBAMA, reitero que exploração mineral em Terra Indígena depende de autorização do legislador constituinte (do Congresso Nacional) e que o IPAAM não é o órgão ambiental competente para o empreendimento que tem o poder de afetar o bioma, a biomassa, o estoque de carbono, a alteração de recursos hídricos da maior bacia nacional, e portanto tem o poder de gerar mudanças climáticas irreversíveis. 16. A Consulta aos povos indígenas afetados depende da vontade do povo, decorrente da sua autonomia de deliberar seus interesses diante desse e de qualquer empreendimento. Todavia, eventual resultado fica desde já suspenso enquanto não houver o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados na presente decisão. 17. Sem o mínimo início dos requisitos, não haverá inspeção judicial, a qual fica por ora suspensa, mas advirto que poderá ser remarcada em caso de violência ou indícios de violações que importem em ruptura da ordem. 18. Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Tal o contexto, o agravante confronta as seguintes diretrizes decisórias: i) suspensão do procedimento de consulta aos povos indígenas levada a efeito; ii) necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração da área em que se pretende realizar o empreendimento. Passo, assim, a analisar tais questões: - Da suspensão dos procedimentos de consulta – a perda do objeto do agravo de instrumento, quanto ao ponto. O exame dos autos indica que a decisão agravada foi proferida em 25/08/2023. Por outro lado, a leitura do referido comando permite a compreensão de que a questão referente à consulta aos povos indígenas foi abordada pelo juízo a quo por um prisma abstrato de sua validade, em perspectiva com os demais requisitos tidos como necessários para a exploração em litígio (autorização do Congresso Nacional e competência do IBAMA para o licenciamento). É dizer, a julgadora da origem não se manifestou de forma concreta sobre aspectos materiais e formais afetos à consulta que o agravante tem com validamente realizada, pontuando, isto sim, que a validade do referido procedimento deve ser examinada de forma contextualizada com os demais requisitos para a implementação do empreendimento. Tanto assim, que a parte final do comando censurado dispõe (destaquei em itálico): “Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Ocorre que, após a prolação do referido decisum, a magistrada que conduz o processo principal se debruçou de forma mais aprofundada sobre a questão referente à consulta aos povos indígenas e, nos termos da decisão ID 1913974193, proferida em 16.11.2023, consignou (destaques sublinhados acrescidos): “Diante de todo o tumulto (mediante coação, intimidações, pressões indevidas e oferecimento de vantagens) causado pelo CIM e por prepostos da empresa ré, conforme depoimentos colhidos e mencionados no parecer ministerial, defiro o pleito ministerial e determino a imediata suspensão do procedimento de licenciamento ambiental por parte do IPAAM, bem como o da consulta ilegítima realizada após desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta, bem como de qualquer ato de avanço dos trâmites para a implementação do empreendimento da empresa Potássio do Brasil S/A em Autazes, em razão dos vícios mencionados e dos riscos de conflitos e morte que a continuação dos trâmites do empreendimento minerário neste cenário acarretam ao povo Mura na região, ficando expresso que o juízo federal não confere qualquer validade à alteração esdrúxula do Protocolo construído de forma legítima por TODO O POVO MURA.” Como se vê, após a prolação da decisão agravada, o juízo a quo proferiu novo comando com caráter substitutivo do anterior, vindo a apresentar fundamentação mais aprofundada e amparada em elementos concretos sobre as razões de seu convencimento. Em outras palavras, a avaliação no plano concreto da consulta tida como realizada absorveu a deliberação anterior, esta fundada apenas em fatores afetos ao procedimento no plano abstrato. Assim, porque proferida decisão ulterior que a um só tempo incorporou e ampliou as razões contidas na decisão agravada, resulta demonstrada a perda do objeto do recurso tirado contra o aludido comando. Anoto, por fim, que tanto o MPF quanto a Funai já se manifestaram nos autos em sentido concorde com a compreensão ora externada (cf. ID 423687013 e ID 369353129). - Subsidiariamente, ao não conhecimento do recurso Ainda que se supere a questão preliminar já analisada, entendo que a decisão agravada deve ser mantida nos termos em que proferida, salientando, nesse ponto, que sua avaliação deve ser feita com base no exato sentido e alcance nela consignados. Melhor explicando, foi acima esclarecido que na decisão agravada o juízo a quo consignou que “eventual resultado” da consulta ficaria suspenso enquanto não houvesse “o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados” na decisão. Claro, portanto que, na decisão agravada, a julgadora de primeiro grau não empreendeu juízo de valoração da consulta efetivamente levada a efeito, tendo suspendido seus efeitos em razão da necessidade de observância concomitante de outros requisitos tidos como necessários para o licenciamento do empreendimento. Ocorre que a parte agravante não enfrentou de forma suficiente as razões externadas no comando recorrido, restringindo-se a defender a validade da consulta que alega já ter sido realizada, bem assim a desnecessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área em que será realizada a exploração mineral discutida na ação principal. Ora, a decisão agravada, como já afirmado, não positivou em nenhum momento a invalidade factual da consulta debatida (isso só foi feito na decisão posterior), tendo suspendido os respectivos efeitos em razão da necessidade de atendimento de outros requisitos que seriam com ela concorrentes. Um desses requisitos, a competência do Ibama para o licenciamento, não foi (e nem poderia ter sido, por ausência de legitimidade recursal) sequer objeto do presente agravo de instrumento. Assim sendo, ainda que superado o óbice relativo à perda do objeto do recurso, quanto ao ponto, este não pode ser conhecido, diante da ausência de enfrentamento da fundamentação decisória no sentido de que os efeitos da consulta somente poderiam ser efetivados em conjunto com o atendimento dos demais requisitos para a exploração da área, nomeadamente a autorização do Ibama. - Do exame residual do mérito da decisão agravada De todo modo, também na hipótese em que venha a ser desconsiderada a ausência de enfrentamento, pelo agravante, das razões decisórias, o recurso não deve ser provido. Com efeito, os documentos encartados no processo principal revelam uma evidente divisão entre as aldeias dos indígenas Mura, tratando-se de dissenso que compromete a conclusão pela validade do procedimento de consulta que neste agravo se tem como concretizado. Nesse sentido, tomando-se como exemplo a assembleia realizada em 21 e 22/09/2023, mencionada no voto do Exmo. Relator, temos que embora registrada em seu relatório a presença de diversos integrantes da comunidade Mura para debater sobre a implementação do projeto Potássio-Autazes, inclusive com a indicação de participação de cinco entidades representativas (CIM – Conselho Indígena Mura; OASIM – Organização dos Agentes de Saúde; OPIM – Organização dos Professores Indígenas Mura; OEIMA – Organização dos Estudantes Mira de Autazes; APIMA – Associação dos Produtores Indígenas Mura de Autazes), o referido documento foi subscrito por apenas quatro pessoas, dentre elas o coordenador geral do CIM (ora agravante) e um advogado. Inexiste, no documento, a indicação nominal de quem seriam as pessoas presentes no encontro, tendo sido mencionados, tão somente, o quantitativo dessas por aldeia. Também não há registro de ata assemblear, tampouco de subscrição, nesse ou em nenhum outro documento, da alegada aprovação majoritária para a implementação do projeto em debate nos autos principais. É dizer, a referência à aprovação do projeto consta apenas do relatório confeccionado após a assembleia, no qual não se identifica a assinatura da quase totalidade das pessoas que dela teriam participado. Por outro lado, como bem observado pelo Exmo. Relator, é certo que a efetivação da consulta às comunidades indígenas não pressupõe a anuência destas com o respectivo objeto. Todavia, a efetivação plena da consulta reclama a escuta efetiva das referidas comunidades, escuta essa que há de ser valorada em sua perspectiva substancial e não simplesmente formal. Nesse sentido, reportando-me mais uma vez ao voto do Relator, “[É] incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública.” Ocorre que o cenário dos autos não indica a realização dessa escuta efetiva do procedimento de consulta, este que, ao que se infere inclusive da divisão verificada entre os representantes da comunidade Mura, vinha sendo protagonizada, em um primeiro momento, pelo CIM (ora agravante), entidade que vem reiterada e insistentemente se manifestando pela implementação do Projeto Potássio-Autazes. Oportuno ser registrado que os autos principais indicam a adoção de diversos procedimentos tendentes à efetivação de um processo de consulta regular, mostrando-se plausível, neste momento de exame provisório do tema, a inferência de que muitos dos atos praticados sejam efetivamente válidos. Ocorre que o entendimento – precário – da validade de parte dos atos praticados não leva, obviamente, ao reconhecimento automático da validade de todo o processo de consulta. A propósito, em sua segunda decisão proferida sobre o tema a magistrada da origem refere-se à ocorrência de uma "desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta”, posicionamento indicativo de que, por sua ótica, o referido protocolo vinha sendo posto em prática de forma adequada, até que a partir de determinado momento veio a ser desconfigurado em sua essência e finalidade. Esse fato reforça, portanto, o posicionamento no sentido de que a validade de atos pretéritos do Protocolo de Consulta não pode induzir ao reconhecimento de sua validade como um todo. Isso posto, existem dúvidas no mínimo razoáveis acerca da legitimidade do procedimento sob enfoque, ao menos no que se refere à valoração do posicionamento divergente de parte significativa da comunidade Mura. Note-se que a validade (nos planos formal e substancial) desse procedimento tem como premissa a oitiva de todas as comunidades afetadas, levando-se em conta, no mais que possível, as peculiaridades de cada uma delas, além das razões que justificarem seus respectivos posicionamentos. Veja-se, em abono dessa conclusão, que a análise cartográfica 138/2023, juntada aos autos pela Funai e transcrita no voto do Relator, indica que o Projeto Potássio-Autazes encontra-se em distâncias diferentes das diversas comunidades afetadas, sendo que, especificamente em relação à “Aldeia Soares”, cujos representantes se posicionaram em sentido contrário ao do ora agravante, a indicação no mencionado documento é pela “sobreposição da área de influência” e pela distância de apenas 2,52 km entre a planta do projeto e a área em que situada a própria aldeia (a menor distância, ao que se infere, entre todas as comunidades afetadas). Na mesma linha, atente-se para o teor das seguintes passagens da decisão de ID 1913974193 dos autos principais, proferida após a decisão agravada: “O Povo Mura afetado pelo grande empreendimento Potássio, na forma do Protocolo legitimamente aprovado por sua totalidade de comunidades, sequer começou a ser consultado. Especialmente o Povo Mura da Comunidade Lago Soares, onde foi fincada a primeira perfuração para fins de pedido de concessão de lavra e licenças prévia, de instalação e de operação, o povo não foi ouvido em nenhuma das etapas da Consulta. Em inspeção judicial realizada por esta Magistrada, confirmei a tese dos autos de que é exatamente no Lago Soares que parte a pretensão de instalação do Projeto Potássio e essa comunidade não foi ouvida até a presente data, sendo ilegítima qualquer conclusão sem sua participação.” (...) “4.1. Alegam, o MPF, a organização OLIM CV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES, uma série de ilícitos em tese perpetrados pela empresa Requerida Potássio do Brasil. Defendem ocorrência de má fé, assédio, danos psicológicos, danos morais, coação manipulação e intimidação contra indígenas Mura. As alegações são de extrema gravidade e antes mesmo de ouvidos o MPF e a requerida, é dever do juízo adotar providências preliminares para determinar a imediata suspensão dos vícios, pois que a sua continuação pode gerar danos irreversíveis aos povos originários envolvidos, além da transfiguração do meio ambiente, cultura, tradição e do seu modo de vida. 4.2. As provas anexadas com a manifestação da parte interessada (OLIMCV e Comunidade Lago Soares) bem como aquelas referidas pelo MPF em seu Parecer, demonstram inclusive a presença do Presidente da Potássio do Brasil em reuniões com indígenas Mura, levando ideias destorcidas e contrárias ao ordenamento jurídico, além de descumprir claramente decisão constante de ata de audiência onde ficou consignado que a empresa não poderia praticar coação contra os indígenas. Desde a feitura do Protocolo, o Povo Mura assentou expressamente: "não queremos ser pressionados e coagidos". 4.3. São mais de 12 - doze- mil indígenas Mura afetados com o empreendimento, dos quais nem 1% chegou a participar da reunião onde correu uma lista de presença depois transfigurada em lista de aprovação, havendo clara pressão de cerca de dez indivíduos - alguns já identificados e ouvidos no Ministério Público Federal ( ID 1914447184 - Parecer) - no sentido de distorcer a realidade e retirar o direito de participação da imensa maioria dos indígenas nesse complexo processo de Consulta Livre e Informada. Conforme as provas anexadas, o indígena Cleber (ou Kleber) age como um doa encarregados de praticar coação e manipulação. A conduta pode vir a configurar crime, seja pelo 'modus operandi' de alteração da realidade fática e jurídica, seja por escarnecer as tradições culturais fixadas no Protocolo de Consulta ( lei 60001-73, art. 58, I). 4.4. Ainda, o senhor Kleber Mura vem afirmando que a empresa Potássio do Brasil LTDA. realizou uma promessa de pagamento de supostos royalties pela extração do minério em troca da aprovação do empreendimento, por parte das comunidades indígenas. Cumpre esclarecer que para que comunidades tradicionais ou indígenas recebam royalties por grandes empreendimentos exploradores em suas terras, é necessário primeiramente cumprir os passos da lei, não sendo faculdade de nenhuma empresa oferecer vantagens ou promessas de pagamentos, os quais já são fixados pelo legislador em casos de exploração mineral. Em síntese, na hipótese de futura operação licenciada do empreendimento, os roylties que eventualmente serão pagos decorrem de deliberação do legislador e não são mera faculdade da empresa Potássio do Brasil, a qual está causando tumulto, manipulação e pressão indevida em comunidade em situação de vulnerabilidade, o que deve cessar IMEDIATAMENTE. 4.5. Na manifestação trazida ao conhecimento do juízo, haveria indígena Mura recebendo 5 - cinco - mil reais da empresa Potássio, enquanto outros estariam recebendo 10 - dez- mil reais, tudo com o intuito de coagir e manipular as comunidades afetadas para o fim de aprovar o empreendimento, gerando uma confusão entre Consentimento Livre e Informado e licenciamento prévio, de licença de instalação e licença de operação, que a essa altura, estão fazendo parecer como um só fato jurídico quando são atos distintos. A transfiguração dos fatos jurídicos precisa imediatamente ser quebrada para evitar um dano irreversível aos povos originários, à sua cultura, modo de vida e tradição. 4.6. Dessa forma, diante de tanto vícios de consentimento explícitos, trazidos a juízo por indígenas Mura que habitam o principal Lago (Soares) a ser afetado pelo empreendimento, bem como pela organização OLIMCV, tudo isso faz-nos concluir que a tese manejada de ilegitimidade e nulidade do resultado de uma suposta consulta é inevitavelmente pertinente. Sem consulta válida, na forma do Protocolo definido POR TODO O POVO MURA ( e não por uma dúzia de pessoas com fortes indícios de estarem cooptadas) não há que falar em licença prévia válida. Isso porque a consulta depende da vontade livre do povo e decorre da sua autodeterminação em deliberar acerca de seus interesses diante de qualquer empreendimento que possa impactar seu modo de vida, conforma já definiu o STF. 4.7. Portanto, de imediato recebo a manifestação e o Parecer acima aduzidos, determino a manifestação de todas as partes em dez dias sobre o que entenderem pertinente e desde já adoto as deliberações abaixo para o fim de resguardar a dignidade e integridade do Povo Mura, alvo de um processo de coação, manipulação e intimidação. a) Determino a imediata suspensão de qualquer atitude de coação, manipulação, fraude, intimidação, ameaça, pressão e cooptação contra indígenas Mura, praticadas pela empresa requerida ou por quem quer que haja em seu mando. Fixo desde já multa de cem mil reais por cada dia de descumprimento da presente decisão, a contar da intimação da presente decisão. b) Fixo desde já multa de um milhão de reais a ser custeada pela Empresa Potássio do Brasil Ltda, pelo descumprimento dos deveres assumidos durante as audiências de conciliação perante o Juízo, em especial por realizar pressão indevida sobre o povo Mura com o comparecimento pessoal do seu presidente em reuniões internas das comunidades sobre o assunto tratado nos autos, o que já foi vedado pelo juízo. A multa incidirá sobre o dia de comparecimento do Presidente da Potássio, em reunião vedada pelo Protocolo de Consulta e será revertida a favor da Organização requerente e comunidade Lago Soares, pro rata.” A reforçar o posicionamento da julgadora que conduz o processo na origem, as cartas abertas juntadas nos ID 1914200677, 1914200678, 1914200679 indicam a discordância de várias aldeias com os rumos do procedimento. Da mesma forma, confira-se o que foi expressamente consignado no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Carneiro da Várzea (ID1914200682 dos autos principais): Trata-se, com efeito, de diretrizes contidas no Protocolo de Consulta construído para o exame do Projeto Potássio-Autazes. Pois em que pese a clareza dos termos acima transcritos, há no processo principal fortes indícios da participação ativa de “não-índios” no “processo de convencimento” da comunidade Mura (inclusive na assembleia realizada nos dias 21 e 22/08/2023), bem assim de que parte das lideranças não levou em conta, como deveria ter levado segundo as normas protocolares acima transcritas, a opinião do conjunto da comunidade indígena afetada. Com todo esse