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Sionara Pereira
OAB/PR 17.118
SIONARA PEREIRA consta em registros encontrados pelo Causa Na Justiça como advogado.
ID: 326936642
Tribunal: TRF1
Órgão: Gab. 11 - DESEMBARGADOR FEDERAL MARCOS AUGUSTO DE SOUSA
Classe: APELAçãO CíVEL
Nº Processo: 0001436-83.2016.4.01.4004
Data de Disponibilização:
16/07/2025
Advogados:
HUMBERTO COLONNEZI JUNIOR
OAB/BA XXXXXX
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MAG SAY SAY DA SILVA FEITOSA
OAB/PI XXXXXX
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ALOISIO HERNANDES DE SOUZA FILHO
OAB/PI XXXXXX
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CARLIENE DA MOTA DIAS
OAB/PI XXXXXX
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ADALTON OLIVEIRA DAMASCENO
OAB/PI XXXXXX
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MARCOS VINICIUS MACEDO LANDIM
OAB/PI XXXXXX
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THIAGO FRANCISCO DE OLIVEIRA MOURA
OAB/PI XXXXXX
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EDNALDO DE ALMEIDA DAMASCENO
OAB/PI XXXXXX
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JOSE ADAILTON ARAUJO LANDIM NETO
OAB/PI XXXXXX
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DAVID PORTELA LOPES
OAB/PI XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 0001436-83.2016.4.01.4004 PROCESSO REFERÊNCIA: 0001436-83.2016.4.01.4004 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) POLO ATIVO: CARLOS GOMES DE OLIV…
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Processo nº 0008895-44.2012.4.01.3304
ID: 324023392
Tribunal: TRF1
Órgão: Gab. 11 - DESEMBARGADOR FEDERAL MARCOS AUGUSTO DE SOUSA
Classe: APELAçãO CíVEL
Nº Processo: 0008895-44.2012.4.01.3304
Data de Disponibilização:
14/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
ANTONIO BRUNO NEIVA DANTAS
OAB/BA XXXXXX
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JOEL DE SOUZA NEIVA JUNIOR
OAB/BA XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 0008895-44.2012.4.01.3304 PROCESSO REFERÊNCIA: 0008895-44.2012.4.01.3304 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) POLO ATIVO: JOEL DE SOUZA NEIVA …
JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 0008895-44.2012.4.01.3304 PROCESSO REFERÊNCIA: 0008895-44.2012.4.01.3304 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) POLO ATIVO: JOEL DE SOUZA NEIVA REPRESENTANTES POLO ATIVO: JOEL DE SOUZA NEIVA JUNIOR - BA21118-A e ANTONIO BRUNO NEIVA DANTAS - BA20738-A POLO PASSIVO:FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE e outros RELATOR(A):MARCOS AUGUSTO DE SOUSA PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO GAB. 11 - DESEMBARGADOR FEDERAL MARCOS AUGUSTO DE SOUSA Processo Judicial Eletrônico APELAÇÃO CÍVEL (198) 0008895-44.2012.4.01.3304 RELATÓRIO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL MARCOS AUGUSTO DE SOUSA, Relator: Trata-se de recurso de apelação interposto por Joel de Souza Neiva, em face da sentença proferida pelo Juízo da 2ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Feira de Santana/BA que, nos autos da ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Federal - MPF, julgou parcialmente procedente o pedido de condenação pela prática dos atos previstos nos arts. 10, caput e incisos I, XI e XII, e 11, caput, da Lei 8.429/1992, com a aplicação das sanções previstas no art. 12, II, da LIA (ID. 21011956, fls. 58/83). O apelante sustenta a ocorrência de prescrição, considerando que seu mandato se encerrou em 31/12/2004 e a ação somente foi ajuizada em 17/12/2012, portanto após o transcurso do prazo quinquenal previsto. Alega também a impossibilidade de devolução dos valores em razão da efetiva prestação dos serviços, o que configuraria enriquecimento ilícito por parte do município, caso houvesse condenação ao ressarcimento. Suscita a incompetência absoluta da Justiça Federal, sob o argumento de que as verbas repassadas foram incorporadas ao erário municipal, além de a União não integrar a lide. Preliminarmente, alega, ainda, que o indeferimento da prova pericial ensejou cerceamento de defesa, pois tal prova serviria para demonstrar que as obras foram devidamente executadas, em conformidade com o convênio. Argumenta que, conforme laudo pericial juntado aos autos, a obra foi efetivamente realizada, sendo necessária perícia de engenharia para confrontar o laudo produzido pela FUNASA. Ressalta que as provas produzidas, notadamente o relatório da CERB, o laudo técnico, as declarações dos beneficiários e as fotografias juntadas, comprovam que os banheiros foram construídos. Aduz, também, cerceamento de defesa em razão da ausência de retorno da carta precatória expedida para a oitiva de testemunhas, requerendo, por esse motivo, a anulação da sentença. Argumenta, ainda, que não houve apresentação das atas das audiências da Justiça do Trabalho, conforme deliberado em audiência, as quais comprovariam que a pessoa jurídica não responde a ação trabalhista, conforme alegado. Alega a nulidade da sentença em razão da ausência de chamamento dos membros da comissão de licitação à lide, por serem os responsáveis pela autorização de ingresso de pessoas jurídicas com o mesmo quadro societário no procedimento licitatório. No mérito, defende a inexistência de irregularidades em sua gestão, afirmando que as obras foram efetivamente realizadas e os recursos, devidamente aplicados nos objetos pactuados. Ressalta que tanto o convênio firmado com a FUNASA quanto o celebrado com a CERB foram integralmente cumpridos, com a construção das 127 unidades sanitárias previstas. Assevera que os profissionais responsáveis pela execução da obra foram pagos pela pessoa jurídica vencedora do certame e não pelo município, tendo sido contratadas pessoas da localidade por indicação do apelante, com o objetivo de reduzir custos e fortalecer a economia local. Argumenta que os pagamentos eventualmente realizados na sede da prefeitura, conforme constam dos depoimentos colhidos, não significam que tenham sido efetuados pelo município. Afirma que os funcionários contratados para a execução da obra, que prestaram declarações, foram pagos exclusivamente com recursos do Convênio 2452/01, e não com verbas do Convênio 128/02, objeto da presente ação. Alega inexistência de superfaturamento, prejuízo ao erário, inexecução total ou parcial das obras. Sustenta, ainda, que não houve direcionamento da licitação, tendo sido dada ampla publicidade ao certame, realizado na modalidade tomada de preços e não convite, de modo que não teria havido favorecimento à pessoa jurídica vencedora. Argumenta inexistência de culpa ou dolo do gestor, uma vez que não participou do procedimento licitatório e não possui vínculo com a pessoa jurídica contratada, tendo apenas homologado o certame. Defende haver divergência entre a condenação, que reconheceu apenas a execução de 25% da obra, e o laudo pericial, que atestou a realização de 66,75% da obra, razão pela qual entende ser indevido o valor exigido a título de ressarcimento, o qual deveria ser reduzido. Alega, também, que a condenação imposta pelo Tribunal de Contas da União configura bis in idem. Por fim, afirma não estarem presentes os elementos objetivos e subjetivos caracterizadores do ato ímprobo, uma vez que não agiu com dolo nem houve prejuízo ao erário. Questiona, ainda, a desproporcionalidade das sanções aplicadas. Subsidiariamente aos pedidos de anulação, requer a reforma da sentença para julgar improcedente o pedido ou, ao menos, para excluir a sanção de ressarcimento ao erário que lhe foi imposta (ID. 21011956, fls. 128/178). Contrarrazões (ID. 21011956, fls. 185/200). O Ministério Público Federal (PRR1) opina pelo não provimento da apelação (ID. 21011956, fls. 213/229). É o relatório. Desembargador Federal MARCOS AUGUSTO DE SOUSA Relator PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO GAB. 11 - DESEMBARGADOR FEDERAL MARCOS AUGUSTO DE SOUSA Processo Judicial Eletrônico APELAÇÃO CÍVEL (198) 0008895-44.2012.4.01.3304 VOTO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL MARCOS AUGUSTO DE SOUSA, Relator: 1. PRELIMINARES 1.1. Incompetência da Justiça Federal Preliminarmente, o apelante sustenta que os recursos públicos repassados foram incorporados ao patrimônio municipal, e por tal razão é incompetente a Justiça Federal para o processamento e julgamento do feito. Acerca do tema, o STJ definiu o seguinte, transcrevo: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA INSTAURADO ENTRE JUÍZOS ESTADUAL E FEDERAL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA AJUIZADA POR ENTE MUNICIPAL EM RAZÃO DE IRREGULARIDADES EM PRESTAÇÃO DE CONTAS DE VERBAS FEDERAIS. MITIGAÇÃO DAS SÚMULAS 208/STJ E 209/STJ. COMPETÊNCIA CÍVEL DA JUSTIÇA FEDERAL (ART. 109, I, DA CF) ABSOLUTA EM RAZÃO DA PESSOA. AUSÊNCIA DE ENTE FEDERAL EM QUALQUER DOS POLOS DA RELAÇÃO PROCESSUAL. JURISPRUDÊNCIA DO STJ. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. 1. No caso dos autos, o Município de Água Doce do Maranhão/MA ajuizou ação de improbidade administrativa contra José Eliomar da Costa Dias, em razão de irregularidades na prestação de contas de verbas federais decorrentes de convênio firmado com o PRONAT. 2. A competência para processar e julgar ações de ressarcimento ao erário e de improbidade administrativa, relacionadas à eventuais irregularidades na utilização ou prestação de contas de repasses de verbas federais aos demais entes federativos, estava sendo dirimida por esta Corte Superior sob o enfoque das Súmulas 208/STJ ("Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita à prestação de contas perante órgão federal") e 209/STJ ("Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal"). 3. O art. 109, I, da Constituição Federal prevê, de maneira geral, a competência cível da Justiça Federal, delimitada objetivamente em razão da efetiva presença da União, entidade autárquica ou empresa pública federal, na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes na relação processual. Estabelece, portanto, competência absoluta em razão da pessoa (ratione personae), configurada pela presença dos entes elencados no dispositivo constitucional na relação processual, independentemente da natureza da relação jurídica litigiosa. 4. Por outro lado, o art. 109, VI, da Constituição Federal dispõe sobre a competência penal da Justiça Federal, especificamente para os crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, entidades autárquicas ou empresas públicas. Assim, para reconhecer a competência, em regra, bastaria o simples interesse da União, inexistindo a necessidade da efetiva presença em qualquer dos polos da demanda. 5. Nesse contexto, a aplicação dos referidos enunciados sumulares, em processos de natureza cível, tem sido mitigada no âmbito deste Tribunal Superior. A Segunda Turma afirmou a necessidade de uma distinção (distinguishing) na aplicação das Súmulas 208 e 209 do STJ, no âmbito cível, pois tais enunciados provêm da Terceira Seção deste Superior Tribunal, e versam hipóteses de fixação da competência em matéria penal, em que basta o interesse da União ou de suas autarquias para deslocar a competência para a Justiça Federal, nos termos do inciso IV do art. 109 da CF. Logo adiante concluiu que a competência da Justiça Federal, em matéria cível, é aquela prevista no art. 109, I, da Constituição Federal, que tem por base critério objetivo, sendo fixada tão só em razão dos figurantes da relação processual, prescindindo da análise da matéria discutida na lide (excertos da ementa do REsp 1.325.491/BA, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/06/2014, DJe 25/06/2014). 6. Assim, nas ações de ressarcimento ao erário e improbidade administrativa ajuizadas em face de eventuais irregularidades praticadas na utilização ou prestação de contas de valores decorrentes de convênio federal, o simples fato das verbas estarem sujeitas à prestação de contas perante o Tribunal de Contas da União, por si só, não justifica a competência da Justiça Federal. 7. O Supremo Tribunal Federal já afirmou que o fato dos valores envolvidos transferidos pela União para os demais entes federativos estarem eventualmente sujeitos à fiscalização do Tribunal de Contas da União não é capaz de alterar a competência, pois a competência cível da Justiça Federal exige o efetivo cumprimento da regra prevista no art. 109, I, da Constituição Federal. 8. Igualmente, a mera transferência e incorporação ao patrimônio municipal de verba desviada, no âmbito civil, não pode impor de maneira absoluta a competência da Justiça Estadual. Se houver manifestação de interesse jurídico por ente federal que justifique a presença no processo, (v.g. União ou Ministério Público Federal) regularmente reconhecido pelo Juízo Federal nos termos da Súmula 150/STJ, a competência para processar e julgar a ação civil de improbidade administrativa será da Justiça Federal. 9. Em síntese, é possível afirmar que a competência cível da Justiça Federal, especialmente nos casos similares à hipótese dos autos, é definida em razão da presença das pessoas jurídicas de direito público previstas no art. 109, I, da CF na relação processual, seja como autora, ré, assistente ou oponente e não em razão da natureza da verba federal sujeita à fiscalização da Corte de Contas da União. Precedentes: AgInt no CC 167.313/SE, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 11/03/2020, DJe 16/03/2020; AgInt no CC 157.365/PI, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/02/2020, DJe 21/02/2020; AgInt nos EDcl no CC 163.382/PA, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/11/2019, DJe 07/05/2020; AgRg no CC 133.619/PA, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/05/2018, DJe 16/05/2018. 10. No caso dos autos, não figura em nenhum dos pólos da relação processual ente federal indicado no art. 109, I, da Constituição Federal, o que afasta a competência da Justiça Federal para processar e julgar a referida ação. Ademais, não existe nenhuma manifestação de interesse em integrar o processo por parte de ente federal e o Juízo Federal consignou que o interesse que prevalece restringe-se à órbita do Município autor, o que atrai a competência da Justiça Estadual para processar e julgar a demanda. 11. Agravo interno não provido. (AgInt no Conflito de Competência 174.764/MA, Primeira Seção, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Dje 17/02/2022.) Logo, considerando que nas ações de improbidade a competência da Justiça Federal é definida em razão da presença das pessoas jurídicas de direito público previstas no art. 109, I, da Constituição Federal, assim como a do MPF (Precedente: AC 1001696-51.2017.4.01.3700), e não em razão da natureza da verba federal sujeita à fiscalização do Tribunal de Contas da União ou da incorporação da verba pelo Município, deve ser afastada a preliminar. 1.2. Prescrição Nos termos do art. 23, I, da Lei 8.429/1992 (antes da alteração promovida pela Lei 14.230/2021), nos casos de ato de improbidade imputado a agente público no exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança, o prazo para ajuizamento da ação era de 5 (cinco) anos, contados do primeiro dia após o término do exercício do mandato ou afastamento do cargo, momento em que ocorre o término ou cessação do vínculo temporário estabelecido com o poder público. Segundo entendimento consagrado pelo STJ, nos casos de reeleição, o prazo prescricional somente é contado a partir do encerramento do segundo mandato. Isso porque, apesar de serem mandatos distintos, há continuidade no exercício da função pública pelo agente público (REsp 1.107.833/SP, STJ, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 18/09/2009). Considerando que o apelante foi reeleito e seu segundo mandato se encerrou apenas em 31/12/2008, e que foi ajuizada a presente ação em 17/10/2012, ou seja, antes de transcorrido o prazo prescricional, deve ser rejeitada a alegação de prescrição. 1.3. Cerceamento de defesa O apelante sustenta a ocorrência de cerceamento de defesa em virtude do indeferimento da produção de prova pericial, do julgamento do feito antes do retorno da carta precatória expedida para a oitiva de testemunhas e ausência de juntada das atas das audiências trabalhistas, conforme anteriormente deliberado. Sucede que, ao magistrado é facultado o indeferimento da produção de provas que julgar inúteis ou protelatórias (art. 370 do CPC). Em que pese os argumentos trazidos pelo recorrente, entendo que a sentença recorrida não merece reparos, dado que os princípios do livre convencimento do juiz e da livre apreciação das provas permitem ao órgão julgador examinar e valorar livremente as provas constantes dos autos e, assim, formar a sua convicção. Ademais, a jurisprudência é pacífica no sentido de que a ausência de devolução da carta precatória não impede o julgamento da causa, sobretudo quando transcorrido o prazo para seu cumprimento, entendimento que se aplica inclusive no âmbito do processo penal (Precedente do STJ: HC 388.688/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 17/04/2017). Ante tais considerações, concluo que não há cerceamento de defesa quando a sentença está devidamente fundamentada, pois cabe ao julgador avaliar, conforme já dito, a necessidade de produção de provas, para o fim de formar o seu convencimento. 1.4. Chamamento ao processo O recorrente pleiteia o chamamento ao processo dos membros da comissão de licitação, argumentando que foram eles os responsáveis pelas irregularidades apontadas no procedimento licitatório. Sucede que não há litisconsórcio passivo necessário com os representantes da comissão de licitação, uma vez que o referido instituto apenas se configura por disposição legal ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos aqueles que devam integrar o polo passivo, nos termos do art. 114 do CPC. No presente caso, observo que, na descrição dos fatos, não foram objetivamente apontados pelo autor indícios mínimos de eventual participação dolosa dos membros da comissão de licitação. Assim, ainda que, em tese, se cogitasse uma eventual conexão probatória quanto à participação dos referidos membros, não há como se falar, sobretudo após encerrada a instrução processual, em litisconsórcio necessário. Ressalto que, tratando-se de agentes públicos, o autor poderá, em tese, demandar autonomamente contra tais indivíduos. Ademais, a responsabilização do gestor municipal, no caso em apreço, decorre de sua posição de comando e supervisão, não sendo elidida pelo fato de as análises técnicas dos documentos licitatórios terem sido realizadas pela comissão. O entendimento jurisprudencial consolidado no STJ é no sentido de que, nas ações civis por improbidade administrativa, não se exige a formação de litisconsórcio passivo necessário entre o agente público e os eventuais terceiros beneficiários ou participantes, diante da ausência de previsão legal e da inexistência de relação jurídica que obrigue o juízo a decidir de modo uniforme a lide (Precedentes: REsp 1.782.128/RJ e REsp 1.696.737/SP). Dessa forma, inexistindo previsão legal que imponha a inclusão, na mesma lide, de todos os agentes públicos supostamente responsáveis pelo ato ímprobo e, além disso, sendo possível que os eventuais coautores sejam responsabilizados em ação própria pelos mesmos fatos, não há que se falar em litisconsórcio passivo necessário entre o prefeito e os membros da comissão de licitação. Consequentemente, não se configura qualquer nulidade da sentença ou do processo, devendo a preliminar ser rejeitada, com o regular prosseguimento da análise do mérito da ação de improbidade administrativa. Deste modo, devem ser rejeitadas as preliminares. 2. MÉRITO Consta, em síntese, que foi firmado o Convênio 67/2001 entre o Ministério da Saúde e o Estado da Bahia, com o objetivo de implementar ações de saneamento básico em diversos municípios. No âmbito deste convênio, celebrou-se o Subconvênio 128/2002 entre o Município de Conceição do Almeida/BA e a CERB, tendo sido apuradas supostas irregularidades na licitação correspondente, especialmente pela ausência de competitividade, já que as duas empresas participantes tinham o mesmo sócio-administrador. Também não teria sido exigida comprovação de qualificação técnica e econômico-financeira. Também se sustenta que embora a empresa contratada tenha recebido integralmente o valor do contrato, os serviços teriam sido executados por servidores do próprio município, sendo a obra considerada inacabada. Na sentença, o Juízo a quo asseverou que: (…) 1.2.a) Da fraude ao procedimento licitatório (…) Vê-se, pois, que não houve propriamente competição, porquanto os participantes sabiam, previamente, o valor das propostas apresentadas à Administração. Nesse ponto, importante notar que, embora a lesividade ao patrimônio público seja presumida por violação ao princípio da competitividade, certo é que seu conceito difere de erário, o qual consubstancia o conjunto de bens e interesses de natureza econômico-financeira pertencentes ao Poder Público. Patrimônio público, diferentemente, é o conjunto de bens e interesses de natureza moral, econômica, estética, artística, histórica, ambiental e turística pertencentes ao Poder Público. (…) Assim, eventual invalidade do procedimento licitatório, notadamente nos casos em que não houve efetiva competição, induz à nulidade do contrato que lhe seguiu, sendo certo que o próprio legislador somente autorizou a indenização do contratado pelos prejuízos regularmente por ele despendidos, de modo que a interpretação que se pode extrair do dispositivo é que ilícito, por não ter justa causa, o pagamento de valores que superem o valor despendido pelo contratado, no que se inclui a margem de lucro. Na hipótese vertente, a petição inicial não cuidou de fazer tais digressões. Em sendo esse o quadro que se apresenta, a conduta do gestor de recursos públicos não deve ser enquadrada no artigo 10, VIII, da Lei de Improbidade Administrativa, mas sim naquela prevista em seu artigo 11, caput (…) L2.6) Do desvio de recursos públicos (…) Corno se vê, houve o descumprimento do plano de trabalho, tendo a área técnica concluído pela execução de apenas 25% da obra. Saliento, ainda, que a prova testemunhal produzida em juízo não tem o condão de infirmar a conclusão acima, notadamente porque não sabiam as testemunhas o plano de trabalho e, portanto, desconheciam as especificações técnicas da obra realizada. Em petição de fls. 1.033/1.037, o requerido noticia a existência de fato novo consistente na condenação do Estado da Bahia e da CERB pelo Tribunal de Contas da União a restituírem os valores referentes às parcelas relativas ao convênio ora em análise e que, portanto, essa responsabilidade recai sobre eles e não sobre o réu. Ora, o Acórdão lavrado pelo TCU, assim como não serve, por si só, à prolação da sentença condenatória, não pode ser considerado para afastar a responsabilidade do gestor, apenas consistindo no produto da atividade cognitiva humana em face de determinadas evidências materiais. (…) Assim, Joel de Souza Neiva incorreu na conduta prevista no art. 10, caput e incisos I, XI e XII da Lei de Improbidade Administrativa (…) O autor civil público também argumenta que houve o desvio integral dos recursos do convênio sob o fundamento de que as obras foram realizadas por funcionários da própria prefeitura e que, portanto, a quantia paga à vencedora do certame foi indevida. Todavia, o Parquet Federal não se desicumbiu do ônus de provar, com o grau de certeza necessário à prolação de decreto condenatório dessa natureza, que os trabalhadores que levantaram a obra no bairro da Estação eram, de fato, vinculados à Prefeitura. Inclusive, consta de alguns desses depoimentos que "sempre aparecia na obra DA ESTAÇÃO um cidadão que era identificado por Dr. ANDRÉ, que seria o responsável pela firma que estaria realizando o serviço DA ESTAÇÃO" (depoimentos de PAULO OTONIEL e CARLOS ALBERTO LOPES DOS SANTOS, Apenso II). Não se pode negar, a partir da leitura dos depoimentos extrajudiciais colacionados aos autos, que os pagamentos, a partir de um determinado momento, passaram a ser feitos na sede da prefeitura, o que, embora possa configurar indício do quanto alegado, não é prova cabal do alegado desvio nos moldes aqui analisados. Da mesma forma, o Parquet Federal não comprovou que os acordos firmados pelo Município de Conceição do Almeida são atinentes a demandas trabalhistas decorrentes do labor exercido nas obras de melhorias sanitárias do bairro da Estação, sendo certo que também se encontravam andamento obras nos bairros do Andu, Entrocannento e Ponte Seca, não abrangidos pela avença objeto da presente demanda. Assim, o dano ao erário corresponde a 75% do valor do contrato, que corresponde R$ 129.081,24 (cento e vinte e nove mil e oitenta e um reais e vinte e quatro centavos), que deverá ser devidamente atualizado. (…). Analisando a questão, verifico que a presente ação foi proposta ainda sob a redação original da Lei 8.429/1992, antes das alterações introduzidas pela Lei 14.230/2021, podendo esta ser aplicada às hipóteses anteriores à sua vigência, em circunstâncias específicas, respeitadas as balizas estabelecidas pelo STF no julgamento do ARE 843.989/PR, com repercussão geral (Tema 1.199). O STF, no mencionado julgamento, fixou, dentre outras, as seguintes teses após exame da Lei 14.230/2021: 1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; (...). Do que se extrai, pois, do entendimento fixado pelo STF, pode-se concluir, primeiramente, que a nova lei exige que o elemento subjetivo “dolo” seja demonstrado nos tipos legais descritos nos arts. 9º, 10 e 11. Segundo, que a lei nova revogou a ação de improbidade na modalidade culposa trazida no antigo artigo 10 (dano ao erário - único que até então admitia a condenação também por culpa), em caráter irretroativo. No entanto, essa revogação não alcançará ações, iniciadas sob a égide da Lei 8.429/1992, que tiverem transitado em julgado. Cabe destacar, por oportuno, que o STF nada dispôs sobre a questão alusiva à revogação de alguns tipos da anterior Lei 8.429/1992, nem quanto às alterações introduzidas pela nova lei em certos tipos legais, até porque não era objeto do RE 843.989/PR. Não obstante, pode-se inferir, numa interpretação lógico-sistemática, ser possível a aplicação do princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao réu, previsto no art. 5º, XL, da CF, aos casos em que houve revogação ou modificação de tipos legais, para as ações ainda em curso, a exemplo do quanto admitido para aquelas originadas por atos de improbidade culposos. O STJ, por sua vez, entendeu recentemente ser possível a aplicação da Lei 14.230/2021, com relação à exigência do dolo específico para a configuração do ato ímprobo, aos processos em curso. Precedente: REsp 2.107.601/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 02/05/2024. Destaque-se, ainda, que o artigo 1º, § 4º, da nova lei expressamente estabelece a aplicação ao sistema da improbidade dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador, os quais incidem retroativamente em benefício da parte ré. 2.1. ATO ÍMPROBO PREVISTO NO ART. 10 DA LIA O apelante foi condenado pela prática das condutas previstas no art. 10, caput e incisos I, XI e XII, da LIA, que, antes das alterações introduzidas pela Lei 14.230/2021, se encontrava expresso nos seguintes termos: Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: I - facilitar ou concorrer por qualquer forma para a incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei; (...) XI - liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular; XII - permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente; (...). Com a redação dada pela nova lei, o dispositivo ficou assim redigido: Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente: I - facilitar ou concorrer, por qualquer forma, para a indevida incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de bens, de rendas, de verbas ou de valores integrantes do acervo patrimonial das entidades referidas no art. 1º desta Lei; (...) XI - liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular; XII - permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente; (...). No caso sob exame, a imputação de dano ao erário fundamenta-se na execução da obra em desacordo com o plano de trabalho previsto no convênio, bem como na suposta inexecução do objeto pela contratada, tendo em vista a alegada utilização da força de trabalho de servidores da Prefeitura Municipal. Conforme consignado na sentença, embora tenha sido constatada a inexecução parcial do convênio, bem como divergências em relação ao plano de trabalho, não restou devidamente comprovada a efetiva utilização da mão de obra de funcionários do município na execução das obras. Verificou-se apenas que a sede da prefeitura teria sido utilizada pela pessoa jurídica contratada como local para o pagamento dos profissionais por ela mesmos contratados e remunerados. Dessa forma, ainda que o gestor tenha se omitido quanto à fiscalização da execução do convênio antes de autorizar o pagamento integral, não há nos autos provas da existência de dolo por parte do apelante com o intuito de causar prejuízo ao erário ou de favorecer terceiros. Ademais, não foram identificados elementos que apontem a ocorrência de superfaturamento, sobrepreço ou apropriação indevida de recursos públicos, ainda que tenha havido direcionamento da licitação. Não se evidencia a existência de dolo específico ou de má-fé por parte do ex-gestor, havendo apenas o descumprimento de procedimentos legais, o que, embora reprovável, não se reveste, por si só, dos elementos configuradores do ato ímprobo, notadamente a intenção deliberada de causar lesão ao patrimônio público. Assim, ainda que reprováveis sob a perspectiva da legalidade e da moralidade administrativa, as condutas identificadas não preenchem os requisitos para a configuração do ato de improbidade previsto no art. 10 da Lei 8.429/1992, em razão da ausência de dolo específico voltado à lesão do patrimônio público. Ademais, é de conhecimento geral que o sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa visa proteger a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de garantir a integridade do patrimônio público e social, nos termos da lei. A jurisprudência também é firme no sentido de que a improbidade administrativa não se confunde com a mera ilegalidade do ato ou a inabilidade do agente público que o pratica, porquanto o ato ímprobo, além de ilegal, é pautado pela desonestidade, deslealdade funcional e má-fé. A propósito: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DISPENSA DE LICITAÇÃO. PROGRAMA DE ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA. SUPERFATURAMENTO NÃO EVIDENCIADO. PROGRAMA PAB FIXO. APLICAÇÃO DE RECURSOS EM PROCEDIMENTOS DE MÉDIA E ALTA COMPLEXIDADE. IRREGULARIDADE. NÃO COMPROVAÇÃO DE DANO AO ERÁRIO. DOLO NÃO DEMONSTRADO. PRELIMINAR DE PRESCRIÇÃO AFASTADA. PROVIMENTO DAS APELAÇÕES. SENTENÇA REFORMADA. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO. (...) 