cenário, tenho que o exame realizado em sede de agravo de instrumento tirado contra uma decisão marcada por seu caráter de provisoriedade e de instrumentalidade para a bom desenrolar do processo, deve ser feito com a adoção de uma postura cautelosa quanto aos riscos do reconhecimento da validade do procedimento de consulta que está na berlinda, ante a irreversibilidade das medidas que eventualmente sejam tomadas com base nessa conclusão (no mínimo precipitada). Isso quer dizer que, diante das incertezas quanto à validade do caráter conclusivo da consulta, o Poder Judiciário deve assumir uma posição preventiva quanto aos possíveis prejuízos que venham a ser causados. Aqui tomando por empréstimo – e por analogia – o ensinamento Délton Winter de Carvalho, tenho como necessária a conclusão de que a alta probabilidade de comprometimento futuro de direitos fundamentais das comunidades indígenas afetadas pelo empreendimento em causa enseja a adoção das medidas preventivas necessárias – tais como as que adotadas pelo juízo de primeiro grau –, “a fim de evitar a concretização dos danos ou minimizar as consequências futuras daqueles já efetivados”. Não procede, portanto, a compreensão de que eventuais prejuízos futuros poderão ensejar indenização por perdas e danos, na medida em que a finalidade precípua da atuação jurisdicional em casos como o presente deve ser a de evitar que o dano ocorra e não simplesmente compensá-lo. Pensar diferente, com todas as vênias, seria abrir a caixa de Pandora para uma pletora de ilegalidades que poderiam ser cometidas sob o escudo de uma incerta indenização reparatória. Não bastasse tudo isso, a eventual validade das deliberações obtidas em assembleias realizadas sob a condução do CIM não pode, em princípio, vincular as comunidades que não são pelo referido conselho representadas. Assim, a eficácia de tais deliberações, para fins de reconhecimento da oitiva real de todas as comunidades afetadas, seria condicionada à obtenção de manifestações convergentes daquelas que não vinculadas ao agravante. Da necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da Terra Indígena – ausência de legitimidade recursal, quanto ao ponto Como já antecipado, a decisão agravada não empreendeu exame qualitativo da consulta que a parte agravante considera legítima, restringindo-se a suspender seus efeitos ante a necessidade de observância de requisitos externos ao referido procedimento. Dentre as externalidades mencionadas na decisão agravada, a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi invocada como pressuposto para a implementação do Projeto Potássio-Autazes, que tem como principal interessado os responsáveis pelo empreendimento. Ainda que se diga que a parte agravante teria algum interesse na implementação no projeto, pelos possíveis benefícios que ele poderia proporcionar, tal não significa que, processualmente, caiba a ela defender a sua concretização. A ilustrar esse entendimento, tome-se como exemplo a hipótese em que o órgão ambiental responsável pelo licenciamento apresente alguma condicionante para o seu deferimento. Diante de tal situação, caberá apenas à agravada Potássio do Brasil Ltda. questionar judicialmente o óbice levantado, falecendo ao Conselho nestes autos agravante legitimidade para o enfrentamento da hipotética decisão administrativa. Mutatis mutandis, é exatamente essa a situação ora analisada, pois a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi levantada como óbice para o licenciamento do projeto discutido, diante do entendimento que ele seria realizado em terras indígenas. Não cabe, portanto, ao Conselho Mura, defender aquilo que em última análise se mostra como de interesse da empresa, o que seja, a implementação de seu empreendimento econômico. Por outro lado, o Conselho agravante não representa a totalidade da Comunidade Mura, mas apenas parte dela, daí porque não possui legitimidade para se manifestar sobre os efeitos do empreendimento nas áreas não alcançadas por sua representação. Em resumo, não cabe ao CIM questionar a avaliação feita pelo juízo processante acerca da repercussão de um projeto empresarial do qual não faz parte, em áreas ocupadas por comunidades que não representa. A legitimidade recursal da agravante, portanto, em relação ao que é objeto do agravo de instrumento, está adstrita à validade de sua manifestação no procedimento de consulta, tema já analisado no tópico anterior deste voto. Conclusão Diante do exposto, julgo prejudicado o agravo de instrumento em relação à suspensão dos efeitos da consulta realizada, diante da prolação de decisão judicial posterior. Na hipótese de superação desse ponto preliminar, não conheço do agravo, por deficiência de fundamentação e, se também afastado esse obstáculo, nego provimento ao recurso. De outro modo, não conheço do agravo de instrumento no que se refere à necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área onde será implementado o projeto, por ausência de legitimidade recursal. Por fim, deixo de me manifestar acerca da questão relativa à competência para o licenciamento do empreendimento, por se tratar de tema estranho ao objeto da insurgência em apreço. É como voto. Desa. Federal KATIA BALBINO Relatora CARVALHO, DéltonWinter de. Dano Ambiental Futuro: A responsabilização Pelo Risco Ambiental. 2ª ed. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2013, pp. 187/202 PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 Processo Referência: 0019192-92.2016.4.01.3200 AGRAVANTE: CONSELHO INDIGENA MURA AGRAVADO: DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUCAO MINERAL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (PROCURADORIA), INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS - IBAMA, INSTITUTO DE PROTECAO AMBIENTAL DO AMAZONAS, POTASSIO DO BRASIL LTDA., FUNDACAO NACIONAL DO INDIO - FUNAI, UNIÃO FEDERAL, ESTADO DO AMAZONAS EMENTA DIREITO AMBIENTAL E DIREITOS INDÍGENAS. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSULTA PRÉVIA AO POVO INDÍGENA MURA. EXPLORAÇÃO MINERAL. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA ESTADUAL. RECONHECIMENTO DE CONSULTA VÁLIDA. PROSSEGUIMENTO DO PROJETO. 1. Agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura (CIM) contra decisão que suspendeu os efeitos da consulta ao povo indígena Mura sobre o Projeto Potássio Autazes, condicionando sua validade ao cumprimento de requisitos ambientais, legais e constitucionais, no bojo de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). 2. Pretensão do agravante de obter efeito suspensivo para reconhecer a validade da consulta realizada, conduzida pelo CIM, e afastar exigências relacionadas à autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas, bem como discutir a competência do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) no licenciamento ambiental do empreendimento. 3. O debate circunscreve-se às seguintes questões: (i) validade da consulta ao povo indígena Mura de Autazes, realizada com base no protocolo próprio; (ii) competência do IPAAM para o licenciamento ambiental do empreendimento; e (iii) necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, considerando a localização do projeto em área não demarcada como terra indígena. 4. Reconhecida a legitimidade do Conselho Indígena Mura (CIM) como entidade representativa das aldeias de Autazes para conduzir a consulta, nos termos da Convenção 169 da OIT, considerando que o processo observou protocolos definidos com acompanhamento judicial. A ausência de pronunciamento de outras comunidades não invalida a consulta, mas mantém a obrigação do Estado de dialogar continuamente com os povos afetados. A CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. 5. A competência do IPAAM para licenciamento ambiental foi reafirmada, uma vez que o empreendimento está localizado fora de terras indígenas demarcadas, observando-se os critérios da Lei Complementar nº 140/2011. A distância de poucos quilômetros entre o projeto e a terra indígena mais próxima não configura causa de deslocamento de competência ao IBAMA, o qual, no entanto, possui o dever de vigilância em relação ao licenciamento estadual. Não há dados que permitam concluir que o órgão ambiental estadual não tem a qualificação ou a estruturação necessária para proceder ao licenciamento, tampouco foram apontadas omissões nas condicionantes fixadas na Licença Prévia, que expressamente consideraram o componente indígena. 6. O STF, na ADI 4.757/DF, expressamente reconheceu a existência do "dever de vigilância da União quanto aos licenciamentos de responsabilidade dos Estados, cujas atividades ou empreendimentos possam causar impactos ambientais indiretos relevantes em áreas indígenas ou unidades de conservação. A exemplo, as atividades de mineração ou empreendimentos hidrelétricos, cujas poluições sonoras ou dos leitos de rios possam impactar a preservação adequada das referidas áreas." O STF acrescentou que, "[n]esse ponto, competirá, com efeito, à União averiguar as capacidades institucionais do órgão ambiental estadual para proceder com o licenciamento, em especial as condicionalidades para a emissão da licença, considerados esses impactos indiretos, que não raras vezes demandam alta espeficiação de instrumentos técnicos e de profissionais" (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023, p. 85 do acórdão). 7. A inexistência de terra indígena demarcada ou delimitada na área do empreendimento afasta a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, conforme art. 231, § 3º, da Constituição Federal, ainda que se instaure processo demarcatório, enquanto não concluído. 8. Agravo de instrumento provido para: (i) considerar válida a consulta realizada pelo CIM como representativo do povo indígena Mura de Autazes e considerar cumprida a obrigação de consultar; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciamento ambiental do empreendimento; (iii) afastar a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração no caso em análise; e (iv) autorizar o prosseguimento do projeto minerário, sem prejuízo de novas medidas para assegurar a proteção aos direitos indígenas e ambientais. ACÓRDÃO Decide a Sexta Turma, por maioria, dar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do voto do Relator. Brasília/DF, data e assinatura eletrônicas. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator
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Processo nº 1037175-40.2023.4.01.0000
ID: 292902564
Tribunal: TRF1
Órgão: Gab. 16 - DESEMBARGADOR FEDERAL FLAVIO JARDIM
Classe: AGRAVO DE INSTRUMENTO
Nº Processo: 1037175-40.2023.4.01.0000
Data de Disponibilização:
09/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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LUIS INACIO LUCENA ADAMS
OAB/DF XXXXXX
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CAROLINA MAR AZEVEDO
OAB/AM XXXXXX
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IVAN DE SOUZA QUEIROZ
OAB/AM XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDI…
JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDIGENA MURA REPRESENTANTE(S) POLO ATIVO: IVAN DE SOUZA QUEIROZ - AM4297 POLO PASSIVO:Ministério Público Federal (Procuradoria) e outros REPRESENTANTE(S) POLO PASSIVO: CAROLINA MAR AZEVEDO - AM8627-A, LUIS INACIO LUCENA ADAMS - DF29512-A, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133, GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133 e GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882 RELATOR(A):FLAVIO JAIME DE MORAES JARDIM PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 RELATÓRIO Agravo de Instrumento interposto em 14.9.2023, pelo Conselho Indígena Mura (CIM), contra decisão da 1ª Vara Federal do Amazonas (id. – ID 1769860076), que suspendeu o resultado de consulta ao povo indígena Mura até que fossem cumpridos requisitos ambientais, legais e constitucionais, no contexto da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). A ação, na origem, busca a anulação da Licença Prévia emitida pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas- IPAAM à Potássio do Brasil Ltda. referente à exploração de silvinita/potássio em Autazes/AM, alegando incompetência do órgão emissor e ausência de consulta prévia aos povos indígenas afetados. O agravante argumenta que a decisão violou sua autonomia, destacando que a consulta foi conduzida conforme protocolo próprio e recursos próprios, com representantes de 46 aldeias. Sustenta que a suspensão judicial desrespeita o resultado soberano da consulta, gera prejuízos financeiros e configura cerceamento de defesa. O CIM defende ainda que os direitos minerários da empresa foram desmembrados de terras indígenas, afastando a necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração mineral. Ao final, requer efeito suspensivo à decisão agravada, permitindo a conclusão e consideração da consulta nos autos antes de eventual sentença. Defende a existência de prejuízos irreparáveis caso o processo seja decidido sem incorporar o resultado da consulta, e reafirma o pedido de Justiça Gratuita, por ser entidade sem fins lucrativos. Foi requerida, ainda, a gratuidade de justiça. Após a distribuição, por meio da petição id. 347816151, foram juntadas atas de reuniões realizadas nos dias 15, 16, 18 e 22.8.2023, nas quais o agravante alega que foi dado início dado procedimento de consulta para representantes de 46 aldeias. Despacho de id. 348177162 intimou os agravados a apresentar contrarrazões e sobrestou a análise do pedido de liminar. Antes de escoado o prazo, o agravante apresentou petição (id. 350573644) comunicando que o Povo Mura de Autazes, nos dias 21 e 22.09.2023, finalizou a Consulta sobre o Projeto Potássio Autazes e outras questões relevantes, de acordo com a ata anexa. Destacou que foi aprovado o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta. Informou, ainda, que foi aprovado pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil faça a mineração. Requereu, assim, a atribuição de efeito suspensivo ao agravo. A Potássio do Brasil Ltda. apresentou as contrarrazões de id. 360785149. Noticiou a existência de decisão da Presidência do TRF1, a qual, nos autos da SLS nº 1040729-80.2023.4.01.0000, suspendeu a decisão original, entendendo que a paralisação antecipada do licenciamento interfere na competência administrativa e nas normas constitucionais que regulam a exploração mineral em terras indígenas. No mais, a Potássio do Brasil Ltda. adere aos argumentos do agravante, solicitando a reforma da decisão agravada. O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) apresentou as contrarrazões de id. 367016144, aduzindo que o projeto e suas jazidas estão a 8 km das terras indígenas mais próximas e que a legislação atual estabelece o critério territorial para definir competências ambientais. Assim, considera desnecessária a autorização do Congresso Nacional, pois não há exploração direta em terras indígenas. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. O IBAMA apresentou a petição id. 368864139 informando carecer de interesse em apresentar contrarrazões em face do mencionado recurso de agravo de instrumento, uma vez que sua posição nos autos de origem sempre foi no sentido de que não possui competência legal para conduzir o licenciamento ambiental em questão e, tampouco, para intervir no âmbito da consulta livre, prévia e informada que deve ser realizada perante a comunidade indígena que venha a ser afetada pelo empreendimento. A FUNAI protocolou a manifestação de id. 369353129. Inicialmente, a FUNAI argumenta pela perda superveniente do objeto do agravo, uma vez que nova decisão foi proferida pelo juízo de origem, abordando fatos e fundamentos distintos, como a inexistência de consulta válida com participação de todos os indígenas afetados, especialmente da Comunidade Lago Soares. A decisão, prolatada por meio do id. 190941615, relata coações, pressões e irregularidades promovidas pela empresa Potássio do Brasil e seus representantes. Entre as medidas adotadas, destaca-se a suspensão do licenciamento ambiental pelo IPAAM e de atos vinculados ao empreendimento, além da fixação de multas e proibição de práticas coercitivas. No mérito, a FUNAI defende a manutenção da decisão agravada, ressaltando que a consulta ao povo Mura é imprescindível, mas deve observar a inclusão de todas as comunidades potencialmente afetadas. A instituição destaca a necessidade de conclusão dos estudos demarcatórios da Terra Indígena Lago do Soares e Urucurituba, conduzidos por grupo técnico da FUNAI, para garantir a legitimidade e abrangência da consulta. Por fim, a FUNAI solicita, em preliminar, o não conhecimento do agravo por perda de objeto e, subsidiariamente, o seu desprovimento, mantendo a decisão que suspendeu o resultado da consulta e os atos administrativos relacionados ao empreendimento até o cumprimento dos requisitos legais. A ORGANIZAÇÃO DE LIDERANÇAS INDÍGENAS MURA DE CAREIRO DA VÁRZEA - OLIMCV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES apresentou a manifestação de id. 357658659. Defenderam a ilegitimidade e a invalidade da consulta realizada para aprovação do Projeto Potássio Autazes, apontando graves violações ao Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Mura de Autazes e Careiro da Várzea. O documento destaca que o Conselho Indígena Mura (CIM), ao conduzir a consulta, ignorou a inclusão de comunidades contrárias ao projeto, como a Aldeia Soares, e promoveu reuniões com fortes indícios de coação, pressão e manipulação, em desrespeito às diretrizes estabelecidas no protocolo previamente aprovado pelas comunidades. Além disso, aponta a participação irregular de representantes da empresa Potássio do Brasil Ltda., prática vedada no contexto das reuniões internas. As lideranças contrárias ao empreendimento denunciaram promessas de compensações financeiras, irregularidades na condução das consultas e a tentativa de impor um novo protocolo de consulta para fragmentar a representação do povo Mura, excluindo as aldeias do município de Careiro da Várzea. A defesa ressalta ainda que a consulta não foi realizada de forma ampla, livre e informada, como determina a Convenção 169 da OIT. Em termos jurídicos, as contrarrazões pedem o reconhecimento da nulidade do resultado da consulta e a manutenção da decisão judicial de suspensão do licenciamento ambiental e de atos administrativos relacionados ao projeto até que sejam cumpridos os requisitos legais e constitucionais, com participação efetiva de todas as comunidades afetadas. O parecer id. 373711134, ofertado pelo MPF, pugna pelo desprovimento do agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura por perda superveniente do objeto. É o relatório. PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL FLÁVIO JARDIM - Relator: I. Estão preenchidos os requisitos de admissibilidade. A peça, subscrita por profissional legalmente habilitado, (a) foi protocolada no prazo legal. O agravante requereu seja o preparo dispensado em razão da hipossuficiência, o que defiro. Conheço do Recurso. II. A decisão agravada, datada de 25.8.2023, no que interessa (id. 1769860076): III. Este agravo foi protocolado pelo Conselho Indígena Mura – CIM e visa a suspender os efeitos da decisão agravada de id. 1769860076, proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, movida pelo MPF. Contra essa decisão, também foram interpostos os seguintes recursos: (i) AI nº 1039810-91.2023.4.01.0000, protocolado pela Potássio do Brasil Ltda. (ii) AI nº 1042776-27.2023.4.01.0000, protocolado pelo Ibama; (iii) Ai nº 1043035-22.2023.4.01.0000, protocolado pela União. No agravo, é postulado que a decisão agravada seja reformada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". III.a. A Relevância do Projeto Potássio-Autazes Consoante destacou a União em petição protocolizada nestes autos, "o Projeto Autazes foi habilitado, na forma do Decreto nº 10.657/2021, pelo Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos – CTAPME, para integrar a política de apoio ao licenciamento ambiental de projetos de investimento para a produção de Minerais Estratégicos – Pró Minerais Estratégicos, em 28 de setembro de 2021." [1] Segundo o que assevera a União, "[d]e acordo o que dispõe o Decreto nº 10.657/2021, os projetos minerários habilitados na Política de Pró-Minerais Estratégicos são considerados prioritários ao país em razão dos seguintes critérios (art. 2º): i) alto percentual de importação para suprimento de setores vitais da economia; ii) aplicação em produtos e processos de alta tecnologia e iii) vantagens comparativas e essencial para a geração de superavit da balança comercial do país." [id.] A União complementa que o projeto "visa a exploração de minério cloreto de potássio, fertilizante fundamental para a agricultura nacional." [id.] Pelas informações prestadas, "o Brasil importa 95% do cloreto de potássio que utiliza para fertilização do solo, ostentado o título de maior importador mundial de potássio, com 10,45 milhões de toneladas adquiridas em 2019, de acordo com dados do Ministério da Economia." [id.] A previsão da empresa é de "atender cerca de 25% do consumo nacional do minério, reduzindo a dependência interna do produto por mais de 30 anos." [id.] A União ainda aponta que a relevância do projeto foi exacerbada com o recente cenário de guerra entre Ucrânia-Rússia: "Ocorre que as recentes sanções econômicas impostas à Bielorrússia, responsável por ¼ de toda produção mundial de cloreto de potássio, gerou enorme preocupação no setor agroindustrial brasileiro em razão da possível escassez do minério, o que poderá impactar o custo de produção e, consequentemente, o aumento do preço dos alimentos. Observa-se, assim, que o desenvolvimento de projetos minerários com capacidade de aumentar significativamente a oferta de fertilizantes ao mercado interno, reduzindo a dependência estrangeira, é essencial para a proteção dos pequenos produtores de alimentos e da população mais vulnerável à variação de preço dos alimentos. [...] Além disso, há apenas três grandes players produtores no mundo, sendo que em dois deles, Rússia e Bielorrússia, há interferência dos governos na atuação internacional das empresas. As duas últimas crises mundiais de fertilizantes, em que os preços ao produtor rural aumentaram mais de 150% em menos de seis meses, ocorreram por ocasião da atuação das empresas de fertilizantes potássicos. Na atual crise de fertilizantes, o primeiro nutriente a faltar para o Brasil foi o potássio." [id.] Segundo o ente público, há altíssima dependência nacional de fertilizantes estrangeiros, o que torna o país ainda mais vulnerável, pois os grandes produtores agrícolas mundiais possuem autonomia no fornecimento de fertilizantes: "O Brasil vem presenciando, nos últimos anos, um forte aumento nas importações de fertilizantes. Estima-se que, em 2020, mais de 80% dos que foram consumidos no Brasil são de origem estrangeira, respondendo a produção nacional por menos de 20% da demanda do país. Estrategicamente, todos os países que são grandes produtores agrícolas no mundo, têm autonomia no fornecimento de fertilizantes, uma vez que produzem, no mínimo, 50% da sua demanda anual, exceto o Brasil. A dependência se agrava quando se verifica que o Brasil deverá responder por quase metade da produção mundial de alimentos nos próximos anos, aumentando proporcionalmente a demanda por fertilizantes. Atualmente, o Brasil é o quarto consumidor global de fertilizantes, responsável por cerca de 8% desse volume e é o maior importador mundial, ou seja, é o país com a maior dependência externa por fertilizantes." [id.] A variação de preços da commodity é também apontada como fator de preocupação, tendo em vista que há ciclos de crises mundiais que elevam os preços a níveis acima do padrão: "Aumentos nos preços desses insumos acontecem em ciclos de crises mundiais, como em 2008 e 2021, períodos em que foram registrados os maiores preços da história. Esse cenário impacta negativamente na competividade dos produtos agrícolas brasileiros, pois os fertilizantes já ocupam mais de 40% do custo de produção de culturas importantes como soja, milho e algodão, que compõem as principais exportações do agronegócio brasileiro, tornando o produto nacional menos competitivo." [id.] Assim, a conclusão da União é a de que "o Projeto Autazes pode proporcionar ao Brasil uma arrancada em direção à segurança do fornecimento de fertilizante potássicos para o país." [id.] Abaixo, as características físicas do projeto: Vale ressaltar que se cuida de empreendimento significativamente menor do que, por exemplo, a UHE Belo Monte, que possui dois reservatórios de regularização, com área total de 478 km², sendo 274 km² do leito original do Rio Xingu. Os dois reservatórios são o Reservatório Xingu, com 359 km², e o Reservatório Intermediário, com 119 km. É, desde já, importante destacar que no caso Comunidade Indígena Yakye vs. Paraguai, decidido em 17.6.2005, a Corte Interamericana de Direitos Humanos assentou que a propriedade indígena pode sofrer restrições quando presente interesse social e um objetivo estatal legítimo. Confira-se trecho do voto: Constam dos autos, ainda, diversas matérias jornalísticas de 2022 informando problemas de escassez do cloreto de potássio no mercado mundial, devido à guerra na Ucrânia (id. 970735666). No volume 3, consta ainda a Nota n. 00144/2023/CONJUR-MAPA/CGU/AGU, a qual atesta que a demanda por fertilizantes potássicos aumentará bastante nos próximos anos e que a produção nacional está decaindo: O documento ainda atesta que o Projeto Autazes está intimamente ligado com caros direitos fundamentais de índole social e com os fundamentos da ordem econômica, os quais incumbe a Administração dar concretude: Por fim, requer-se a aplicação do art. 20 da LINDB no julgamento desta ACP n. 0019192-92.2016.4.01.3200: "Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas." Diante do quadro apresentado, sem resolver a questão sobre o local em que será instalado o projeto minerário é ou não terra indígena, há aparência de que o projeto possui interesse social, eis que visa a fornecer insumos para a agricultura -, e também persegue um objetivo estatal legítimo, podendo ser executado inclusive se estiver em terras indígenas, desde que obedecida a legislação brasileira. III.b. O Conselho Indígena Mura - CIM e a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV O Conselho Indígena Mura - CIM é inequivocamente a entidade representativa dos Mura que residem em Autazes. Da mesma forma, a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV é a organização que representa os Mura no município do Careiro da Várzea. Essa circunstância é inequívoca dos autos e está consignada no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Careiro da Várzea, Amazonas. Confira-se à fl. 30, no capítulo "Quem Fala Em Nome dos Mura?": "Apesar de a Constituição Federal garantir que nossas terras sejam demarcadas, o Estado ainda não demarcou todas. A demarcação é nossa maior luta. "Mas nós sabemos que temos direito à nossa autodeterminação e ao autogoverno. A Constituição Federal de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, e a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, de 2007, assinadas pelo Brasil, garantem nosso direito ao autogoverno: somente nós, Mura, podemos decidir quem representa nossas aldeias e nosso povo. Por isso criamos as nossas organizações. As aldeias da região onde fica o município de Autazes se reúnem nas assembleias do Conselho Indígena Mura - CIM, e as aldeias que ficam na região onde está o município do Careiro da Várzea se reúnem nas assembleias da Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea, OLIMCV. Estas nossas organizações são um direito nosso, assegurado pela Constituição Federal (art. 5º): temos o direito de nos organizar livremente e de tomar nossas decisões de maneira soberana e autônoma nas assembleias das nossas organizações. Quando os não-índios querem elaborar um projeto, medida ou lei, são obrigados a nos consultar antes, sem nos pressionar e nos informando sobre todos os detalhes da proposta. Para começar esse diálogo, que é a consulta prévia, os não-índios " III.c. As Entidades Representativas e o Poder de Fala dos Povos Originários Nos termos do art. 32 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, são as instituições representativas dos povos originários que devem falar pelos indígenas em fases de consulta. Confira-se: "1. Os povos indígenas têm o direito de determinar e de elaborar as prioridades e estratégias para o desenvolvimento ou a utilização de suas terras ou territórios e outros recursos. 2. Os Estados realizarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas próprias instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre e informado antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particularmente em relação ao desenvolvimento, à utilização ou à exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo. 3. Os Estados estabelecerão mecanismos eficazes para a reparação justa e equitativa dessas atividades, e serão adotadas medidas apropriadas para mitigar suas consequências nocivas nos planos ambiental, econômico, social, cultural ou espiritual." Também no caso do Povo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Equador, sentença de 27 de junho de 2012, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi expressamente consignado que “os Estados devem incorporar essas normas aos processos de consulta prévia, de maneira a gerar canais de diálogos sustentados, efetivos e confiáveis com os povos indígenas nos procedimentos de consulta e participação por meio de suas instituições representativas." Sendo assim, como as consultas e cooperação entre indígenas devem ser verbalizadas por meio das suas instituições representativas, não há dúvidas de que, no caso em concreto, quem deve falar sobre os interesses dos Muras de Autazes é o CIM e pelos Mura de Careiro da Várzea é a OLIMCV. A própria decisão de id. 925987687, do Juízo de origem, reconhece que o CIM é a instituição que representa parte do Povo Indígena Mura nestes autos: III.d. A Abrangência do Dever de Consulta, a Inexistência do Poder de Veto e o Momento Adequado Sobre a abrangência do dever de consulta, no document Handbook for ILO Triparte Constituents - Understanding the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), publicado pela OIT, com a finalidade de responder questões essenciais sobre a Convenção 169, é dito que um dos principais desafios da convenção é garantir que consultas apropriadas sejam realizadas antes da adoção de medidas legislativas ou administrativas que provavelmente afetarão diretamente os povos indígenas e tribais [2]. Segundo o que decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos em Garífuna Triunfo de La Cruz e seus membros vs. Honduras, os elementos essenciais do direito de consulta são “a) o caráter prévio da consulta; b) a boa-fé e a finalidade de chegar a um acordo; c) a consulta adequada e acessível; d) o estudo de impacto ambiental; e e) a consulta informada.” É incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública. Essa ideia é pedagogicamente explicada na obra "The Oxford Handbook of International Enviromental Law", de Lavanya Rajamani e Jacqueline Peel, ao tratar da Convenção 169 da OIT (pág. 739): "Governments shall consult, 'in good faith...with the objective of achieving agreement or consent to the proposed measures' when considering legislative or administrative measures which may affect Indigenous peoples directly. Special measures to safeguard persons, institutions, property, labour, cultures, and environment of the Indigenous peoples shall not be contrary to the freelyexpressed wishes of the peoples concerned. The Convention acknowleges Indigenous peoples to be distinct polities within states". Em tradução livre: "Os governos deverão consultar, 'de boa fé... com o objetivo de chegar a acordo ou consentimento para as medidas propostas' ao considerar medidas legislativas ou administrativas que possam afetar diretamente os povos indígenas. Medidas especiais para salvaguardar pessoas, instituições, propriedades, trabalho, culturas e meio ambiente dos povos indígenas não devem ser contrárias aos desejos livremente expressos dos povos envolvidos. A Convenção reconhece os povos indígenas como entidades políticas distintas dentro dos Estados". Portanto, devem os indígenas expressar livremente seus modos de criar, fazer e viver, nos termos do art. 216, II, da Constituição e devem ser ouvidos propriamente quando puderem ser afetados por medidas que os impactem. Mas não basta. É indispensável que suas ideias, expressadas num ambiente livre e sem intimidações, sejam consideradas pelo órgão ambiental e pelo poder público, como um todo, ao analisar o licenciamento e/ou autorização para uma obra ou empreendimento que puderem afetar tais comunidades tradicionais. Em outras palavras, esse poder de fala (livre) dos indígenas gera, em contrapartida, um dever de escuta das autoridades envolvidas. É importante esclarecer, porém, que isso não significa a existência de um poder de veto por parte da comunidade indígena. Realizar a consulta é uma obrigação convencional, com força supra legal. Acatar necessariamente a integralidade do que for demandado não parece ser, ao menos pelo que constatei da jurisprudência do STF e do que consta em documentos da própria OIT. Confira-se, nesse sentido, o que já decidiu o STF, no julgamento da PET 3388 ED/RR: "70. Por fim, conforme observado pelo Ministro Gilmar Mendes, a relevância da consulta às comunidades indígenas “não significa que as decisões dependam formalmente da aceitação das comunidades indígenas como requisito de validade” (fl. 799). Os índios devem ser ouvidos e seus interesses devem ser honesta e seriamente considerados. Disso não se extrai, porém, que a deliberação tomada, ao final, só possa valer se contar com a sua aquiescência . Em uma democracia, as divergências são normais e esperadas. Nenhum indivíduo ou grupo social tem o direito subjetivo de determinar sozinho a decisão do Estado. Não é esse tipo de prerrogativa que a Constituição atribuiu aos índios. 71. A mesma lógica se aplica em matéria ambiental, que também mereceu proteção diferenciada por parte do constituinte. Por isso mesmo, e com a devida vênia em relação à posição da embargante (fl. 16.165), não há um problema a priori no fato de que “as tradições e costumes indígenas” sejam considerados como “apenas mais um fator, a ser sopesado pela autoridade ambiental”. Em verdade, essa é uma circunstância inerente à unidade do sistema constitucional, que promove a tutela de um conjunto variado de interesses e direitos que, em diversas situações, podem entrar em rota de colisão. Ao não instituir uma hierarquia rígida ou estática entre tais elementos, a Constituição impõe a necessidade de que a concordância entre eles seja produzida em cada contexto específico, à luz de suas peculiaridades. 