7. Não há nos autos demonstração de inexecução do objeto do Programa, ou de danos efetivos aos cofres públicos. Os fatos expressam meras desconformidades formais licitatórias, sem propósitos malsãos, o que configura uma atipicidade administrativa que não teve, nas circunstâncias do caso, o condão de assumir o qualificativo de ato de improbidade administrativa, que pressupõe má-fé e desonestidade do agente no trato da coisa pública, o que não ficou comprovado. 8. O fato de terem sido apurados, pela CGU, em relação a alguns itens confrontados, valores menores do que os praticados pela farmácia contratada, não comprova ipso facto a existência de superfaturamento: não há evidências de fraude na coleta de preços, mediante combinação e/ou ajuste entre os demandados, com o dolo de causar enriquecimento ilícito, desvio de verbas ou perda patrimonial efetiva. 9. Ao autor competia, em prova pericial, demonstrar que os preços oficiais, nos quais se baseou a Controladoria, deveriam ser amplamente utilizados e, ainda, que os valores orçados pelo estabelecimento farmacêutico teriam sido inadequados ou incompatíveis com os preços praticados no mercado (levando-se em conta o fato de o município estar localizado fora da região metropolitana). 10. No que diz com a imputação de conduta ímproba ao ex-prefeito em razão da aplicação das verbas do Programa de Atendimento Básico - PAB em despesas não elegíveis (serviços de média e alta complexidade), embora o fato seja indicativo de irregularidade formal, não comprova a existência de improbidade, à míngua de demonstração de dano. Não obstante a impropriedade vê-se que restou mantida a destinação pública de tais recursos, uma vez que aplicados em benefício da população. 11. A ausência de registro do nome dos pacientes e dos exames efetuados nas notas fiscais expedidas e nos respectivos empenhos afeiçoa-se à mera irregularidade, que não se eleva à categoria de atos de improbidade administrativa, mormente porque não evidenciada a prática de conduta dolosa. 12. Não se pode confundir meras faltas administrativas com as graves faltas sujeitas às severas sanções da Lei n. 8.429/92, aplicadas apenas quando a atuação do administrador destoe nitidamente dos princípios que regem a Administração Pública, em especial, a legalidade e a moralidade, transgredindo os deveres de retidão e lealdade ao interesse público. Todo ato ímprobo é um ato ilícito, irregular, mas nem todo ato ilícito ou irregular constitui ato de improbidade. 13. Os relatórios da CGU têm muita importância como início de prova, para dar base à propositura da ação, mas, documentos unilaterais elaborados sem os auspícios do contraditório, por si só, não são aptos (em princípio) a conduzir a uma condenação por atos de improbidade, devendo, mesmo como peças administrativas revestidas de presunção juris tantum de legitimidade, receber o apoio de outros meios de prova, que não foram produzidos. 14. Tal como ocorre na ação penal, onde a insuficiência de provas leva à absolvição (art. 386, VII - CPP), o mesmo deve suceder na ação de improbidade administrativa, dado o estigma das pesadas sanções previstas na Lei n. 8.429/92, econômicas e políticas, e até mesmo pela dialética do ônus da prova. 15. Preliminar de prescrição afastada. Apelações providas. Sentença reformada. Improcedência (in totum) da ação. (AC 0027450-02.2009.4.01.3600, TRF1, Quarta Turma, Rel. Des. Fed. Olindo Menezes, e-DJF1 20/04/2023.) Dessa forma, constatada a ausência de dolo específico, elemento indispensável à configuração do ato de improbidade administrativa, não se verifica a prática da conduta tipificada no art. 10 da LIA. 2.2. ATO ÍMPROBO PREVISTO NO ART. 11 DA LIA O apelante também foi condenado pela prática do ato previsto no art. 11, caput, da LIA, que, antes das alterações levadas a efeito pela Lei 14.230/2021, se encontrava expresso nos seguintes termos: Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: (...). Com a nova redação, o mencionado dispositivo ficou assim redigido: Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas: (...). Ocorre que inexiste hoje a possibilidade de enquadramento da conduta somente no caput do art. 11, porque tal dispositivo, isoladamente, não traz em si nenhum ato ou conduta que possa ser considerada ímproba e, portanto, só existe se vinculado a algum de seus incisos. Precedentes do TRF 1ª Região: AC 0011428-36.2009.4.01.3900, AC 0004242-33.2016.4.01.3312 e EDAC 0003493-86.2016.4.01.4000. Cabe asseverar que os incisos do art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa, após o advento da Lei 14.230/2021, passaram a ostentar caráter taxativo e não meramente exemplificativo como anteriormente, de sorte que a configuração da improbidade por violação aos princípios da administração pública somente ocorrerá ante a perfeita subsunção do fato específico aos tipos legais. Nesse contexto, esta Corte, em casos de condenação pelo art. 11, caput e seus incisos revogados, tem assim se posicionado: DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR. AFASTAMENTO DAS CONDUTAS CULPOSAS. ART. 11, CAPUT. REVOGAÇÃO. CONDUTA INEXISTENTE. DECISÃO AGRAVADA MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO. A Lei 8.429/1992, alterada pela Lei 14.230/2021, passou a vigorar na data da sua publicação, em 26/10/2021. As controvérsias em torno da aplicação imediata das novas disposições legais devem ser analisadas em relação às questões de natureza processual e material. Às questões de ordem processual são aplicáveis as leis em vigor no momento em que prolatado o decisum na instância a quo, em obediência ao princípio tempus regit actum (art. 14 do CPC e, por analogia, art. 2º do CPP). Já às questões de natureza material, a nova lei tem aplicação imediata aos feitos em andamento, nos termos do art. 1º, § 4º, que dispõe: aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador. O direito administrativo sancionador, como sub-ramo do Direito Administrativo, expressa o poder punitivo do Estado ante o administrado, seja ele o próprio servidor público ou o particular. Daí decorre sua aplicação aos atos de improbidade administrativa — notadamente para reconhecer a aplicação imediata de seus preceitos a condutas antes tidas como suficientes para caracterizar o ato de improbidade, e agora tidas como irrelevantes, ou atípicas. A opção legislativa de revogar alguns preceitos da lei de improbidade administrativa é válida, pois decorre de previsão constitucional contida no art. 37, § 4º, o qual preceitua que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. Desde a alteração promovida pela Lei 14.230/2021, os incisos do art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa deixaram de lado o caráter exemplificativo e passaram a ostentar caráter taxativo, motivo pelo qual somente será configurada a improbidade por violação aos princípios, a prática das condutas expressamente indicadas no rol do referido dispositivo legal. Os incisos I e II do art. 11 da Lei 8.429/1992 foram revogados. A referida norma se aplica ao caso concreto, visto que atinge as ações em curso, considerando que o artigo 1º, §4º, determina expressamente a aplicação imediata de seus dispositivos em razão dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador que comporta aplicação retroativa. Desde a vigência plena da Lei 14.230/2021, a conduta imputada aos requeridos deixou de ser típica (art. 11, caput, da Lei 8.429/1992). Agravo de instrumento a que se nega provimento. (AG 1033687-14.2022.4.01.0000, Terceira Turma, Rel. Des. Fed. Maria do Carmo Cardoso, PJe 14/06/2023.) Deste modo, deve ser afastada a condenação com base no art. 11, caput, da LIA, em razão das alterações legislativas promovidas pela Lei 14.230/2021. Ante o exposto, rejeito as preliminares e dou provimento à apelação, para reformar a sentença e julgar improcedente o pedido. É o voto. Desembargador Federal MARCOS AUGUSTO DE SOUSA Relator PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO GAB. 11 - DESEMBARGADOR FEDERAL MARCOS AUGUSTO DE SOUSA Processo Judicial Eletrônico APELAÇÃO CÍVEL (198) 0008895-44.2012.4.01.3304 APELANTE: JOEL DE SOUZA NEIVA Advogados do(a) APELANTE: ANTONIO BRUNO NEIVA DANTAS - BA20738-A, JOEL DE SOUZA NEIVA JUNIOR - BA21118-A APELADO: FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (PROCURADORIA) EMENTA ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. VERBA FEDERAL INCORPORADA PELO MUNICÍPIO. PRESENÇA DO MPF. ALEGAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL REJEITADA. REELEIÇÃO. PRESCRIÇÃO AFASTADA. CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO CONFIGURADO. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. COMISSÃO DE LICITAÇÃO. PRELIMINARES REJEITADAS. ALTERAÇÕES NA LEI 8.429/1992 PELA LEI 14.230/2021. RETROATIVIDADE. POSSIBILIDADE, NO CASO CONCRETO. STF, ARE 843.989/PR. TEMA 1.199. IRREGULARIDADES EM LICITAÇÃO E EXECUÇÃO DE OBRA PÚBLICA. DESCUMPRIMENTO DO PLANO DE TRABALHO DO CONVÊNIO. ART. 10 DA LIA. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. ATO ÍMPROBO NÃO CONFIGURADO. ART. 11, CAPUT, DA LEI 8.429/1992. IMPOSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO ISOLADA. ROL TAXATIVO. SENTENÇA REFORMADA. APELAÇÃO PROVIDA. 1. Apelação interposta contra sentença que julgou parcialmente procedente o pedido e condenou o réu, ex-prefeito, pela prática dos atos de improbidade administrativa previstos nos arts. 10, caput e incisos I, XI e XII, e 11, caput, da LIA, em razão de supostas irregularidades na execução do Subconvênio 128/2002, celebrado entre o Município de Conceição do Almeida/BA e a CERB, no âmbito do Convênio 67/2001 firmado com o Ministério da Saúde. Apontou-se direcionamento da licitação, ausência de comprovação de qualificação técnica e econômico-financeira, execução parcial da obra e descumprimento do plano de trabalho estabelecido, além da suposta execução dos serviços por funcionários do Município, e não pela pessoa jurídica contratada. 2. Há seis questões centrais em discussão: (i) definir a competência da Justiça Federal; (ii) verificar a ocorrência de prescrição; (iii) analisar a existência de cerceamento de defesa diante do indeferimento de provas e da prolação da sentença antes do retorno da carta precatória e da juntada de outras provas; (iv) examinar a existência de litisconsórcio passivo necessário; (v) verificar se restou demonstrado o dolo específico necessário à configuração do ato de improbidade previsto no art. 10 da Lei 8.429/1992 e (vi) analisar a subsistência da condenação com base no art. 11, caput, da LIA após as alterações introduzidas pela Lei 14.230/2021. 3. Nas ações de improbidade administrativa a competência da Justiça Federal é definida em razão da presença das pessoas jurídicas de direito público previstas no art. 109, I, da Constituição Federal, assim como a do MPF, e não em razão da natureza da verba federal sujeita à fiscalização do Tribunal de Contas da União ou da incorporação da verba pelo Município. Preliminar de incompetência afastada. 4. O prazo prescricional previsto no art. 23, I, da Lei 8.429/1992 (redação anterior à Lei 14.230/2021) inicia-se após o término do exercício do mandato, cargo em comissão ou função de confiança. Nos casos de reeleição, o prazo prescricional é contado apenas a partir do término do segundo mandato, diante da continuidade no exercício da função pública. Alegação de prescrição afastada. 5. Não há cerceamento de defesa quando a sentença está devidamente fundamentada, pois cabe ao julgador avaliar a necessidade de produção de provas, para o fim de formar o seu convencimento. Ademais, a jurisprudência é pacífica no sentido de que a ausência de devolução da carta precatória não impede o julgamento da causa, sobretudo quando transcorrido o prazo para seu cumprimento, entendimento que se aplica inclusive no âmbito do processo penal (Precedente do STJ). 6. Conforme pacífica jurisprudência do STJ, não há obrigatoriedade de formação de litisconsórcio passivo necessário entre o agente público e terceiros eventualmente envolvidos ou beneficiados em ações civis por improbidade administrativa, diante da ausência de previsão legal e da inexistência de relação jurídica indivisível. Precedentes. 7. O dolo é requisito indispensável para a tipificação de atos de improbidade administrativa, conforme fixado pelo STF no julgamento do ARE 843.989/PR (Tema 1.199) e pelo STJ no REsp 2.107.601/MG. Além disso, é de conhecimento geral que o sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa visa proteger a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de garantir a integridade do patrimônio público e social, nos termos da lei. 8. No caso concreto, embora tenha sido constatado direcionamento da licitação e execução parcial do objeto do convênio, não há prova inequívoca da existência de dolo específico por parte do gestor, tampouco de que a contratação visava ao favorecimento pessoal ou ao desvio de recursos públicos. A execução parcial da obra, a ausência de fiscalização adequada e o uso da sede da prefeitura como local de pagamento de operários não configuram, isoladamente, elementos suficientes para comprovar o enriquecimento ilícito de terceiros ou prejuízo efetivo ao erário decorrente de conduta dolosa do réu. 9. A ausência de dolo específico ou de má-fé do apelante impede a caracterização do ato ímprobo previsto no art. 10 da LIA. 10. Inexiste hoje a possibilidade de enquadramento da conduta somente no caput do art. 11, porque tal dispositivo, isoladamente, não traz em si nenhum ato ou conduta que possa ser considerada ímproba e, portanto, só existe se vinculado a algum de seus incisos. 11. Os incisos do art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa, após o advento da Lei 14.230/2021, passaram a ostentar caráter taxativo e não meramente exemplificativo como anteriormente, de sorte que a configuração da improbidade por violação aos princípios da administração somente ocorrerá ante a perfeita subsunção do fato específico aos tipos legais. 12. Preliminares rejeitadas. Apelação provida. ACÓRDÃO Decide a Turma, por unanimidade, rejeitar as preliminares e dar provimento à apelação. 4ª Turma do TRF da 1ª Região - 1°/07/2025 (data do julgamento). Desembargador Federal MARCOS AUGUSTO DE SOUSA Relator
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Processo nº 0058039-19.2014.4.01.3400
ID: 330655429
Tribunal: TRF1
Órgão: 10ª Vara Federal Criminal da SJDF
Classe: AçãO PENAL - PROCEDIMENTO ORDINáRIO
Nº Processo: 0058039-19.2014.4.01.3400
Data de Disponibilização:
21/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
ELTON SILVA MACHADO ODORICO
OAB/DF XXXXXX
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LUIS CLAUDIO SILVA NASCIMENTO
OAB/DF XXXXXX
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CARLOS LEONARDO SOUZA DOS SANTOS
OAB/RJ XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Seção Judiciária do Distrito Federal 10ª Vara Federal Criminal da SJDF SENTENÇA TIPO "E" PROCESSO: 0058039-19.2014.4.01.3400 CLASSE: AÇÃO PENAL - PROCEDIMENTO ORDINÁR…
PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Seção Judiciária do Distrito Federal 10ª Vara Federal Criminal da SJDF SENTENÇA TIPO "E" PROCESSO: 0058039-19.2014.4.01.3400 CLASSE: AÇÃO PENAL - PROCEDIMENTO ORDINÁRIO (283) POLO ATIVO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - MPF POLO PASSIVO: RAFAEL DOS REIS GONCALVES e outros REPRESENTANTES POLO PASSIVO: CARLOS LEONARDO SOUZA DOS SANTOS - RJ123490, LUIS CLAUDIO SILVA NASCIMENTO - DF31205 e ELTON SILVA MACHADO ODORICO - DF34670 SENTENÇA Trata-se de denúncia ofertada em desfavor de FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO ("FRANZÉ"), ABGAIL PEREIRA DA SILVA, JAQUELINE MEDEIROS ROSA, PATRÍCIA CORDEIRO SOARES E RAFAEL DOS REIS GONÇALVES pela prática do crime previsto no artigo 171, § 3º, c/c artigos 71 e 29, todos do Código Penal. ID 843515568 (fls. 4-14): A denúncia narra que: RAFAEL DOS REIS GONÇALVES, na qualidade de funcionário da Câmara dos Deputados, em comunhão de esforços e unidade de desígnios com FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO, ABGAIL PEREIRA DA SILVA e com as funcionárias das Escolas CRIARTE e DNA JACQUELINE MEDEIROS ROSA e PATRÍCIA CORDEIRO SOARES, no período de 2008 a 2009, nesta capital, obtiveram, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo da União, induzindo e mantendo em erro a Câmara dos Deputados, mediante fraude, qual seja, a inscrição indevida no Programa de Assistência ao Estudante - PAE da filha menor de RAFAEL DOS REIS GONÇALVES. ID 843515568 (fls. 221-222) - Denúncia recebida em 30/04/2015. Citados, os acusados apresentaram respostas à acusação: ABIGAIL PEREIRA DA SILVA (ID 843515568, fls. 239-242); JACQUELINE MEDEIROS ROSA (ID 843515568, fls. 269-274), FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO, (ID 843515568, fls. 281-282), PATRÍCIA CORDEIRO SOARES (ID 843515568, fls. 288-291). O réu RAFAEL DOS REIS GONÇALVES não foi localizado e, como consequência, o Juízo determinou sua citação por edital. Decisão de ID 843515568, p. 321/323, deferiu a prova pericial e determinou a suspensão do processo e do prazo prescricional em relação ao denunciado RAFAEL DOS REIS GONÇALVES. ID 843515568 (fls. 369-373) – Ata de audiência realizada em 18/09/2017. ID 843515569 (fls. 5-8) – Ata de audiência realizada em 04/12/217. ID 843515569 (fls. 20-27) – Ata de audiência realizada em 09/02/2018. ID 843515569 (fls. 34-38) – Ata de audiência realizada em 15/05/2018. ID 843515569 (fls. 54) - Termo de qualificação e interrogatório de FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO inquirido pelo juízo da Comarca de Pirenópolis-GO em 05/02/2019. ID 843515569 (fls. 63-71): Alegações finais do MPF manifestando-se: (...) pela procedência do pedido condenatório formulado na inicial, para condenar os réus FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO ("FRANZÉ"), ABGAIL PEREIRA DA SILVA, JAQUELINE MEDEIROS ROSA e PATRÍCIA CORDEIRO SOARES, imputando-o como incursos nas penas do delito previsto no artigo 171, §30 do Código Penal Brasileiro em continuidade delitiva nos termos do art. 71, também do CPB. ID 843515569 (fls. 78-86): Alegações finais de ABGAIL PEREIRA DA SILVA em que se requer: a) Seja rejeitada a denúncia por inépcia; b) a ABSOLVIÇÃO de ABIGAIL PEREIRA DA SILVA, do crime de estelionato majorado (art. 171, §3° do CP) ante a ausência de autoria e insuficiência de provas, nos termos do Att. 386, inciso IV ou VII do CPP. C) na eventualidade de condenação, seja decretado a EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE pelo abolilio criminis, nos termos do Art. 107, inciso III do CP; d) subsidiariamente, na eventualidade de condenação, seja fixada a pena base em seu mínimo legal; e consequentemente seja aplicada a substituição da pena corporal por restritivas de direito a teor do artigo 44 do Código Penal e seguintes, considerando que eventual reprimenda não superará a 4 anos; e) possa a ré apelar em liberdade. ID 843515569 (fls. 89-107): Alegações finais de FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO na qual requer: 1. Que seja a denúncia rejeitada, em consequência de sua inépcia e ausência de qualquer justa causa, com fulcro no art. 395, incisos I e III, do CPP. 2. Que seja o réu absolvido, na forma do art. 386, IV, V e VII, do CPP. 3. Em caso de condenação que seja: a. Aplicado o §1º do 171, CPP; b. A pena-base cominada no mínimo legal; c. Aplicada atenuante do art. 65, III, "c", CPB, bem como a prevista no art. 66, do CPB; d. Aplicada a causa geral de diminuição do art. 29, §1°, CPB; e. E seja substituída a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. ID 958175650: Alegações finais de PATRÍCIA CORDEIRO SOARES, pela qual se requer: 1. Seja declarada a prescrição; 2. Que seja a ré absolvida na forma do art. 38 IV, V e VII, do CPP. 3. Em caso de condenação que seja: 3.1. Aplicado o §1º. Do art. 171 do CPB; 3.2. A pena-base cominada no mínimo legal; 3.3. Aplicada atenuante do art. 65, III, "c", CPB, bem como a prevista no art. 66, do CPB; 3.4. Aplicada a causa geral de diminuição do art. 29, §1°, CPB; 3.5. E seja substituída a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. ID 1273932246 e seguintes: juntada do vídeo do interrogatório do acusado FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO, como prova emprestada, em cumprimento a determinação proferida nos autos do processo 0058040-04.2014.4.01.3400. ID 1591299349 e seguintes: Mídias digitais da audiência realizada em 18/09/2017. ID 1591363353 e seguintes: Mídias digitais da audiência realizada em 04/12/2017. ID 1591363406 e seguintes: Mídias digitais da audiência realizada em 09/02/2018. ID 1591416367 e seguintes: Mídias digitais da audiência realizada em 15/05/2018. ID 2153456562 e seguintes: Informação Técnica n. 129/2017 do Instituto de Nacional de Criminalística da Polícia Federal, acostada aos autos n. 0058040-04.2014.4.01.3400 e 0058046-11.2014.4.01.3400. Após ser renovado o prazo para Alegações finais, em ID 2154658368, o MPF reiterou a procedência do pedido condenatório formulado na inicial. ID 2163835341: Alegações finais de FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO na qual requer: a) A reconsideração da decisão que recebeu a denúncia e a anulação dos atos que lhe são posteriores, em consequência de sua inépcia e da ausência de justa causa, com fulcro no art. 395, I e III, do CPP; b) Que seja reconhecido o abolitio criminis, coma extinção da presente ação penal; c) Que seja o réu absolvido, na forma do art. 386, IV, do CPP; d) Ainda, em caso de eventual condenação, que seja: 1) Aplicado o §1º do ser. 171, CPB; 2) pena-base cominada no mínimo legal; 3)Aplicada atenuante do art. 65, III, “c”, CP, bem como a prevista no art. 66, também do CP; 4) Aplicada a causa geral de diminuição do art. 29, §1º, CPB; 5) Seja aplicada a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. ID 2163838247: Alegações finais de ABGAIL PEREIRA DA SILVA na qual requer: a. a absolvição da acusada do delito em comento, com fulcro no art. 386, III, do Código de Processo Penal, pela inexistência de dolo específico em qualquer conduta do réu; b. em não sendo acolhido o pedido acima, a absolvição da acusada com base no art. 386, V, do Código de Processo Penal, pela falta de provas de autoria e materialidade; c. subsidiariamente, requer-se o reconhecimento de eventual participação de menor importância (art. 29, § 1º, do Código Penal), caso entenda que há algum indício de participação do acusado no fato, aplicando-se a redução de pena correspondente. d. em caso de condenação, aplicação de pena de multa, em substituição à pena de detenção, nos termos do art. 69 do Código Penal. e. Ou ainda, caso não entenda pela aplicação de multa, requer a fixação da pena base no mínimo legal em atenção às circunstâncias judiciais favoráveis tais como culpabilidade, conduta social e consequências do crime, bem como seja considerado, ainda, o disposto na súmula 444 do Superior Tribunal de Justiça - STJ; f. sejam, por fim, aplicadas as regras do artigo 44 do Código Penal, com a substituição de eventual pena privativa de liberdade aplicada por pena restritiva de direitos, pois presentes os requisitos necessários. ID 2170070116: Alegações finais de JACQUELINE MEDEIROS ROSA em que se requer: a) Diante a confissão espontânea da acusada, e por sua total ausência ao cometimento da prática criminosa, bem como por se tratar de ré primária e com bons antecedentes, seja declarado a desclassificação do §3º para o § 1º do artigo 171 do Código de Processo Penal Brasileiro; b) A concessão de atenuante prevista no art. 65, III, “c”, do Código Penal, in verbis: c) e, caso deferida a desclassificação suscitada requer a absolvição da ré dos crimes a ela imputados, em face ao Princípio da Insignificância e da Bagatela, tendo em a inexistência ao recebimento de qualquer numerário, nos termos do artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal; d) ao tempo, requer ainda, diante a semelhança da tipificação imputada, ocorridas nas mesmas condições tempo, lugar e modus operandi, para os autos APN 0058040-04.2014.4.01.3400; APN 0058041- 86.2014.4.01.3400; APN 0058042-71.2014.4.01.3400;APN 0058043-56.2014.4.01.3400; APN 0058045-26.2014.4.01.3400; APN 0058046-11.2014.4.01.3400 e APN 1025510-85.2018.4.01.3400, que haja o julgamento conjunto de todas as ações, em face da suposta pratica de crime continuado, nos exatos termos constantes no caput, do artigo 71 do Código Penal Brasileiro; e) na hipótese deste Douto Juízo entender pela condenação da ora acusada, que seja a pena fixada no mínimo legal, a ser cumprida em regime aberto e com a possibilidade de apelação em liberdade; f) a aplicação do art. 29 § 1º e art. 44, ambos do Código Penal, com a substituição de eventual pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos; e g) por fim, após a fixação da pena, se o caso, decretar a extinção da punibilidade, nos termos dos artigos 109 e 110 do Código Penal. ID 2196073691: Ata de audiência realizada no âmbito dos processos de nº 1025510-85.2018, 58042-71.2014 e 58043- 56.2014.4.01.3400, na qual foi acolhida questão preliminar de prescrição em perspectiva deduzida pelas defesas e igualmente albergada pelo Douto Parquet Federal e, com fulcro nos artigos 109 e 110, ambos do CP, DECLAROU extinta a punibilidade dos acusados. É o relatório. Decido. As circunstâncias supracitadas corroboram fortemente para aplicação do instituto da prescrição virtual também em relação aos réus FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO ("FRANZÉ"), ABGAIL PEREIRA DA SILVA, JAQUELINE MEDEIROS ROSA, PATRÍCIA CORDEIRO SOARES E RAFAEL DOS REIS GONÇALVES, devendo o entendimento firmado naqueles processos ser estendido ao presente caso, com arrimo nas razões a seguir escandidas. É flagrante a ausência do interesse de agir, sob o aspecto utilidade, pois considerando a data dos fatos (2008 a 2009), realizando uma análise antecipada, tudo indica seria declarada a extinção da punibilidade, em hipótese de condenação, pois a pena fatalmente seria atingida pela prescrição em concreto. Como citado, a pena resultante certamente seria alcançada pela prescrição retroativa vis-à-vis a pena in concreto, na forma da redação anterior do § 2º do art. 110 do Código Penal, revogado pela Lei 12.234/2010, e vigente à época, pois teria como termo inicial data anterior à denúncia, tendo em vista que os fatos ocorreram antes da alteração promovida pela referida lei. Assim, tais circunstâncias demandam às escâncaras a aplicação do instituto da prescrição virtual ao presente caso, malgrado o teor da Súmula 438 do STJ, segundo a qual “é inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal”. Sabe-se que os tribunais superiores e a jurisprudência são contrários à utilização desse instituto nesse viés prospectivo, por ausência de previsão legal. Entretanto, a intenção não é de utilização irrestrita e desarrazoada dessa modalidade, mas de aplicação a casos nos quais o custo do processo não justifica o acionamento da jurisdição. Trata-se de curvar-se à realidade insofismável de que temos de otimizar o uso da jurisdição, pois ela implica custos para a sociedade. Com efeito, a continuação da instrução processual em relação aos demais réus, neste caso, revela-se inócua para o fim que se pretende, e prosseguir com a ação penal com atos desnecessários seria desprezar fatores como a grande demanda do judiciário e a escassez dos recursos disponíveis. Ademais, conforme nos adverte JUAREZ TAVARES, "a dogmática penal, como saber derivado da interpretação de normas jurídicas, tem poderes transformadores muito limitados. [...] À medida que o direito penal, como saber, se flexibiliza cada vez mais, cresce a importância de fazê-lo se reencontrar com a realidade humana, única forma que lhe resta de não sucumbir às próprias contradições e nem às crenças em sua magnitude civilizatória."[Cf. TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito.4ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022, p. 24.] Logo, exsurge notória a ausência de interesse processual, no viés da utilidade, a implicar a própria carência da ação penal, pois, realizando-se uma análise antecipada, tudo indica que será declarada a extinção da punibilidade do(s) acusado(s) em razão do reconhecimento da prescrição. Ante o exposto, (1) declaro extinta a punibilidade dos acusados FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO ("FRANZÉ"), ABGAIL PEREIRA DA SILVA, JAQUELINE MEDEIROS ROSA, PATRÍCIA CORDEIRO SOARES E RAFAEL DOS REIS GONÇALVES, com fulcro no artigo 485, VI, do CPC, subsidiariamente aplicável ao processo penal. (2) Intimem-se as partes. Decorrido o prazo legal sem a interposição de eventuais recursos, e (3) após os registros necessários (SINIC, ORACLE), (4) arquivem-se os autos. Por fim, se ainda houver bens e valores bloqueados em nome dos réus, (5) determino às defesas que distribuam os pedidos de Restituição de Coisas Apreendidas, em autos apartados, vinculados a esta Ação Penal. BRASÍLIA - DF, data da assinatura eletrônica. ANTONIO CLAUDIO MACEDO DA SILVA Juiz Federal Titular da 10ª Vara
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Processo nº 0058039-19.2014.4.01.3400
ID: 330655432
Tribunal: TRF1
Órgão: 10ª Vara Federal Criminal da SJDF
Classe: AçãO PENAL - PROCEDIMENTO ORDINáRIO
Nº Processo: 0058039-19.2014.4.01.3400
Data de Disponibilização:
21/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
ELTON SILVA MACHADO ODORICO
OAB/DF XXXXXX
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LUIS CLAUDIO SILVA NASCIMENTO
OAB/DF XXXXXX
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CARLOS LEONARDO SOUZA DOS SANTOS
OAB/RJ XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Seção Judiciária do Distrito Federal 10ª Vara Federal Criminal da SJDF SENTENÇA TIPO "E" PROCESSO: 0058039-19.2014.4.01.3400 CLASSE: AÇÃO PENAL - PROCEDIMENTO ORDINÁR…
PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Seção Judiciária do Distrito Federal 10ª Vara Federal Criminal da SJDF SENTENÇA TIPO "E" PROCESSO: 0058039-19.2014.4.01.3400 CLASSE: AÇÃO PENAL - PROCEDIMENTO ORDINÁRIO (283) POLO ATIVO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - MPF POLO PASSIVO: RAFAEL DOS REIS GONCALVES e outros REPRESENTANTES POLO PASSIVO: CARLOS LEONARDO SOUZA DOS SANTOS - RJ123490, LUIS CLAUDIO SILVA NASCIMENTO - DF31205 e ELTON SILVA MACHADO ODORICO - DF34670 SENTENÇA Trata-se de denúncia ofertada em desfavor de FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO ("FRANZÉ"), ABGAIL PEREIRA DA SILVA, JAQUELINE MEDEIROS ROSA, PATRÍCIA CORDEIRO SOARES E RAFAEL DOS REIS GONÇALVES pela prática do crime previsto no artigo 171, § 3º, c/c artigos 71 e 29, todos do Código Penal. ID 843515568 (fls. 4-14): A denúncia narra que: RAFAEL DOS REIS GONÇALVES, na qualidade de funcionário da Câmara dos Deputados, em comunhão de esforços e unidade de desígnios com FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO, ABGAIL PEREIRA DA SILVA e com as funcionárias das Escolas CRIARTE e DNA JACQUELINE MEDEIROS ROSA e PATRÍCIA CORDEIRO SOARES, no período de 2008 a 2009, nesta capital, obtiveram, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo da União, induzindo e mantendo em erro a Câmara dos Deputados, mediante fraude, qual seja, a inscrição indevida no Programa de Assistência ao Estudante - PAE da filha menor de RAFAEL DOS REIS GONÇALVES. ID 843515568 (fls. 221-222) - Denúncia recebida em 30/04/2015. Citados, os acusados apresentaram respostas à acusação: ABIGAIL PEREIRA DA SILVA (ID 843515568, fls. 239-242); JACQUELINE MEDEIROS ROSA (ID 843515568, fls. 269-274), FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO, (ID 843515568, fls. 281-282), PATRÍCIA CORDEIRO SOARES (ID 843515568, fls. 288-291). O réu RAFAEL DOS REIS GONÇALVES não foi localizado e, como consequência, o Juízo determinou sua citação por edital. Decisão de ID 843515568, p. 321/323, deferiu a prova pericial e determinou a suspensão do processo e do prazo prescricional em relação ao denunciado RAFAEL DOS REIS GONÇALVES. ID 843515568 (fls. 369-373) – Ata de audiência realizada em 18/09/2017. ID 843515569 (fls. 5-8) – Ata de audiência realizada em 04/12/217. ID 843515569 (fls. 20-27) – Ata de audiência realizada em 09/02/2018. ID 843515569 (fls. 34-38) – Ata de audiência realizada em 15/05/2018. ID 843515569 (fls. 54) - Termo de qualificação e interrogatório de FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO inquirido pelo juízo da Comarca de Pirenópolis-GO em 05/02/2019. ID 843515569 (fls. 63-71): Alegações finais do MPF manifestando-se: (...) pela procedência do pedido condenatório formulado na inicial, para condenar os réus FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO ("FRANZÉ"), ABGAIL PEREIRA DA SILVA, JAQUELINE MEDEIROS ROSA e PATRÍCIA CORDEIRO SOARES, imputando-o como incursos nas penas do delito previsto no artigo 171, §30 do Código Penal Brasileiro em continuidade delitiva nos termos do art. 71, também do CPB. ID 843515569 (fls. 78-86): Alegações finais de ABGAIL PEREIRA DA SILVA em que se requer: a) Seja rejeitada a denúncia por inépcia; b) a ABSOLVIÇÃO de ABIGAIL PEREIRA DA SILVA, do crime de estelionato majorado (art. 171, §3° do CP) ante a ausência de autoria e insuficiência de provas, nos termos do Att. 386, inciso IV ou VII do CPP. C) na eventualidade de condenação, seja decretado a EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE pelo abolilio criminis, nos termos do Art. 107, inciso III do CP; d) subsidiariamente, na eventualidade de condenação, seja fixada a pena base em seu mínimo legal; e consequentemente seja aplicada a substituição da pena corporal por restritivas de direito a teor do artigo 44 do Código Penal e seguintes, considerando que eventual reprimenda não superará a 4 anos; e) possa a ré apelar em liberdade. ID 843515569 (fls. 89-107): Alegações finais de FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO na qual requer: 1. Que seja a denúncia rejeitada, em consequência de sua inépcia e ausência de qualquer justa causa, com fulcro no art. 395, incisos I e III, do CPP. 2. Que seja o réu absolvido, na forma do art. 386, IV, V e VII, do CPP. 3. Em caso de condenação que seja: a. Aplicado o §1º do 171, CPP; b. A pena-base cominada no mínimo legal; c. Aplicada atenuante do art. 65, III, "c", CPB, bem como a prevista no art. 66, do CPB; d. Aplicada a causa geral de diminuição do art. 29, §1°, CPB; e. E seja substituída a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. ID 958175650: Alegações finais de PATRÍCIA CORDEIRO SOARES, pela qual se requer: 1. Seja declarada a prescrição; 2. Que seja a ré absolvida na forma do art. 38 IV, V e VII, do CPP. 3. Em caso de condenação que seja: 3.1. Aplicado o §1º. Do art. 171 do CPB; 3.2. A pena-base cominada no mínimo legal; 3.3. Aplicada atenuante do art. 65, III, "c", CPB, bem como a prevista no art. 66, do CPB; 3.4. Aplicada a causa geral de diminuição do art. 29, §1°, CPB; 3.5. E seja substituída a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. ID 1273932246 e seguintes: juntada do vídeo do interrogatório do acusado FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO, como prova emprestada, em cumprimento a determinação proferida nos autos do processo 0058040-04.2014.4.01.3400. ID 1591299349 e seguintes: Mídias digitais da audiência realizada em 18/09/2017. ID 1591363353 e seguintes: Mídias digitais da audiência realizada em 04/12/2017. ID 1591363406 e seguintes: Mídias digitais da audiência realizada em 09/02/2018. ID 1591416367 e seguintes: Mídias digitais da audiência realizada em 15/05/2018. ID 2153456562 e seguintes: Informação Técnica n. 129/2017 do Instituto de Nacional de Criminalística da Polícia Federal, acostada aos autos n. 0058040-04.2014.4.01.3400 e 0058046-11.2014.4.01.3400. Após ser renovado o prazo para Alegações finais, em ID 2154658368, o MPF reiterou a procedência do pedido condenatório formulado na inicial. ID 2163835341: Alegações finais de FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO na qual requer: a) A reconsideração da decisão que recebeu a denúncia e a anulação dos atos que lhe são posteriores, em consequência de sua inépcia e da ausência de justa causa, com fulcro no art. 395, I e III, do CPP; b) Que seja reconhecido o abolitio criminis, coma extinção da presente ação penal; c) Que seja o réu absolvido, na forma do art. 386, IV, do CPP; d) Ainda, em caso de eventual condenação, que seja: 1) Aplicado o §1º do ser. 171, CPB; 2) pena-base cominada no mínimo legal; 3)Aplicada atenuante do art. 65, III, “c”, CP, bem como a prevista no art. 66, também do CP; 4) Aplicada a causa geral de diminuição do art. 29, §1º, CPB; 5) Seja aplicada a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. ID 2163838247: Alegações finais de ABGAIL PEREIRA DA SILVA na qual requer: a. a absolvição da acusada do delito em comento, com fulcro no art. 386, III, do Código de Processo Penal, pela inexistência de dolo específico em qualquer conduta do réu; b. em não sendo acolhido o pedido acima, a absolvição da acusada com base no art. 386, V, do Código de Processo Penal, pela falta de provas de autoria e materialidade; c. subsidiariamente, requer-se o reconhecimento de eventual participação de menor importância (art. 29, § 1º, do Código Penal), caso entenda que há algum indício de participação do acusado no fato, aplicando-se a redução de pena correspondente. d. em caso de condenação, aplicação de pena de multa, em substituição à pena de detenção, nos termos do art. 69 do Código Penal. e. Ou ainda, caso não entenda pela aplicação de multa, requer a fixação da pena base no mínimo legal em atenção às circunstâncias judiciais favoráveis tais como culpabilidade, conduta social e consequências do crime, bem como seja considerado, ainda, o disposto na súmula 444 do Superior Tribunal de Justiça - STJ; f. sejam, por fim, aplicadas as regras do artigo 44 do Código Penal, com a substituição de eventual pena privativa de liberdade aplicada por pena restritiva de direitos, pois presentes os requisitos necessários. ID 2170070116: Alegações finais de JACQUELINE MEDEIROS ROSA em que se requer: a) Diante a confissão espontânea da acusada, e por sua total ausência ao cometimento da prática criminosa, bem como por se tratar de ré primária e com bons antecedentes, seja declarado a desclassificação do §3º para o § 1º do artigo 171 do Código de Processo Penal Brasileiro; b) A concessão de atenuante prevista no art. 65, III, “c”, do Código Penal, in verbis: c) e, caso deferida a desclassificação suscitada requer a absolvição da ré dos crimes a ela imputados, em face ao Princípio da Insignificância e da Bagatela, tendo em a inexistência ao recebimento de qualquer numerário, nos termos do artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal; d) ao tempo, requer ainda, diante a semelhança da tipificação imputada, ocorridas nas mesmas condições tempo, lugar e modus operandi, para os autos APN 0058040-04.2014.4.01.3400; APN 0058041- 86.2014.4.01.3400; APN 0058042-71.2014.4.01.3400;APN 0058043-56.2014.4.01.3400; APN 0058045-26.2014.4.01.3400; APN 0058046-11.2014.4.01.3400 e APN 1025510-85.2018.4.01.3400, que haja o julgamento conjunto de todas as ações, em face da suposta pratica de crime continuado, nos exatos termos constantes no caput, do artigo 71 do Código Penal Brasileiro; e) na hipótese deste Douto Juízo entender pela condenação da ora acusada, que seja a pena fixada no mínimo legal, a ser cumprida em regime aberto e com a possibilidade de apelação em liberdade; f) a aplicação do art. 29 § 1º e art. 44, ambos do Código Penal, com a substituição de eventual pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos; e g) por fim, após a fixação da pena, se o caso, decretar a extinção da punibilidade, nos termos dos artigos 109 e 110 do Código Penal. ID 2196073691: Ata de audiência realizada no âmbito dos processos de nº 1025510-85.2018, 58042-71.2014 e 58043- 56.2014.4.01.3400, na qual foi acolhida questão preliminar de prescrição em perspectiva deduzida pelas defesas e igualmente albergada pelo Douto Parquet Federal e, com fulcro nos artigos 109 e 110, ambos do CP, DECLAROU extinta a punibilidade dos acusados. É o relatório. Decido. As circunstâncias supracitadas corroboram fortemente para aplicação do instituto da prescrição virtual também em relação aos réus FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO ("FRANZÉ"), ABGAIL PEREIRA DA SILVA, JAQUELINE MEDEIROS ROSA, PATRÍCIA CORDEIRO SOARES E RAFAEL DOS REIS GONÇALVES, devendo o entendimento firmado naqueles processos ser estendido ao presente caso, com arrimo nas razões a seguir escandidas. É flagrante a ausência do interesse de agir, sob o aspecto utilidade, pois considerando a data dos fatos (2008 a 2009), realizando uma análise antecipada, tudo indica seria declarada a extinção da punibilidade, em hipótese de condenação, pois a pena fatalmente seria atingida pela prescrição em concreto. Como citado, a pena resultante certamente seria alcançada pela prescrição retroativa vis-à-vis a pena in concreto, na forma da redação anterior do § 2º do art. 110 do Código Penal, revogado pela Lei 12.234/2010, e vigente à época, pois teria como termo inicial data anterior à denúncia, tendo em vista que os fatos ocorreram antes da alteração promovida pela referida lei. Assim, tais circunstâncias demandam às escâncaras a aplicação do instituto da prescrição virtual ao presente caso, malgrado o teor da Súmula 438 do STJ, segundo a qual “é inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal”. Sabe-se que os tribunais superiores e a jurisprudência são contrários à utilização desse instituto nesse viés prospectivo, por ausência de previsão legal. Entretanto, a intenção não é de utilização irrestrita e desarrazoada dessa modalidade, mas de aplicação a casos nos quais o custo do processo não justifica o acionamento da jurisdição. Trata-se de curvar-se à realidade insofismável de que temos de otimizar o uso da jurisdição, pois ela implica custos para a sociedade. Com efeito, a continuação da instrução processual em relação aos demais réus, neste caso, revela-se inócua para o fim que se pretende, e prosseguir com a ação penal com atos desnecessários seria desprezar fatores como a grande demanda do judiciário e a escassez dos recursos disponíveis. Ademais, conforme nos adverte JUAREZ TAVARES, "a dogmática penal, como saber derivado da interpretação de normas jurídicas, tem poderes transformadores muito limitados. [...] À medida que o direito penal, como saber, se flexibiliza cada vez mais, cresce a importância de fazê-lo se reencontrar com a realidade humana, única forma que lhe resta de não sucumbir às próprias contradições e nem às crenças em sua magnitude civilizatória."[Cf. TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito.4ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022, p. 24.] Logo, exsurge notória a ausência de interesse processual, no viés da utilidade, a implicar a própria carência da ação penal, pois, realizando-se uma análise antecipada, tudo indica que será declarada a extinção da punibilidade do(s) acusado(s) em razão do reconhecimento da prescrição. Ante o exposto, (1) declaro extinta a punibilidade dos acusados FRANCISCO JOSÉ FEIJÃO DE ARAÚJO ("FRANZÉ"), ABGAIL PEREIRA DA SILVA, JAQUELINE MEDEIROS ROSA, PATRÍCIA CORDEIRO SOARES E RAFAEL DOS REIS GONÇALVES, com fulcro no artigo 485, VI, do CPC, subsidiariamente aplicável ao processo penal. (2) Intimem-se as partes. Decorrido o prazo legal sem a interposição de eventuais recursos, e (3) após os registros necessários (SINIC, ORACLE), (4) arquivem-se os autos. Por fim, se ainda houver bens e valores bloqueados em nome dos réus, (5) determino às defesas que distribuam os pedidos de Restituição de Coisas Apreendidas, em autos apartados, vinculados a esta Ação Penal. BRASÍLIA - DF, data da assinatura eletrônica. ANTONIO CLAUDIO MACEDO DA SILVA Juiz Federal Titular da 10ª Vara
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Processo nº 1001411-89.2021.4.01.3903
ID: 258887190
Tribunal: TRF1
Órgão: Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Altamira-PA
Classe: AçãO PENAL - PROCEDIMENTO ORDINáRIO
Nº Processo: 1001411-89.2021.4.01.3903
Data de Disponibilização:
23/04/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
SAMUEL ESPINDOLA DOS ANJOS
OAB/PA XXXXXX
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MATEUS PEREIRA GOMES
OAB/TO XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Subseção Judiciária de Altamira-PA Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Altamira-PA SENTENÇA TIPO "D" PROCESSO: 1001411-89.2021.4.01.3903 CLASSE: AÇÃO PENAL - PROC…
PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Subseção Judiciária de Altamira-PA Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Altamira-PA SENTENÇA TIPO "D" PROCESSO: 1001411-89.2021.4.01.3903 CLASSE: AÇÃO PENAL - PROCEDIMENTO ORDINÁRIO (283) POLO ATIVO: Ministério Público Federal (Procuradoria) POLO PASSIVO:NILSON DANIEL e outros SENTENÇA I-Relatório. Cuida-se de ação penal movida pelo MPF em face de Nilson Daniel e Bartolomeu Lucena, imputando-lhes a prática dos crimes previstos no artigo 1º, incisos III e VII, do Decreto-Lei nº 201/1967. A denúncia foi recebida em 18.10.2022 (ID n.º 1338420259). O Denunciado, Bartolomeu Lucena, apresentou resposta à acusação id. 1477831850 e Nilson Daniel id.1698760458. Decisão de id.2139456764, rejeitou a absolvição sumária. Audiência de instrução realizada id.2161043183. Alegações finais pelo MPF, id.2163687475, pugnando pela condenação de ambos os réus pelo crime do art. 1º, III, do Decreto-Lei 201/1967 (desvio de verbas públicas), mas pleiteou a absolvição de Nilson Daniel quanto ao crime do art. 1º, VII (não prestação de contas). Alegações finais do réu Bartolomeu Lucena, id.2167325812, pugnando pela absolvição, alegando que não há provas de que tenha desviado recursos públicos e que a acusação não individualizou sua conduta, sendo os pagamentos efetuados mediante autorização do prefeito. Defendeu sua absolvição pela ausência de materialidade e autoria delitiva. Alegações finais do réu Nilson Daniel, id.2167568629, pugnando pela absolvição, sustentando que os repasses federais foram insuficientes para a conclusão das obras e que a responsabilidade pela execução e prestação de contas dos recursos era do secretário municipal de educação, Bartolomeu Lucena. Alegou ainda que os problemas surgiram após o término de sua gestão. É o relatório. DECIDO. II-Fundamentação Narra a denúncia que durante a gestão de Nilson Daniel como prefeito de Medicilândia/PA (2013-2016), foi celebrado o Termo de Compromisso PAR nº 22319/2014 com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para a construção das escolas EMEF Dom Pedro II, EMEF Primavera e EMEF Benjamin Constant. O FNDE repassou R$ 147.012,60, sendo R$ 49.004,21 para cada escola. Segundo a denúncia, a Controladoria-Geral da União (CGU) realizou inspeção e constatou que as obras das escolas Dom Pedro II e Primavera não foram iniciadas, mas houve pagamento antecipado de serviços à empresa Construtora Monte Sinai Ltda. Além disso, a prestação de contas não foi registrada no sistema SIMEC dentro do prazo legal, resultando na inadimplência do município. II.1. Materialidade e autoria do crime do art. 1º, III, do Decreto-Lei 201/1967 (Desvio de verbas públicas) A materialidade do crime encontra-se devidamente comprovada nos autos por meio dos seguintes documentos: Informações do FNDE (id. 812652557-pág. 38-41), que indicam que não houve registro da prestação de contas no SIMEC e que os valores repassados não foram utilizados integralmente no objeto pactuado; Relatório Fotográfico da Escola Dom Pedro II e Primavera – Inspeção Física da Execução (id. 552588848-pág.28-33), que demonstra a inexistência de obras na unidade escolar; e Ordens de serviço 201502239 e 201502240 (id. 552588848 - Págs. 17-27), que evidenciam pagamentos antecipados sem correspondente execução dos serviços. A testemunha ouvida em juízo, corroborou as provas ao norte apontadas, porquanto afirmou: Que após tomar posse, solicitou medições para verificar se os valores liberados estavam compatíveis com a execução das obras; Que constatou que as obras não estavam concluídas e que o valor liberado não condizia com o progresso físico; Que Informou que três empresas diferentes haviam recebido pagamentos, o que dificultava a responsabilização e continuidade do projeto; Que solicitou prazo ao FNDE para regularizar a situação e evitar que o município ficasse inadimplente; Que tentou viabilizar a continuidade das obras, mas não conseguiu solucionar as irregularidades. Em relação à autoria, restou demonstrado que Nilson Daniel, na condição de prefeito, e Bartolomeu Lucena, como secretário de educação, tinham ciência da obrigação de utilizar corretamente os recursos federais e de garantir sua adequada prestação de contas. No interrogatório, Nilson Daniel afirmou que delegava a responsabilidade da execução dos recursos ao secretário de educação, mas reconheceu que não acompanhava diretamente as fases das obras. Declarou ainda que Bartolomeu Lucena detinha o TOKEN para movimentação das verbas e que acreditava que a prestação de contas havia sido realizada corretamente. Já Bartolomeu Lucena alegou que dificuldades operacionais e a crise financeira impactaram a execução das obras, mas não negou que os pagamentos foram efetuados antes da realização dos serviços contratados. Além disso, o informante Celso Trzeciak, sucessor de Nilson Daniel na prefeitura, declarou que, ao assumir o cargo, verificou que três empresas diferentes receberam pagamentos, sem que houvesse correspondente execução dos serviços. Em relação às alegações de Nilson Daniel de que não tinha conhecimento sobre a execução e pagamentos das obras, o réu Bartolomeu Lucena declarou expressamente que: "Não tinha autonomia total sobre os pagamentos, pois dependia da assinatura do prefeito." Dessa forma, infere-se que Nilson Daniel, na condição de prefeito, e Bartolomeu Lucena, na condição de secretário de educação, com unidade de desígnios, aplicaram indevidamente verbas públicas federais destinadas à construção de escolas municipais, resultando na inexecução do objeto pactuado e na liberação indevida de pagamentos. Assim, restou demonstrado que os valores foram liberados sem a correspondente execução das obras, o que caracteriza a aplicação indevida das verbas públicas, nos termos do art. 1º, III, do Decreto-Lei nº 201/1967. II.2. Materialidade e autoria do crime do art. 1º, VII, do Decreto-Lei 201/1967 (Omissão na prestação de contas) O Ministério Público Federal (MPF), em suas alegações finais, requereu a absolvição de Nilson Daniel quanto ao crime de omissão na prestação de contas, sob o argumento de que não há prova suficiente de que o réu tenha sido formalmente notificado pelo FNDE sobre a necessidade de prestação de contas dentro do prazo legal. A análise dos autos revela que a prestação de contas dos recursos recebidos era uma obrigação diretamente vinculada ao secretário de educação, Bartolomeu Lucena, que possuía senha de acesso ao sistema SIMEC e autonomia para gerir os contratos e movimentar os valores repassados pelo FNDE. O artigo 385 do Código de Processo Penal permite ao juiz condenar o réu, ainda que o Ministério Público tenha requerido a absolvição. No presente caso, contudo, assiste razão ao MPF, pois não há elementos suficientes para caracterizar o elemento subjetivo na conduta do réu. Ademais, não há provas de que Nilson Daniel tenha embaraçado ou se recusado a prestar contas, sendo que, conforme entendimento do TRF-1 e do TCU, tal obrigação competiria ao prefeito sucessor. Nessa linha, com razão o MPF, porquanto, na esteira da jurisprudência apontada, o crime previsto no artigo 1º, VII, do Decreto-Lei nº 201/1967 consuma-se após o decurso do prazo para a prestação de contas sem que o agente tenha cumprido a obrigação. Trata-se de um crime omissivo, cuja configuração pressupõe a possibilidade de agir, razão pela qual não responde pelo crime o prefeito que estava afastado do cargo (TRF-5, Inq. 200705000398417, Rel. Vladimir Carvalho, DJe 30/01/2008 e TRF-3 – ACR 0004799-77.2003.4.036106, Rel. Maurício Kato, DJe 01/03/2016). Dessa forma, acolho os argumentos do MPF e absolvo Nilson Daniel do crime previsto no art. 1º, VII, do Decreto-Lei nº 201/1967, com fundamento no artigo 386, VII, do Código de Processo Penal. III-Dispositivo Ante o exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE a denúncia para: 1.CONDENAR os réus NILSON DANIEL e BARTOLOMEU LUCENA pela prática do crime previsto no artigo 1º, inciso III, do Decreto-Lei nº 201/1967 (Desvio de verbas públicas); 2.ABSOLVER o réu NILSON DANIEL da imputação do artigo 1º, inciso VII, do Decreto-Lei nº 201/1967 (Omissão na prestação de contas), com fundamento no artigo 386, VII, do Código de Processo Penal. Passo à individualização da pena do Réu Nilson Daniel, considerando o disposto no art. 68 do Código Penal. Pena do crime: Delito Art.1º, III, três meses a três anos. Atendendo ao que determina o artigo 59 do Código Penal, passo a fixar-lhe a pena. A culpabilidade é mais elevada, considerando que o valor do convênio é considerável, o que torna a conduta, analisada de forma concreta, mais gravosa. Não há notícia nos autos de antecedentes criminais. Não há informações a respeito da conduta social do réu. Quanto à sua personalidade, não há registros que a desabona. Os motivos e as circunstâncias do crime são inerentes à espécie. As consequências do crime são desfavoráveis ao réu, tendo em vista que a má aplicação da verba pública tenha como destino a construção de uma escola municipal, cuja deficiência é notória; Por fim, não há falar no caso em comportamento da vítima. Não existem, no caso, circunstâncias atenuantes ou agravantes nem causas de aumento ou diminuição da pena, motivo pelo qual torno a pena definitiva em 1 (um) ano e 1 (um) mês de detenção. Em face do disposto no art. 44, incisos I e III, e § 2º, segunda parte, c/c o art. 45, § 1º, e art. 46, todos do Código Penal, e ainda considerando os motivos que levaram à fixação da pena, preenchendo o réu os requisitos do art. 44 do CP, não havendo motivo suficiente para deixar de proceder à substituição, concedo-lhe esse benefício, substituindo a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direito: a) prestação pecuniária, que, tendo em vista a condição econômica do apenado que é pecuarista e, principalmente, o valor do convênio, fixo o valor em R$ 100.000,00 (cem mil reais), a ser depositado em conta única do juízo. b) prestação de serviços à comunidade de Medicilândia, correspondente a uma hora de tarefa por dia de condenação, na forma do artigo 46, § 3º, do CP, em local a ser indicado pelo juízo da execução penal. Passo à individualização da pena do Réu Bartolomeu Lucena, considerando o disposto no art. 68 do Código Penal. Pena do crime: Delito Art.1º, III, três meses a três anos. Atendendo ao que determina o artigo 59 do Código Penal, passo a fixar-lhe a pena. A culpabilidade é mais elevada, considerando que o valor do convênio é considerável, o que torna a conduta, analisada de forma concreta, mais gravosa. Não há notícia nos autos de antecedentes criminais. Não há informações a respeito da conduta social do réu. Quanto à sua personalidade, não há registros que a desabona. Os motivos e as circunstâncias do crime são inerentes à espécie. As consequências do crime são desfavoráveis ao réu, tendo em vista que a má aplicação da verba pública tenha com destino a construção de uma escola municipal em zona rural, cuja deficiência é notória; Por fim, não há falar no caso em comportamento da vítima. Não existem, no caso, circunstâncias atenuantes ou agravantes nem causas de aumento ou diminuição da pena, motivo pelo qual torno a pena definitiva em 1 (um) ano e 1 (um) mês de detenção. Em face do disposto no art. 44, incisos I e III, e § 2º, segunda parte, c/c o art. 45, § 1º, e art. 46, todos do Código Penal, e ainda considerando os motivos que levaram à fixação da pena, preenchendo o réu os requisitos do art. 44 do CP, não havendo motivo suficiente para deixar de proceder à substituição, concedo-lhe esse benefício, substituindo a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direito: a) prestação pecuniária, que, tendo em vista ausência de informações acerca da condição econômica do apenado, e levando-se em conta o valor do convênio, fixo em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), a ser depositado em conta única do juízo. b) prestação de serviços à comunidade de Medicilândia, correspondente a uma hora de tarefa por dia de condenação, na forma do artigo 46, § 3º, do CP, em local a ser indicado pelo juízo da execução penal. DA PERDA DO CARGO Art.1º, § 2º, DL 201/67. Condeno os réus, ainda, à perda de cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular, nos termos do art. 1º, § 2º, do Decreto-Lei nº 201/67. DETRAÇÃO E REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DE PENA. O regime inicial de cumprimento de pena será o aberto, considerando o quantum da pena ser muito baixo, apesar da existência de circunstâncias desfavoráveis. DO DIREITO DE APELAR EM LIBERDADE. Considerando que o réu permaneceu em liberdade durante toda a instrução, o montante da pena aplicada e o regime inicial de seu cumprimento, bem como a ausência de qualquer circunstância justificadora de sua segregação preventiva, deverá permanecer em liberdade. VALOR MÍNIMO DA REPARAÇÃO DO DANO Deixo de fixar o valor mínimo da indenização, por não ter sido objeto de pedido inicial, sob pena de ferir o direito ao contraditório e a ampla defesa. DAS CUSTAS Condeno o réu ao pagamento das custas, nos termos do art. 804 do Código de Processo Penal. Quanto ao pedido de isenção deverá ser analisado pelo Juízo da execução penal. PERDIMENTO DE BENS Nos termos do artigo 91, incisos I e II, do Código Penal, declaro o perdimento de todos os bens em favor da União, incluindo o produto do crime e qualquer bem ou valor que constitua proveito econômico auferido pelo agente em decorrência da prática delitiva. Neste caso, deverá comprovar, o Ministério Público, na fase de execução da pena, os bens e valores diretamente relacionados à infração penal. PROVIDÊNCIAS FINAIS EM RELAÇÃO AO PROCESSO E AO RÉU Após o trânsito em julgado: a) comunique-se à autoridade policial e ao Tribunal Regional Eleitoral, para os fins do artigo 15, III, da Constituição Federal; b) oficie-se ao órgão de estatística, para os fins do artigo 809 do CPP; c) Realize-se o cumprimento dos perdimentos dos bens e destruição; d)expeça-se a guia de recolhimento definitiva e distribua-se os autos no SEEU. Altamira, data da assinatura digital. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. (assinatura eletrônica). JUIZ FEDERAL
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Processo nº 1037175-40.2023.4.01.0000
ID: 292902517
Tribunal: TRF1
Órgão: Gab. 16 - DESEMBARGADOR FEDERAL FLAVIO JARDIM
Classe: AGRAVO DE INSTRUMENTO
Nº Processo: 1037175-40.2023.4.01.0000
Data de Disponibilização:
09/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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LUIS INACIO LUCENA ADAMS
OAB/DF XXXXXX
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CAROLINA MAR AZEVEDO
OAB/AM XXXXXX
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IVAN DE SOUZA QUEIROZ
OAB/AM XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDI…
JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDIGENA MURA REPRESENTANTE(S) POLO ATIVO: IVAN DE SOUZA QUEIROZ - AM4297 POLO PASSIVO:Ministério Público Federal (Procuradoria) e outros REPRESENTANTE(S) POLO PASSIVO: CAROLINA MAR AZEVEDO - AM8627-A, LUIS INACIO LUCENA ADAMS - DF29512-A, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133, GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133 e GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882 RELATOR(A):FLAVIO JAIME DE MORAES JARDIM PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 RELATÓRIO Agravo de Instrumento interposto em 14.9.2023, pelo Conselho Indígena Mura (CIM), contra decisão da 1ª Vara Federal do Amazonas (id. – ID 1769860076), que suspendeu o resultado de consulta ao povo indígena Mura até que fossem cumpridos requisitos ambientais, legais e constitucionais, no contexto da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). A ação, na origem, busca a anulação da Licença Prévia emitida pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas- IPAAM à Potássio do Brasil Ltda. referente à exploração de silvinita/potássio em Autazes/AM, alegando incompetência do órgão emissor e ausência de consulta prévia aos povos indígenas afetados. O agravante argumenta que a decisão violou sua autonomia, destacando que a consulta foi conduzida conforme protocolo próprio e recursos próprios, com representantes de 46 aldeias. Sustenta que a suspensão judicial desrespeita o resultado soberano da consulta, gera prejuízos financeiros e configura cerceamento de defesa. O CIM defende ainda que os direitos minerários da empresa foram desmembrados de terras indígenas, afastando a necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração mineral. Ao final, requer efeito suspensivo à decisão agravada, permitindo a conclusão e consideração da consulta nos autos antes de eventual sentença. Defende a existência de prejuízos irreparáveis caso o processo seja decidido sem incorporar o resultado da consulta, e reafirma o pedido de Justiça Gratuita, por ser entidade sem fins lucrativos. Foi requerida, ainda, a gratuidade de justiça. Após a distribuição, por meio da petição id. 347816151, foram juntadas atas de reuniões realizadas nos dias 15, 16, 18 e 22.8.2023, nas quais o agravante alega que foi dado início dado procedimento de consulta para representantes de 46 aldeias. Despacho de id. 348177162 intimou os agravados a apresentar contrarrazões e sobrestou a análise do pedido de liminar. Antes de escoado o prazo, o agravante apresentou petição (id. 350573644) comunicando que o Povo Mura de Autazes, nos dias 21 e 22.09.2023, finalizou a Consulta sobre o Projeto Potássio Autazes e outras questões relevantes, de acordo com a ata anexa. Destacou que foi aprovado o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta. Informou, ainda, que foi aprovado pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil faça a mineração. Requereu, assim, a atribuição de efeito suspensivo ao agravo. A Potássio do Brasil Ltda. apresentou as contrarrazões de id. 360785149. Noticiou a existência de decisão da Presidência do TRF1, a qual, nos autos da SLS nº 1040729-80.2023.4.01.0000, suspendeu a decisão original, entendendo que a paralisação antecipada do licenciamento interfere na competência administrativa e nas normas constitucionais que regulam a exploração mineral em terras indígenas. No mais, a Potássio do Brasil Ltda. adere aos argumentos do agravante, solicitando a reforma da decisão agravada. O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) apresentou as contrarrazões de id. 367016144, aduzindo que o projeto e suas jazidas estão a 8 km das terras indígenas mais próximas e que a legislação atual estabelece o critério territorial para definir competências ambientais. Assim, considera desnecessária a autorização do Congresso Nacional, pois não há exploração direta em terras indígenas. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. O IBAMA apresentou a petição id. 368864139 informando carecer de interesse em apresentar contrarrazões em face do mencionado recurso de agravo de instrumento, uma vez que sua posição nos autos de origem sempre foi no sentido de que não possui competência legal para conduzir o licenciamento ambiental em questão e, tampouco, para intervir no âmbito da consulta livre, prévia e informada que deve ser realizada perante a comunidade indígena que venha a ser afetada pelo empreendimento. A FUNAI protocolou a manifestação de id. 369353129. Inicialmente, a FUNAI argumenta pela perda superveniente do objeto do agravo, uma vez que nova decisão foi proferida pelo juízo de origem, abordando fatos e fundamentos distintos, como a inexistência de consulta válida com participação de todos os indígenas afetados, especialmente da Comunidade Lago Soares. A decisão, prolatada por meio do id. 190941615, relata coações, pressões e irregularidades promovidas pela empresa Potássio do Brasil e seus representantes. Entre as medidas adotadas, destaca-se a suspensão do licenciamento ambiental pelo IPAAM e de atos vinculados ao empreendimento, além da fixação de multas e proibição de práticas coercitivas. No mérito, a FUNAI defende a manutenção da decisão agravada, ressaltando que a consulta ao povo Mura é imprescindível, mas deve observar a inclusão de todas as comunidades potencialmente afetadas. A instituição destaca a necessidade de conclusão dos estudos demarcatórios da Terra Indígena Lago do Soares e Urucurituba, conduzidos por grupo técnico da FUNAI, para garantir a legitimidade e abrangência da consulta. Por fim, a FUNAI solicita, em preliminar, o não conhecimento do agravo por perda de objeto e, subsidiariamente, o seu desprovimento, mantendo a decisão que suspendeu o resultado da consulta e os atos administrativos relacionados ao empreendimento até o cumprimento dos requisitos legais. A ORGANIZAÇÃO DE LIDERANÇAS INDÍGENAS MURA DE CAREIRO DA VÁRZEA - OLIMCV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES apresentou a manifestação de id. 357658659. Defenderam a ilegitimidade e a invalidade da consulta realizada para aprovação do Projeto Potássio Autazes, apontando graves violações ao Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Mura de Autazes e Careiro da Várzea. O documento destaca que o Conselho Indígena Mura (CIM), ao conduzir a consulta, ignorou a inclusão de comunidades contrárias ao projeto, como a Aldeia Soares, e promoveu reuniões com fortes indícios de coação, pressão e manipulação, em desrespeito às diretrizes estabelecidas no protocolo previamente aprovado pelas comunidades. Além disso, aponta a participação irregular de representantes da empresa Potássio do Brasil Ltda., prática vedada no contexto das reuniões internas. As lideranças contrárias ao empreendimento denunciaram promessas de compensações financeiras, irregularidades na condução das consultas e a tentativa de impor um novo protocolo de consulta para fragmentar a representação do povo Mura, excluindo as aldeias do município de Careiro da Várzea. A defesa ressalta ainda que a consulta não foi realizada de forma ampla, livre e informada, como determina a Convenção 169 da OIT. Em termos jurídicos, as contrarrazões pedem o reconhecimento da nulidade do resultado da consulta e a manutenção da decisão judicial de suspensão do licenciamento ambiental e de atos administrativos relacionados ao projeto até que sejam cumpridos os requisitos legais e constitucionais, com participação efetiva de todas as comunidades afetadas. O parecer id. 373711134, ofertado pelo MPF, pugna pelo desprovimento do agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura por perda superveniente do objeto. É o relatório. PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL FLÁVIO JARDIM - Relator: I. Estão preenchidos os requisitos de admissibilidade. A peça, subscrita por profissional legalmente habilitado, (a) foi protocolada no prazo legal. O agravante requereu seja o preparo dispensado em razão da hipossuficiência, o que defiro. Conheço do Recurso. II. A decisão agravada, datada de 25.8.2023, no que interessa (id. 1769860076): III. Este agravo foi protocolado pelo Conselho Indígena Mura – CIM e visa a suspender os efeitos da decisão agravada de id. 1769860076, proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, movida pelo MPF. Contra essa decisão, também foram interpostos os seguintes recursos: (i) AI nº 1039810-91.2023.4.01.0000, protocolado pela Potássio do Brasil Ltda. (ii) AI nº 1042776-27.2023.4.01.0000, protocolado pelo Ibama; (iii) Ai nº 1043035-22.2023.4.01.0000, protocolado pela União. No agravo, é postulado que a decisão agravada seja reformada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". III.a. A Relevância do Projeto Potássio-Autazes Consoante destacou a União em petição protocolizada nestes autos, "o Projeto Autazes foi habilitado, na forma do Decreto nº 10.657/2021, pelo Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos – CTAPME, para integrar a política de apoio ao licenciamento ambiental de projetos de investimento para a produção de Minerais Estratégicos – Pró Minerais Estratégicos, em 28 de setembro de 2021." [1] Segundo o que assevera a União, "[d]e acordo o que dispõe o Decreto nº 10.657/2021, os projetos minerários habilitados na Política de Pró-Minerais Estratégicos são considerados prioritários ao país em razão dos seguintes critérios (art. 2º): i) alto percentual de importação para suprimento de setores vitais da economia; ii) aplicação em produtos e processos de alta tecnologia e iii) vantagens comparativas e essencial para a geração de superavit da balança comercial do país." [id.] A União complementa que o projeto "visa a exploração de minério cloreto de potássio, fertilizante fundamental para a agricultura nacional." [id.] Pelas informações prestadas, "o Brasil importa 95% do cloreto de potássio que utiliza para fertilização do solo, ostentado o título de maior importador mundial de potássio, com 10,45 milhões de toneladas adquiridas em 2019, de acordo com dados do Ministério da Economia." [id.] A previsão da empresa é de "atender cerca de 25% do consumo nacional do minério, reduzindo a dependência interna do produto por mais de 30 anos." [id.] A União ainda aponta que a relevância do projeto foi exacerbada com o recente cenário de guerra entre Ucrânia-Rússia: "Ocorre que as recentes sanções econômicas impostas à Bielorrússia, responsável por ¼ de toda produção mundial de cloreto de potássio, gerou enorme preocupação no setor agroindustrial brasileiro em razão da possível escassez do minério, o que poderá impactar o custo de produção e, consequentemente, o aumento do preço dos alimentos. Observa-se, assim, que o desenvolvimento de projetos minerários com capacidade de aumentar significativamente a oferta de fertilizantes ao mercado interno, reduzindo a dependência estrangeira, é essencial para a proteção dos pequenos produtores de alimentos e da população mais vulnerável à variação de preço dos alimentos. [...] Além disso, há apenas três grandes players produtores no mundo, sendo que em dois deles, Rússia e Bielorrússia, há interferência dos governos na atuação internacional das empresas. As duas últimas crises mundiais de fertilizantes, em que os preços ao produtor rural aumentaram mais de 150% em menos de seis meses, ocorreram por ocasião da atuação das empresas de fertilizantes potássicos. Na atual crise de fertilizantes, o primeiro nutriente a faltar para o Brasil foi o potássio." [id.] Segundo o ente público, há altíssima dependência nacional de fertilizantes estrangeiros, o que torna o país ainda mais vulnerável, pois os grandes produtores agrícolas mundiais possuem autonomia no fornecimento de fertilizantes: "O Brasil vem presenciando, nos últimos anos, um forte aumento nas importações de fertilizantes. Estima-se que, em 2020, mais de 80% dos que foram consumidos no Brasil são de origem estrangeira, respondendo a produção nacional por menos de 20% da demanda do país. Estrategicamente, todos os países que são grandes produtores agrícolas no mundo, têm autonomia no fornecimento de fertilizantes, uma vez que produzem, no mínimo, 50% da sua demanda anual, exceto o Brasil. A dependência se agrava quando se verifica que o Brasil deverá responder por quase metade da produção mundial de alimentos nos próximos anos, aumentando proporcionalmente a demanda por fertilizantes. Atualmente, o Brasil é o quarto consumidor global de fertilizantes, responsável por cerca de 8% desse volume e é o maior importador mundial, ou seja, é o país com a maior dependência externa por fertilizantes." [id.] A variação de preços da commodity é também apontada como fator de preocupação, tendo em vista que há ciclos de crises mundiais que elevam os preços a níveis acima do padrão: "Aumentos nos preços desses insumos acontecem em ciclos de crises mundiais, como em 2008 e 2021, períodos em que foram registrados os maiores preços da história. Esse cenário impacta negativamente na competividade dos produtos agrícolas brasileiros, pois os fertilizantes já ocupam mais de 40% do custo de produção de culturas importantes como soja, milho e algodão, que compõem as principais exportações do agronegócio brasileiro, tornando o produto nacional menos competitivo." [id.] Assim, a conclusão da União é a de que "o Projeto Autazes pode proporcionar ao Brasil uma arrancada em direção à segurança do fornecimento de fertilizante potássicos para o país." [id.] Abaixo, as características físicas do projeto: Vale ressaltar que se cuida de empreendimento significativamente menor do que, por exemplo, a UHE Belo Monte, que possui dois reservatórios de regularização, com área total de 478 km², sendo 274 km² do leito original do Rio Xingu. Os dois reservatórios são o Reservatório Xingu, com 359 km², e o Reservatório Intermediário, com 119 km. É, desde já, importante destacar que no caso Comunidade Indígena Yakye vs. Paraguai, decidido em 17.6.2005, a Corte Interamericana de Direitos Humanos assentou que a propriedade indígena pode sofrer restrições quando presente interesse social e um objetivo estatal legítimo. Confira-se trecho do voto: Constam dos autos, ainda, diversas matérias jornalísticas de 2022 informando problemas de escassez do cloreto de potássio no mercado mundial, devido à guerra na Ucrânia (id. 970735666). No volume 3, consta ainda a Nota n. 00144/2023/CONJUR-MAPA/CGU/AGU, a qual atesta que a demanda por fertilizantes potássicos aumentará bastante nos próximos anos e que a produção nacional está decaindo: O documento ainda atesta que o Projeto Autazes está intimamente ligado com caros direitos fundamentais de índole social e com os fundamentos da ordem econômica, os quais incumbe a Administração dar concretude: Por fim, requer-se a aplicação do art. 20 da LINDB no julgamento desta ACP n. 0019192-92.2016.4.01.3200: "Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas." Diante do quadro apresentado, sem resolver a questão sobre o local em que será instalado o projeto minerário é ou não terra indígena, há aparência de que o projeto possui interesse social, eis que visa a fornecer insumos para a agricultura -, e também persegue um objetivo estatal legítimo, podendo ser executado inclusive se estiver em terras indígenas, desde que obedecida a legislação brasileira. III.b. O Conselho Indígena Mura - CIM e a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV O Conselho Indígena Mura - CIM é inequivocamente a entidade representativa dos Mura que residem em Autazes. Da mesma forma, a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV é a organização que representa os Mura no município do Careiro da Várzea. Essa circunstância é inequívoca dos autos e está consignada no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Careiro da Várzea, Amazonas. Confira-se à fl. 30, no capítulo "Quem Fala Em Nome dos Mura?": "Apesar de a Constituição Federal garantir que nossas terras sejam demarcadas, o Estado ainda não demarcou todas. A demarcação é nossa maior luta. "Mas nós sabemos que temos direito à nossa autodeterminação e ao autogoverno. A Constituição Federal de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, e a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, de 2007, assinadas pelo Brasil, garantem nosso direito ao autogoverno: somente nós, Mura, podemos decidir quem representa nossas aldeias e nosso povo. Por isso criamos as nossas organizações. As aldeias da região onde fica o município de Autazes se reúnem nas assembleias do Conselho Indígena Mura - CIM, e as aldeias que ficam na região onde está o município do Careiro da Várzea se reúnem nas assembleias da Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea, OLIMCV. Estas nossas organizações são um direito nosso, assegurado pela Constituição Federal (art. 5º): temos o direito de nos organizar livremente e de tomar nossas decisões de maneira soberana e autônoma nas assembleias das nossas organizações. Quando os não-índios querem elaborar um projeto, medida ou lei, são obrigados a nos consultar antes, sem nos pressionar e nos informando sobre todos os detalhes da proposta. Para começar esse diálogo, que é a consulta prévia, os não-índios " III.c. As Entidades Representativas e o Poder de Fala dos Povos Originários Nos termos do art. 32 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, são as instituições representativas dos povos originários que devem falar pelos indígenas em fases de consulta. Confira-se: "1. Os povos indígenas têm o direito de determinar e de elaborar as prioridades e estratégias para o desenvolvimento ou a utilização de suas terras ou territórios e outros recursos. 2. Os Estados realizarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas próprias instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre e informado antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particularmente em relação ao desenvolvimento, à utilização ou à exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo. 3. Os Estados estabelecerão mecanismos eficazes para a reparação justa e equitativa dessas atividades, e serão adotadas medidas apropriadas para mitigar suas consequências nocivas nos planos ambiental, econômico, social, cultural ou espiritual." Também no caso do Povo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Equador, sentença de 27 de junho de 2012, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi expressamente consignado que “os Estados devem incorporar essas normas aos processos de consulta prévia, de maneira a gerar canais de diálogos sustentados, efetivos e confiáveis com os povos indígenas nos procedimentos de consulta e participação por meio de suas instituições representativas." Sendo assim, como as consultas e cooperação entre indígenas devem ser verbalizadas por meio das suas instituições representativas, não há dúvidas de que, no caso em concreto, quem deve falar sobre os interesses dos Muras de Autazes é o CIM e pelos Mura de Careiro da Várzea é a OLIMCV. A própria decisão de id. 925987687, do Juízo de origem, reconhece que o CIM é a instituição que representa parte do Povo Indígena Mura nestes autos: III.d. A Abrangência do Dever de Consulta, a Inexistência do Poder de Veto e o Momento Adequado Sobre a abrangência do dever de consulta, no document Handbook for ILO Triparte Constituents - Understanding the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), publicado pela OIT, com a finalidade de responder questões essenciais sobre a Convenção 169, é dito que um dos principais desafios da convenção é garantir que consultas apropriadas sejam realizadas antes da adoção de medidas legislativas ou administrativas que provavelmente afetarão diretamente os povos indígenas e tribais [2]. Segundo o que decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos em Garífuna Triunfo de La Cruz e seus membros vs. Honduras, os elementos essenciais do direito de consulta são “a) o caráter prévio da consulta; b) a boa-fé e a finalidade de chegar a um acordo; c) a consulta adequada e acessível; d) o estudo de impacto ambiental; e e) a consulta informada.” É incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública. Essa ideia é pedagogicamente explicada na obra "The Oxford Handbook of International Enviromental Law", de Lavanya Rajamani e Jacqueline Peel, ao tratar da Convenção 169 da OIT (pág. 739): "Governments shall consult, 'in good faith...with the objective of achieving agreement or consent to the proposed measures' when considering legislative or administrative measures which may affect Indigenous peoples directly. Special measures to safeguard persons, institutions, property, labour, cultures, and environment of the Indigenous peoples shall not be contrary to the freelyexpressed wishes of the peoples concerned. The Convention acknowleges Indigenous peoples to be distinct polities within states". Em tradução livre: "Os governos deverão consultar, 'de boa fé... com o objetivo de chegar a acordo ou consentimento para as medidas propostas' ao considerar medidas legislativas ou administrativas que possam afetar diretamente os povos indígenas. Medidas especiais para salvaguardar pessoas, instituições, propriedades, trabalho, culturas e meio ambiente dos povos indígenas não devem ser contrárias aos desejos livremente expressos dos povos envolvidos. A Convenção reconhece os povos indígenas como entidades políticas distintas dentro dos Estados". Portanto, devem os indígenas expressar livremente seus modos de criar, fazer e viver, nos termos do art. 216, II, da Constituição e devem ser ouvidos propriamente quando puderem ser afetados por medidas que os impactem. Mas não basta. É indispensável que suas ideias, expressadas num ambiente livre e sem intimidações, sejam consideradas pelo órgão ambiental e pelo poder público, como um todo, ao analisar o licenciamento e/ou autorização para uma obra ou empreendimento que puderem afetar tais comunidades tradicionais. Em outras palavras, esse poder de fala (livre) dos indígenas gera, em contrapartida, um dever de escuta das autoridades envolvidas. É importante esclarecer, porém, que isso não significa a existência de um poder de veto por parte da comunidade indígena. Realizar a consulta é uma obrigação convencional, com força supra legal. Acatar necessariamente a integralidade do que for demandado não parece ser, ao menos pelo que constatei da jurisprudência do STF e do que consta em documentos da própria OIT. Confira-se, nesse sentido, o que já decidiu o STF, no julgamento da PET 3388 ED/RR: "70. Por fim, conforme observado pelo Ministro Gilmar Mendes, a relevância da consulta às comunidades indígenas “não significa que as decisões dependam formalmente da aceitação das comunidades indígenas como requisito de validade” (fl. 799). Os índios devem ser ouvidos e seus interesses devem ser honesta e seriamente considerados. Disso não se extrai, porém, que a deliberação tomada, ao final, só possa valer se contar com a sua aquiescência . Em uma democracia, as divergências são normais e esperadas. Nenhum indivíduo ou grupo social tem o direito subjetivo de determinar sozinho a decisão do Estado. Não é esse tipo de prerrogativa que a Constituição atribuiu aos índios. 71. A mesma lógica se aplica em matéria ambiental, que também mereceu proteção diferenciada por parte do constituinte. Por isso mesmo, e com a devida vênia em relação à posição da embargante (fl. 16.165), não há um problema a priori no fato de que “as tradições e costumes indígenas” sejam considerados como “apenas mais um fator, a ser sopesado pela autoridade ambiental”. Em verdade, essa é uma circunstância inerente à unidade do sistema constitucional, que promove a tutela de um conjunto variado de interesses e direitos que, em diversas situações, podem entrar em rota de colisão. Ao não instituir uma hierarquia rígida ou estática entre tais elementos, a Constituição impõe a necessidade de que a concordância entre eles seja produzida em cada contexto específico, à luz de suas peculiaridades. 72. Assim, como responsável pela administração das áreas de preservação, o Instituto Chico Mendes não pode decidir apenas com base nos interesses dos indígenas, devendo levar em conta as exigências relacionadas à tutela do meio ambiente. Nesse cenário, é de fato possível – como afirma a embargante – que “o administrador da unidade de conservação, até pela sua posição institucional, ponha em primeiro plano a tutela ambiental, em detrimento do direito das comunidades indígenas”. Contudo, é igualmente possível que isso não ocorra, não cabendo a este Tribunal antecipar o erro, a negligência ou a má-fé. Em qualquer caso, os índios, suas comunidades e o próprio Ministério Público poderão recorrer ao Poder Judiciário sempre que reputarem inválida uma decisão do Instituto (ou de qualquer outra autoridade)." (Emb. Decl. na Petição 3.388/RR, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 23.10.2013) No mesmo sentido, são os comentários feitos no documento editado em 2019, pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, intitulado Excerpts from reports and comments of the ILO Supervisory Bodies - Applying the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), disponível no site da organização: Confira-se o que está dito nas fls. 48-49 do referido documento: "Concerning the nature of consultation, from the review of the preparatory work concerning Convention No. 169 and from the review of the wording of the two authoritative texts of the Convention, the Committee concludes that it was the intention of the drafters of the Convention that the obligation to consult under the Convention was intended to mean that: 1) consultations must be formal, full and exercised in good faith; 26 there must be a genuine dialogue between governments and indigenous and tribal peoples characterized by communication and understanding, mutual respect, good faith and the sincere wish to reach a common accord; 2) appropriate procedural mechanisms have to be put in place at the national level and they have to be in a form appropriate to the circumstances; 3) consultations have to be undertaken through indigenous and tribal peoples’ representative institutions as regards legislative and administrative measures; 4) consultations have to be undertaken with the objective of reaching agreement or consent to the proposed measures It is clear from the above that pro forma consultations or mere information would not meet the requirements of the Convention. At the same time, such consultations do not imply a right to veto, nor is the result of such consultations necessarily the reaching of agreement or consent." [3] A tradução livre deste trecho é a seguinte: "Quanto à natureza da consulta, da revisão dos trabalhos preparatórios relativos à Convenção nº 169 e da análise dos textos das duas versões autorizadas da Convenção, o Comitê conclui que os redatores da Convenção tinham a intenção de que a obrigação de consultar sob a Convenção significasse o seguinte: as consultas devem ser formais, completas e exercidas de boa fé; deve haver um diálogo genuíno entre os governos e os povos indígenas e tribais caracterizado pela comunicação e entendimento mútuos, respeito mútuo, boa fé e o sincero desejo de alcançar um acordo comum; mecanismos procedimentais apropriados devem ser estabelecidos no nível nacional e devem estar em uma forma adequada às circunstâncias; as consultas devem ser realizadas por meio das instituições representativas dos povos indígenas e tribais no que se refere a medidas legislativas e administrativas; as consultas devem ser realizadas com o objetivo de alcançar acordo ou consentimento quanto às medidas propostas. É claro a partir do exposto que consultas meramente formais ou simples fornecimento de informações não satisfariam os requisitos da Convenção. Ao mesmo tempo, tais consultas não implicam um direito de veto, nem o resultado dessas consultas necessariamente é o alcance de um acordo ou consentimento." É essencial, assim, deixar claro que a opção pelo empreendimento, ou não, é do Poder Público e a ele compete, respeitando os termos da Constituição e da legislação, licenciá-lo. Por fim, sobre o momento da consulta, no caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador, decidido em 27.12.2012, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi também referido que o “requisito de consulta prévia implica que essa consulta deva ser realizada antes de tomar-se a medida, ou executar o projeto suscetível de afetar as comunidades [...] e que as comunidades sejam envolvidas o quanto antes no processo”. III.e. Análise das alegações do agravo de instrumento Pois bem, apresentados estes esclarecimentos introdutórios, passa-se ao exame do agravo. Como dito, no recurso, é postulada a reforma da decisão agravada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". Ou seja, o que se deseja é que seja reconhecida como válida da consulta efetivada, bem como que seja definido que a área do projeto não é terra indígena, consequencia lógica para se afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional (art. 231, § 3º, CF). III.e.1. O Processo de Consulta no Caso Concreto O processo de consulta, no caso em questão, demandou anos para ser realizado. Pela análise dos autos, é possível perceber que o anúncio da descoberta das minas se deu 2010 e 2013 e o Estudo de Impacto Ambiental foi concluído em 2015 (id. 296953002), assim como a emissão da licença prévia pelo IPAAM, cuja validade é questionada na origem. Como a Ação Civil Pública nº 0019192-92.2016.4.01.3200 foi ajuizada em 2016, todo o processo de consulta foi acompanhado pelo Juízo. Antes de iniciar a fase de consulta, em 7.5.2018, foi determinada a suspensão de qualquer atividade de prospecção por parte da Potássio do Brasil Ltda., para que fosse iniciada a construção de um protocolo de consulta. O Juízo inclusive homologou a designação um antropólogo, o Dr. Bruno Walter Caporrino, para mediar, facilitar e presidir os trabalhos de construção do protocolo de consulta, tendo este sido remunerado pela Potássio do Brasil Ltda. Tanto a FUNAI, como o DNPM foram devidamente cientificados do procedimento definido. Confira-se o inteiro teor da decisão (id. 297015035): Ou seja, o presente caso apresenta uma particularidade em relação aos que normalmente são judicializados: toda a fase de consulta foi acompanhada pelo Juízo. É interessante verificar também o inteiro teor dos relatórios das oficinas realizadas nas aldeias, cuja elaboração coube ao Dr. Bruno Walter Caporrino. São trabalhos bastante extensos e ricos em em destacar o procedimento que estava sendo levado a efeito pelo perito. Por exemplo, o relatório constante do id. 297015043, protocolado nos autos em 2018, contém 169 páginas e é encaminhado por meio do ofício abaixo, com os seguintes termos: As seguintes aldeias foram visitadas: Ao todo, foram 19 atividades: Posteriormente, ainda houve a protocolização de relatórios complementares em 2019 (fls. 1255 - 1719 - id. 297031909). Após, houve uma Assembleia de Aprovação do Protocolo de Consulta e Consentimento Mura em 18.6.2019. A Lista de presença está à fl. 1.780-1.810 e a ata ás fls. 1.758-1779 - id. 297031909. Há juntada de DVDs com a audiência gravada e também de cópia impressa do protocolo (fls. 1.825-1.880 - id. 297047874). O procedimento foi plenamente aceito por todas as partes envolvidas, chegando o MPF, na petição de 11.9.2019 (fl. 1.906-1.909) a afirmar que se cuida de relevante momento para o Estado democrático de direito. Frise-se que as aldeias do Soares e Careiro receberam Oficinas, conforme acima relatado. Ficou também expresso que o princípio da vinculação ao aos termos do referido instrumento deveria reger a relação e que estava sendo inaugurado um interesse diálogo das fontes: Posteriormente, foi realizada audiência judicial na qual foi acordado que a Potássio do Brasil Ltda. entregaria até o dia 18.11.2019 a proposta do empreendimento oficialmente ao CIM e à OLIMCV. Confira-se a parte final da ata: Ato contínuo, em 18.11.2019, foi protocolada petição pela Potássio do Brasil Ltda. comunicando a entrega do material ao CIM e ao OLIMCV, as quais responderam confirmando o recebimento da documentação e dando o aceite no início do processo de consulta (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). O protocolo também foi feito perante a Justiça Federal, o MPF e o perito do juízo foi copiado nos emails. Em relação às características do empreendimento, foi informado o seguinte em documentos acostados aos autos: Após, com o início da pandemia da COVID-19, o processo sofreu atrasos e apenas foi retomado em 2021, depois da vacinação dos Mura. Foi apresentado orçamento da consulta, equivalente a R$ 1.258.687,90 (id. 637592027). Foi estabelecido um cronograma de reuniões com dos Povos Mura informado pelo CIM (id. 830734065), sendo que o plano era a conclusão até o final de maio de 2022: Após, foi realizada inspeção judicial em 29.3.2022 (Relatório - id. 1061672277) o que representou mais uma paralisação no processo. O ponto mais relevante consignado foi o seguinte: Em seguida, houve notícia de que o MPF protocolou a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200, mediante a qual pleiteia que seja concluída a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Ato contínuo, petição de 20.9.2022, o MPF relatou a existência de pressões e coações por parte da empresa sobre os povos indígenas de Autazes e região e a sobreposição da exploração minerária pretendida pela Potássio do Brasil Ltda. ao referido território tradicional indígena. Ademais, aduziu o MPF que as estruturas minerárias seriam construídas a aproximadamente dois quilômetros da área de moradia (casas da aldeia Soares), e dentro da área indígena reivindicada, território de uso tradicional do povo Mura. Nesse contexto, requer a suspensão da licença expedida quanto ao Projeto Potássio Amazonas/Autazes, bem como a suspensão do procedimento de consulta prévia até finalização do procedimento de demarcação do território (ACP 1015595-88.2022.4.01.3200), no qual haveria liminar concedida. Sobre esse pedido, a FUNAI se manifestou sobre a ausência de indícios de tradicionalidade (id. 1419622747): Após, em 16.2.2023, a FUNAI fez juntar aos autos documento intitulado Análise Cartográfica nº 138/2023, mediante a qual apresentou as seguintes conclusões (id. 1496199359): Veja-se, então, que se diz expressamente que há uma área de sobreposição, mas ao mesmo tempo afirma-se que há uma distância de 2,52 km da aldeia Soares da base de exploração. Foi também apontada uma área de influência considerada uma área de 10 km a partir da área total do “Projeto Potássio Amazonas – Autazes”, nos termos do Anexo I da Portaria Interministerial nº 60/2015 da FUNAI. O mapa trazido na inicial permite a compreensão da área: É curioso notar que a existência de indígenas e também de não indígenas na área do Lago do Soares foi identificada quando da demarcação da Terra Indígena Jauary, mas não entendeu-se que o local onde será instalado a base de exploração da Potássio do Brasil Ltda. não deveria ser abarcado no perímetro da respectiva terra. Confira-se a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): É importante perceber também que, segundo informações da FUNAI, o município de Autazes possui mais de 20 terras indígenas regularizadas ou em processo de demarcação. Ou seja, não é um município em relação ao qual já não se tenham sido feitas delimitações de áreas de tradicionalidade indígena. Além disso, é válido destacar que no Caso Povos Kaliña e Lokono VS. Suriname, decidido em 2015, ficou estabelecido que “para efeitos de delimitação, demarcação e titulação do território tradicional [...], a Corte estima que o direito à propriedade dos povos indígenas e tribais contempla garantias plenas sobre os territórios que tradicionalmente possuíram, ocuparam e utilizaram para exercer sua própria forma de vida, subsistência, tradições, cultura e desenvolvimento como povos”. No entanto a Corte assinalou que “sem prejuízo do exposto, existiriam outras áreas tradicionais complementares ou adicionais às que tenham tido acesso para suas atividades tradicionais ou de subsistência (que, caso seja conveniente, podem compartilhar outras finalidades), a respeito das quais se deve garantir, pelo menos, o acesso e uso, na medida em que seja cabível.” Ou seja, para a CIDH, nem toda área área que os indígenas utilizem para subsistência ou mesmo habitem configura necessariamente uma Terra Indígena. Chama a atenção o fato de que a própria inspeção judicial constatou a presença de populações ribeirinhas na região do Lago do Soares, as quais, ao que parece, estão lá também há muitos anos, sendo que existe uma convivência aparentemente harmoniosa: Na inicial da ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 é também reconhecida a existência de indígenas e ribeirinhos, tendo em vista que há aldeias e povoados na região: No caso acima a Corte também constatou que “efetivamente, dentro do território que os Povos Kaliña e Lokono alegam ser seu território tradicional, haveria, pelo menos 10 assentamentos maroons que estariam excluídos dessa queixa, a saber: 1) Albina; 2) Papatam; 3) Mankelekampu; 4) Mariakondre; 5) Eduardkondre; 6) Akoloikondre; 7) Bamboesi; 8) Koni; 9) Moengotapu; e 10) Adjoemakondre [...]