72. Assim, como responsável pela administração das áreas de preservação, o Instituto Chico Mendes não pode decidir apenas com base nos interesses dos indígenas, devendo levar em conta as exigências relacionadas à tutela do meio ambiente. Nesse cenário, é de fato possível – como afirma a embargante – que “o administrador da unidade de conservação, até pela sua posição institucional, ponha em primeiro plano a tutela ambiental, em detrimento do direito das comunidades indígenas”. Contudo, é igualmente possível que isso não ocorra, não cabendo a este Tribunal antecipar o erro, a negligência ou a má-fé. Em qualquer caso, os índios, suas comunidades e o próprio Ministério Público poderão recorrer ao Poder Judiciário sempre que reputarem inválida uma decisão do Instituto (ou de qualquer outra autoridade)." (Emb. Decl. na Petição 3.388/RR, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 23.10.2013) No mesmo sentido, são os comentários feitos no documento editado em 2019, pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, intitulado Excerpts from reports and comments of the ILO Supervisory Bodies - Applying the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), disponível no site da organização: Confira-se o que está dito nas fls. 48-49 do referido documento: "Concerning the nature of consultation, from the review of the preparatory work concerning Convention No. 169 and from the review of the wording of the two authoritative texts of the Convention, the Committee concludes that it was the intention of the drafters of the Convention that the obligation to consult under the Convention was intended to mean that: 1) consultations must be formal, full and exercised in good faith; 26 there must be a genuine dialogue between governments and indigenous and tribal peoples characterized by communication and understanding, mutual respect, good faith and the sincere wish to reach a common accord; 2) appropriate procedural mechanisms have to be put in place at the national level and they have to be in a form appropriate to the circumstances; 3) consultations have to be undertaken through indigenous and tribal peoples’ representative institutions as regards legislative and administrative measures; 4) consultations have to be undertaken with the objective of reaching agreement or consent to the proposed measures It is clear from the above that pro forma consultations or mere information would not meet the requirements of the Convention. At the same time, such consultations do not imply a right to veto, nor is the result of such consultations necessarily the reaching of agreement or consent." [3] A tradução livre deste trecho é a seguinte: "Quanto à natureza da consulta, da revisão dos trabalhos preparatórios relativos à Convenção nº 169 e da análise dos textos das duas versões autorizadas da Convenção, o Comitê conclui que os redatores da Convenção tinham a intenção de que a obrigação de consultar sob a Convenção significasse o seguinte: as consultas devem ser formais, completas e exercidas de boa fé; deve haver um diálogo genuíno entre os governos e os povos indígenas e tribais caracterizado pela comunicação e entendimento mútuos, respeito mútuo, boa fé e o sincero desejo de alcançar um acordo comum; mecanismos procedimentais apropriados devem ser estabelecidos no nível nacional e devem estar em uma forma adequada às circunstâncias; as consultas devem ser realizadas por meio das instituições representativas dos povos indígenas e tribais no que se refere a medidas legislativas e administrativas; as consultas devem ser realizadas com o objetivo de alcançar acordo ou consentimento quanto às medidas propostas. É claro a partir do exposto que consultas meramente formais ou simples fornecimento de informações não satisfariam os requisitos da Convenção. Ao mesmo tempo, tais consultas não implicam um direito de veto, nem o resultado dessas consultas necessariamente é o alcance de um acordo ou consentimento." É essencial, assim, deixar claro que a opção pelo empreendimento, ou não, é do Poder Público e a ele compete, respeitando os termos da Constituição e da legislação, licenciá-lo. Por fim, sobre o momento da consulta, no caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador, decidido em 27.12.2012, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi também referido que o “requisito de consulta prévia implica que essa consulta deva ser realizada antes de tomar-se a medida, ou executar o projeto suscetível de afetar as comunidades [...] e que as comunidades sejam envolvidas o quanto antes no processo”. III.e. Análise das alegações do agravo de instrumento Pois bem, apresentados estes esclarecimentos introdutórios, passa-se ao exame do agravo. Como dito, no recurso, é postulada a reforma da decisão agravada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". Ou seja, o que se deseja é que seja reconhecida como válida da consulta efetivada, bem como que seja definido que a área do projeto não é terra indígena, consequencia lógica para se afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional (art. 231, § 3º, CF). III.e.1. O Processo de Consulta no Caso Concreto O processo de consulta, no caso em questão, demandou anos para ser realizado. Pela análise dos autos, é possível perceber que o anúncio da descoberta das minas se deu 2010 e 2013 e o Estudo de Impacto Ambiental foi concluído em 2015 (id. 296953002), assim como a emissão da licença prévia pelo IPAAM, cuja validade é questionada na origem. Como a Ação Civil Pública nº 0019192-92.2016.4.01.3200 foi ajuizada em 2016, todo o processo de consulta foi acompanhado pelo Juízo. Antes de iniciar a fase de consulta, em 7.5.2018, foi determinada a suspensão de qualquer atividade de prospecção por parte da Potássio do Brasil Ltda., para que fosse iniciada a construção de um protocolo de consulta. O Juízo inclusive homologou a designação um antropólogo, o Dr. Bruno Walter Caporrino, para mediar, facilitar e presidir os trabalhos de construção do protocolo de consulta, tendo este sido remunerado pela Potássio do Brasil Ltda. Tanto a FUNAI, como o DNPM foram devidamente cientificados do procedimento definido. Confira-se o inteiro teor da decisão (id. 297015035): Ou seja, o presente caso apresenta uma particularidade em relação aos que normalmente são judicializados: toda a fase de consulta foi acompanhada pelo Juízo. É interessante verificar também o inteiro teor dos relatórios das oficinas realizadas nas aldeias, cuja elaboração coube ao Dr. Bruno Walter Caporrino. São trabalhos bastante extensos e ricos em em destacar o procedimento que estava sendo levado a efeito pelo perito. Por exemplo, o relatório constante do id. 297015043, protocolado nos autos em 2018, contém 169 páginas e é encaminhado por meio do ofício abaixo, com os seguintes termos: As seguintes aldeias foram visitadas: Ao todo, foram 19 atividades: Posteriormente, ainda houve a protocolização de relatórios complementares em 2019 (fls. 1255 - 1719 - id. 297031909). Após, houve uma Assembleia de Aprovação do Protocolo de Consulta e Consentimento Mura em 18.6.2019. A Lista de presença está à fl. 1.780-1.810 e a ata ás fls. 1.758-1779 - id. 297031909. Há juntada de DVDs com a audiência gravada e também de cópia impressa do protocolo (fls. 1.825-1.880 - id. 297047874). O procedimento foi plenamente aceito por todas as partes envolvidas, chegando o MPF, na petição de 11.9.2019 (fl. 1.906-1.909) a afirmar que se cuida de relevante momento para o Estado democrático de direito. Frise-se que as aldeias do Soares e Careiro receberam Oficinas, conforme acima relatado. Ficou também expresso que o princípio da vinculação ao aos termos do referido instrumento deveria reger a relação e que estava sendo inaugurado um interesse diálogo das fontes: Posteriormente, foi realizada audiência judicial na qual foi acordado que a Potássio do Brasil Ltda. entregaria até o dia 18.11.2019 a proposta do empreendimento oficialmente ao CIM e à OLIMCV. Confira-se a parte final da ata: Ato contínuo, em 18.11.2019, foi protocolada petição pela Potássio do Brasil Ltda. comunicando a entrega do material ao CIM e ao OLIMCV, as quais responderam confirmando o recebimento da documentação e dando o aceite no início do processo de consulta (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). O protocolo também foi feito perante a Justiça Federal, o MPF e o perito do juízo foi copiado nos emails. Em relação às características do empreendimento, foi informado o seguinte em documentos acostados aos autos: Após, com o início da pandemia da COVID-19, o processo sofreu atrasos e apenas foi retomado em 2021, depois da vacinação dos Mura. Foi apresentado orçamento da consulta, equivalente a R$ 1.258.687,90 (id. 637592027). Foi estabelecido um cronograma de reuniões com dos Povos Mura informado pelo CIM (id. 830734065), sendo que o plano era a conclusão até o final de maio de 2022: Após, foi realizada inspeção judicial em 29.3.2022 (Relatório - id. 1061672277) o que representou mais uma paralisação no processo. O ponto mais relevante consignado foi o seguinte: Em seguida, houve notícia de que o MPF protocolou a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200, mediante a qual pleiteia que seja concluída a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Ato contínuo, petição de 20.9.2022, o MPF relatou a existência de pressões e coações por parte da empresa sobre os povos indígenas de Autazes e região e a sobreposição da exploração minerária pretendida pela Potássio do Brasil Ltda. ao referido território tradicional indígena. Ademais, aduziu o MPF que as estruturas minerárias seriam construídas a aproximadamente dois quilômetros da área de moradia (casas da aldeia Soares), e dentro da área indígena reivindicada, território de uso tradicional do povo Mura. Nesse contexto, requer a suspensão da licença expedida quanto ao Projeto Potássio Amazonas/Autazes, bem como a suspensão do procedimento de consulta prévia até finalização do procedimento de demarcação do território (ACP 1015595-88.2022.4.01.3200), no qual haveria liminar concedida. Sobre esse pedido, a FUNAI se manifestou sobre a ausência de indícios de tradicionalidade (id. 1419622747): Após, em 16.2.2023, a FUNAI fez juntar aos autos documento intitulado Análise Cartográfica nº 138/2023, mediante a qual apresentou as seguintes conclusões (id. 1496199359): Veja-se, então, que se diz expressamente que há uma área de sobreposição, mas ao mesmo tempo afirma-se que há uma distância de 2,52 km da aldeia Soares da base de exploração. Foi também apontada uma área de influência considerada uma área de 10 km a partir da área total do “Projeto Potássio Amazonas – Autazes”, nos termos do Anexo I da Portaria Interministerial nº 60/2015 da FUNAI. O mapa trazido na inicial permite a compreensão da área: É curioso notar que a existência de indígenas e também de não indígenas na área do Lago do Soares foi identificada quando da demarcação da Terra Indígena Jauary, mas não entendeu-se que o local onde será instalado a base de exploração da Potássio do Brasil Ltda. não deveria ser abarcado no perímetro da respectiva terra. Confira-se a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): É importante perceber também que, segundo informações da FUNAI, o município de Autazes possui mais de 20 terras indígenas regularizadas ou em processo de demarcação. Ou seja, não é um município em relação ao qual já não se tenham sido feitas delimitações de áreas de tradicionalidade indígena. Além disso, é válido destacar que no Caso Povos Kaliña e Lokono VS. Suriname, decidido em 2015, ficou estabelecido que “para efeitos de delimitação, demarcação e titulação do território tradicional [...], a Corte estima que o direito à propriedade dos povos indígenas e tribais contempla garantias plenas sobre os territórios que tradicionalmente possuíram, ocuparam e utilizaram para exercer sua própria forma de vida, subsistência, tradições, cultura e desenvolvimento como povos”. No entanto a Corte assinalou que “sem prejuízo do exposto, existiriam outras áreas tradicionais complementares ou adicionais às que tenham tido acesso para suas atividades tradicionais ou de subsistência (que, caso seja conveniente, podem compartilhar outras finalidades), a respeito das quais se deve garantir, pelo menos, o acesso e uso, na medida em que seja cabível.” Ou seja, para a CIDH, nem toda área área que os indígenas utilizem para subsistência ou mesmo habitem configura necessariamente uma Terra Indígena. Chama a atenção o fato de que a própria inspeção judicial constatou a presença de populações ribeirinhas na região do Lago do Soares, as quais, ao que parece, estão lá também há muitos anos, sendo que existe uma convivência aparentemente harmoniosa: Na inicial da ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 é também reconhecida a existência de indígenas e ribeirinhos, tendo em vista que há aldeias e povoados na região: No caso acima a Corte também constatou que “efetivamente, dentro do território que os Povos Kaliña e Lokono alegam ser seu território tradicional, haveria, pelo menos 10 assentamentos maroons que estariam excluídos dessa queixa, a saber: 1) Albina; 2) Papatam; 3) Mankelekampu; 4) Mariakondre; 5) Eduardkondre; 6) Akoloikondre; 7) Bamboesi; 8) Koni; 9) Moengotapu; e 10) Adjoemakondre [...]. No entanto, a Corte não dispõe de informação suficiente que lhe permita esclarecer os argumentos relacionados a possíveis assentamentos maroons em: 1) Bilokondre; 2) Krontokondre; 3) Soke; 4) Pakirakondre; 5) Mopikondre; 6) Onikaikondre; 7) Manjabong; 8) Bonikondre ou Baajoebekampu; 9) Nengrekriki; 10) Solegakampu; e 11) Brunswijkkamp […]” E disse que, “sem prejuízo do exposto, sendo que é dever do Estado delimitar os territórios tradicionais, cabe a ele, mediante um processo consultivo e mediante as medidas necessárias de caráter administrativo e legais, conforme as normas internacionais na matéria, primeiramente delimitar os territórios que cabem aos Povos Kaliña e Lokono, em conformidade com o parágrafo 139 desta sentença, para assim proceder a sua demarcação e titulação, garantindo seu uso e gozo efetivo. Para isso, o Estado também deve respeitar os direitos que possam assistir aos povos tribais ou a seus membros na área. Para isso, o Estado deverá desenvolver, de comum acordo com as comunidades indígenas e maroons, regras de convivência pacíficas e harmoniosas no território em questão.” Por fim, o CIM, em 25.9.2023, protocolou petição comunicando que (i) aprovou o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta, bem como que (ii) aprovou pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil Ltda. faça a mineração. Eis a petição (id. 1829380152): Em anexo, foi apresentado o Relatório das Lideranças Mura de Autazes (id. 1829380154): Não houve juntada de documento de aprovação ou de rejeição do OLIMCV. Houve inclusive alteração do Protocolo de Consulta, excluindo a participação do OLIMCV, ou seja, dos Mura do município do Careiro da Várzea, em relação à deliberação da agravante. III.e.2. A Validade da Consulta Efetivada Cumpre examinar a validade da Consulta efetivada. Com efeito, foi devidamente reconhecido com ao CIM compete emitir manifestação de vontade sobre o Povo Mura de Autazes. Pela dicção do art. 6º da Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, “ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”. Não parecem existir argumentos que possam permitir que, ao menos em sede de cognição sumária, que a consulta realizada ao povo CIM não tenha sido efetuada com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. Como se depreendeu do histórico acima, houve um amplo debate com o Povo Mura de Autazes para entender o que significava o processo de consulta, compreender a relevância de examinar o projeto e também os direitos que terão frente a ele. O processo foi iniciado há quase 10 anos. Há notícias de oficinas, reuniões, audiências públicas. A aparência é que tenha sido um processo livre, eis que ainda houve acompanhamento judicial das etapas, algo que não é o usual. Seguiu-se, assim, o que havia determinado a FUNAI (fl. 1362 - id. 297018889): Não há notícia de que o CIM tenha alterado o posicionamento externado na petição acima. Este Relator recebeu as lideranças em seu Gabinete em Audiência e tudo foi reafirmado. Apesar de a consulta ter sido realizada após a emissão da licença prévia pelo IPAAM, ela foi feita antes de concretizado qualquer ato de instalação e exploração do empreendimento. Houve inclusive acordo judicial suspendendo as etapas, até que fosse concluída a Consulta. A licença prévia ainda continha como condicionante de que era necessária a apresentação do estudo de componente indígena à Funai. Confira-se (id. 296936996 - fl. 242): Não se pode, então, dizer que a consulta não obedeceu ao momento adequado. No caso concreto, não há realisticamente como ter existido uma consulta anterior à que foi realizada, uma vez que foi feita durante os estudos para ser decidir sobre a viabilidade ou não da obra. Ou seja, fase meramente preliminar, sem qualquer ato de execução, quando já identificados os riscos do empreendimento e quando ainda há um tempo "adequado para a discussão interna nas comunidades, para oferecer uma resposta adequada ao Estado". Além disso, os indígenas aparentemente tiveram amplo acesso à documentação do empreendimento, ao EIA/RIMA, ao Estudo de Componente Indígena e tiveram ampla chance de compreender o que está sendo proposto. Não se pode dizer que a realização de consulta por meio de audiências públicas não cumpre a obrigação de adequadamente consultar os povos. Os procedimentos apropriados exigidos pela Convenção são aqueles que os indígenas acharem apropriados. Se a audiência pública for assim considerada, não há porque concluir que não é adequado para o fim pretendido. Não há nada que imponha uma forma de consulta diversa, salvo a vontade dos indígenas. Por fim, chama a atenção de que o Protocolo de Consulta tenha sido alterado no curso do processo para separar o consentimento entre o CIM, o qual, como dito acima, inequivocamente representa os Mura que residem em Autazes, e a OLIMCV, entidade representativa que representa os Mura no município de Careiro da Várzea. Esta alteração, contudo, não tem o condão de retirar a validade da consulta efetivada. Isso, porque pela leitura dos autos, percebe-se que a própria Funai sempre se manifestou no sentido de que a população indígena potencialmente afetada era a dos Mura de Autazes. Confira-se o seguinte trecho, por exemplo (fl. 1.362 – id. 297018889), em que é dito que os indígenas que deveriam ser consultados são os da Terra Indígena Jauary e Paracuhuba, as quais, consoante a Análise Cartográfica nº 138/2023, são as que estão próximas do empreendimento: Além disso, o fato de que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, dissidência do CIM, não tenham se manifestado junto com o CIM não impede que eles expressamente se pronunciem sobre a consulta. A documentação dos autos comprova que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, então parte do CIM, receberam todos os documentos relativos ao empreendimento (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). A OLIMCV inclusive confirmou o recebimento do e-mail (id. 297047889 – p. 33): Existe a comprovação de que foram recebidas diversas unidades do protocolo de consulta, requerimento de despesas para realização de reuniões (id. 297018967): Confira-se, ainda, o seguinte documento (id. 637592035): É preciso dizer que a proteção dos povos e terras indígenas é permanente para o Estado Brasileiro. A mera circunstância de que a consulta foi realizada não satisfaz a obrigação permanente de assistência e proteção desses povos, ouvindo-os sempre de boa-fé e atendendo, quando possível, as demandas pleiteadas. O que se estabelece é um diálogo permanente e não momentâneo. Se novas dúvidas surgirem, se problemas antes não imaginados forem detectados, competirá ao Estado Brasileiro lidar com as questões e sanar esses problemas, de forma a dar ampla concretude aos direitos e garantias dos povos originários. Assim, caso a OLIMCV logre comprovar que a delimitação da Funai está de que os Mura de Careiro da Várzea deveriam também ser obrigatoriamente consultados, ainda que não haja notícias de que nenhuma aldeia será diretamente impactada pelo trajeto, tal diálogo tem totais condições de ainda ser estabelecido de maneira satisfatória, com a implantação de reparações necessárias, mesmo com o projeto em curso. Adicionalmente , também é de se considerar que o fato de os Mura da aldeia do Lago de Soares, situada em Autazes, terem ficado vencidos na alteração do protocolo de consulta e, posteriormente, terem decidido romper com a autoridade constituída, qual seja, o CIM, não invalida a alteração. No modelo deliberativo adotado pelos Mura de Autazes, não há exigência de unanimidade para a aprovação da alteração, a qual, é certo, inviabilizaria a conclusão do processo. Não é possível invalidar a alteração do protocolo de consulta somente porque os Mura do Lago de Soares, submetidos, incontroversamente, à data da deliberação, à autoridade do CIM, discordam da decisão. Chancelar a nulidade da alteração diante da discordância de uma parcela dos indígenas afetados representaria a inviabilização da construção de um protocolo de consulta e de qualquer deliberação, especialmente em relação a litígios complexos, vide o caso dos autos. Na obra Constitutional Strategies, o Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Berkeley, Robert Cooter, aponta as deficiências de um sistema baseado na regra da unanimidade: “O poder de barganha depende das consequências da falha na negociação. Se uma negociação é frustrada, cada parte deve fazer o seu melhor sem a cooperação dos demais. As partes que se beneficiam menos da cooperação terão o maior poder de barganha. Como uma parte pode ter êxito sem a cooperação das demais depende da regra da ação coletiva. Primeiramente, considere a regra da unanimidade. Negociações frustradas na regra da unanimidade paralisam as ações coletivas. Consequentemente, quando barganham sob a regra da unanimidade, as regiões e as coletividades com menor necessidade de cooperação podem demandar as melhores condições.