. No entanto, a Corte não dispõe de informação suficiente que lhe permita esclarecer os argumentos relacionados a possíveis assentamentos maroons em: 1) Bilokondre; 2) Krontokondre; 3) Soke; 4) Pakirakondre; 5) Mopikondre; 6) Onikaikondre; 7) Manjabong; 8) Bonikondre ou Baajoebekampu; 9) Nengrekriki; 10) Solegakampu; e 11) Brunswijkkamp […]” E disse que, “sem prejuízo do exposto, sendo que é dever do Estado delimitar os territórios tradicionais, cabe a ele, mediante um processo consultivo e mediante as medidas necessárias de caráter administrativo e legais, conforme as normas internacionais na matéria, primeiramente delimitar os territórios que cabem aos Povos Kaliña e Lokono, em conformidade com o parágrafo 139 desta sentença, para assim proceder a sua demarcação e titulação, garantindo seu uso e gozo efetivo. Para isso, o Estado também deve respeitar os direitos que possam assistir aos povos tribais ou a seus membros na área. Para isso, o Estado deverá desenvolver, de comum acordo com as comunidades indígenas e maroons, regras de convivência pacíficas e harmoniosas no território em questão.” Por fim, o CIM, em 25.9.2023, protocolou petição comunicando que (i) aprovou o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta, bem como que (ii) aprovou pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil Ltda. faça a mineração. Eis a petição (id. 1829380152): Em anexo, foi apresentado o Relatório das Lideranças Mura de Autazes (id. 1829380154): Não houve juntada de documento de aprovação ou de rejeição do OLIMCV. Houve inclusive alteração do Protocolo de Consulta, excluindo a participação do OLIMCV, ou seja, dos Mura do município do Careiro da Várzea, em relação à deliberação da agravante. III.e.2. A Validade da Consulta Efetivada Cumpre examinar a validade da Consulta efetivada. Com efeito, foi devidamente reconhecido com ao CIM compete emitir manifestação de vontade sobre o Povo Mura de Autazes. Pela dicção do art. 6º da Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, “ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”. Não parecem existir argumentos que possam permitir que, ao menos em sede de cognição sumária, que a consulta realizada ao povo CIM não tenha sido efetuada com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. Como se depreendeu do histórico acima, houve um amplo debate com o Povo Mura de Autazes para entender o que significava o processo de consulta, compreender a relevância de examinar o projeto e também os direitos que terão frente a ele. O processo foi iniciado há quase 10 anos. Há notícias de oficinas, reuniões, audiências públicas. A aparência é que tenha sido um processo livre, eis que ainda houve acompanhamento judicial das etapas, algo que não é o usual. Seguiu-se, assim, o que havia determinado a FUNAI (fl. 1362 - id. 297018889): Não há notícia de que o CIM tenha alterado o posicionamento externado na petição acima. Este Relator recebeu as lideranças em seu Gabinete em Audiência e tudo foi reafirmado. Apesar de a consulta ter sido realizada após a emissão da licença prévia pelo IPAAM, ela foi feita antes de concretizado qualquer ato de instalação e exploração do empreendimento. Houve inclusive acordo judicial suspendendo as etapas, até que fosse concluída a Consulta. A licença prévia ainda continha como condicionante de que era necessária a apresentação do estudo de componente indígena à Funai. Confira-se (id. 296936996 - fl. 242): Não se pode, então, dizer que a consulta não obedeceu ao momento adequado. No caso concreto, não há realisticamente como ter existido uma consulta anterior à que foi realizada, uma vez que foi feita durante os estudos para ser decidir sobre a viabilidade ou não da obra. Ou seja, fase meramente preliminar, sem qualquer ato de execução, quando já identificados os riscos do empreendimento e quando ainda há um tempo "adequado para a discussão interna nas comunidades, para oferecer uma resposta adequada ao Estado". Além disso, os indígenas aparentemente tiveram amplo acesso à documentação do empreendimento, ao EIA/RIMA, ao Estudo de Componente Indígena e tiveram ampla chance de compreender o que está sendo proposto. Não se pode dizer que a realização de consulta por meio de audiências públicas não cumpre a obrigação de adequadamente consultar os povos. Os procedimentos apropriados exigidos pela Convenção são aqueles que os indígenas acharem apropriados. Se a audiência pública for assim considerada, não há porque concluir que não é adequado para o fim pretendido. Não há nada que imponha uma forma de consulta diversa, salvo a vontade dos indígenas. Por fim, chama a atenção de que o Protocolo de Consulta tenha sido alterado no curso do processo para separar o consentimento entre o CIM, o qual, como dito acima, inequivocamente representa os Mura que residem em Autazes, e a OLIMCV, entidade representativa que representa os Mura no município de Careiro da Várzea. Esta alteração, contudo, não tem o condão de retirar a validade da consulta efetivada. Isso, porque pela leitura dos autos, percebe-se que a própria Funai sempre se manifestou no sentido de que a população indígena potencialmente afetada era a dos Mura de Autazes. Confira-se o seguinte trecho, por exemplo (fl. 1.362 – id. 297018889), em que é dito que os indígenas que deveriam ser consultados são os da Terra Indígena Jauary e Paracuhuba, as quais, consoante a Análise Cartográfica nº 138/2023, são as que estão próximas do empreendimento: Além disso, o fato de que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, dissidência do CIM, não tenham se manifestado junto com o CIM não impede que eles expressamente se pronunciem sobre a consulta. A documentação dos autos comprova que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, então parte do CIM, receberam todos os documentos relativos ao empreendimento (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). A OLIMCV inclusive confirmou o recebimento do e-mail (id. 297047889 – p. 33): Existe a comprovação de que foram recebidas diversas unidades do protocolo de consulta, requerimento de despesas para realização de reuniões (id. 297018967): Confira-se, ainda, o seguinte documento (id. 637592035): É preciso dizer que a proteção dos povos e terras indígenas é permanente para o Estado Brasileiro. A mera circunstância de que a consulta foi realizada não satisfaz a obrigação permanente de assistência e proteção desses povos, ouvindo-os sempre de boa-fé e atendendo, quando possível, as demandas pleiteadas. O que se estabelece é um diálogo permanente e não momentâneo. Se novas dúvidas surgirem, se problemas antes não imaginados forem detectados, competirá ao Estado Brasileiro lidar com as questões e sanar esses problemas, de forma a dar ampla concretude aos direitos e garantias dos povos originários. Assim, caso a OLIMCV logre comprovar que a delimitação da Funai está de que os Mura de Careiro da Várzea deveriam também ser obrigatoriamente consultados, ainda que não haja notícias de que nenhuma aldeia será diretamente impactada pelo trajeto, tal diálogo tem totais condições de ainda ser estabelecido de maneira satisfatória, com a implantação de reparações necessárias, mesmo com o projeto em curso. Adicionalmente , também é de se considerar que o fato de os Mura da aldeia do Lago de Soares, situada em Autazes, terem ficado vencidos na alteração do protocolo de consulta e, posteriormente, terem decidido romper com a autoridade constituída, qual seja, o CIM, não invalida a alteração. No modelo deliberativo adotado pelos Mura de Autazes, não há exigência de unanimidade para a aprovação da alteração, a qual, é certo, inviabilizaria a conclusão do processo. Não é possível invalidar a alteração do protocolo de consulta somente porque os Mura do Lago de Soares, submetidos, incontroversamente, à data da deliberação, à autoridade do CIM, discordam da decisão. Chancelar a nulidade da alteração diante da discordância de uma parcela dos indígenas afetados representaria a inviabilização da construção de um protocolo de consulta e de qualquer deliberação, especialmente em relação a litígios complexos, vide o caso dos autos. Na obra Constitutional Strategies, o Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Berkeley, Robert Cooter, aponta as deficiências de um sistema baseado na regra da unanimidade: “O poder de barganha depende das consequências da falha na negociação. Se uma negociação é frustrada, cada parte deve fazer o seu melhor sem a cooperação dos demais. As partes que se beneficiam menos da cooperação terão o maior poder de barganha. Como uma parte pode ter êxito sem a cooperação das demais depende da regra da ação coletiva. Primeiramente, considere a regra da unanimidade. Negociações frustradas na regra da unanimidade paralisam as ações coletivas. Consequentemente, quando barganham sob a regra da unanimidade, as regiões e as coletividades com menor necessidade de cooperação podem demandar as melhores condições.[...] A força da negociação está nas mãos dos membros potenciais de uma coalizão majoritária. Quando se negocia sob uma regra de maioria, as regiões e as localidades dentro da coalizão interna podem demandar melhores condições de cooperação dos externos”. Por fim, é importante ter em mente que tanto os povos originários representados pela OLIMCV e pela Organização dos Mura do Lago do Soares tiveram amplo tempo e conhecimento do Projeto Autazes e podem ainda se pronunciar formalmente nos autos de origem sobre o que pensam a respeito do assunto. A circunstância de que houve uma ruptura do formato conjunto de todas as organizações de deliberação do Protocolo de Consulta em nada impede que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares emitam qualquer opinião sobre o Projeto nesses autos judiciais, tampouco que apresentem essa manifestação de vontade a qualquer órgão estatal. Há, ao meu sentir, um deslocamento do debate, como se a circunstância de a alteração do Protocolo represente a inviabilização de que essa emissão de vontade não possa mais ocorrer, o que não faz qualquer sentido. Em verdade, a ausência de manifestação formal sobre o tema da consulta para depois se alegar que a Consulta não ocorreu representa um veto em branco ao Projeto, pois se busca evitar a consolidação de uma etapa necessária deslocando o foco do debate. É importante ressaltar que a CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. Veja-se que essas organizações não alegam que não estão devidamente informadas, que não tiveram tempo para se reunir ou debater, que não receberam documentos, que não tiveram como debater o projeto com órgãos estatais ou com a empresa. O que se alega simplesmente é que o CIM não poderia ter aprovado isoladamente o projeto, sem que se diga se aprovam ou desaprovam e por quais razões. Veja o que disse a CIDH no caso Pueblo Indígena U’WA y sus miembros VS. Colombia: 191. Nos casos em que – tendo os Estados promovido a consulta de boa-fé e em conformidade com os padrões previamente estabelecidos (supra, parágrafos 168 a 178 e 190) – o povo indígena se recuse a participar, deverá ser considerado que o povo indígena está em desacordo com a atividade objeto da consulta e, portanto, a obrigação da consulta será considerada esgotada. Além disso, os Estados devem garantir que as medidas adotadas sejam proporcionais e respeitem o princípio da igualdade e da não discriminação, levando também em consideração a natureza da medida e seu impacto no território e na cultura. Do mesmo modo, os Estados devem garantir o acesso à justiça em relação às medidas que possam afetar diretamente um povo indígena ou tribal, a fim de verificar se a consulta prévia foi realizada em conformidade com as obrigações internacionais do Estado e com a jurisprudência desta Corte. Caso o povo indígena tenha se recusado a participar da consulta, a autoridade judicial deverá verificar se o Estado tomou medidas específicas e agiu de boa-fé para realizar a consulta prévia, livre e informada, e se, nesse contexto, a atividade restringe de forma desproporcional os direitos do povo indígena ou tribal. Tradução livre de: 191. En los casos en los que –habiendo los Estados impulsado la consulta de buena fe y conforme a los estándares previamente señalados (supra, párrs. 168 a 178 y 190)— el pueblo indígena se niegue a participar, deberá considerarse que el pueblo indígena está en desacuerdo con la actividad objeto de la consulta, y por lo tanto la obligación de la consulta se tendrá por agotada271. Además, los Estados deben garantizar que las medidas adoptadas sean proporcionales y respeten el principio de igualdad y no discriminación, tomando además en consideración la naturaleza de la medida y su impacto en el territorio y la cultura272. Asimismo, los Estados deben garantizar el acceso a la justicia frente a las medidas que puedan afectar directamente a un pueblo indígena o tribal, a fin de verificarse si la consulta previa fue realizada de conformidad con las obligaciones internacionales del Estado y la jurisprudencia de esta Corte. En caso de que el pueblo se haya negado a participar en la consulta, la autoridad judicial deberá verificar si el Estado tomó medidas específicas y de buena fe a fin de realizar la consulta previa, libre e informada, y si en ese contexto la actividad limita de forma desproporcionada los derechos del pueblo indígena o tribal. Fonte: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_530_esp.pdf Sendo assim, deve-se considerar que a etapa de consulta foi adequadamente cumprida e que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares, por não emitirem pronunciamento expresso sobre os termos da consulta, apesar de cientes dessa prerrogativa – uma vez que participaram da elaboração do protocolo de consulta –, bem como dos termos do projeto, uma vez que receberam da Potássio o e-mail contendo todas as informações -, simplesmente se recusaram a participar. Por tal razão, os órgãos estatais devem considerar que recusaram o projeto, sem que isso implique poder de veto. Frise-se que a ausência da manifestação dessas associações não exime o Estado de proteger legitimamente os indígenas que habitam nas aldeias que representam. Como disse a União no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000, “todos os impactos ambientais e socioculturais do empreendimento sobre o povo mura do Lago de Soares e da Vila de Urucurituba estão sendo devidamente tratados no licenciamento ambiental em curso. Durante o licenciamento, foi elaborado estudo do Componente Indígena, indicando as consequências sociais e ambientais do empreendimento, bem como apresentados formas de mitigação/compensação” (id. 274290022 – fl. 39). Ante esse quadro, ao menos em juízo preliminar, não há razões para concluir que o Estado Brasileiro não cumpriu os seus compromissos internacionais de respeito aos direitos humanos indígenas em relação ao projeto de aprovação da licença prévia do empreendimento em questão, uma vez que procedeu adequadamente quanto à consulta destes povos. III.e.3. A Competência para Licenciar o Empreendimento A decisão agravada ainda consignou ser o IBAMA o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto. Creio estar a compreensão equivocada e que o correto entendimento foi abordado de forma minuciosa pela União quando da interposição do Agravo de Instrumento n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que será julgado na mesma oportunidade deste recurso. Coaduno com a fundamentação exposta pela União, pelo que integro-a às razões de decidir deste agravo. A Lei Complementar 140, de 8 de dezembro de 2011, regulamenta a competência dos entes federativos em questões ambientais, estabelecendo diretrizes para cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Alinhada à Constituição Federal, a norma aborda ações administrativas conjuntas relacionadas à proteção do meio ambiente, combate à poluição e preservação de recursos naturais, como florestas, fauna e flora. Essa norma promoveu uma divisão clara de competências, reduzindo conflitos especialmente no âmbito do licenciamento ambiental, que antes era regulado majoritariamente pela Resolução 237 do CONAMA. A lei determina que apenas um órgão será responsável pela aprovação, fiscalização e eventual sanção, assegurando celeridade, transparência e segurança jurídica no processo de licenciamento. A lei também prevê instrumentos de cooperação, como consórcios públicos, convênios e delegações de competências, desde que o ente delegado disponha de estrutura técnica e conselho ambiental adequados. A simplificação do licenciamento ambiental permite que empreendimentos poluidores ou potencialmente degradantes sejam licenciados pelo órgão competente de qualquer nível federativo, inclusive municipal, promovendo eficiência administrativa. Confira-se os dispositivos da norma que tratam sobre a competência de cada ente federativo, sobretudo com relação ao licenciamento ambiental: Art. 7º São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: a) localizados ou desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; b) localizados ou desenvolvidos no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva; c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; d) localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pela União, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados; f) de caráter militar, excetuando-se do licenciamento ambiental, nos termos de ato do Poder Executivo, aqueles previstos no preparo e emprego das Forças Armadas, conforme disposto na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999; g) destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen); ou h) que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento; -.-.- Art. 8° São ações administrativas dos Estados: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7° e 9°; XV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pelo Estado, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); -.-.- Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade; ou b) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); Dito isso, peço licença para transcrever a argumentação da União nos autos do AI n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que adoto como razões de decidir: "[p]ercebe-se que a LC nº 140/2011 trouxe diferentes critérios definidores de competência para cada ente (União – localização e tipo de atividade; Município – alcance do impacto ambiental; Estado – residual). Cada critério não se confunde com os demais e não tem aplicação a outros entes federativos. Da leitura do art. 8º, XIV depreende-se que aquilo que não estiver expressamente taxado como sendo competência da União (art. 7º) ou dos Municípios (art. 9º) é competência dos Estados-membros (caráter residual). Por isso, nada mais natural do que ler as competências contidas na LC nº 140 de forma restritiva ou literal em relação a União e Municípios. Como destacou o TRF da 1ª Região, ao tratar da interpretação restritiva em caso envolvendo competência para licenciamento ambiental, assim como na Constituição, “o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal.” (TRF da 1a Região, 5a T., v.u., AC 0000267- 95.2005.4.01.3600, rel. Des. João Batista Moreira, j. em 17/08/2011, eDJF1 26/08/2011, p. 153.) Dessa forma, não cabem considerações expansivas da competência da União, devendo o intérprete trabalhar com o texto dado pela LC 140, não podendo usar argumentos não previstos expressamente na lei. Na perspectiva da LC n. 140/2011, a competência para licenciamento será federal apenas quando estiver configurada uma das hipóteses previstas no art. 7º, XIV, que estabelece apenas critério de localização e de tipo de atividade ou no caso de empreendimentos que atendam a tipologia prevista na alínea "h" (atualmente definida no Decreto nº 8.437, de 22 de abril de 2015). Percebe-se, portanto, que para que haja competência federal para licenciamento prevista no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140/2011 (Terra Indígena), deve-se atender ao critério da localização do empreendimento – não tendo aplicação o critério do alcance dos impactos: Art. 7° São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: (...) c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; Quando o legislador quis adotar o critério do âmbito do impacto ambiental da atividade ou empreendimento, o fez de forma explícita: Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade Percebe-se, claramente, que o legislador adotou o critério do alcance do impacto ambiental no art. 9º, XIV, “a” da LC nº 140 como definidor apenas da competência para licenciamento dos Municípios. Já no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140 constata-se que não houve menção alguma ao âmbito de impacto do empreendimento, mas apenas à localização e ao desenvolvimento da atividade: “localizados ou desenvolvidos em terras indígenas”. Se quisesse adotar o critério do impacto ambiental para competência federal, o legislador teria definido que são ações administrativas da União promover o licenciamento de empreendimentos e atividades que causem ou possam causar impacto ambiental em Terra Indígena. Não o fez. Optou pelo critério da localização. Houve, portanto, silêncio eloquente do legislador, que, em relação ao licenciamento de atividades em Terra Indígena optou por afastar o critério do alcance do impacto e adotar exclusivamente o critério da localização do empreendimento. Ou seja, a competência somente será fixada como federal quando o empreendimento estiver localizado dentro da Terra Indígena, não se aplicando o critério de impacto ambiental para fixação da competência federal. O empreendimento tratado na demanda está localizado e será desenvolvido completamente fora de Terra Indígena (demarcada e em demarcação). Em relação à INSTRUÇÃO NORMATIVA CONJUNTA Nº 1, de 22 de fevereiro de 2021 da Funai, mencionada no despacho a que a Juíza faz referência na decisão agravada, destaca-se que o ato dispõe sobre os procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor seja organização indígena. O que reforça que a competência federal se dá no caso de empreendimento localizado ou desenvolvido no interior de terra indígena – e não de atividades que possam afetar terra indígena. Ademais, as áreas de influência direta e indireta dos impactos ambientais do empreendimento devem vir definidas no EIA, que é elaborado por equipe multidisciplinar habilitada, responsável tecnicamente pelos estudos apresentados. No caso do empreendimento em tela, verifica-se que o EIA apresentado definiu a área de influência dos impactos ambientais do empreendimento em dois quilômetros quadrados (2 km²) no Projeto Autazes. O empreendimento, como demonstrado anteriormente, encontra-se a 8 km dos limites de terras indígenas demarcadas e em demarcação. Quanto à Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, imperioso tecermos alguns comentários. Inicialmente, importante destacar que a referida portaria estabelece procedimentos administrativos para oitiva da FUNAI, da Fundação Cultural Palmares, do IPHAN e do Ministério da Saúde em licenciamentos ambientais que já são de competência do Ibama. A portaria não estabelece, portanto, critério para definição de competência, mas apenas regras e procedimentos administrativos para a oitiva dos mencionados entes e órgãos. Assim, no curso de licenciamento que já está ocorrendo perante o Ibama: (a) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra quilombola, deverá haver manifestação da Fundação Cultural Palmares, (b) se constatada a ocorrência de bens culturais acautelados em âmbito federal na área de influência da atividade, deverá haver manifestação do IPHAN, (c) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra indígena, deverá haver manifestação da FUNAI e (d) se o empreendimento localizar-se em município pertencente à área de risco ou endêmica para malária, deverá haver oitiva do Ministério da Saúde. Percebe-se claramente que a portaria não fixa critérios de definição de competência para licenciamento pelo Ibama. Não se cogita competência do Ibama para licenciar empreendimento pelo simples fato de impactar em terra quilombola, afetar bens culturais acautelados no âmbito federal ou estar localizado em área de risco de malária. Assim, a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Do mesmo modo, a presunção de intervenção em terra quilombola, quando o empreendimento estiver no raio de 10 km (art. 3º, § 2º, II c/c Anexo I), obviamente, também não gera competência automática do Ibama, gerando apenas a necessidade de oitiva da Fundação Cultural Palmares. (...) A Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, portanto, não prevê competência da União (IBAMA) para licenciar quando se presume a intervenção em terra indígena (ou em terra quilombola ou em área de risco de malária ou em área com bens culturais acautelados) pelo fato do empreendimento estar localizado no raio de 10 km. A referida norma infralegal não atrai a competência do IBAMA por ausência de previsão no art. 7º da L.C 140/11, gerando apenas a exigência de oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), e não usurpação da competência para licenciar. Nesse ponto, importante diferenciar o critério para definição de competência para licenciamento, qual seja, a localização dentro de Terra Indígena, que deve ser interpretado restritivamente (art. 7º, XIV, “c” e art. 8º XIV), do critério para realização de Estudo de Componente Indígena ou de Consulta Prévia a povos indígenas e comunidades tradicionais, que é qualquer medida suscetível de afetá-los, o que admite uma interpretação mais elástica e, inclusive, foi objeto de concordância entre as partes para a sua realização. Percebe-se, então, que a hipótese normativa do art. 7º, XIV, inciso “c” da Lei Complementar n. 140 se aplica exclusivamente aos projetos localizados no interior de terras indígenas. No caso de empreendimento fora de terra indígena, a competência será do órgão ambiental estadual, mesmo que haja necessidade de ECI, de Consulta Prévia e haja reflexo na TI". Entendo correta assim a conclusão a que chegou a União, a partir da leitura da legislação, de que a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Afora esse aspecto, existe precedente do STF, com eficácia vinculante, que expressamente abordou a questão e reconheceu que é possível que um órgão ambiental estadual licencie um empreendimento em um caso em que efeitos indiretos para comunidades indígenas possam ocorrer. Foi justamente a ADI 4.757, que analisou a constitucionalidade da Lei Complementar nº 140/2011. Confira-se a ementa: CONSTITUCIONAL. AMBIENTAL. FEDERALISMO COOPERATIVO. COMPETÊNCIA COMUM EM MATÉRIA AMBIENTAL. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 23 CF. LEI COMPLEMENTAR Nº 140/2011. FEDERALISMO ECOLÓGICO. DESENHO INSTITUCIONAL DA REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS FUNDADO NA COOPERAÇÃO. RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE. DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE. DEVERES FUNDAMENTAIS DE PROTEÇÃO COMO PARÂMETRO NORMATIVO DE CONTROLE DE VALIDADE (ARTS. 23, PARÁGRAFO ÚNICO, 225, CAPUT, § 1º). RACIONALIDADE NO QUADRO ORGANIZATIVO DAS COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS. EFICIÊNCIA E COORDENAÇÃO DO AGIR ADMINISTRATIVO. VALORES CONSTITUCIONAIS. PODER DE POLÍCIA AMBIENTAL DE LICENCIAMENTO E ATIVIDADES FISCALIZATÓRIAS. EXISTÊNCIA E CAPACIDADE INSTITUCIONAL DOS ÓRGÃOS AMBIENTAIS COMO REQUISITO DA REGRA GERAL DE COMPETÊNCIA INSTITUÍDA NA LEI COMPLEMENTAR. ATUAÇÃO SUPLETIVA E SUBSIDIÁRIA. TUTELA EFETIVA E ADEQUADA DO MEIO AMBIENTE. LIMITES DA COGNIÇÃO JURISDICIONAL NO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO FEDERAL ATRIBUÍDA AO § 4º DO ART. 14 E AO 3º DO ART. 17. PROCEDÊNCIA PARCIAL. 