[...] A força da negociação está nas mãos dos membros potenciais de uma coalizão majoritária. Quando se negocia sob uma regra de maioria, as regiões e as localidades dentro da coalizão interna podem demandar melhores condições de cooperação dos externos”. Por fim, é importante ter em mente que tanto os povos originários representados pela OLIMCV e pela Organização dos Mura do Lago do Soares tiveram amplo tempo e conhecimento do Projeto Autazes e podem ainda se pronunciar formalmente nos autos de origem sobre o que pensam a respeito do assunto. A circunstância de que houve uma ruptura do formato conjunto de todas as organizações de deliberação do Protocolo de Consulta em nada impede que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares emitam qualquer opinião sobre o Projeto nesses autos judiciais, tampouco que apresentem essa manifestação de vontade a qualquer órgão estatal. Há, ao meu sentir, um deslocamento do debate, como se a circunstância de a alteração do Protocolo represente a inviabilização de que essa emissão de vontade não possa mais ocorrer, o que não faz qualquer sentido. Em verdade, a ausência de manifestação formal sobre o tema da consulta para depois se alegar que a Consulta não ocorreu representa um veto em branco ao Projeto, pois se busca evitar a consolidação de uma etapa necessária deslocando o foco do debate. É importante ressaltar que a CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. Veja-se que essas organizações não alegam que não estão devidamente informadas, que não tiveram tempo para se reunir ou debater, que não receberam documentos, que não tiveram como debater o projeto com órgãos estatais ou com a empresa. O que se alega simplesmente é que o CIM não poderia ter aprovado isoladamente o projeto, sem que se diga se aprovam ou desaprovam e por quais razões. Veja o que disse a CIDH no caso Pueblo Indígena U’WA y sus miembros VS. Colombia: 191. Nos casos em que – tendo os Estados promovido a consulta de boa-fé e em conformidade com os padrões previamente estabelecidos (supra, parágrafos 168 a 178 e 190) – o povo indígena se recuse a participar, deverá ser considerado que o povo indígena está em desacordo com a atividade objeto da consulta e, portanto, a obrigação da consulta será considerada esgotada. Além disso, os Estados devem garantir que as medidas adotadas sejam proporcionais e respeitem o princípio da igualdade e da não discriminação, levando também em consideração a natureza da medida e seu impacto no território e na cultura. Do mesmo modo, os Estados devem garantir o acesso à justiça em relação às medidas que possam afetar diretamente um povo indígena ou tribal, a fim de verificar se a consulta prévia foi realizada em conformidade com as obrigações internacionais do Estado e com a jurisprudência desta Corte. Caso o povo indígena tenha se recusado a participar da consulta, a autoridade judicial deverá verificar se o Estado tomou medidas específicas e agiu de boa-fé para realizar a consulta prévia, livre e informada, e se, nesse contexto, a atividade restringe de forma desproporcional os direitos do povo indígena ou tribal. Tradução livre de: 191. En los casos en los que –habiendo los Estados impulsado la consulta de buena fe y conforme a los estándares previamente señalados (supra, párrs. 168 a 178 y 190)— el pueblo indígena se niegue a participar, deberá considerarse que el pueblo indígena está en desacuerdo con la actividad objeto de la consulta, y por lo tanto la obligación de la consulta se tendrá por agotada271. Además, los Estados deben garantizar que las medidas adoptadas sean proporcionales y respeten el principio de igualdad y no discriminación, tomando además en consideración la naturaleza de la medida y su impacto en el territorio y la cultura272. Asimismo, los Estados deben garantizar el acceso a la justicia frente a las medidas que puedan afectar directamente a un pueblo indígena o tribal, a fin de verificarse si la consulta previa fue realizada de conformidad con las obligaciones internacionales del Estado y la jurisprudencia de esta Corte. En caso de que el pueblo se haya negado a participar en la consulta, la autoridad judicial deberá verificar si el Estado tomó medidas específicas y de buena fe a fin de realizar la consulta previa, libre e informada, y si en ese contexto la actividad limita de forma desproporcionada los derechos del pueblo indígena o tribal. Fonte: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_530_esp.pdf Sendo assim, deve-se considerar que a etapa de consulta foi adequadamente cumprida e que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares, por não emitirem pronunciamento expresso sobre os termos da consulta, apesar de cientes dessa prerrogativa – uma vez que participaram da elaboração do protocolo de consulta –, bem como dos termos do projeto, uma vez que receberam da Potássio o e-mail contendo todas as informações -, simplesmente se recusaram a participar. Por tal razão, os órgãos estatais devem considerar que recusaram o projeto, sem que isso implique poder de veto. Frise-se que a ausência da manifestação dessas associações não exime o Estado de proteger legitimamente os indígenas que habitam nas aldeias que representam. Como disse a União no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000, “todos os impactos ambientais e socioculturais do empreendimento sobre o povo mura do Lago de Soares e da Vila de Urucurituba estão sendo devidamente tratados no licenciamento ambiental em curso. Durante o licenciamento, foi elaborado estudo do Componente Indígena, indicando as consequências sociais e ambientais do empreendimento, bem como apresentados formas de mitigação/compensação” (id. 274290022 – fl. 39). Ante esse quadro, ao menos em juízo preliminar, não há razões para concluir que o Estado Brasileiro não cumpriu os seus compromissos internacionais de respeito aos direitos humanos indígenas em relação ao projeto de aprovação da licença prévia do empreendimento em questão, uma vez que procedeu adequadamente quanto à consulta destes povos. III.e.3. A Competência para Licenciar o Empreendimento A decisão agravada ainda consignou ser o IBAMA o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto. Creio estar a compreensão equivocada e que o correto entendimento foi abordado de forma minuciosa pela União quando da interposição do Agravo de Instrumento n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que será julgado na mesma oportunidade deste recurso. Coaduno com a fundamentação exposta pela União, pelo que integro-a às razões de decidir deste agravo. A Lei Complementar 140, de 8 de dezembro de 2011, regulamenta a competência dos entes federativos em questões ambientais, estabelecendo diretrizes para cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Alinhada à Constituição Federal, a norma aborda ações administrativas conjuntas relacionadas à proteção do meio ambiente, combate à poluição e preservação de recursos naturais, como florestas, fauna e flora. Essa norma promoveu uma divisão clara de competências, reduzindo conflitos especialmente no âmbito do licenciamento ambiental, que antes era regulado majoritariamente pela Resolução 237 do CONAMA. A lei determina que apenas um órgão será responsável pela aprovação, fiscalização e eventual sanção, assegurando celeridade, transparência e segurança jurídica no processo de licenciamento. A lei também prevê instrumentos de cooperação, como consórcios públicos, convênios e delegações de competências, desde que o ente delegado disponha de estrutura técnica e conselho ambiental adequados. A simplificação do licenciamento ambiental permite que empreendimentos poluidores ou potencialmente degradantes sejam licenciados pelo órgão competente de qualquer nível federativo, inclusive municipal, promovendo eficiência administrativa. Confira-se os dispositivos da norma que tratam sobre a competência de cada ente federativo, sobretudo com relação ao licenciamento ambiental: Art. 7º São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: a) localizados ou desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; b) localizados ou desenvolvidos no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva; c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; d) localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pela União, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados; f) de caráter militar, excetuando-se do licenciamento ambiental, nos termos de ato do Poder Executivo, aqueles previstos no preparo e emprego das Forças Armadas, conforme disposto na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999; g) destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen); ou h) que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento; -.-.- Art. 8° São ações administrativas dos Estados: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7° e 9°; XV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pelo Estado, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); -.-.- Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade; ou b) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); Dito isso, peço licença para transcrever a argumentação da União nos autos do AI n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que adoto como razões de decidir: "[p]ercebe-se que a LC nº 140/2011 trouxe diferentes critérios definidores de competência para cada ente (União – localização e tipo de atividade; Município – alcance do impacto ambiental; Estado – residual). Cada critério não se confunde com os demais e não tem aplicação a outros entes federativos. Da leitura do art. 8º, XIV depreende-se que aquilo que não estiver expressamente taxado como sendo competência da União (art. 7º) ou dos Municípios (art. 9º) é competência dos Estados-membros (caráter residual). Por isso, nada mais natural do que ler as competências contidas na LC nº 140 de forma restritiva ou literal em relação a União e Municípios. Como destacou o TRF da 1ª Região, ao tratar da interpretação restritiva em caso envolvendo competência para licenciamento ambiental, assim como na Constituição, “o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal.” (TRF da 1a Região, 5a T., v.u., AC 0000267- 95.2005.4.01.3600, rel. Des. João Batista Moreira, j. em 17/08/2011, eDJF1 26/08/2011, p. 153.) Dessa forma, não cabem considerações expansivas da competência da União, devendo o intérprete trabalhar com o texto dado pela LC 140, não podendo usar argumentos não previstos expressamente na lei. Na perspectiva da LC n. 140/2011, a competência para licenciamento será federal apenas quando estiver configurada uma das hipóteses previstas no art. 7º, XIV, que estabelece apenas critério de localização e de tipo de atividade ou no caso de empreendimentos que atendam a tipologia prevista na alínea "h" (atualmente definida no Decreto nº 8.437, de 22 de abril de 2015). Percebe-se, portanto, que para que haja competência federal para licenciamento prevista no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140/2011 (Terra Indígena), deve-se atender ao critério da localização do empreendimento – não tendo aplicação o critério do alcance dos impactos: Art. 7° São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: (...) c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; Quando o legislador quis adotar o critério do âmbito do impacto ambiental da atividade ou empreendimento, o fez de forma explícita: Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade Percebe-se, claramente, que o legislador adotou o critério do alcance do impacto ambiental no art. 9º, XIV, “a” da LC nº 140 como definidor apenas da competência para licenciamento dos Municípios. Já no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140 constata-se que não houve menção alguma ao âmbito de impacto do empreendimento, mas apenas à localização e ao desenvolvimento da atividade: “localizados ou desenvolvidos em terras indígenas”. Se quisesse adotar o critério do impacto ambiental para competência federal, o legislador teria definido que são ações administrativas da União promover o licenciamento de empreendimentos e atividades que causem ou possam causar impacto ambiental em Terra Indígena. Não o fez. Optou pelo critério da localização. Houve, portanto, silêncio eloquente do legislador, que, em relação ao licenciamento de atividades em Terra Indígena optou por afastar o critério do alcance do impacto e adotar exclusivamente o critério da localização do empreendimento. Ou seja, a competência somente será fixada como federal quando o empreendimento estiver localizado dentro da Terra Indígena, não se aplicando o critério de impacto ambiental para fixação da competência federal. O empreendimento tratado na demanda está localizado e será desenvolvido completamente fora de Terra Indígena (demarcada e em demarcação). Em relação à INSTRUÇÃO NORMATIVA CONJUNTA Nº 1, de 22 de fevereiro de 2021 da Funai, mencionada no despacho a que a Juíza faz referência na decisão agravada, destaca-se que o ato dispõe sobre os procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor seja organização indígena. O que reforça que a competência federal se dá no caso de empreendimento localizado ou desenvolvido no interior de terra indígena – e não de atividades que possam afetar terra indígena. Ademais, as áreas de influência direta e indireta dos impactos ambientais do empreendimento devem vir definidas no EIA, que é elaborado por equipe multidisciplinar habilitada, responsável tecnicamente pelos estudos apresentados. No caso do empreendimento em tela, verifica-se que o EIA apresentado definiu a área de influência dos impactos ambientais do empreendimento em dois quilômetros quadrados (2 km²) no Projeto Autazes. O empreendimento, como demonstrado anteriormente, encontra-se a 8 km dos limites de terras indígenas demarcadas e em demarcação. Quanto à Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, imperioso tecermos alguns comentários. Inicialmente, importante destacar que a referida portaria estabelece procedimentos administrativos para oitiva da FUNAI, da Fundação Cultural Palmares, do IPHAN e do Ministério da Saúde em licenciamentos ambientais que já são de competência do Ibama. A portaria não estabelece, portanto, critério para definição de competência, mas apenas regras e procedimentos administrativos para a oitiva dos mencionados entes e órgãos. Assim, no curso de licenciamento que já está ocorrendo perante o Ibama: (a) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra quilombola, deverá haver manifestação da Fundação Cultural Palmares, (b) se constatada a ocorrência de bens culturais acautelados em âmbito federal na área de influência da atividade, deverá haver manifestação do IPHAN, (c) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra indígena, deverá haver manifestação da FUNAI e (d) se o empreendimento localizar-se em município pertencente à área de risco ou endêmica para malária, deverá haver oitiva do Ministério da Saúde. Percebe-se claramente que a portaria não fixa critérios de definição de competência para licenciamento pelo Ibama. Não se cogita competência do Ibama para licenciar empreendimento pelo simples fato de impactar em terra quilombola, afetar bens culturais acautelados no âmbito federal ou estar localizado em área de risco de malária. Assim, a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Do mesmo modo, a presunção de intervenção em terra quilombola, quando o empreendimento estiver no raio de 10 km (art. 3º, § 2º, II c/c Anexo I), obviamente, também não gera competência automática do Ibama, gerando apenas a necessidade de oitiva da Fundação Cultural Palmares. (...) A Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, portanto, não prevê competência da União (IBAMA) para licenciar quando se presume a intervenção em terra indígena (ou em terra quilombola ou em área de risco de malária ou em área com bens culturais acautelados) pelo fato do empreendimento estar localizado no raio de 10 km. A referida norma infralegal não atrai a competência do IBAMA por ausência de previsão no art. 7º da L.C 140/11, gerando apenas a exigência de oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), e não usurpação da competência para licenciar. Nesse ponto, importante diferenciar o critério para definição de competência para licenciamento, qual seja, a localização dentro de Terra Indígena, que deve ser interpretado restritivamente (art. 7º, XIV, “c” e art. 8º XIV), do critério para realização de Estudo de Componente Indígena ou de Consulta Prévia a povos indígenas e comunidades tradicionais, que é qualquer medida suscetível de afetá-los, o que admite uma interpretação mais elástica e, inclusive, foi objeto de concordância entre as partes para a sua realização. Percebe-se, então, que a hipótese normativa do art. 7º, XIV, inciso “c” da Lei Complementar n. 140 se aplica exclusivamente aos projetos localizados no interior de terras indígenas. No caso de empreendimento fora de terra indígena, a competência será do órgão ambiental estadual, mesmo que haja necessidade de ECI, de Consulta Prévia e haja reflexo na TI". Entendo correta assim a conclusão a que chegou a União, a partir da leitura da legislação, de que a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Afora esse aspecto, existe precedente do STF, com eficácia vinculante, que expressamente abordou a questão e reconheceu que é possível que um órgão ambiental estadual licencie um empreendimento em um caso em que efeitos indiretos para comunidades indígenas possam ocorrer. Foi justamente a ADI 4.757, que analisou a constitucionalidade da Lei Complementar nº 140/2011. Confira-se a ementa: CONSTITUCIONAL. AMBIENTAL. FEDERALISMO COOPERATIVO. COMPETÊNCIA COMUM EM MATÉRIA AMBIENTAL. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 23 CF. LEI COMPLEMENTAR Nº 140/2011. FEDERALISMO ECOLÓGICO. DESENHO INSTITUCIONAL DA REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS FUNDADO NA COOPERAÇÃO. RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE. DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE. DEVERES FUNDAMENTAIS DE PROTEÇÃO COMO PARÂMETRO NORMATIVO DE CONTROLE DE VALIDADE (ARTS. 23, PARÁGRAFO ÚNICO, 225, CAPUT, § 1º). RACIONALIDADE NO QUADRO ORGANIZATIVO DAS COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS. EFICIÊNCIA E COORDENAÇÃO DO AGIR ADMINISTRATIVO. VALORES CONSTITUCIONAIS. PODER DE POLÍCIA AMBIENTAL DE LICENCIAMENTO E ATIVIDADES FISCALIZATÓRIAS. EXISTÊNCIA E CAPACIDADE INSTITUCIONAL DOS ÓRGÃOS AMBIENTAIS COMO REQUISITO DA REGRA GERAL DE COMPETÊNCIA INSTITUÍDA NA LEI COMPLEMENTAR. ATUAÇÃO SUPLETIVA E SUBSIDIÁRIA. TUTELA EFETIVA E ADEQUADA DO MEIO AMBIENTE. LIMITES DA COGNIÇÃO JURISDICIONAL NO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO FEDERAL ATRIBUÍDA AO § 4º DO ART. 14 E AO 3º DO ART. 17. PROCEDÊNCIA PARCIAL. 1. A Lei Complementar nº 140/2011 disciplina a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora, em resposta ao dever de legislar prescrito no art. 23, III, VI e VI, da Constituição Federal. No marco da Política Nacional do Meio Ambiente, instituída pela Lei nº 6.938/1981, e da forma federalista de organização do Estado constitucional e ecológico, a Lei Complementar nº 140/2011 foi a responsável pelo desenho institucional cooperativo de atribuição das competências executivas ambientais aos entes federados. 2. Legitimidade ativa da Associação Nacional dos Servidores de Carreira de Especialista em Meio Ambiente e Pecma (ASIBAMA). Inegável a representatividade nacional da associação requerente, assim como a observância do requisito da pertinência temática para discutir questões versando alteração estrutural do sistema normativo de proteção do meio ambiente, conforme descrito no art. 3º, VI, do Estatuto Social juntado ao processo, quando do ajuizamento da presente ação. Reconhecimento da legitimidade da associação autora na ADI 4.029 (caso Instituto Chico Mendes). 3. O Supremo Tribunal Federal, acerca do alcance normativo do parágrafo único do art. 65 do texto constitucional, definiu interpretação jurídica no sentido de que o retorno à Casa iniciadora apenas deve ocorrer quando a Casa revisora, em seu processo deliberativo, aprovar modificação substancial do conteúdo do projeto de lei. Afastado, no caso, o vício de inconstitucionalidade formal do § 3º do art. 17. 4. Da interpretação do art. 225 da Constituição Federal, fundamento normativo do Estado de Direito e governança ambiental, infere-se estrutura jurídica complexa decomposta em duas direções normativas. A primeira voltada ao reconhecimento do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, em uma perspectiva intergeracional. A segunda relacionada aos deveres de proteção e responsabilidades atribuídos aos poderes constituídos, aos atores públicos e à sociedade civil em conjunto. A preservação da ordem constitucional vigente de proteção do meio ambiente, densificada nos seus deveres fundamentais de proteção, impõe-se, pois, como limite substantivo ao agir legislativo e administrativo. O que significa dizer que tanto a Política Nacional do Meio Ambiente, em todas as suas dimensões, quanto o sistema organizacional e administrativo responsável pela sua implementação, a exemplo do Sistema Nacional do Meio Ambiente, dos Conselhos Nacionais, Estaduais e Municipais, devem traduzir os vetores normativos do constitucionalismo ecológico e do federalismo cooperativo. 5. A Lei Complementar nº 140/2011, em face da intricada teia normativa ambiental, aí incluídos os correlatos deveres fundamentais de tutela, logrou equacionar o sistema descentralizado de competências administrativas em matéria ambiental com os vetores da uniformidade decisória e da racionalidade, valendo-se para tanto da cooperação como superestrutura do diálogo interfederativo. Cumpre assinalar que referida legislação não trata sobre os deveres de tutela ambiental de forma genérica e ampla, como disciplina o art. 225, §1º, IV, tampouco regulamenta o agir legislativo, marcado pela repartição concorrente de competências, inclusive no tocante à normatização do licenciamento em si. 6. O modelo federativo ecológico em matéria de competência comum material delineado pela Lei Complementar nº 140/2011 revela quadro normativo altamente especializado e complexo, na medida em que se relaciona com teia institucional multipolar, como o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), e com outras legislações ambientais, como a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) e a Lei de Infrações penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente (Lei nº 9.605/1998). O diálogo das fontes revela-se nesse quadro como principal método interpretativo. 7. Na repartição da competência comum ( 23, III, VI e VII CF), não cabe ao legislador formular disciplina normativa que exclua o exercício administrativo de qualquer dos entes federados, mas sim que organize a cooperação federativa, assegurando a racionalidade e a efetividade nos encargos constitucionais de proteção dos valores e direitos fundamentais. Ademais, os arranjos institucionais derivados do federalismo cooperativo facilita a realização dos valores caros ao projeto constitucional brasileiro, como a democracia participativa, a proteção dos direitos fundamentais e a desconcentração vertical de poderes, como fórmula responsiva aos controles social e institucional. Precedentes. 8. O nível de ação do agir político-administrativo nos domínios das competências partilhadas, próprio do modelo do federalismo cooperativo, deve ser medido pelo princípio da subsidiariedade. Ou seja, na conformação dos arranjos cooperativos, a ação do ente social ou político maior no menor, justifica-se quando comprovada a incapacidade institucional desse e demonstrada a eficácia protetiva daquele. Todavia, a subsidiariedade apenas apresentará resultados satisfatórios caso haja forte coesão entre as ações dos entes federados. Coesão que é exigida tanto na dimensão da alocação das competências quanto na dimensão do controle e fiscalização das capacidades institucionais dos órgãos responsáveis pela política pública. 9. A Lei Complementar nº 140/2011 tal como desenhada estabelece fórmulas capazes de assegurar a permanente cooperação entre os órgãos administrativos ambientais, a partir da articulação entre as dimensões estáticas e dinâmicas das competências comuns atribuídas aos entes federados. Desse modo, respeitada a moldura constitucional quanto às bases do pacto federativo em competência comum administrativa e quanto aos deveres de proteção adequada e suficiente do meio ambiente, salvo as prescrições dos arts. 14, § 4º, e 17, § 3º, que não passam no teste de validade constitucional. 10. No § 4º do art. 14, o legislador foi insuficiente em sua regulamentação frente aos deveres de tutela, uma vez que não disciplinou qualquer consequência para a hipótese da omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental. Até mesmo porque para a hipótese de omissão do agir administrativo no processo de licenciamento, o legislador ofereceu, como afirmado acima, resposta adequada consistente na atuação supletiva de outro ente federado, prevista no art. 15. Desse modo, mesmo resultado normativo deve incidir para a omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental, disciplinado no referido § 4º do art. 14. 11. Um dos princípios fundamentais do funcionamento do sistema legal de tutela do meio ambiente é o da atuação supletiva do órgão federal, seja em matéria de licenciamento seja em matéria de controle e fiscalização das atividades ou empreendimentos potencialmente poluidores ou degradantes do meio ambiente. No exercício da cooperação administrativa, portanto, cabe atuação suplementar – ainda que não conflitiva – da União com a dos órgãos estadual e municipal. As potenciais omissões e falhas no exercício da atividade fiscalizatória do poder de polícia ambiental por parte dos órgãos que integram o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) não são irrelevantes e devem ser levadas em consideração para constituição da regra de competência fiscalizatória. Diante das características concretas que qualificam a maioria dos danos e ilícitos ambientais de impactos significativos, mostra-se irrazoável e insuficiente regra que estabeleça competência estática do órgão licenciador para a lavratura final do auto de infração. O critério da prevalência de auto de infração do órgão licenciador prescrito no § 3º do art. 17 não oferece resposta aos deveres fundamentais de proteção, nas situações de omissão ou falha da atuação daquele órgão na atividade fiscalizatória e sancionatória, por insuficiência ou inadequação da medida adotada para prevenir ou reparar situação de ilícito ou dano ambiental. 12. O juízo de constitucionalidade não autoriza afirmação no sentido de que a escolha legislativa é a melhor, por apresentar os melhores resultados em termos de gestão, eficiência e efetividade ambiental, mas que está nos limites da moldura constitucional da conformação decisória. Daí porque se exige dos poderes com funções precípuas legislativas e normativas o permanente ajuste da legislação às particularidades e aos conflitos sociais. 13. A título de obter dictum faço apelo ao legislador para a implementação de estudo regulatório retrospectivo acerca da Lei Complementar nº 140/2011, em diálogo com todos os órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente, como método de vigilância legislativa e posterior avaliação para possíveis rearranjos institucionais. Sempre direcionado ao compromisso com a normatividade constitucional ambiental e federativa. Ademais, faço também o apelo ao legislador para o adimplemento constitucional de legislar sobre a proteção e uso da Floresta Amazônia (art. 225, § 4º), região que carece de efetiva e especial regulamentação, em particular das atividades fiscalizadoras, frente às características dos crimes e ilícitos ambientais na região da Amazônia Legal. 14. Improcedência dos pedidos de declaração de inconstitucionalidade dos arts. 4º, V e VI, 7º, XIII, XIV, “h”, XV e parágrafo único, 8º, XIII e XIV, 9º, XIII e XIV, 14 § 3º, 15, 17, caput e §§ 2º, 20 e 21, Lei Complementar nº 140/2011 e, por arrastamento, da integralidade da legislação. 15. Procedência parcial da ação direta para conferir interpretação conforme à Constituição Federal: (i) ao § 4º do art. 14 da Lei Complementar nº 140/2011 para estabelecer que a omissão ou mora administrativa imotivada e desproporcional na manifestação definitiva sobre os pedidos de renovação de licenças ambientais instaura a competência supletiva dos demais entes federados nas ações administrativas de licenciamento e na autorização ambiental, como previsto no art. 15 e (ii) ao § 3º do art. 17 da Lei Complementar nº 140/2011, esclarecendo que a prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ou autorização ambiental não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, desde que comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória. (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023) Importante destacar que também esta Corte já decidiu no sentido de que a competência será do órgão ambiental estadual nos casos em que o empreendimento está localizado fora de terra indígena. Confira-se: DIREITO ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. USINA HIDRELÉTRICA. LICENCIAMENTO. COMPETÊNCIA, EM REGRA, DE ENTIDADE ESTADUAL. CONSTRUÇÃO FORA DE TERRA INDÍGENA E IMPACTOS REGIONAIS INDIRETOS. COMPETÊNCIA FEDERAL TAXATIVAMENTE PREVISTA EM LEI E EM RESOLUÇÃO DO IBAMA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE JUSTIFIQUEM COMPETÊNCIA DA AUTARQUIA FEDERAL. SENTENÇA QUE ACOLHE ORIENTAÇÃO EM SENTIDO OPOSTO. APELAÇÃO. RECEBIMENTO SÓ NO EFEITO DEVOLUTIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM QUE SE PRETENDE TAMBÉM EFEITO SUSPENSIVO. PROVIMENTO. (...) 3. Emerge dos autos que a PCH Paranatinga II não está projetada em rio da União (o que, aliás, não seria determinante de competência do IBAMA para o licenciamento) e nem em terras indígenas, apenas encontrando-se a relativa distância de terras indígenas ("33,81 km da Terra dos Parabubure, 62,52 km da Marechal Rondon e 94,12 km do Parque Nacional do Xingu"). Também emerge claro que o impacto ambiental em outro Estado é indireto. A pouca potencialidade para atingir gravemente, mesmo de forma indireta, terras indígenas, uma região inteira ou outro Estado-membro pode ser deduzida do tamanho do lago (336,8 ha), área à qual foram reduzidos os 1.290 ha inicialmente previstos, questão esta não apreciada na sentença. 4. Algum impacto a construção da usina trará à bacia do Rio Xingu e a terras indígenas, mas esses impactos são indiretos, não afastando a competência da entidade estadual para o licenciamento. (...) justifica-se a competência do IBAMA quando o empreendimento esteja sendo desenvolvido em terras indígenas, não o que possa refletir sobre terras indígenas. O próprio juiz diz que há "prova irrefutável de que o empreendimento questionado nesta lide trará conseqüências ambientais e sociais para os povos e terras indígenas que lhe são próximos". (...) 6. Na Constituição as competências materiais da União vêm expressas (enumeradas), ficando para os Estados-membros e Distrito Federal as competências remanescentes, significando dizer que em regra (por exclusão das competências da União, taxativamente previstas) as competências são dos Estados-membros. Assim na Constituição, o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal. (...) 8. Provimento ao agravo de instrumento, com atribuição de efeito suspensivo à apelação. (TRF da 1ª Região. Processo Numeração Única: 0020981-75.2006.4.01.0000. AG 2006.01.00.020856-8 / MT; AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA. Órgão: QUINTA TURMA. Publicação: 09/11/2006 DJ P. 65. Data Decisão: 20/09/2006) Com efeito, vale destacar trechos relevantes do referido julgado: "(...) Assim, conforme se extrai da legislação supracitada, não seria o caso de competência do IBAMA para conduzir o licenciamento. Isso porque as atividades do empreendimento, embora estejam localizadas a relativa proximidade das comunidades indígenas mencionadas pelo Ministério Público Federal, não se situam em terras indígenas. (...) o empreendimento não está inserido em terras indígenas, estando dispensada a atuação do IBAMA com fundamento no disposto no inciso I do artigo 4º acima transcrito. (...) Portanto, a Lei Complementar nº 140/2011 veio reafirmar as regras de distribuição de competências trazidas pela Resolução nº 237/97 de forma que resta afastada a competência do IBAMA para licenciamento das atividades". Frise-se que não há qualquer alegação de insuficiência ou incapacidade técnica do órgão ambiental estadual do Amazonas para licenciar o empreendimento, o que justifica a manutenção da competência. Ao Ibama, no entanto, ainda que não tenha a competência para licenciar, remanesce um dever de vigilância, podendo impor condicionantes adicionais que julgue adequadas. Confira-se trecho do voto da Ministra Rosa Weber (fl. 85): Assim, considerando o empreendimento objeto da lide se encontra a cerca de 8 quilômetros dos limites de terras indígenas demarcadas, a competência para processar o licenciamento não é do ente federal. Nesse sentido, deve prevalecer o argumento do IBAMA no sentido de que "não compete ao IBAMA o licenciamento ambiental do projeto de mineração Potássio do Brasil por não se desenvolver ou estar localizado em terra indígena, regra prevista no artigo 7º, inciso XIV, alínea c, da Complementar n. 140/2011 como atribuição do ente federal, razão pela qual merece reforma a decisão atacada para definir a atribuição legal do IPAAM para conduzir o licenciamento ambiental em questão". Por fim, não há alegação de que alguma condicionante específica deveria ter sido exigida pelo IPAAM e não foi, o que poderia demandar a competência supletiva do IBAMA. Aparentemente, as condicionantes foram adequadas, consoante se extrai da leitura da Licença Prévia n. 54/15: Confira-se, expressamente, a existência das condicionantes indígenas: Vale ressaltar que o caso em questão em nada se assemelha com o julgado do STF no RE 1.379.751, caso do licenciamento da Usina de Belo Monte, uma vez que lá foi discutida a ausência de consulta aos povos indígenas afetados antes da edição do Decreto Legislativo 778, de 13 de julho de 2005, o qual autorizou o Poder Executivo a implantar o Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte, localizado em trecho do Rio Xingu, no Estado do Pará, antes da necessária oitiva às comunidades afetadas. Aqui houve a oitiva e foi realizada no momento adequado, como se expôs acima. Afora esse aspecto, no caso acima, não houve discussão sobre competência para licenciamento, uma vez que este coube ao IBAMA e não ao órgão ambiental do Pará. Tampouco existe similaridade com o que decidido pelo STJ no AgInt no REsp 1.390.476/PR, citado pelo voto divergente, em que expressamente se assentou que o licenciamento de terminal portuário seria do IBAMA e não do órgão ambiental por conta de diversos fatores, como a circunstância de que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva, nos termos do art. 7º, XIV, ‘a’, da LC 140/2011. Essa situação fática não está presente neste caso. Confira-se: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA. IBAMA. ATIVIDADE DE TERMINAL PORTUÁRIO QUE PODE CAUSAR SIGNIFICATIVO IMPACTO AMBIENTAL. CONTROVÉRSIA RESOLVIDA, PELO TRIBUNAL DE ORIGEM, À LUZ DAS PROVAS DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO, NA VIA ESPECIAL. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara Recurso Especial interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC/73. II. Na origem, "o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública (...) em face do Instituto Ambiental do Paraná e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, requerendo a declaração da competência do órgão ambiental federal - IBAMA, para que assuma a presidência do procedimento do licenciamento ambiental até então conduzido pelo órgão ambiental estadual (IAP), em virtude de manifesta incompetência deste órgão". O Tribunal de origem reformou a sentença, que havia reconhecido a competência do órgão estadual para o licenciamento ambiental. III. O entendimento firmado, à luz das provas dos autos, pelo Tribunal a quo - no sentido de que, "considerando que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva; que o empreendimento, por situar-se em área contígua a terras indígenas, trará impactos a essa comunidade; que serão afetados bens que apresentam relevância histórica e cultural e, por fim, que há potencial de dano ambiental de caráter regional, conclui-se que a competência para o licenciamento ambiental é do IBAMA, razão pela qual deve ser reformada a sentença que julgou improcedente a ação" - não pode ser revisto, pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial, sob pena de ofensa ao comando inscrito na Súmula 7 desta Corte. Precedentes do STJ. IV. Agravo interno improvido. (AgInt no REsp n. 1.390.476/PR, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 29/4/2020, DJe de 5/5/2020.) IV. A Reivindicação da Terra Indígena Soares/Urucurituba Como dito, o MPF propôs a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 na qual alega que omissão estatal na regularização fundiária de Terra Indígena Soares/Urucurituba, mesmo diante de robustas provas documentais e antropológicas que confirmariam a ocupação tradicional. A área encontra-se sob forte pressão devido à exploração de silvinita pela empresa Potássio do Brasil Ltda., que, segundo relatórios técnicos, ameaça o equilíbrio ambiental e o modo de vida das comunidades indígenas. O pedido se baseia na violação de direitos fundamentais dos povos indígenas e no risco iminente de danos irreversíveis ao meio ambiente e à preservação cultural. A FUNAI, apesar de reiterados ofícios e manifestações do MPF, não deu andamento ao processo demarcatório, acarretando prejuízos irreparáveis às comunidades tradicionais. O MPF requereu a suspensão deste processo para fins de aguardar o posicionamento da Diretoria de Proteção Territorial (DPT) Funai sobre o tema relativo a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Além disso, o MPF reiterou, de todo modo, o pedido anteriormente feito sobre a necessidade de suspensão de todo processo judicial, e consequentemente da consulta nos moldes da Convenção 169 da OIT, enquanto a questão prejudicial da demarcação da terra indígena Soares/Urucurituba não for definida pelo juízo. Com todas as vênias, entendo que essa pretensão não merece prosperar. A uma, pois já foi longamente exposto que, historicamente, a posição da FUNAI foi contrária à pretensão de demarcação daquela área (1419622747): Foi ainda devidamente assinalado que aquela área já havia sido estudada quando da delimitação dos limites da Terra Indígena Jauary, bem como que a área, apesar de conter alguns indígenas, também possui população ribeirinhas, o que pode inclusive levar a se concluir não ser Terra Tradicional. Confira-se novamente a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): A União também aduziu a inexistência de fumus boni iuris na petição de agravo protocolada no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000 (id. 274290019): Como aqui se está a examinar o feito em sede de cognição sumária, frente aos prejuízos que o atraso do projeto pode gerar para os objetivos estatais legítimos, é de se concluir que não se faz concretizada aparência legítima de direito a ponto de legitimar a suspensão. Se não se está diante de Terra Indígena demarcada, inclusive sequer limitada, estando o projeto em seu estágio inicial, não se pode presumir que seja Terra Indígena e, portanto, que haja necessidade de autorização do Congresso Nacional para o prosseguimento do empreendimento. Caso seja definido que se trata Terra Indígena, creio que será necessária a edição de autorização do Congresso Nacional, a qual deverá disciplinar a validade dos atos concretos praticados enquanto a demarcação ainda não havia sido concluída, consideradas, sobretudo, as peculiaridades do empreendimento expostas nos autos tais quais confirmadas no Estudo de Componente Indígena: Observe-se que no caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) vs. Argentina, de 2020, a CIDH assentou que “embora a Convenção não possa ser interpretada de modo a impedir que o Estado realize, por si ou por meio de terceiros, projetos e obras sobre o território, seu impacto não pode, em nenhum caso, privar os membros dos povos indígenas e tribais da capacidade de garantir sua própria sobrevivência.” Os dados acima sobre as características do projeto afastam, ao menos em juízo cautelar, qualquer receio de que possa haver impacto na garantia dos Mura e Ribeirinhos do Lago do Soares de prosseguir com o estilo de vida que hoje levam, tampouco garantir a sua subsistência. Não há nenhum indício de que exista a preocupação exposta pelo Ministro Alexandre de Moraes no sentido de que as terras indígenas próximas ao empreendimento serão tornadas “inóspitas, direta ou indiretamente, ou prejudica[rão] drasticamente a cultura e a qualidade de vida das populações indígenas que habitam a região" (RE 1.379.751/PA, Rel. Min. Alexandre de Moraes). A necessidade de estabelecimento de um regime de transição é uma compreensão do texto do art. 231, § 6º, da CF/88: Art. 231. [...] § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. Confiram-se, ainda, as conclusões apresentadas pelo DNPM (FL. 1.531 – id. 297015018): Cabe lembrar o art. 20 da Lei nº 6.001/1973: Art. 20. Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante enumerados, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, em área indígena, determinada a providência por decreto do Presidente da República. 1º A intervenção poderá ser decretada: a) para pôr termo à luta entre grupos tribais; b) para combater graves surtos epidêmicos, que possam acarretar o extermínio da comunidade indígena, ou qualquer mal que ponha em risco a integridade do silvícola ou do grupo tribal; c) por imposição da segurança nacional; d) para a realização de obras públicas que interessem ao desenvolvimento nacional; e) para reprimir a turbação ou esbulho em larga escala; f) para a exploração de riquezas do subsolo de relevante interesse para a segurança e o desenvolvimento nacional. 2º A intervenção executar-se-á nas condições estipuladas no decreto e sempre por meios suasórios, dela podendo resultar, segundo a gravidade do fato, uma ou algumas das medidas seguintes: a) contenção de hostilidades, evitando-se o emprego de força contra os índios; b) deslocamento temporário de grupos tribais de uma para outra área; c) remoção de grupos tribais de uma para outra área. 3º Somente caberá a remoção de grupo tribal quando de todo impossível ou desaconselhável a sua permanência na área sob intervenção, destinando-se à comunidade indígena removida área equivalente à anterior, inclusive quanto às condições ecológicas. 4º A comunidade indígena removida será integralmente ressarcida dos prejuízos decorrentes da remoção. 5º O ato de intervenção terá a assistência direta do órgão federal que exercita a tutela do índio. Assim, não há aparência de necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, não sendo caso de incidência do § 3º do art. 231 da CF/88. V. Conclusão Em face do exposto, ante a ausência de fumus boni iuris, dou provimento ao agravo de instrumento para, reformando a decisão agravada de id. 1769860076, considerar (i) válidos a consulta e o consentimento emanado pelo CIM, como representativo do Povo Mura de Autazes e, em consequência, o requisito da Convenção 169 da OIT; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciar o empreendimento e a validade de todos os atos até agora praticados; (iii) afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional e autorizar o prosseguimento do projeto. É como voto. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator [1] Id. 904360588. [2] Cf. file:///C:/Users/DS93/Downloads/wcms_205225.pdf. [3] Cf. https://ilo.primo.exlibrisgroup.com/discovery/delivery/41ILO_INST:41ILO_V2/126506 9900002676. PODER JUDICIÁRIO Processo Judicial Eletrônico Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 17 - DESEMBARGADORA FEDERAL KÁTIA BALBINO AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) n. 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO VISTA A EXMA. SRA. DESEMBARGADORA FEDERAL KATIA BALBINO: Pedi vista dos autos para melhor examinar as questões fático-jurídicas que motivaram a interposição do agravo de instrumento em apreço. De início, sem prejuízo de assinalar minha integral anuência com o voto do Relator quanto à relevância do Projeto Potássio-Autazes, entendo que as questões a serem dirimidas na insurgência perpassam apenas pelo juízo de adequação da decisão agravada ao contexto fático-processual que justificou a sua prolação. Feito o registro, cumpre também esclarecer que o recurso ora examinado foi interposto pelo Conselho Indígena Mura contra a decisão pela qual o juízo de origem, em caráter dispositivo, assim deliberou: “15. Pelo exposto, reitero decisões anteriores de que o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto Potássio é o IBAMA, reitero que exploração mineral em Terra Indígena depende de autorização do legislador constituinte (do Congresso Nacional) e que o IPAAM não é o órgão ambiental competente para o empreendimento que tem o poder de afetar o bioma, a biomassa, o estoque de carbono, a alteração de recursos hídricos da maior bacia nacional, e portanto tem o poder de gerar mudanças climáticas irreversíveis. 16. A Consulta aos povos indígenas afetados depende da vontade do povo, decorrente da sua autonomia de deliberar seus interesses diante desse e de qualquer empreendimento. Todavia, eventual resultado fica desde já suspenso enquanto não houver o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados na presente decisão. 17. Sem o mínimo início dos requisitos, não haverá inspeção judicial, a qual fica por ora suspensa, mas advirto que poderá ser remarcada em caso de violência ou indícios de violações que importem em ruptura da ordem. 18. Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Tal o contexto, o agravante confronta as seguintes diretrizes decisórias: i) suspensão do procedimento de consulta aos povos indígenas levada a efeito; ii) necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração da área em que se pretende realizar o empreendimento. Passo, assim, a analisar tais questões: - Da suspensão dos procedimentos de consulta – a perda do objeto do agravo de instrumento, quanto ao ponto. O exame dos autos indica que a decisão agravada foi proferida em 25/08/2023. Por outro lado, a leitura do referido comando permite a compreensão de que a questão referente à consulta aos povos indígenas foi abordada pelo juízo a quo por um prisma abstrato de sua validade, em perspectiva com os demais requisitos tidos como necessários para a exploração em litígio (autorização do Congresso Nacional e competência do IBAMA para o licenciamento). É dizer, a julgadora da origem não se manifestou de forma concreta sobre aspectos materiais e formais afetos à consulta que o agravante tem com validamente realizada, pontuando, isto sim, que a validade do referido procedimento deve ser examinada de forma contextualizada com os demais requisitos para a implementação do empreendimento. Tanto assim, que a parte final do comando censurado dispõe (destaquei em itálico): “Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Ocorre que, após a prolação do referido decisum, a magistrada que conduz o processo principal se debruçou de forma mais aprofundada sobre a questão referente à consulta aos povos indígenas e, nos termos da decisão ID 1913974193, proferida em 16.11.2023, consignou (destaques sublinhados acrescidos): “Diante de todo o tumulto (mediante coação, intimidações, pressões indevidas e oferecimento de vantagens) causado pelo CIM e por prepostos da empresa ré, conforme depoimentos colhidos e mencionados no parecer ministerial, defiro o pleito ministerial e determino a imediata suspensão do procedimento de licenciamento ambiental por parte do IPAAM, bem como o da consulta ilegítima realizada após desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta, bem como de qualquer ato de avanço dos trâmites para a implementação do empreendimento da empresa Potássio do Brasil S/A em Autazes, em razão dos vícios mencionados e dos riscos de conflitos e morte que a continuação dos trâmites do empreendimento minerário neste cenário acarretam ao povo Mura na região, ficando expresso que o juízo federal não confere qualquer validade à alteração esdrúxula do Protocolo construído de forma legítima por TODO O POVO MURA.” Como se vê, após a prolação da decisão agravada, o juízo a quo proferiu novo comando com caráter substitutivo do anterior, vindo a apresentar fundamentação mais aprofundada e amparada em elementos concretos sobre as razões de seu convencimento. Em outras palavras, a avaliação no plano concreto da consulta tida como realizada absorveu a deliberação anterior, esta fundada apenas em fatores afetos ao procedimento no plano abstrato. Assim, porque proferida decisão ulterior que a um só tempo incorporou e ampliou as razões contidas na decisão agravada, resulta demonstrada a perda do objeto do recurso tirado contra o aludido comando. Anoto, por fim, que tanto o MPF quanto a Funai já se manifestaram nos autos em sentido concorde com a compreensão ora externada (cf. ID 423687013 e ID 369353129). - Subsidiariamente, ao não conhecimento do recurso Ainda que se supere a questão preliminar já analisada, entendo que a decisão agravada deve ser mantida nos termos em que proferida, salientando, nesse ponto, que sua avaliação deve ser feita com base no exato sentido e alcance nela consignados. Melhor explicando, foi acima esclarecido que na decisão agravada o juízo a quo consignou que “eventual resultado” da consulta ficaria suspenso enquanto não houvesse “o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados” na decisão. Claro, portanto que, na decisão agravada, a julgadora de primeiro grau não empreendeu juízo de valoração da consulta efetivamente levada a efeito, tendo suspendido seus efeitos em razão da necessidade de observância concomitante de outros requisitos tidos como necessários para o licenciamento do empreendimento. Ocorre que a parte agravante não enfrentou de forma suficiente as razões externadas no comando recorrido, restringindo-se a defender a validade da consulta que alega já ter sido realizada, bem assim a desnecessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área em que será realizada a exploração mineral discutida na ação principal. Ora, a decisão agravada, como já afirmado, não positivou em nenhum momento a invalidade factual da consulta debatida (isso só foi feito na decisão posterior), tendo suspendido os respectivos efeitos em razão da necessidade de atendimento de outros requisitos que seriam com ela concorrentes. Um desses requisitos, a competência do Ibama para o licenciamento, não foi (e nem poderia ter sido, por ausência de legitimidade recursal) sequer objeto do presente agravo de instrumento. Assim sendo, ainda que superado o óbice relativo à perda do objeto do recurso, quanto ao ponto, este não pode ser conhecido, diante da ausência de enfrentamento da fundamentação decisória no sentido de que os efeitos da consulta somente poderiam ser efetivados em conjunto com o atendimento dos demais requisitos para a exploração da área, nomeadamente a autorização do Ibama. - Do exame residual do mérito da decisão agravada De todo modo, também na hipótese em que venha a ser desconsiderada a ausência de enfrentamento, pelo agravante, das razões decisórias, o recurso não deve ser provido. Com efeito, os documentos encartados no processo principal revelam uma evidente divisão entre as aldeias dos indígenas Mura, tratando-se de dissenso que compromete a conclusão pela validade do procedimento de consulta que neste agravo se tem como concretizado. Nesse sentido, tomando-se como exemplo a assembleia realizada em 21 e 22/09/2023, mencionada no voto do Exmo. Relator, temos que embora registrada em seu relatório a presença de diversos integrantes da comunidade Mura para debater sobre a implementação do projeto Potássio-Autazes, inclusive com a indicação de participação de cinco entidades representativas (CIM – Conselho Indígena Mura; OASIM – Organização dos Agentes de Saúde; OPIM – Organização dos Professores Indígenas Mura; OEIMA – Organização dos Estudantes Mira de Autazes; APIMA – Associação dos Produtores Indígenas Mura de Autazes), o referido documento foi subscrito por apenas quatro pessoas, dentre elas o coordenador geral do CIM (ora agravante) e um advogado. Inexiste, no documento, a indicação nominal de quem seriam as pessoas presentes no encontro, tendo sido mencionados, tão somente, o quantitativo dessas por aldeia. Também não há registro de ata assemblear, tampouco de subscrição, nesse ou em nenhum outro documento, da alegada aprovação majoritária para a implementação do projeto em debate nos autos principais. É dizer, a referência à aprovação do projeto consta apenas do relatório confeccionado após a assembleia, no qual não se identifica a assinatura da quase totalidade das pessoas que dela teriam participado. Por outro lado, como bem observado pelo Exmo. Relator, é certo que a efetivação da consulta às comunidades indígenas não pressupõe a anuência destas com o respectivo objeto. Todavia, a efetivação plena da consulta reclama a escuta efetiva das referidas comunidades, escuta essa que há de ser valorada em sua perspectiva substancial e não simplesmente formal. Nesse sentido, reportando-me mais uma vez ao voto do Relator, “[É] incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública.” Ocorre que o cenário dos autos não indica a realização dessa escuta efetiva do procedimento de consulta, este que, ao que se infere inclusive da divisão verificada entre os representantes da comunidade Mura, vinha sendo protagonizada, em um primeiro momento, pelo CIM (ora agravante), entidade que vem reiterada e insistentemente se manifestando pela implementação do Projeto Potássio-Autazes. Oportuno ser registrado que os autos principais indicam a adoção de diversos procedimentos tendentes à efetivação de um processo de consulta regular, mostrando-se plausível, neste momento de exame provisório do tema, a inferência de que muitos dos atos praticados sejam efetivamente válidos. Ocorre que o entendimento – precário – da validade de parte dos atos praticados não leva, obviamente, ao reconhecimento automático da validade de todo o processo de consulta. A propósito, em sua segunda decisão proferida sobre o tema a magistrada da origem refere-se à ocorrência de uma "desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta”, posicionamento indicativo de que, por sua ótica, o referido protocolo vinha sendo posto em prática de forma adequada, até que a partir de determinado momento veio a ser desconfigurado em sua essência e finalidade. Esse fato reforça, portanto, o posicionamento no sentido de que a validade de atos pretéritos do Protocolo de Consulta não pode induzir ao reconhecimento de sua validade como um todo. Isso posto, existem dúvidas no mínimo razoáveis acerca da legitimidade do procedimento sob enfoque, ao menos no que se refere à valoração do posicionamento divergente de parte significativa da comunidade Mura. Note-se que a validade (nos planos formal e substancial) desse procedimento tem como premissa a oitiva de todas as comunidades afetadas, levando-se em conta, no mais que possível, as peculiaridades de cada uma delas, além das razões que justificarem seus respectivos posicionamentos. Veja-se, em abono dessa conclusão, que a análise cartográfica 138/2023, juntada aos autos pela Funai e transcrita no voto do Relator, indica que o Projeto Potássio-Autazes encontra-se em distâncias diferentes das diversas comunidades afetadas, sendo que, especificamente em relação à “Aldeia Soares”, cujos representantes se posicionaram em sentido contrário ao do ora agravante, a indicação no mencionado documento é pela “sobreposição da área de influência” e pela distância de apenas 2,52 km entre a planta do projeto e a área em que situada a própria aldeia (a menor distância, ao que se infere, entre todas as comunidades afetadas). Na mesma linha, atente-se para o teor das seguintes passagens da decisão de ID 1913974193 dos autos principais, proferida após a decisão agravada: “O Povo Mura afetado pelo grande empreendimento Potássio, na forma do Protocolo legitimamente aprovado por sua totalidade de comunidades, sequer começou a ser consultado. Especialmente o Povo Mura da Comunidade Lago Soares, onde foi fincada a primeira perfuração para fins de pedido de concessão de lavra e licenças prévia, de instalação e de operação, o povo não foi ouvido em nenhuma das etapas da Consulta. Em inspeção judicial realizada por esta Magistrada, confirmei a tese dos autos de que é exatamente no Lago Soares que parte a pretensão de instalação do Projeto Potássio e essa comunidade não foi ouvida até a presente data, sendo ilegítima qualquer conclusão sem sua participação.” (...) “4.1. Alegam, o MPF, a organização OLIM CV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES, uma série de ilícitos em tese perpetrados pela empresa Requerida Potássio do Brasil. Defendem ocorrência de má fé, assédio, danos psicológicos, danos morais, coação manipulação e intimidação contra indígenas Mura. As alegações são de extrema gravidade e antes mesmo de ouvidos o MPF e a requerida, é dever do juízo adotar providências preliminares para determinar a imediata suspensão dos vícios, pois que a sua continuação pode gerar danos irreversíveis aos povos originários envolvidos, além da transfiguração do meio ambiente, cultura, tradição e do seu modo de vida. 4.2. As provas anexadas com a manifestação da parte interessada (OLIMCV e Comunidade Lago Soares) bem como aquelas referidas pelo MPF em seu Parecer, demonstram inclusive a presença do Presidente da Potássio do Brasil em reuniões com indígenas Mura, levando ideias destorcidas e contrárias ao ordenamento jurídico, além de descumprir claramente decisão constante de ata de audiência onde ficou consignado que a empresa não poderia praticar coação contra os indígenas. Desde a feitura do Protocolo, o Povo Mura assentou expressamente: "não queremos ser pressionados e coagidos". 4.3. São mais de 12 - doze- mil indígenas Mura afetados com o empreendimento, dos quais nem 1% chegou a participar da reunião onde correu uma lista de presença depois transfigurada em lista de aprovação, havendo clara pressão de cerca de dez indivíduos - alguns já identificados e ouvidos no Ministério Público Federal ( ID 1914447184 - Parecer) - no sentido de distorcer a realidade e retirar o direito de participação da imensa maioria dos indígenas nesse complexo processo de Consulta Livre e Informada. Conforme as provas anexadas, o indígena Cleber (ou Kleber) age como um doa encarregados de praticar coação e manipulação. A conduta pode vir a configurar crime, seja pelo 'modus operandi' de alteração da realidade fática e jurídica, seja por escarnecer as tradições culturais fixadas no Protocolo de Consulta ( lei 60001-73, art. 58, I). 4.4. Ainda, o senhor Kleber Mura vem afirmando que a empresa Potássio do Brasil LTDA. realizou uma promessa de pagamento de supostos royalties pela extração do minério em troca da aprovação do empreendimento, por parte das comunidades indígenas. Cumpre esclarecer que para que comunidades tradicionais ou indígenas recebam royalties por grandes empreendimentos exploradores em suas terras, é necessário primeiramente cumprir os passos da lei, não sendo faculdade de nenhuma empresa oferecer vantagens ou promessas de pagamentos, os quais já são fixados pelo legislador em casos de exploração mineral. Em síntese, na hipótese de futura operação licenciada do empreendimento, os roylties que eventualmente serão pagos decorrem de deliberação do legislador e não são mera faculdade da empresa Potássio do Brasil, a qual está causando tumulto, manipulação e pressão indevida em comunidade em situação de vulnerabilidade, o que deve cessar IMEDIATAMENTE. 4.5. Na manifestação trazida ao conhecimento do juízo, haveria indígena Mura recebendo 5 - cinco - mil reais da empresa Potássio, enquanto outros estariam recebendo 10 - dez- mil reais, tudo com o intuito de coagir e manipular as comunidades afetadas para o fim de aprovar o empreendimento, gerando uma confusão entre Consentimento Livre e Informado e licenciamento prévio, de licença de instalação e licença de operação, que a essa altura, estão fazendo parecer como um só fato jurídico quando são atos distintos. A transfiguração dos fatos jurídicos precisa imediatamente ser quebrada para evitar um dano irreversível aos povos originários, à sua cultura, modo de vida e tradição. 4.6. Dessa forma, diante de tanto vícios de consentimento explícitos, trazidos a juízo por indígenas Mura que habitam o principal Lago (Soares) a ser afetado pelo empreendimento, bem como pela organização OLIMCV, tudo isso faz-nos concluir que a tese manejada de ilegitimidade e nulidade do resultado de uma suposta consulta é inevitavelmente pertinente. Sem consulta válida, na forma do Protocolo definido POR TODO O POVO MURA ( e não por uma dúzia de pessoas com fortes indícios de estarem cooptadas) não há que falar em licença prévia válida. Isso porque a consulta depende da vontade livre do povo e decorre da sua autodeterminação em deliberar acerca de seus interesses diante de qualquer empreendimento que possa impactar seu modo de vida, conforma já definiu o STF. 4.7. Portanto, de imediato recebo a manifestação e o Parecer acima aduzidos, determino a manifestação de todas as partes em dez dias sobre o que entenderem pertinente e desde já adoto as deliberações abaixo para o fim de resguardar a dignidade e integridade do Povo Mura, alvo de um processo de coação, manipulação e intimidação. a) Determino a imediata suspensão de qualquer atitude de coação, manipulação, fraude, intimidação, ameaça, pressão e cooptação contra indígenas Mura, praticadas pela empresa requerida ou por quem quer que haja em seu mando. Fixo desde já multa de cem mil reais por cada dia de descumprimento da presente decisão, a contar da intimação da presente decisão. b) Fixo desde já multa de um milhão de reais a ser custeada pela Empresa Potássio do Brasil Ltda, pelo descumprimento dos deveres assumidos durante as audiências de conciliação perante o Juízo, em especial por realizar pressão indevida sobre o povo Mura com o comparecimento pessoal do seu presidente em reuniões internas das comunidades sobre o assunto tratado nos autos, o que já foi vedado pelo juízo. A multa incidirá sobre o dia de comparecimento do Presidente da Potássio, em reunião vedada pelo Protocolo de Consulta e será revertida a favor da Organização requerente e comunidade Lago Soares, pro rata.” A reforçar o posicionamento da julgadora que conduz o processo na origem, as cartas abertas juntadas nos ID 1914200677, 1914200678, 1914200679 indicam a discordância de várias aldeias com os rumos do procedimento. Da mesma forma, confira-se o que foi expressamente consignado no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Carneiro da Várzea (ID1914200682 dos autos principais): Trata-se, com efeito, de diretrizes contidas no Protocolo de Consulta construído para o exame do Projeto Potássio-Autazes. Pois em que pese a clareza dos termos acima transcritos, há no processo principal fortes indícios da participação ativa de “não-índios” no “processo de convencimento” da comunidade Mura (inclusive na assembleia realizada nos dias 21 e 22/08/2023), bem assim de que parte das lideranças não levou em conta, como deveria ter levado segundo as normas protocolares acima transcritas, a opinião do conjunto da comunidade indígena afetada. Com todo esse cenário, tenho que o exame realizado em sede de agravo de instrumento tirado contra uma decisão marcada por seu caráter de provisoriedade e de instrumentalidade para a bom desenrolar do processo, deve ser feito com a adoção de uma postura cautelosa quanto aos riscos do reconhecimento da validade do procedimento de consulta que está na berlinda, ante a irreversibilidade das medidas que eventualmente sejam tomadas com base nessa conclusão (no mínimo precipitada). Isso quer dizer que, diante das incertezas quanto à validade do caráter conclusivo da consulta, o Poder Judiciário deve assumir uma posição preventiva quanto aos possíveis prejuízos que venham a ser causados. Aqui tomando por empréstimo – e por analogia – o ensinamento Délton Winter de Carvalho, tenho como necessária a conclusão de que a alta probabilidade de comprometimento futuro de direitos fundamentais das comunidades indígenas afetadas pelo empreendimento em causa enseja a adoção das medidas preventivas necessárias – tais como as que adotadas pelo juízo de primeiro grau –, “a fim de evitar a concretização dos danos ou minimizar as consequências futuras daqueles já efetivados”. Não procede, portanto, a compreensão de que eventuais prejuízos futuros poderão ensejar indenização por perdas e danos, na medida em que a finalidade precípua da atuação jurisdicional em casos como o presente deve ser a de evitar que o dano ocorra e não simplesmente compensá-lo. Pensar diferente, com todas as vênias, seria abrir a caixa de Pandora para uma pletora de ilegalidades que poderiam ser cometidas sob o escudo de uma incerta indenização reparatória. Não bastasse tudo isso, a eventual validade das deliberações obtidas em assembleias realizadas sob a condução do CIM não pode, em princípio, vincular as comunidades que não são pelo referido conselho representadas. Assim, a eficácia de tais deliberações, para fins de reconhecimento da oitiva real de todas as comunidades afetadas, seria condicionada à obtenção de manifestações convergentes daquelas que não vinculadas ao agravante. Da necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da Terra Indígena – ausência de legitimidade recursal, quanto ao ponto Como já antecipado, a decisão agravada não empreendeu exame qualitativo da consulta que a parte agravante considera legítima, restringindo-se a suspender seus efeitos ante a necessidade de observância de requisitos externos ao referido procedimento. Dentre as externalidades mencionadas na decisão agravada, a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi invocada como pressuposto para a implementação do Projeto Potássio-Autazes, que tem como principal interessado os responsáveis pelo empreendimento. Ainda que se diga que a parte agravante teria algum interesse na implementação no projeto, pelos possíveis benefícios que ele poderia proporcionar, tal não significa que, processualmente, caiba a ela defender a sua concretização. A ilustrar esse entendimento, tome-se como exemplo a hipótese em que o órgão ambiental responsável pelo licenciamento apresente alguma condicionante para o seu deferimento. Diante de tal situação, caberá apenas à agravada Potássio do Brasil Ltda. questionar judicialmente o óbice levantado, falecendo ao Conselho nestes autos agravante legitimidade para o enfrentamento da hipotética decisão administrativa. Mutatis mutandis, é exatamente essa a situação ora analisada, pois a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi levantada como óbice para o licenciamento do projeto discutido, diante do entendimento que ele seria realizado em terras indígenas. Não cabe, portanto, ao Conselho Mura, defender aquilo que em última análise se mostra como de interesse da empresa, o que seja, a implementação de seu empreendimento econômico. Por outro lado, o Conselho agravante não representa a totalidade da Comunidade Mura, mas apenas parte dela, daí porque não possui legitimidade para se manifestar sobre os efeitos do empreendimento nas áreas não alcançadas por sua representação. Em resumo, não cabe ao CIM questionar a avaliação feita pelo juízo processante acerca da repercussão de um projeto empresarial do qual não faz parte, em áreas ocupadas por comunidades que não representa. A legitimidade recursal da agravante, portanto, em relação ao que é objeto do agravo de instrumento, está adstrita à validade de sua manifestação no procedimento de consulta, tema já analisado no tópico anterior deste voto. Conclusão Diante do exposto, julgo prejudicado o agravo de instrumento em relação à suspensão dos efeitos da consulta realizada, diante da prolação de decisão judicial posterior. Na hipótese de superação desse ponto preliminar, não conheço do agravo, por deficiência de fundamentação e, se também afastado esse obstáculo, nego provimento ao recurso. De outro modo, não conheço do agravo de instrumento no que se refere à necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área onde será implementado o projeto, por ausência de legitimidade recursal. Por fim, deixo de me manifestar acerca da questão relativa à competência para o licenciamento do empreendimento, por se tratar de tema estranho ao objeto da insurgência em apreço. É como voto. Desa. Federal KATIA BALBINO Relatora CARVALHO, DéltonWinter de. Dano Ambiental Futuro: A responsabilização Pelo Risco Ambiental. 2ª ed. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2013, pp. 187/202 PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 Processo Referência: 0019192-92.2016.4.01.3200 AGRAVANTE: CONSELHO INDIGENA MURA AGRAVADO: DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUCAO MINERAL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (PROCURADORIA), INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS - IBAMA, INSTITUTO DE PROTECAO AMBIENTAL DO AMAZONAS, POTASSIO DO BRASIL LTDA., FUNDACAO NACIONAL DO INDIO - FUNAI, UNIÃO FEDERAL, ESTADO DO AMAZONAS EMENTA DIREITO AMBIENTAL E DIREITOS INDÍGENAS. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSULTA PRÉVIA AO POVO INDÍGENA MURA. EXPLORAÇÃO MINERAL. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA ESTADUAL. RECONHECIMENTO DE CONSULTA VÁLIDA. PROSSEGUIMENTO DO PROJETO. 1. Agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura (CIM) contra decisão que suspendeu os efeitos da consulta ao povo indígena Mura sobre o Projeto Potássio Autazes, condicionando sua validade ao cumprimento de requisitos ambientais, legais e constitucionais, no bojo de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). 2. Pretensão do agravante de obter efeito suspensivo para reconhecer a validade da consulta realizada, conduzida pelo CIM, e afastar exigências relacionadas à autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas, bem como discutir a competência do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) no licenciamento ambiental do empreendimento. 3. O debate circunscreve-se às seguintes questões: (i) validade da consulta ao povo indígena Mura de Autazes, realizada com base no protocolo próprio; (ii) competência do IPAAM para o licenciamento ambiental do empreendimento; e (iii) necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, considerando a localização do projeto em área não demarcada como terra indígena. 4. Reconhecida a legitimidade do Conselho Indígena Mura (CIM) como entidade representativa das aldeias de Autazes para conduzir a consulta, nos termos da Convenção 169 da OIT, considerando que o processo observou protocolos definidos com acompanhamento judicial. A ausência de pronunciamento de outras comunidades não invalida a consulta, mas mantém a obrigação do Estado de dialogar continuamente com os povos afetados. A CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. 5. A competência do IPAAM para licenciamento ambiental foi reafirmada, uma vez que o empreendimento está localizado fora de terras indígenas demarcadas, observando-se os critérios da Lei Complementar nº 140/2011. A distância de poucos quilômetros entre o projeto e a terra indígena mais próxima não configura causa de deslocamento de competência ao IBAMA, o qual, no entanto, possui o dever de vigilância em relação ao licenciamento estadual. Não há dados que permitam concluir que o órgão ambiental estadual não tem a qualificação ou a estruturação necessária para proceder ao licenciamento, tampouco foram apontadas omissões nas condicionantes fixadas na Licença Prévia, que expressamente consideraram o componente indígena. 6. O STF, na ADI 4.757/DF, expressamente reconheceu a existência do "dever de vigilância da União quanto aos licenciamentos de responsabilidade dos Estados, cujas atividades ou empreendimentos possam causar impactos ambientais indiretos relevantes em áreas indígenas ou unidades de conservação. A exemplo, as atividades de mineração ou empreendimentos hidrelétricos, cujas poluições sonoras ou dos leitos de rios possam impactar a preservação adequada das referidas áreas." O STF acrescentou que, "[n]esse ponto, competirá, com efeito, à União averiguar as capacidades institucionais do órgão ambiental estadual para proceder com o licenciamento, em especial as condicionalidades para a emissão da licença, considerados esses impactos indiretos, que não raras vezes demandam alta espeficiação de instrumentos técnicos e de profissionais" (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023, p. 85 do acórdão). 7. A inexistência de terra indígena demarcada ou delimitada na área do empreendimento afasta a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, conforme art. 231, § 3º, da Constituição Federal, ainda que se instaure processo demarcatório, enquanto não concluído. 8. Agravo de instrumento provido para: (i) considerar válida a consulta realizada pelo CIM como representativo do povo indígena Mura de Autazes e considerar cumprida a obrigação de consultar; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciamento ambiental do empreendimento; (iii) afastar a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração no caso em análise; e (iv) autorizar o prosseguimento do projeto minerário, sem prejuízo de novas medidas para assegurar a proteção aos direitos indígenas e ambientais. ACÓRDÃO Decide a Sexta Turma, por maioria, dar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do voto do Relator. Brasília/DF, data e assinatura eletrônicas. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator
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