1. A Lei Complementar nº 140/2011 disciplina a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora, em resposta ao dever de legislar prescrito no art. 23, III, VI e VI, da Constituição Federal. No marco da Política Nacional do Meio Ambiente, instituída pela Lei nº 6.938/1981, e da forma federalista de organização do Estado constitucional e ecológico, a Lei Complementar nº 140/2011 foi a responsável pelo desenho institucional cooperativo de atribuição das competências executivas ambientais aos entes federados. 2. Legitimidade ativa da Associação Nacional dos Servidores de Carreira de Especialista em Meio Ambiente e Pecma (ASIBAMA). Inegável a representatividade nacional da associação requerente, assim como a observância do requisito da pertinência temática para discutir questões versando alteração estrutural do sistema normativo de proteção do meio ambiente, conforme descrito no art. 3º, VI, do Estatuto Social juntado ao processo, quando do ajuizamento da presente ação. Reconhecimento da legitimidade da associação autora na ADI 4.029 (caso Instituto Chico Mendes). 3. O Supremo Tribunal Federal, acerca do alcance normativo do parágrafo único do art. 65 do texto constitucional, definiu interpretação jurídica no sentido de que o retorno à Casa iniciadora apenas deve ocorrer quando a Casa revisora, em seu processo deliberativo, aprovar modificação substancial do conteúdo do projeto de lei. Afastado, no caso, o vício de inconstitucionalidade formal do § 3º do art. 17. 4. Da interpretação do art. 225 da Constituição Federal, fundamento normativo do Estado de Direito e governança ambiental, infere-se estrutura jurídica complexa decomposta em duas direções normativas. A primeira voltada ao reconhecimento do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, em uma perspectiva intergeracional. A segunda relacionada aos deveres de proteção e responsabilidades atribuídos aos poderes constituídos, aos atores públicos e à sociedade civil em conjunto. A preservação da ordem constitucional vigente de proteção do meio ambiente, densificada nos seus deveres fundamentais de proteção, impõe-se, pois, como limite substantivo ao agir legislativo e administrativo. O que significa dizer que tanto a Política Nacional do Meio Ambiente, em todas as suas dimensões, quanto o sistema organizacional e administrativo responsável pela sua implementação, a exemplo do Sistema Nacional do Meio Ambiente, dos Conselhos Nacionais, Estaduais e Municipais, devem traduzir os vetores normativos do constitucionalismo ecológico e do federalismo cooperativo. 5. A Lei Complementar nº 140/2011, em face da intricada teia normativa ambiental, aí incluídos os correlatos deveres fundamentais de tutela, logrou equacionar o sistema descentralizado de competências administrativas em matéria ambiental com os vetores da uniformidade decisória e da racionalidade, valendo-se para tanto da cooperação como superestrutura do diálogo interfederativo. Cumpre assinalar que referida legislação não trata sobre os deveres de tutela ambiental de forma genérica e ampla, como disciplina o art. 225, §1º, IV, tampouco regulamenta o agir legislativo, marcado pela repartição concorrente de competências, inclusive no tocante à normatização do licenciamento em si. 6. O modelo federativo ecológico em matéria de competência comum material delineado pela Lei Complementar nº 140/2011 revela quadro normativo altamente especializado e complexo, na medida em que se relaciona com teia institucional multipolar, como o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), e com outras legislações ambientais, como a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) e a Lei de Infrações penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente (Lei nº 9.605/1998). O diálogo das fontes revela-se nesse quadro como principal método interpretativo. 7. Na repartição da competência comum ( 23, III, VI e VII CF), não cabe ao legislador formular disciplina normativa que exclua o exercício administrativo de qualquer dos entes federados, mas sim que organize a cooperação federativa, assegurando a racionalidade e a efetividade nos encargos constitucionais de proteção dos valores e direitos fundamentais. Ademais, os arranjos institucionais derivados do federalismo cooperativo facilita a realização dos valores caros ao projeto constitucional brasileiro, como a democracia participativa, a proteção dos direitos fundamentais e a desconcentração vertical de poderes, como fórmula responsiva aos controles social e institucional. Precedentes. 8. O nível de ação do agir político-administrativo nos domínios das competências partilhadas, próprio do modelo do federalismo cooperativo, deve ser medido pelo princípio da subsidiariedade. Ou seja, na conformação dos arranjos cooperativos, a ação do ente social ou político maior no menor, justifica-se quando comprovada a incapacidade institucional desse e demonstrada a eficácia protetiva daquele. Todavia, a subsidiariedade apenas apresentará resultados satisfatórios caso haja forte coesão entre as ações dos entes federados. Coesão que é exigida tanto na dimensão da alocação das competências quanto na dimensão do controle e fiscalização das capacidades institucionais dos órgãos responsáveis pela política pública. 9. A Lei Complementar nº 140/2011 tal como desenhada estabelece fórmulas capazes de assegurar a permanente cooperação entre os órgãos administrativos ambientais, a partir da articulação entre as dimensões estáticas e dinâmicas das competências comuns atribuídas aos entes federados. Desse modo, respeitada a moldura constitucional quanto às bases do pacto federativo em competência comum administrativa e quanto aos deveres de proteção adequada e suficiente do meio ambiente, salvo as prescrições dos arts. 14, § 4º, e 17, § 3º, que não passam no teste de validade constitucional. 10. No § 4º do art. 14, o legislador foi insuficiente em sua regulamentação frente aos deveres de tutela, uma vez que não disciplinou qualquer consequência para a hipótese da omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental. Até mesmo porque para a hipótese de omissão do agir administrativo no processo de licenciamento, o legislador ofereceu, como afirmado acima, resposta adequada consistente na atuação supletiva de outro ente federado, prevista no art. 15. Desse modo, mesmo resultado normativo deve incidir para a omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental, disciplinado no referido § 4º do art. 14. 11. Um dos princípios fundamentais do funcionamento do sistema legal de tutela do meio ambiente é o da atuação supletiva do órgão federal, seja em matéria de licenciamento seja em matéria de controle e fiscalização das atividades ou empreendimentos potencialmente poluidores ou degradantes do meio ambiente. No exercício da cooperação administrativa, portanto, cabe atuação suplementar – ainda que não conflitiva – da União com a dos órgãos estadual e municipal. As potenciais omissões e falhas no exercício da atividade fiscalizatória do poder de polícia ambiental por parte dos órgãos que integram o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) não são irrelevantes e devem ser levadas em consideração para constituição da regra de competência fiscalizatória. Diante das características concretas que qualificam a maioria dos danos e ilícitos ambientais de impactos significativos, mostra-se irrazoável e insuficiente regra que estabeleça competência estática do órgão licenciador para a lavratura final do auto de infração. O critério da prevalência de auto de infração do órgão licenciador prescrito no § 3º do art. 17 não oferece resposta aos deveres fundamentais de proteção, nas situações de omissão ou falha da atuação daquele órgão na atividade fiscalizatória e sancionatória, por insuficiência ou inadequação da medida adotada para prevenir ou reparar situação de ilícito ou dano ambiental. 12. O juízo de constitucionalidade não autoriza afirmação no sentido de que a escolha legislativa é a melhor, por apresentar os melhores resultados em termos de gestão, eficiência e efetividade ambiental, mas que está nos limites da moldura constitucional da conformação decisória. Daí porque se exige dos poderes com funções precípuas legislativas e normativas o permanente ajuste da legislação às particularidades e aos conflitos sociais. 13. A título de obter dictum faço apelo ao legislador para a implementação de estudo regulatório retrospectivo acerca da Lei Complementar nº 140/2011, em diálogo com todos os órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente, como método de vigilância legislativa e posterior avaliação para possíveis rearranjos institucionais. Sempre direcionado ao compromisso com a normatividade constitucional ambiental e federativa. Ademais, faço também o apelo ao legislador para o adimplemento constitucional de legislar sobre a proteção e uso da Floresta Amazônia (art. 225, § 4º), região que carece de efetiva e especial regulamentação, em particular das atividades fiscalizadoras, frente às características dos crimes e ilícitos ambientais na região da Amazônia Legal. 14. Improcedência dos pedidos de declaração de inconstitucionalidade dos arts. 4º, V e VI, 7º, XIII, XIV, “h”, XV e parágrafo único, 8º, XIII e XIV, 9º, XIII e XIV, 14 § 3º, 15, 17, caput e §§ 2º, 20 e 21, Lei Complementar nº 140/2011 e, por arrastamento, da integralidade da legislação. 15. Procedência parcial da ação direta para conferir interpretação conforme à Constituição Federal: (i) ao § 4º do art. 14 da Lei Complementar nº 140/2011 para estabelecer que a omissão ou mora administrativa imotivada e desproporcional na manifestação definitiva sobre os pedidos de renovação de licenças ambientais instaura a competência supletiva dos demais entes federados nas ações administrativas de licenciamento e na autorização ambiental, como previsto no art. 15 e (ii) ao § 3º do art. 17 da Lei Complementar nº 140/2011, esclarecendo que a prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ou autorização ambiental não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, desde que comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória. (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023) Importante destacar que também esta Corte já decidiu no sentido de que a competência será do órgão ambiental estadual nos casos em que o empreendimento está localizado fora de terra indígena. Confira-se: DIREITO ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. USINA HIDRELÉTRICA. LICENCIAMENTO. COMPETÊNCIA, EM REGRA, DE ENTIDADE ESTADUAL. CONSTRUÇÃO FORA DE TERRA INDÍGENA E IMPACTOS REGIONAIS INDIRETOS. COMPETÊNCIA FEDERAL TAXATIVAMENTE PREVISTA EM LEI E EM RESOLUÇÃO DO IBAMA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE JUSTIFIQUEM COMPETÊNCIA DA AUTARQUIA FEDERAL. SENTENÇA QUE ACOLHE ORIENTAÇÃO EM SENTIDO OPOSTO. APELAÇÃO. RECEBIMENTO SÓ NO EFEITO DEVOLUTIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM QUE SE PRETENDE TAMBÉM EFEITO SUSPENSIVO. PROVIMENTO. (...) 3. Emerge dos autos que a PCH Paranatinga II não está projetada em rio da União (o que, aliás, não seria determinante de competência do IBAMA para o licenciamento) e nem em terras indígenas, apenas encontrando-se a relativa distância de terras indígenas ("33,81 km da Terra dos Parabubure, 62,52 km da Marechal Rondon e 94,12 km do Parque Nacional do Xingu"). Também emerge claro que o impacto ambiental em outro Estado é indireto. A pouca potencialidade para atingir gravemente, mesmo de forma indireta, terras indígenas, uma região inteira ou outro Estado-membro pode ser deduzida do tamanho do lago (336,8 ha), área à qual foram reduzidos os 1.290 ha inicialmente previstos, questão esta não apreciada na sentença. 4. Algum impacto a construção da usina trará à bacia do Rio Xingu e a terras indígenas, mas esses impactos são indiretos, não afastando a competência da entidade estadual para o licenciamento. (...) justifica-se a competência do IBAMA quando o empreendimento esteja sendo desenvolvido em terras indígenas, não o que possa refletir sobre terras indígenas. O próprio juiz diz que há "prova irrefutável de que o empreendimento questionado nesta lide trará conseqüências ambientais e sociais para os povos e terras indígenas que lhe são próximos". (...) 6. Na Constituição as competências materiais da União vêm expressas (enumeradas), ficando para os Estados-membros e Distrito Federal as competências remanescentes, significando dizer que em regra (por exclusão das competências da União, taxativamente previstas) as competências são dos Estados-membros. Assim na Constituição, o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal. (...) 8. Provimento ao agravo de instrumento, com atribuição de efeito suspensivo à apelação. (TRF da 1ª Região. Processo Numeração Única: 0020981-75.2006.4.01.0000. AG 2006.01.00.020856-8 / MT; AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA. Órgão: QUINTA TURMA. Publicação: 09/11/2006 DJ P. 65. Data Decisão: 20/09/2006) Com efeito, vale destacar trechos relevantes do referido julgado: "(...) Assim, conforme se extrai da legislação supracitada, não seria o caso de competência do IBAMA para conduzir o licenciamento. Isso porque as atividades do empreendimento, embora estejam localizadas a relativa proximidade das comunidades indígenas mencionadas pelo Ministério Público Federal, não se situam em terras indígenas. (...) o empreendimento não está inserido em terras indígenas, estando dispensada a atuação do IBAMA com fundamento no disposto no inciso I do artigo 4º acima transcrito. (...) Portanto, a Lei Complementar nº 140/2011 veio reafirmar as regras de distribuição de competências trazidas pela Resolução nº 237/97 de forma que resta afastada a competência do IBAMA para licenciamento das atividades". Frise-se que não há qualquer alegação de insuficiência ou incapacidade técnica do órgão ambiental estadual do Amazonas para licenciar o empreendimento, o que justifica a manutenção da competência. Ao Ibama, no entanto, ainda que não tenha a competência para licenciar, remanesce um dever de vigilância, podendo impor condicionantes adicionais que julgue adequadas. Confira-se trecho do voto da Ministra Rosa Weber (fl. 85): Assim, considerando o empreendimento objeto da lide se encontra a cerca de 8 quilômetros dos limites de terras indígenas demarcadas, a competência para processar o licenciamento não é do ente federal. Nesse sentido, deve prevalecer o argumento do IBAMA no sentido de que "não compete ao IBAMA o licenciamento ambiental do projeto de mineração Potássio do Brasil por não se desenvolver ou estar localizado em terra indígena, regra prevista no artigo 7º, inciso XIV, alínea c, da Complementar n. 140/2011 como atribuição do ente federal, razão pela qual merece reforma a decisão atacada para definir a atribuição legal do IPAAM para conduzir o licenciamento ambiental em questão". Por fim, não há alegação de que alguma condicionante específica deveria ter sido exigida pelo IPAAM e não foi, o que poderia demandar a competência supletiva do IBAMA. Aparentemente, as condicionantes foram adequadas, consoante se extrai da leitura da Licença Prévia n. 54/15: Confira-se, expressamente, a existência das condicionantes indígenas: Vale ressaltar que o caso em questão em nada se assemelha com o julgado do STF no RE 1.379.751, caso do licenciamento da Usina de Belo Monte, uma vez que lá foi discutida a ausência de consulta aos povos indígenas afetados antes da edição do Decreto Legislativo 778, de 13 de julho de 2005, o qual autorizou o Poder Executivo a implantar o Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte, localizado em trecho do Rio Xingu, no Estado do Pará, antes da necessária oitiva às comunidades afetadas. Aqui houve a oitiva e foi realizada no momento adequado, como se expôs acima. Afora esse aspecto, no caso acima, não houve discussão sobre competência para licenciamento, uma vez que este coube ao IBAMA e não ao órgão ambiental do Pará. Tampouco existe similaridade com o que decidido pelo STJ no AgInt no REsp 1.390.476/PR, citado pelo voto divergente, em que expressamente se assentou que o licenciamento de terminal portuário seria do IBAMA e não do órgão ambiental por conta de diversos fatores, como a circunstância de que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva, nos termos do art. 7º, XIV, ‘a’, da LC 140/2011. Essa situação fática não está presente neste caso. Confira-se: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA. IBAMA. ATIVIDADE DE TERMINAL PORTUÁRIO QUE PODE CAUSAR SIGNIFICATIVO IMPACTO AMBIENTAL. CONTROVÉRSIA RESOLVIDA, PELO TRIBUNAL DE ORIGEM, À LUZ DAS PROVAS DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO, NA VIA ESPECIAL. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara Recurso Especial interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC/73. II. Na origem, "o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública (...) em face do Instituto Ambiental do Paraná e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, requerendo a declaração da competência do órgão ambiental federal - IBAMA, para que assuma a presidência do procedimento do licenciamento ambiental até então conduzido pelo órgão ambiental estadual (IAP), em virtude de manifesta incompetência deste órgão". O Tribunal de origem reformou a sentença, que havia reconhecido a competência do órgão estadual para o licenciamento ambiental. III. O entendimento firmado, à luz das provas dos autos, pelo Tribunal a quo - no sentido de que, "considerando que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva; que o empreendimento, por situar-se em área contígua a terras indígenas, trará impactos a essa comunidade; que serão afetados bens que apresentam relevância histórica e cultural e, por fim, que há potencial de dano ambiental de caráter regional, conclui-se que a competência para o licenciamento ambiental é do IBAMA, razão pela qual deve ser reformada a sentença que julgou improcedente a ação" - não pode ser revisto, pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial, sob pena de ofensa ao comando inscrito na Súmula 7 desta Corte. Precedentes do STJ. IV. Agravo interno improvido. (AgInt no REsp n. 1.390.476/PR, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 29/4/2020, DJe de 5/5/2020.) IV. A Reivindicação da Terra Indígena Soares/Urucurituba Como dito, o MPF propôs a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 na qual alega que omissão estatal na regularização fundiária de Terra Indígena Soares/Urucurituba, mesmo diante de robustas provas documentais e antropológicas que confirmariam a ocupação tradicional. A área encontra-se sob forte pressão devido à exploração de silvinita pela empresa Potássio do Brasil Ltda., que, segundo relatórios técnicos, ameaça o equilíbrio ambiental e o modo de vida das comunidades indígenas. O pedido se baseia na violação de direitos fundamentais dos povos indígenas e no risco iminente de danos irreversíveis ao meio ambiente e à preservação cultural. A FUNAI, apesar de reiterados ofícios e manifestações do MPF, não deu andamento ao processo demarcatório, acarretando prejuízos irreparáveis às comunidades tradicionais. O MPF requereu a suspensão deste processo para fins de aguardar o posicionamento da Diretoria de Proteção Territorial (DPT) Funai sobre o tema relativo a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Além disso, o MPF reiterou, de todo modo, o pedido anteriormente feito sobre a necessidade de suspensão de todo processo judicial, e consequentemente da consulta nos moldes da Convenção 169 da OIT, enquanto a questão prejudicial da demarcação da terra indígena Soares/Urucurituba não for definida pelo juízo. Com todas as vênias, entendo que essa pretensão não merece prosperar. A uma, pois já foi longamente exposto que, historicamente, a posição da FUNAI foi contrária à pretensão de demarcação daquela área (1419622747): Foi ainda devidamente assinalado que aquela área já havia sido estudada quando da delimitação dos limites da Terra Indígena Jauary, bem como que a área, apesar de conter alguns indígenas, também possui população ribeirinhas, o que pode inclusive levar a se concluir não ser Terra Tradicional. Confira-se novamente a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): A União também aduziu a inexistência de fumus boni iuris na petição de agravo protocolada no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000 (id. 274290019): Como aqui se está a examinar o feito em sede de cognição sumária, frente aos prejuízos que o atraso do projeto pode gerar para os objetivos estatais legítimos, é de se concluir que não se faz concretizada aparência legítima de direito a ponto de legitimar a suspensão. Se não se está diante de Terra Indígena demarcada, inclusive sequer limitada, estando o projeto em seu estágio inicial, não se pode presumir que seja Terra Indígena e, portanto, que haja necessidade de autorização do Congresso Nacional para o prosseguimento do empreendimento. Caso seja definido que se trata Terra Indígena, creio que será necessária a edição de autorização do Congresso Nacional, a qual deverá disciplinar a validade dos atos concretos praticados enquanto a demarcação ainda não havia sido concluída, consideradas, sobretudo, as peculiaridades do empreendimento expostas nos autos tais quais confirmadas no Estudo de Componente Indígena: Observe-se que no caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) vs. Argentina, de 2020, a CIDH assentou que “embora a Convenção não possa ser interpretada de modo a impedir que o Estado realize, por si ou por meio de terceiros, projetos e obras sobre o território, seu impacto não pode, em nenhum caso, privar os membros dos povos indígenas e tribais da capacidade de garantir sua própria sobrevivência.” Os dados acima sobre as características do projeto afastam, ao menos em juízo cautelar, qualquer receio de que possa haver impacto na garantia dos Mura e Ribeirinhos do Lago do Soares de prosseguir com o estilo de vida que hoje levam, tampouco garantir a sua subsistência. Não há nenhum indício de que exista a preocupação exposta pelo Ministro Alexandre de Moraes no sentido de que as terras indígenas próximas ao empreendimento serão tornadas “inóspitas, direta ou indiretamente, ou prejudica[rão] drasticamente a cultura e a qualidade de vida das populações indígenas que habitam a região" (RE 1.379.751/PA, Rel. Min. Alexandre de Moraes). A necessidade de estabelecimento de um regime de transição é uma compreensão do texto do art. 231, § 6º, da CF/88: Art. 231. [...] § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. Confiram-se, ainda, as conclusões apresentadas pelo DNPM (FL. 1.531 – id. 297015018): Cabe lembrar o art. 20 da Lei nº 6.001/1973: Art. 20. Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante enumerados, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, em área indígena, determinada a providência por decreto do Presidente da República. 1º A intervenção poderá ser decretada: a) para pôr termo à luta entre grupos tribais; b) para combater graves surtos epidêmicos, que possam acarretar o extermínio da comunidade indígena, ou qualquer mal que ponha em risco a integridade do silvícola ou do grupo tribal; c) por imposição da segurança nacional; d) para a realização de obras públicas que interessem ao desenvolvimento nacional; e) para reprimir a turbação ou esbulho em larga escala; f) para a exploração de riquezas do subsolo de relevante interesse para a segurança e o desenvolvimento nacional. 2º A intervenção executar-se-á nas condições estipuladas no decreto e sempre por meios suasórios, dela podendo resultar, segundo a gravidade do fato, uma ou algumas das medidas seguintes: a) contenção de hostilidades, evitando-se o emprego de força contra os índios; b) deslocamento temporário de grupos tribais de uma para outra área; c) remoção de grupos tribais de uma para outra área. 3º Somente caberá a remoção de grupo tribal quando de todo impossível ou desaconselhável a sua permanência na área sob intervenção, destinando-se à comunidade indígena removida área equivalente à anterior, inclusive quanto às condições ecológicas. 4º A comunidade indígena removida será integralmente ressarcida dos prejuízos decorrentes da remoção. 5º O ato de intervenção terá a assistência direta do órgão federal que exercita a tutela do índio. Assim, não há aparência de necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, não sendo caso de incidência do § 3º do art. 231 da CF/88. V. Conclusão Em face do exposto, ante a ausência de fumus boni iuris, dou provimento ao agravo de instrumento para, reformando a decisão agravada de id. 1769860076, considerar (i) válidos a consulta e o consentimento emanado pelo CIM, como representativo do Povo Mura de Autazes e, em consequência, o requisito da Convenção 169 da OIT; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciar o empreendimento e a validade de todos os atos até agora praticados; (iii) afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional e autorizar o prosseguimento do projeto. É como voto. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator [1] Id. 904360588. [2] Cf. file:///C:/Users/DS93/Downloads/wcms_205225.pdf. [3] Cf. https://ilo.primo.exlibrisgroup.com/discovery/delivery/41ILO_INST:41ILO_V2/126506 9900002676. PODER JUDICIÁRIO Processo Judicial Eletrônico Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 17 - DESEMBARGADORA FEDERAL KÁTIA BALBINO AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) n. 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO VISTA A EXMA. SRA. DESEMBARGADORA FEDERAL KATIA BALBINO: Pedi vista dos autos para melhor examinar as questões fático-jurídicas que motivaram a interposição do agravo de instrumento em apreço. De início, sem prejuízo de assinalar minha integral anuência com o voto do Relator quanto à relevância do Projeto Potássio-Autazes, entendo que as questões a serem dirimidas na insurgência perpassam apenas pelo juízo de adequação da decisão agravada ao contexto fático-processual que justificou a sua prolação. Feito o registro, cumpre também esclarecer que o recurso ora examinado foi interposto pelo Conselho Indígena Mura contra a decisão pela qual o juízo de origem, em caráter dispositivo, assim deliberou: “15. Pelo exposto, reitero decisões anteriores de que o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto Potássio é o IBAMA, reitero que exploração mineral em Terra Indígena depende de autorização do legislador constituinte (do Congresso Nacional) e que o IPAAM não é o órgão ambiental competente para o empreendimento que tem o poder de afetar o bioma, a biomassa, o estoque de carbono, a alteração de recursos hídricos da maior bacia nacional, e portanto tem o poder de gerar mudanças climáticas irreversíveis. 16. A Consulta aos povos indígenas afetados depende da vontade do povo, decorrente da sua autonomia de deliberar seus interesses diante desse e de qualquer empreendimento. Todavia, eventual resultado fica desde já suspenso enquanto não houver o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados na presente decisão. 17. Sem o mínimo início dos requisitos, não haverá inspeção judicial, a qual fica por ora suspensa, mas advirto que poderá ser remarcada em caso de violência ou indícios de violações que importem em ruptura da ordem. 18. Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Tal o contexto, o agravante confronta as seguintes diretrizes decisórias: i) suspensão do procedimento de consulta aos povos indígenas levada a efeito; ii) necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração da área em que se pretende realizar o empreendimento. Passo, assim, a analisar tais questões: - Da suspensão dos procedimentos de consulta – a perda do objeto do agravo de instrumento, quanto ao ponto. O exame dos autos indica que a decisão agravada foi proferida em 25/08/2023. Por outro lado, a leitura do referido comando permite a compreensão de que a questão referente à consulta aos povos indígenas foi abordada pelo juízo a quo por um prisma abstrato de sua validade, em perspectiva com os demais requisitos tidos como necessários para a exploração em litígio (autorização do Congresso Nacional e competência do IBAMA para o licenciamento). É dizer, a julgadora da origem não se manifestou de forma concreta sobre aspectos materiais e formais afetos à consulta que o agravante tem com validamente realizada, pontuando, isto sim, que a validade do referido procedimento deve ser examinada de forma contextualizada com os demais requisitos para a implementação do empreendimento. Tanto assim, que a parte final do comando censurado dispõe (destaquei em itálico): “Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Ocorre que, após a prolação do referido decisum, a magistrada que conduz o processo principal se debruçou de forma mais aprofundada sobre a questão referente à consulta aos povos indígenas e, nos termos da decisão ID 1913974193, proferida em 16.11.2023, consignou (destaques sublinhados acrescidos): “Diante de todo o tumulto (mediante coação, intimidações, pressões indevidas e oferecimento de vantagens) causado pelo CIM e por prepostos da empresa ré, conforme depoimentos colhidos e mencionados no parecer ministerial, defiro o pleito ministerial e determino a imediata suspensão do procedimento de licenciamento ambiental por parte do IPAAM, bem como o da consulta ilegítima realizada após desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta, bem como de qualquer ato de avanço dos trâmites para a implementação do empreendimento da empresa Potássio do Brasil S/A em Autazes, em razão dos vícios mencionados e dos riscos de conflitos e morte que a continuação dos trâmites do empreendimento minerário neste cenário acarretam ao povo Mura na região, ficando expresso que o juízo federal não confere qualquer validade à alteração esdrúxula do Protocolo construído de forma legítima por TODO O POVO MURA.” Como se vê, após a prolação da decisão agravada, o juízo a quo proferiu novo comando com caráter substitutivo do anterior, vindo a apresentar fundamentação mais aprofundada e amparada em elementos concretos sobre as razões de seu convencimento. Em outras palavras, a avaliação no plano concreto da consulta tida como realizada absorveu a deliberação anterior, esta fundada apenas em fatores afetos ao procedimento no plano abstrato. Assim, porque proferida decisão ulterior que a um só tempo incorporou e ampliou as razões contidas na decisão agravada, resulta demonstrada a perda do objeto do recurso tirado contra o aludido comando. Anoto, por fim, que tanto o MPF quanto a Funai já se manifestaram nos autos em sentido concorde com a compreensão ora externada (cf. ID 423687013 e ID 369353129). - Subsidiariamente, ao não conhecimento do recurso Ainda que se supere a questão preliminar já analisada, entendo que a decisão agravada deve ser mantida nos termos em que proferida, salientando, nesse ponto, que sua avaliação deve ser feita com base no exato sentido e alcance nela consignados. Melhor explicando, foi acima esclarecido que na decisão agravada o juízo a quo consignou que “eventual resultado” da consulta ficaria suspenso enquanto não houvesse “o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados” na decisão. Claro, portanto que, na decisão agravada, a julgadora de primeiro grau não empreendeu juízo de valoração da consulta efetivamente levada a efeito, tendo suspendido seus efeitos em razão da necessidade de observância concomitante de outros requisitos tidos como necessários para o licenciamento do empreendimento. Ocorre que a parte agravante não enfrentou de forma suficiente as razões externadas no comando recorrido, restringindo-se a defender a validade da consulta que alega já ter sido realizada, bem assim a desnecessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área em que será realizada a exploração mineral discutida na ação principal. Ora, a decisão agravada, como já afirmado, não positivou em nenhum momento a invalidade factual da consulta debatida (isso só foi feito na decisão posterior), tendo suspendido os respectivos efeitos em razão da necessidade de atendimento de outros requisitos que seriam com ela concorrentes. Um desses requisitos, a competência do Ibama para o licenciamento, não foi (e nem poderia ter sido, por ausência de legitimidade recursal) sequer objeto do presente agravo de instrumento. Assim sendo, ainda que superado o óbice relativo à perda do objeto do recurso, quanto ao ponto, este não pode ser conhecido, diante da ausência de enfrentamento da fundamentação decisória no sentido de que os efeitos da consulta somente poderiam ser efetivados em conjunto com o atendimento dos demais requisitos para a exploração da área, nomeadamente a autorização do Ibama. - Do exame residual do mérito da decisão agravada De todo modo, também na hipótese em que venha a ser desconsiderada a ausência de enfrentamento, pelo agravante, das razões decisórias, o recurso não deve ser provido. Com efeito, os documentos encartados no processo principal revelam uma evidente divisão entre as aldeias dos indígenas Mura, tratando-se de dissenso que compromete a conclusão pela validade do procedimento de consulta que neste agravo se tem como concretizado. Nesse sentido, tomando-se como exemplo a assembleia realizada em 21 e 22/09/2023, mencionada no voto do Exmo. Relator, temos que embora registrada em seu relatório a presença de diversos integrantes da comunidade Mura para debater sobre a implementação do projeto Potássio-Autazes, inclusive com a indicação de participação de cinco entidades representativas (CIM – Conselho Indígena Mura; OASIM – Organização dos Agentes de Saúde; OPIM – Organização dos Professores Indígenas Mura; OEIMA – Organização dos Estudantes Mira de Autazes; APIMA – Associação dos Produtores Indígenas Mura de Autazes), o referido documento foi subscrito por apenas quatro pessoas, dentre elas o coordenador geral do CIM (ora agravante) e um advogado. Inexiste, no documento, a indicação nominal de quem seriam as pessoas presentes no encontro, tendo sido mencionados, tão somente, o quantitativo dessas por aldeia. Também não há registro de ata assemblear, tampouco de subscrição, nesse ou em nenhum outro documento, da alegada aprovação majoritária para a implementação do projeto em debate nos autos principais. É dizer, a referência à aprovação do projeto consta apenas do relatório confeccionado após a assembleia, no qual não se identifica a assinatura da quase totalidade das pessoas que dela teriam participado. Por outro lado, como bem observado pelo Exmo. Relator, é certo que a efetivação da consulta às comunidades indígenas não pressupõe a anuência destas com o respectivo objeto. Todavia, a efetivação plena da consulta reclama a escuta efetiva das referidas comunidades, escuta essa que há de ser valorada em sua perspectiva substancial e não simplesmente formal. Nesse sentido, reportando-me mais uma vez ao voto do Relator, “[É] incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública.” Ocorre que o cenário dos autos não indica a realização dessa escuta efetiva do procedimento de consulta, este que, ao que se infere inclusive da divisão verificada entre os representantes da comunidade Mura, vinha sendo protagonizada, em um primeiro momento, pelo CIM (ora agravante), entidade que vem reiterada e insistentemente se manifestando pela implementação do Projeto Potássio-Autazes. Oportuno ser registrado que os autos principais indicam a adoção de diversos procedimentos tendentes à efetivação de um processo de consulta regular, mostrando-se plausível, neste momento de exame provisório do tema, a inferência de que muitos dos atos praticados sejam efetivamente válidos. Ocorre que o entendimento – precário – da validade de parte dos atos praticados não leva, obviamente, ao reconhecimento automático da validade de todo o processo de consulta. A propósito, em sua segunda decisão proferida sobre o tema a magistrada da origem refere-se à ocorrência de uma "desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta”, posicionamento indicativo de que, por sua ótica, o referido protocolo vinha sendo posto em prática de forma adequada, até que a partir de determinado momento veio a ser desconfigurado em sua essência e finalidade. Esse fato reforça, portanto, o posicionamento no sentido de que a validade de atos pretéritos do Protocolo de Consulta não pode induzir ao reconhecimento de sua validade como um todo. Isso posto, existem dúvidas no mínimo razoáveis acerca da legitimidade do procedimento sob enfoque, ao menos no que se refere à valoração do posicionamento divergente de parte significativa da comunidade Mura. Note-se que a validade (nos planos formal e substancial) desse procedimento tem como premissa a oitiva de todas as comunidades afetadas, levando-se em conta, no mais que possível, as peculiaridades de cada uma delas, além das razões que justificarem seus respectivos posicionamentos. Veja-se, em abono dessa conclusão, que a análise cartográfica 138/2023, juntada aos autos pela Funai e transcrita no voto do Relator, indica que o Projeto Potássio-Autazes encontra-se em distâncias diferentes das diversas comunidades afetadas, sendo que, especificamente em relação à “Aldeia Soares”, cujos representantes se posicionaram em sentido contrário ao do ora agravante, a indicação no mencionado documento é pela “sobreposição da área de influência” e pela distância de apenas 2,52 km entre a planta do projeto e a área em que situada a própria aldeia (a menor distância, ao que se infere, entre todas as comunidades afetadas). Na mesma linha, atente-se para o teor das seguintes passagens da decisão de ID 1913974193 dos autos principais, proferida após a decisão agravada: “O Povo Mura afetado pelo grande empreendimento Potássio, na forma do Protocolo legitimamente aprovado por sua totalidade de comunidades, sequer começou a ser consultado. Especialmente o Povo Mura da Comunidade Lago Soares, onde foi fincada a primeira perfuração para fins de pedido de concessão de lavra e licenças prévia, de instalação e de operação, o povo não foi ouvido em nenhuma das etapas da Consulta. Em inspeção judicial realizada por esta Magistrada, confirmei a tese dos autos de que é exatamente no Lago Soares que parte a pretensão de instalação do Projeto Potássio e essa comunidade não foi ouvida até a presente data, sendo ilegítima qualquer conclusão sem sua participação.” (...) “4.1. Alegam, o MPF, a organização OLIM CV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES, uma série de ilícitos em tese perpetrados pela empresa Requerida Potássio do Brasil. Defendem ocorrência de má fé, assédio, danos psicológicos, danos morais, coação manipulação e intimidação contra indígenas Mura. As alegações são de extrema gravidade e antes mesmo de ouvidos o MPF e a requerida, é dever do juízo adotar providências preliminares para determinar a imediata suspensão dos vícios, pois que a sua continuação pode gerar danos irreversíveis aos povos originários envolvidos, além da transfiguração do meio ambiente, cultura, tradição e do seu modo de vida. 4.2. As provas anexadas com a manifestação da parte interessada (OLIMCV e Comunidade Lago Soares) bem como aquelas referidas pelo MPF em seu Parecer, demonstram inclusive a presença do Presidente da Potássio do Brasil em reuniões com indígenas Mura, levando ideias destorcidas e contrárias ao ordenamento jurídico, além de descumprir claramente decisão constante de ata de audiência onde ficou consignado que a empresa não poderia praticar coação contra os indígenas. Desde a feitura do Protocolo, o Povo Mura assentou expressamente: "não queremos ser pressionados e coagidos". 4.3. São mais de 12 - doze- mil indígenas Mura afetados com o empreendimento, dos quais nem 1% chegou a participar da reunião onde correu uma lista de presença depois transfigurada em lista de aprovação, havendo clara pressão de cerca de dez indivíduos - alguns já identificados e ouvidos no Ministério Público Federal ( ID 1914447184 - Parecer) - no sentido de distorcer a realidade e retirar o direito de participação da imensa maioria dos indígenas nesse complexo processo de Consulta Livre e Informada. Conforme as provas anexadas, o indígena Cleber (ou Kleber) age como um doa encarregados de praticar coação e manipulação. A conduta pode vir a configurar crime, seja pelo 'modus operandi' de alteração da realidade fática e jurídica, seja por escarnecer as tradições culturais fixadas no Protocolo de Consulta ( lei 60001-73, art. 58, I). 4.4. Ainda, o senhor Kleber Mura vem afirmando que a empresa Potássio do Brasil LTDA. realizou uma promessa de pagamento de supostos royalties pela extração do minério em troca da aprovação do empreendimento, por parte das comunidades indígenas. Cumpre esclarecer que para que comunidades tradicionais ou indígenas recebam royalties por grandes empreendimentos exploradores em suas terras, é necessário primeiramente cumprir os passos da lei, não sendo faculdade de nenhuma empresa oferecer vantagens ou promessas de pagamentos, os quais já são fixados pelo legislador em casos de exploração mineral. Em síntese, na hipótese de futura operação licenciada do empreendimento, os roylties que eventualmente serão pagos decorrem de deliberação do legislador e não são mera faculdade da empresa Potássio do Brasil, a qual está causando tumulto, manipulação e pressão indevida em comunidade em situação de vulnerabilidade, o que deve cessar IMEDIATAMENTE. 4.5. Na manifestação trazida ao conhecimento do juízo, haveria indígena Mura recebendo 5 - cinco - mil reais da empresa Potássio, enquanto outros estariam recebendo 10 - dez- mil reais, tudo com o intuito de coagir e manipular as comunidades afetadas para o fim de aprovar o empreendimento, gerando uma confusão entre Consentimento Livre e Informado e licenciamento prévio, de licença de instalação e licença de operação, que a essa altura, estão fazendo parecer como um só fato jurídico quando são atos distintos. A transfiguração dos fatos jurídicos precisa imediatamente ser quebrada para evitar um dano irreversível aos povos originários, à sua cultura, modo de vida e tradição. 4.6. Dessa forma, diante de tanto vícios de consentimento explícitos, trazidos a juízo por indígenas Mura que habitam o principal Lago (Soares) a ser afetado pelo empreendimento, bem como pela organização OLIMCV, tudo isso faz-nos concluir que a tese manejada de ilegitimidade e nulidade do resultado de uma suposta consulta é inevitavelmente pertinente. Sem consulta válida, na forma do Protocolo definido POR TODO O POVO MURA ( e não por uma dúzia de pessoas com fortes indícios de estarem cooptadas) não há que falar em licença prévia válida. Isso porque a consulta depende da vontade livre do povo e decorre da sua autodeterminação em deliberar acerca de seus interesses diante de qualquer empreendimento que possa impactar seu modo de vida, conforma já definiu o STF. 4.7. Portanto, de imediato recebo a manifestação e o Parecer acima aduzidos, determino a manifestação de todas as partes em dez dias sobre o que entenderem pertinente e desde já adoto as deliberações abaixo para o fim de resguardar a dignidade e integridade do Povo Mura, alvo de um processo de coação, manipulação e intimidação. a) Determino a imediata suspensão de qualquer atitude de coação, manipulação, fraude, intimidação, ameaça, pressão e cooptação contra indígenas Mura, praticadas pela empresa requerida ou por quem quer que haja em seu mando. Fixo desde já multa de cem mil reais por cada dia de descumprimento da presente decisão, a contar da intimação da presente decisão. b) Fixo desde já multa de um milhão de reais a ser custeada pela Empresa Potássio do Brasil Ltda, pelo descumprimento dos deveres assumidos durante as audiências de conciliação perante o Juízo, em especial por realizar pressão indevida sobre o povo Mura com o comparecimento pessoal do seu presidente em reuniões internas das comunidades sobre o assunto tratado nos autos, o que já foi vedado pelo juízo. A multa incidirá sobre o dia de comparecimento do Presidente da Potássio, em reunião vedada pelo Protocolo de Consulta e será revertida a favor da Organização requerente e comunidade Lago Soares, pro rata.” A reforçar o posicionamento da julgadora que conduz o processo na origem, as cartas abertas juntadas nos ID 1914200677, 1914200678, 1914200679 indicam a discordância de várias aldeias com os rumos do procedimento. Da mesma forma, confira-se o que foi expressamente consignado no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Carneiro da Várzea (ID1914200682 dos autos principais): Trata-se, com efeito, de diretrizes contidas no Protocolo de Consulta construído para o exame do Projeto Potássio-Autazes. Pois em que pese a clareza dos termos acima transcritos, há no processo principal fortes indícios da participação ativa de “não-índios” no “processo de convencimento” da comunidade Mura (inclusive na assembleia realizada nos dias 21 e 22/08/2023), bem assim de que parte das lideranças não levou em conta, como deveria ter levado segundo as normas protocolares acima transcritas, a opinião do conjunto da comunidade indígena afetada. Com todo esse cenário, tenho que o exame realizado em sede de agravo de instrumento tirado contra uma decisão marcada por seu caráter de provisoriedade e de instrumentalidade para a bom desenrolar do processo, deve ser feito com a adoção de uma postura cautelosa quanto aos riscos do reconhecimento da validade do procedimento de consulta que está na berlinda, ante a irreversibilidade das medidas que eventualmente sejam tomadas com base nessa conclusão (no mínimo precipitada). Isso quer dizer que, diante das incertezas quanto à validade do caráter conclusivo da consulta, o Poder Judiciário deve assumir uma posição preventiva quanto aos possíveis prejuízos que venham a ser causados. Aqui tomando por empréstimo – e por analogia – o ensinamento Délton Winter de Carvalho, tenho como necessária a conclusão de que a alta probabilidade de comprometimento futuro de direitos fundamentais das comunidades indígenas afetadas pelo empreendimento em causa enseja a adoção das medidas preventivas necessárias – tais como as que adotadas pelo juízo de primeiro grau –, “a fim de evitar a concretização dos danos ou minimizar as consequências futuras daqueles já efetivados”. Não procede, portanto, a compreensão de que eventuais prejuízos futuros poderão ensejar indenização por perdas e danos, na medida em que a finalidade precípua da atuação jurisdicional em casos como o presente deve ser a de evitar que o dano ocorra e não simplesmente compensá-lo. Pensar diferente, com todas as vênias, seria abrir a caixa de Pandora para uma pletora de ilegalidades que poderiam ser cometidas sob o escudo de uma incerta indenização reparatória. Não bastasse tudo isso, a eventual validade das deliberações obtidas em assembleias realizadas sob a condução do CIM não pode, em princípio, vincular as comunidades que não são pelo referido conselho representadas. Assim, a eficácia de tais deliberações, para fins de reconhecimento da oitiva real de todas as comunidades afetadas, seria condicionada à obtenção de manifestações convergentes daquelas que não vinculadas ao agravante. Da necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da Terra Indígena – ausência de legitimidade recursal, quanto ao ponto Como já antecipado, a decisão agravada não empreendeu exame qualitativo da consulta que a parte agravante considera legítima, restringindo-se a suspender seus efeitos ante a necessidade de observância de requisitos externos ao referido procedimento. Dentre as externalidades mencionadas na decisão agravada, a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi invocada como pressuposto para a implementação do Projeto Potássio-Autazes, que tem como principal interessado os responsáveis pelo empreendimento. Ainda que se diga que a parte agravante teria algum interesse na implementação no projeto, pelos possíveis benefícios que ele poderia proporcionar, tal não significa que, processualmente, caiba a ela defender a sua concretização. A ilustrar esse entendimento, tome-se como exemplo a hipótese em que o órgão ambiental responsável pelo licenciamento apresente alguma condicionante para o seu deferimento. Diante de tal situação, caberá apenas à agravada Potássio do Brasil Ltda. questionar judicialmente o óbice levantado, falecendo ao Conselho nestes autos agravante legitimidade para o enfrentamento da hipotética decisão administrativa. Mutatis mutandis, é exatamente essa a situação ora analisada, pois a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi levantada como óbice para o licenciamento do projeto discutido, diante do entendimento que ele seria realizado em terras indígenas. Não cabe, portanto, ao Conselho Mura, defender aquilo que em última análise se mostra como de interesse da empresa, o que seja, a implementação de seu empreendimento econômico. Por outro lado, o Conselho agravante não representa a totalidade da Comunidade Mura, mas apenas parte dela, daí porque não possui legitimidade para se manifestar sobre os efeitos do empreendimento nas áreas não alcançadas por sua representação. Em resumo, não cabe ao CIM questionar a avaliação feita pelo juízo processante acerca da repercussão de um projeto empresarial do qual não faz parte, em áreas ocupadas por comunidades que não representa. A legitimidade recursal da agravante, portanto, em relação ao que é objeto do agravo de instrumento, está adstrita à validade de sua manifestação no procedimento de consulta, tema já analisado no tópico anterior deste voto. Conclusão Diante do exposto, julgo prejudicado o agravo de instrumento em relação à suspensão dos efeitos da consulta realizada, diante da prolação de decisão judicial posterior. Na hipótese de superação desse ponto preliminar, não conheço do agravo, por deficiência de fundamentação e, se também afastado esse obstáculo, nego provimento ao recurso. De outro modo, não conheço do agravo de instrumento no que se refere à necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área onde será implementado o projeto, por ausência de legitimidade recursal. Por fim, deixo de me manifestar acerca da questão relativa à competência para o licenciamento do empreendimento, por se tratar de tema estranho ao objeto da insurgência em apreço. É como voto. Desa. Federal KATIA BALBINO Relatora CARVALHO, DéltonWinter de. Dano Ambiental Futuro: A responsabilização Pelo Risco Ambiental. 2ª ed. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2013, pp. 187/202 PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 Processo Referência: 0019192-92.2016.4.01.3200 AGRAVANTE: CONSELHO INDIGENA MURA AGRAVADO: DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUCAO MINERAL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (PROCURADORIA), INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS - IBAMA, INSTITUTO DE PROTECAO AMBIENTAL DO AMAZONAS, POTASSIO DO BRASIL LTDA., FUNDACAO NACIONAL DO INDIO - FUNAI, UNIÃO FEDERAL, ESTADO DO AMAZONAS EMENTA DIREITO AMBIENTAL E DIREITOS INDÍGENAS. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSULTA PRÉVIA AO POVO INDÍGENA MURA. EXPLORAÇÃO MINERAL. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA ESTADUAL. RECONHECIMENTO DE CONSULTA VÁLIDA. PROSSEGUIMENTO DO PROJETO. 1. Agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura (CIM) contra decisão que suspendeu os efeitos da consulta ao povo indígena Mura sobre o Projeto Potássio Autazes, condicionando sua validade ao cumprimento de requisitos ambientais, legais e constitucionais, no bojo de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). 2. Pretensão do agravante de obter efeito suspensivo para reconhecer a validade da consulta realizada, conduzida pelo CIM, e afastar exigências relacionadas à autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas, bem como discutir a competência do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) no licenciamento ambiental do empreendimento. 3. O debate circunscreve-se às seguintes questões: (i) validade da consulta ao povo indígena Mura de Autazes, realizada com base no protocolo próprio; (ii) competência do IPAAM para o licenciamento ambiental do empreendimento; e (iii) necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, considerando a localização do projeto em área não demarcada como terra indígena. 4. Reconhecida a legitimidade do Conselho Indígena Mura (CIM) como entidade representativa das aldeias de Autazes para conduzir a consulta, nos termos da Convenção 169 da OIT, considerando que o processo observou protocolos definidos com acompanhamento judicial. A ausência de pronunciamento de outras comunidades não invalida a consulta, mas mantém a obrigação do Estado de dialogar continuamente com os povos afetados. A CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. 5. A competência do IPAAM para licenciamento ambiental foi reafirmada, uma vez que o empreendimento está localizado fora de terras indígenas demarcadas, observando-se os critérios da Lei Complementar nº 140/2011. A distância de poucos quilômetros entre o projeto e a terra indígena mais próxima não configura causa de deslocamento de competência ao IBAMA, o qual, no entanto, possui o dever de vigilância em relação ao licenciamento estadual. Não há dados que permitam concluir que o órgão ambiental estadual não tem a qualificação ou a estruturação necessária para proceder ao licenciamento, tampouco foram apontadas omissões nas condicionantes fixadas na Licença Prévia, que expressamente consideraram o componente indígena. 6. O STF, na ADI 4.757/DF, expressamente reconheceu a existência do "dever de vigilância da União quanto aos licenciamentos de responsabilidade dos Estados, cujas atividades ou empreendimentos possam causar impactos ambientais indiretos relevantes em áreas indígenas ou unidades de conservação. A exemplo, as atividades de mineração ou empreendimentos hidrelétricos, cujas poluições sonoras ou dos leitos de rios possam impactar a preservação adequada das referidas áreas." O STF acrescentou que, "[n]esse ponto, competirá, com efeito, à União averiguar as capacidades institucionais do órgão ambiental estadual para proceder com o licenciamento, em especial as condicionalidades para a emissão da licença, considerados esses impactos indiretos, que não raras vezes demandam alta espeficiação de instrumentos técnicos e de profissionais" (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023, p. 85 do acórdão). 7. A inexistência de terra indígena demarcada ou delimitada na área do empreendimento afasta a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, conforme art. 231, § 3º, da Constituição Federal, ainda que se instaure processo demarcatório, enquanto não concluído. 8. Agravo de instrumento provido para: (i) considerar válida a consulta realizada pelo CIM como representativo do povo indígena Mura de Autazes e considerar cumprida a obrigação de consultar; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciamento ambiental do empreendimento; (iii) afastar a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração no caso em análise; e (iv) autorizar o prosseguimento do projeto minerário, sem prejuízo de novas medidas para assegurar a proteção aos direitos indígenas e ambientais. ACÓRDÃO Decide a Sexta Turma, por maioria, dar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do voto do Relator. Brasília/DF, data e assinatura eletrônicas. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator
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Processo nº 1037175-40.2023.4.01.0000
ID: 292902542
Tribunal: TRF1
Órgão: Gab. 16 - DESEMBARGADOR FEDERAL FLAVIO JARDIM
Classe: AGRAVO DE INSTRUMENTO
Nº Processo: 1037175-40.2023.4.01.0000
Data de Disponibilização:
09/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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LUIS INACIO LUCENA ADAMS
OAB/DF XXXXXX
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CAROLINA MAR AZEVEDO
OAB/AM XXXXXX
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IVAN DE SOUZA QUEIROZ
OAB/AM XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDI…
JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDIGENA MURA REPRESENTANTE(S) POLO ATIVO: IVAN DE SOUZA QUEIROZ - AM4297 POLO PASSIVO:Ministério Público Federal (Procuradoria) e outros REPRESENTANTE(S) POLO PASSIVO: CAROLINA MAR AZEVEDO - AM8627-A, LUIS INACIO LUCENA ADAMS - DF29512-A, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133, GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133 e GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882 RELATOR(A):FLAVIO JAIME DE MORAES JARDIM PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 RELATÓRIO Agravo de Instrumento interposto em 14.9.2023, pelo Conselho Indígena Mura (CIM), contra decisão da 1ª Vara Federal do Amazonas (id. – ID 1769860076), que suspendeu o resultado de consulta ao povo indígena Mura até que fossem cumpridos requisitos ambientais, legais e constitucionais, no contexto da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). A ação, na origem, busca a anulação da Licença Prévia emitida pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas- IPAAM à Potássio do Brasil Ltda. referente à exploração de silvinita/potássio em Autazes/AM, alegando incompetência do órgão emissor e ausência de consulta prévia aos povos indígenas afetados. O agravante argumenta que a decisão violou sua autonomia, destacando que a consulta foi conduzida conforme protocolo próprio e recursos próprios, com representantes de 46 aldeias. Sustenta que a suspensão judicial desrespeita o resultado soberano da consulta, gera prejuízos financeiros e configura cerceamento de defesa. O CIM defende ainda que os direitos minerários da empresa foram desmembrados de terras indígenas, afastando a necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração mineral. Ao final, requer efeito suspensivo à decisão agravada, permitindo a conclusão e consideração da consulta nos autos antes de eventual sentença. Defende a existência de prejuízos irreparáveis caso o processo seja decidido sem incorporar o resultado da consulta, e reafirma o pedido de Justiça Gratuita, por ser entidade sem fins lucrativos. Foi requerida, ainda, a gratuidade de justiça. Após a distribuição, por meio da petição id. 347816151, foram juntadas atas de reuniões realizadas nos dias 15, 16, 18 e 22.8.2023, nas quais o agravante alega que foi dado início dado procedimento de consulta para representantes de 46 aldeias. Despacho de id. 348177162 intimou os agravados a apresentar contrarrazões e sobrestou a análise do pedido de liminar. Antes de escoado o prazo, o agravante apresentou petição (id. 350573644) comunicando que o Povo Mura de Autazes, nos dias 21 e 22.09.2023, finalizou a Consulta sobre o Projeto Potássio Autazes e outras questões relevantes, de acordo com a ata anexa. Destacou que foi aprovado o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta. Informou, ainda, que foi aprovado pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil faça a mineração. Requereu, assim, a atribuição de efeito suspensivo ao agravo. A Potássio do Brasil Ltda. apresentou as contrarrazões de id. 360785149. Noticiou a existência de decisão da Presidência do TRF1, a qual, nos autos da SLS nº 1040729-80.2023.4.01.0000, suspendeu a decisão original, entendendo que a paralisação antecipada do licenciamento interfere na competência administrativa e nas normas constitucionais que regulam a exploração mineral em terras indígenas. No mais, a Potássio do Brasil Ltda. adere aos argumentos do agravante, solicitando a reforma da decisão agravada. O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) apresentou as contrarrazões de id. 367016144, aduzindo que o projeto e suas jazidas estão a 8 km das terras indígenas mais próximas e que a legislação atual estabelece o critério territorial para definir competências ambientais. Assim, considera desnecessária a autorização do Congresso Nacional, pois não há exploração direta em terras indígenas. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. O IBAMA apresentou a petição id. 368864139 informando carecer de interesse em apresentar contrarrazões em face do mencionado recurso de agravo de instrumento, uma vez que sua posição nos autos de origem sempre foi no sentido de que não possui competência legal para conduzir o licenciamento ambiental em questão e, tampouco, para intervir no âmbito da consulta livre, prévia e informada que deve ser realizada perante a comunidade indígena que venha a ser afetada pelo empreendimento. A FUNAI protocolou a manifestação de id. 369353129. Inicialmente, a FUNAI argumenta pela perda superveniente do objeto do agravo, uma vez que nova decisão foi proferida pelo juízo de origem, abordando fatos e fundamentos distintos, como a inexistência de consulta válida com participação de todos os indígenas afetados, especialmente da Comunidade Lago Soares. A decisão, prolatada por meio do id. 190941615, relata coações, pressões e irregularidades promovidas pela empresa Potássio do Brasil e seus representantes. Entre as medidas adotadas, destaca-se a suspensão do licenciamento ambiental pelo IPAAM e de atos vinculados ao empreendimento, além da fixação de multas e proibição de práticas coercitivas. No mérito, a FUNAI defende a manutenção da decisão agravada, ressaltando que a consulta ao povo Mura é imprescindível, mas deve observar a inclusão de todas as comunidades potencialmente afetadas. A instituição destaca a necessidade de conclusão dos estudos demarcatórios da Terra Indígena Lago do Soares e Urucurituba, conduzidos por grupo técnico da FUNAI, para garantir a legitimidade e abrangência da consulta. Por fim, a FUNAI solicita, em preliminar, o não conhecimento do agravo por perda de objeto e, subsidiariamente, o seu desprovimento, mantendo a decisão que suspendeu o resultado da consulta e os atos administrativos relacionados ao empreendimento até o cumprimento dos requisitos legais. A ORGANIZAÇÃO DE LIDERANÇAS INDÍGENAS MURA DE CAREIRO DA VÁRZEA - OLIMCV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES apresentou a manifestação de id. 357658659. Defenderam a ilegitimidade e a invalidade da consulta realizada para aprovação do Projeto Potássio Autazes, apontando graves violações ao Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Mura de Autazes e Careiro da Várzea. O documento destaca que o Conselho Indígena Mura (CIM), ao conduzir a consulta, ignorou a inclusão de comunidades contrárias ao projeto, como a Aldeia Soares, e promoveu reuniões com fortes indícios de coação, pressão e manipulação, em desrespeito às diretrizes estabelecidas no protocolo previamente aprovado pelas comunidades. Além disso, aponta a participação irregular de representantes da empresa Potássio do Brasil Ltda., prática vedada no contexto das reuniões internas. As lideranças contrárias ao empreendimento denunciaram promessas de compensações financeiras, irregularidades na condução das consultas e a tentativa de impor um novo protocolo de consulta para fragmentar a representação do povo Mura, excluindo as aldeias do município de Careiro da Várzea. A defesa ressalta ainda que a consulta não foi realizada de forma ampla, livre e informada, como determina a Convenção 169 da OIT. Em termos jurídicos, as contrarrazões pedem o reconhecimento da nulidade do resultado da consulta e a manutenção da decisão judicial de suspensão do licenciamento ambiental e de atos administrativos relacionados ao projeto até que sejam cumpridos os requisitos legais e constitucionais, com participação efetiva de todas as comunidades afetadas. O parecer id. 373711134, ofertado pelo MPF, pugna pelo desprovimento do agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura por perda superveniente do objeto. É o relatório. PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL FLÁVIO JARDIM - Relator: I. Estão preenchidos os requisitos de admissibilidade. A peça, subscrita por profissional legalmente habilitado, (a) foi protocolada no prazo legal. O agravante requereu seja o preparo dispensado em razão da hipossuficiência, o que defiro. Conheço do Recurso. II. A decisão agravada, datada de 25.8.2023, no que interessa (id. 1769860076): III. Este agravo foi protocolado pelo Conselho Indígena Mura – CIM e visa a suspender os efeitos da decisão agravada de id. 1769860076, proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, movida pelo MPF. Contra essa decisão, também foram interpostos os seguintes recursos: (i) AI nº 1039810-91.2023.4.01.0000, protocolado pela Potássio do Brasil Ltda. (ii) AI nº 1042776-27.2023.4.01.0000, protocolado pelo Ibama; (iii) Ai nº 1043035-22.2023.4.01.0000, protocolado pela União. No agravo, é postulado que a decisão agravada seja reformada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". III.a. A Relevância do Projeto Potássio-Autazes Consoante destacou a União em petição protocolizada nestes autos, "o Projeto Autazes foi habilitado, na forma do Decreto nº 10.657/2021, pelo Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos – CTAPME, para integrar a política de apoio ao licenciamento ambiental de projetos de investimento para a produção de Minerais Estratégicos – Pró Minerais Estratégicos, em 28 de setembro de 2021." [1] Segundo o que assevera a União, "[d]e acordo o que dispõe o Decreto nº 10.657/2021, os projetos minerários habilitados na Política de Pró-Minerais Estratégicos são considerados prioritários ao país em razão dos seguintes critérios (art. 2º): i) alto percentual de importação para suprimento de setores vitais da economia; ii) aplicação em produtos e processos de alta tecnologia e iii) vantagens comparativas e essencial para a geração de superavit da balança comercial do país." [id.] A União complementa que o projeto "visa a exploração de minério cloreto de potássio, fertilizante fundamental para a agricultura nacional." [id.] Pelas informações prestadas, "o Brasil importa 95% do cloreto de potássio que utiliza para fertilização do solo, ostentado o título de maior importador mundial de potássio, com 10,45 milhões de toneladas adquiridas em 2019, de acordo com dados do Ministério da Economia." [id.] A previsão da empresa é de "atender cerca de 25% do consumo nacional do minério, reduzindo a dependência interna do produto por mais de 30 anos." [id.] A União ainda aponta que a relevância do projeto foi exacerbada com o recente cenário de guerra entre Ucrânia-Rússia: "Ocorre que as recentes sanções econômicas impostas à Bielorrússia, responsável por ¼ de toda produção mundial de cloreto de potássio, gerou enorme preocupação no setor agroindustrial brasileiro em razão da possível escassez do minério, o que poderá impactar o custo de produção e, consequentemente, o aumento do preço dos alimentos. Observa-se, assim, que o desenvolvimento de projetos minerários com capacidade de aumentar significativamente a oferta de fertilizantes ao mercado interno, reduzindo a dependência estrangeira, é essencial para a proteção dos pequenos produtores de alimentos e da população mais vulnerável à variação de preço dos alimentos. [...] Além disso, há apenas três grandes players produtores no mundo, sendo que em dois deles, Rússia e Bielorrússia, há interferência dos governos na atuação internacional das empresas. As duas últimas crises mundiais de fertilizantes, em que os preços ao produtor rural aumentaram mais de 150% em menos de seis meses, ocorreram por ocasião da atuação das empresas de fertilizantes potássicos. Na atual crise de fertilizantes, o primeiro nutriente a faltar para o Brasil foi o potássio." [id.] Segundo o ente público, há altíssima dependência nacional de fertilizantes estrangeiros, o que torna o país ainda mais vulnerável, pois os grandes produtores agrícolas mundiais possuem autonomia no fornecimento de fertilizantes: "O Brasil vem presenciando, nos últimos anos, um forte aumento nas importações de fertilizantes. Estima-se que, em 2020, mais de 80% dos que foram consumidos no Brasil são de origem estrangeira, respondendo a produção nacional por menos de 20% da demanda do país. Estrategicamente, todos os países que são grandes produtores agrícolas no mundo, têm autonomia no fornecimento de fertilizantes, uma vez que produzem, no mínimo, 50% da sua demanda anual, exceto o Brasil. A dependência se agrava quando se verifica que o Brasil deverá responder por quase metade da produção mundial de alimentos nos próximos anos, aumentando proporcionalmente a demanda por fertilizantes. Atualmente, o Brasil é o quarto consumidor global de fertilizantes, responsável por cerca de 8% desse volume e é o maior importador mundial, ou seja, é o país com a maior dependência externa por fertilizantes." [id.] A variação de preços da commodity é também apontada como fator de preocupação, tendo em vista que há ciclos de crises mundiais que elevam os preços a níveis acima do padrão: "Aumentos nos preços desses insumos acontecem em ciclos de crises mundiais, como em 2008 e 2021, períodos em que foram registrados os maiores preços da história. Esse cenário impacta negativamente na competividade dos produtos agrícolas brasileiros, pois os fertilizantes já ocupam mais de 40% do custo de produção de culturas importantes como soja, milho e algodão, que compõem as principais exportações do agronegócio brasileiro, tornando o produto nacional menos competitivo." [id.] Assim, a conclusão da União é a de que "o Projeto Autazes pode proporcionar ao Brasil uma arrancada em direção à segurança do fornecimento de fertilizante potássicos para o país." [id.] Abaixo, as características físicas do projeto: Vale ressaltar que se cuida de empreendimento significativamente menor do que, por exemplo, a UHE Belo Monte, que possui dois reservatórios de regularização, com área total de 478 km², sendo 274 km² do leito original do Rio Xingu. Os dois reservatórios são o Reservatório Xingu, com 359 km², e o Reservatório Intermediário, com 119 km. É, desde já, importante destacar que no caso Comunidade Indígena Yakye vs. Paraguai, decidido em 17.6.2005, a Corte Interamericana de Direitos Humanos assentou que a propriedade indígena pode sofrer restrições quando presente interesse social e um objetivo estatal legítimo. Confira-se trecho do voto: Constam dos autos, ainda, diversas matérias jornalísticas de 2022 informando problemas de escassez do cloreto de potássio no mercado mundial, devido à guerra na Ucrânia (id. 970735666). No volume 3, consta ainda a Nota n. 00144/2023/CONJUR-MAPA/CGU/AGU, a qual atesta que a demanda por fertilizantes potássicos aumentará bastante nos próximos anos e que a produção nacional está decaindo: O documento ainda atesta que o Projeto Autazes está intimamente ligado com caros direitos fundamentais de índole social e com os fundamentos da ordem econômica, os quais incumbe a Administração dar concretude: Por fim, requer-se a aplicação do art. 20 da LINDB no julgamento desta ACP n. 0019192-92.2016.4.01.3200: "Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas." Diante do quadro apresentado, sem resolver a questão sobre o local em que será instalado o projeto minerário é ou não terra indígena, há aparência de que o projeto possui interesse social, eis que visa a fornecer insumos para a agricultura -, e também persegue um objetivo estatal legítimo, podendo ser executado inclusive se estiver em terras indígenas, desde que obedecida a legislação brasileira. III.b. O Conselho Indígena Mura - CIM e a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV O Conselho Indígena Mura - CIM é inequivocamente a entidade representativa dos Mura que residem em Autazes. Da mesma forma, a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV é a organização que representa os Mura no município do Careiro da Várzea. Essa circunstância é inequívoca dos autos e está consignada no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Careiro da Várzea, Amazonas. Confira-se à fl. 30, no capítulo "Quem Fala Em Nome dos Mura?": "Apesar de a Constituição Federal garantir que nossas terras sejam demarcadas, o Estado ainda não demarcou todas. A demarcação é nossa maior luta. "Mas nós sabemos que temos direito à nossa autodeterminação e ao autogoverno. A Constituição Federal de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, e a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, de 2007, assinadas pelo Brasil, garantem nosso direito ao autogoverno: somente nós, Mura, podemos decidir quem representa nossas aldeias e nosso povo. Por isso criamos as nossas organizações. As aldeias da região onde fica o município de Autazes se reúnem nas assembleias do Conselho Indígena Mura - CIM, e as aldeias que ficam na região onde está o município do Careiro da Várzea se reúnem nas assembleias da Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea, OLIMCV. Estas nossas organizações são um direito nosso, assegurado pela Constituição Federal (art. 5º): temos o direito de nos organizar livremente e de tomar nossas decisões de maneira soberana e autônoma nas assembleias das nossas organizações. Quando os não-índios querem elaborar um projeto, medida ou lei, são obrigados a nos consultar antes, sem nos pressionar e nos informando sobre todos os detalhes da proposta. Para começar esse diálogo, que é a consulta prévia, os não-índios " III.c. As Entidades Representativas e o Poder de Fala dos Povos Originários Nos termos do art. 32 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, são as instituições representativas dos povos originários que devem falar pelos indígenas em fases de consulta. Confira-se: "1. Os povos indígenas têm o direito de determinar e de elaborar as prioridades e estratégias para o desenvolvimento ou a utilização de suas terras ou territórios e outros recursos. 2. Os Estados realizarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas próprias instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre e informado antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particularmente em relação ao desenvolvimento, à utilização ou à exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo. 3. Os Estados estabelecerão mecanismos eficazes para a reparação justa e equitativa dessas atividades, e serão adotadas medidas apropriadas para mitigar suas consequências nocivas nos planos ambiental, econômico, social, cultural ou espiritual." Também no caso do Povo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Equador, sentença de 27 de junho de 2012, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi expressamente consignado que “os Estados devem incorporar essas normas aos processos de consulta prévia, de maneira a gerar canais de diálogos sustentados, efetivos e confiáveis com os povos indígenas nos procedimentos de consulta e participação por meio de suas instituições representativas." Sendo assim, como as consultas e cooperação entre indígenas devem ser verbalizadas por meio das suas instituições representativas, não há dúvidas de que, no caso em concreto, quem deve falar sobre os interesses dos Muras de Autazes é o CIM e pelos Mura de Careiro da Várzea é a OLIMCV. A própria decisão de id. 925987687, do Juízo de origem, reconhece que o CIM é a instituição que representa parte do Povo Indígena Mura nestes autos: III.d. A Abrangência do Dever de Consulta, a Inexistência do Poder de Veto e o Momento Adequado Sobre a abrangência do dever de consulta, no document Handbook for ILO Triparte Constituents - Understanding the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), publicado pela OIT, com a finalidade de responder questões essenciais sobre a Convenção 169, é dito que um dos principais desafios da convenção é garantir que consultas apropriadas sejam realizadas antes da adoção de medidas legislativas ou administrativas que provavelmente afetarão diretamente os povos indígenas e tribais [2]. Segundo o que decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos em Garífuna Triunfo de La Cruz e seus membros vs. Honduras, os elementos essenciais do direito de consulta são “a) o caráter prévio da consulta; b) a boa-fé e a finalidade de chegar a um acordo; c) a consulta adequada e acessível; d) o estudo de impacto ambiental; e e) a consulta informada.” É incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública. Essa ideia é pedagogicamente explicada na obra "The Oxford Handbook of International Enviromental Law", de Lavanya Rajamani e Jacqueline Peel, ao tratar da Convenção 169 da OIT (pág. 739): "Governments shall consult, 'in good faith...with the objective of achieving agreement or consent to the proposed measures' when considering legislative or administrative measures which may affect Indigenous peoples directly. Special measures to safeguard persons, institutions, property, labour, cultures, and environment of the Indigenous peoples shall not be contrary to the freelyexpressed wishes of the peoples concerned. The Convention acknowleges Indigenous peoples to be distinct polities within states". Em tradução livre: "Os governos deverão consultar, 'de boa fé... com o objetivo de chegar a acordo ou consentimento para as medidas propostas' ao considerar medidas legislativas ou administrativas que possam afetar diretamente os povos indígenas. Medidas especiais para salvaguardar pessoas, instituições, propriedades, trabalho, culturas e meio ambiente dos povos indígenas não devem ser contrárias aos desejos livremente expressos dos povos envolvidos. A Convenção reconhece os povos indígenas como entidades políticas distintas dentro dos Estados". Portanto, devem os indígenas expressar livremente seus modos de criar, fazer e viver, nos termos do art. 216, II, da Constituição e devem ser ouvidos propriamente quando puderem ser afetados por medidas que os impactem. Mas não basta. É indispensável que suas ideias, expressadas num ambiente livre e sem intimidações, sejam consideradas pelo órgão ambiental e pelo poder público, como um todo, ao analisar o licenciamento e/ou autorização para uma obra ou empreendimento que puderem afetar tais comunidades tradicionais. Em outras palavras, esse poder de fala (livre) dos indígenas gera, em contrapartida, um dever de escuta das autoridades envolvidas. É importante esclarecer, porém, que isso não significa a existência de um poder de veto por parte da comunidade indígena. Realizar a consulta é uma obrigação convencional, com força supra legal. Acatar necessariamente a integralidade do que for demandado não parece ser, ao menos pelo que constatei da jurisprudência do STF e do que consta em documentos da própria OIT. Confira-se, nesse sentido, o que já decidiu o STF, no julgamento da PET 3388 ED/RR: "70. Por fim, conforme observado pelo Ministro Gilmar Mendes, a relevância da consulta às comunidades indígenas “não significa que as decisões dependam formalmente da aceitação das comunidades indígenas como requisito de validade” (fl. 799). Os índios devem ser ouvidos e seus interesses devem ser honesta e seriamente considerados. Disso não se extrai, porém, que a deliberação tomada, ao final, só possa valer se contar com a sua aquiescência . Em uma democracia, as divergências são normais e esperadas. Nenhum indivíduo ou grupo social tem o direito subjetivo de determinar sozinho a decisão do Estado. Não é esse tipo de prerrogativa que a Constituição atribuiu aos índios. 71. A mesma lógica se aplica em matéria ambiental, que também mereceu proteção diferenciada por parte do constituinte. Por isso mesmo, e com a devida vênia em relação à posição da embargante (fl. 16.165), não há um problema a priori no fato de que “as tradições e costumes indígenas” sejam considerados como “apenas mais um fator, a ser sopesado pela autoridade ambiental”. Em verdade, essa é uma circunstância inerente à unidade do sistema constitucional, que promove a tutela de um conjunto variado de interesses e direitos que, em diversas situações, podem entrar em rota de colisão. Ao não instituir uma hierarquia rígida ou estática entre tais elementos, a Constituição impõe a necessidade de que a concordância entre eles seja produzida em cada contexto específico, à luz de suas peculiaridades. 72. Assim, como responsável pela administração das áreas de preservação, o Instituto Chico Mendes não pode decidir apenas com base nos interesses dos indígenas, devendo levar em conta as exigências relacionadas à tutela do meio ambiente. Nesse cenário, é de fato possível – como afirma a embargante – que “o administrador da unidade de conservação, até pela sua posição institucional, ponha em primeiro plano a tutela ambiental, em detrimento do direito das comunidades indígenas”. Contudo, é igualmente possível que isso não ocorra, não cabendo a este Tribunal antecipar o erro, a negligência ou a má-fé. Em qualquer caso, os índios, suas comunidades e o próprio Ministério Público poderão recorrer ao Poder Judiciário sempre que reputarem inválida uma decisão do Instituto (ou de qualquer outra autoridade)." (Emb. Decl. na Petição 3.388/RR, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 23.10.2013) No mesmo sentido, são os comentários feitos no documento editado em 2019, pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, intitulado Excerpts from reports and comments of the ILO Supervisory Bodies - Applying the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), disponível no site da organização: Confira-se o que está dito nas fls. 48-49 do referido documento: "Concerning the nature of consultation, from the review of the preparatory work concerning Convention No. 169 and from the review of the wording of the two authoritative texts of the Convention, the Committee concludes that it was the intention of the drafters of the Convention that the obligation to consult under the Convention was intended to mean that: 1) consultations must be formal, full and exercised in good faith; 26 there must be a genuine dialogue between governments and indigenous and tribal peoples characterized by communication and understanding, mutual respect, good faith and the sincere wish to reach a common accord; 2) appropriate procedural mechanisms have to be put in place at the national level and they have to be in a form appropriate to the circumstances; 3) consultations have to be undertaken through indigenous and tribal peoples’ representative institutions as regards legislative and administrative measures; 4) consultations have to be undertaken with the objective of reaching agreement or consent to the proposed measures It is clear from the above that pro forma consultations or mere information would not meet the requirements of the Convention. At the same time, such consultations do not imply a right to veto, nor is the result of such consultations necessarily the reaching of agreement or consent." [3] A tradução livre deste trecho é a seguinte: "Quanto à natureza da consulta, da revisão dos trabalhos preparatórios relativos à Convenção nº 169 e da análise dos textos das duas versões autorizadas da Convenção, o Comitê conclui que os redatores da Convenção tinham a intenção de que a obrigação de consultar sob a Convenção significasse o seguinte: as consultas devem ser formais, completas e exercidas de boa fé; deve haver um diálogo genuíno entre os governos e os povos indígenas e tribais caracterizado pela comunicação e entendimento mútuos, respeito mútuo, boa fé e o sincero desejo de alcançar um acordo comum; mecanismos procedimentais apropriados devem ser estabelecidos no nível nacional e devem estar em uma forma adequada às circunstâncias; as consultas devem ser realizadas por meio das instituições representativas dos povos indígenas e tribais no que se refere a medidas legislativas e administrativas; as consultas devem ser realizadas com o objetivo de alcançar acordo ou consentimento quanto às medidas propostas. É claro a partir do exposto que consultas meramente formais ou simples fornecimento de informações não satisfariam os requisitos da Convenção. Ao mesmo tempo, tais consultas não implicam um direito de veto, nem o resultado dessas consultas necessariamente é o alcance de um acordo ou consentimento." É essencial, assim, deixar claro que a opção pelo empreendimento, ou não, é do Poder Público e a ele compete, respeitando os termos da Constituição e da legislação, licenciá-lo. Por fim, sobre o momento da consulta, no caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador, decidido em 27.12.2012, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi também referido que o “requisito de consulta prévia implica que essa consulta deva ser realizada antes de tomar-se a medida, ou executar o projeto suscetível de afetar as comunidades [...] e que as comunidades sejam envolvidas o quanto antes no processo”. III.e. Análise das alegações do agravo de instrumento Pois bem, apresentados estes esclarecimentos introdutórios, passa-se ao exame do agravo. Como dito, no recurso, é postulada a reforma da decisão agravada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". Ou seja, o que se deseja é que seja reconhecida como válida da consulta efetivada, bem como que seja definido que a área do projeto não é terra indígena, consequencia lógica para se afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional (art. 231, § 3º, CF). III.e.1. O Processo de Consulta no Caso Concreto O processo de consulta, no caso em questão, demandou anos para ser realizado. Pela análise dos autos, é possível perceber que o anúncio da descoberta das minas se deu 2010 e 2013 e o Estudo de Impacto Ambiental foi concluído em 2015 (id. 296953002), assim como a emissão da licença prévia pelo IPAAM, cuja validade é questionada na origem. Como a Ação Civil Pública nº 0019192-92.2016.4.01.3200 foi ajuizada em 2016, todo o processo de consulta foi acompanhado pelo Juízo. Antes de iniciar a fase de consulta, em 7.5.2018, foi determinada a suspensão de qualquer atividade de prospecção por parte da Potássio do Brasil Ltda., para que fosse iniciada a construção de um protocolo de consulta. O Juízo inclusive homologou a designação um antropólogo, o Dr. Bruno Walter Caporrino, para mediar, facilitar e presidir os trabalhos de construção do protocolo de consulta, tendo este sido remunerado pela Potássio do Brasil Ltda. Tanto a FUNAI, como o DNPM foram devidamente cientificados do procedimento definido. Confira-se o inteiro teor da decisão (id. 297015035): Ou seja, o presente caso apresenta uma particularidade em relação aos que normalmente são judicializados: toda a fase de consulta foi acompanhada pelo Juízo. É interessante verificar também o inteiro teor dos relatórios das oficinas realizadas nas aldeias, cuja elaboração coube ao Dr. Bruno Walter Caporrino. São trabalhos bastante extensos e ricos em em destacar o procedimento que estava sendo levado a efeito pelo perito. Por exemplo, o relatório constante do id. 297015043, protocolado nos autos em 2018, contém 169 páginas e é encaminhado por meio do ofício abaixo, com os seguintes termos: As seguintes aldeias foram visitadas: Ao todo, foram 19 atividades: Posteriormente, ainda houve a protocolização de relatórios complementares em 2019 (fls. 1255 - 1719 - id. 297031909). Após, houve uma Assembleia de Aprovação do Protocolo de Consulta e Consentimento Mura em 18.6.2019. A Lista de presença está à fl. 1.780-1.810 e a ata ás fls. 1.758-1779 - id. 297031909. Há juntada de DVDs com a audiência gravada e também de cópia impressa do protocolo (fls. 1.825-1.880 - id. 297047874). O procedimento foi plenamente aceito por todas as partes envolvidas, chegando o MPF, na petição de 11.9.2019 (fl. 1.906-1.909) a afirmar que se cuida de relevante momento para o Estado democrático de direito. Frise-se que as aldeias do Soares e Careiro receberam Oficinas, conforme acima relatado. Ficou também expresso que o princípio da vinculação ao aos termos do referido instrumento deveria reger a relação e que estava sendo inaugurado um interesse diálogo das fontes: Posteriormente, foi realizada audiência judicial na qual foi acordado que a Potássio do Brasil Ltda. entregaria até o dia 18.11.2019 a proposta do empreendimento oficialmente ao CIM e à OLIMCV. Confira-se a parte final da ata: Ato contínuo, em 18.11.2019, foi protocolada petição pela Potássio do Brasil Ltda. comunicando a entrega do material ao CIM e ao OLIMCV, as quais responderam confirmando o recebimento da documentação e dando o aceite no início do processo de consulta (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). O protocolo também foi feito perante a Justiça Federal, o MPF e o perito do juízo foi copiado nos emails. Em relação às características do empreendimento, foi informado o seguinte em documentos acostados aos autos: Após, com o início da pandemia da COVID-19, o processo sofreu atrasos e apenas foi retomado em 2021, depois da vacinação dos Mura. Foi apresentado orçamento da consulta, equivalente a R$ 1.258.687,90 (id. 637592027). Foi estabelecido um cronograma de reuniões com dos Povos Mura informado pelo CIM (id. 830734065), sendo que o plano era a conclusão até o final de maio de 2022: Após, foi realizada inspeção judicial em 29.3.2022 (Relatório - id. 1061672277) o que representou mais uma paralisação no processo. O ponto mais relevante consignado foi o seguinte: Em seguida, houve notícia de que o MPF protocolou a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200, mediante a qual pleiteia que seja concluída a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Ato contínuo, petição de 20.9.2022, o MPF relatou a existência de pressões e coações por parte da empresa sobre os povos indígenas de Autazes e região e a sobreposição da exploração minerária pretendida pela Potássio do Brasil Ltda. ao referido território tradicional indígena. Ademais, aduziu o MPF que as estruturas minerárias seriam construídas a aproximadamente dois quilômetros da área de moradia (casas da aldeia Soares), e dentro da área indígena reivindicada, território de uso tradicional do povo Mura. Nesse contexto, requer a suspensão da licença expedida quanto ao Projeto Potássio Amazonas/Autazes, bem como a suspensão do procedimento de consulta prévia até finalização do procedimento de demarcação do território (ACP 1015595-88.2022.4.01.3200), no qual haveria liminar concedida. Sobre esse pedido, a FUNAI se manifestou sobre a ausência de indícios de tradicionalidade (id. 1419622747): Após, em 16.2.2023, a FUNAI fez juntar aos autos documento intitulado Análise Cartográfica nº 138/2023, mediante a qual apresentou as seguintes conclusões (id. 1496199359): Veja-se, então, que se diz expressamente que há uma área de sobreposição, mas ao mesmo tempo afirma-se que há uma distância de 2,52 km da aldeia Soares da base de exploração. Foi também apontada uma área de influência considerada uma área de 10 km a partir da área total do “Projeto Potássio Amazonas – Autazes”, nos termos do Anexo I da Portaria Interministerial nº 60/2015 da FUNAI. O mapa trazido na inicial permite a compreensão da área: É curioso notar que a existência de indígenas e também de não indígenas na área do Lago do Soares foi identificada quando da demarcação da Terra Indígena Jauary, mas não entendeu-se que o local onde será instalado a base de exploração da Potássio do Brasil Ltda. não deveria ser abarcado no perímetro da respectiva terra. Confira-se a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): É importante perceber também que, segundo informações da FUNAI, o município de Autazes possui mais de 20 terras indígenas regularizadas ou em processo de demarcação. Ou seja, não é um município em relação ao qual já não se tenham sido feitas delimitações de áreas de tradicionalidade indígena. Além disso, é válido destacar que no Caso Povos Kaliña e Lokono VS. Suriname, decidido em 2015, ficou estabelecido que “para efeitos de delimitação, demarcação e titulação do território tradicional [...], a Corte estima que o direito à propriedade dos povos indígenas e tribais contempla garantias plenas sobre os territórios que tradicionalmente possuíram, ocuparam e utilizaram para exercer sua própria forma de vida, subsistência, tradições, cultura e desenvolvimento como povos”. No entanto a Corte assinalou que “sem prejuízo do exposto, existiriam outras áreas tradicionais complementares ou adicionais às que tenham tido acesso para suas atividades tradicionais ou de subsistência (que, caso seja conveniente, podem compartilhar outras finalidades), a respeito das quais se deve garantir, pelo menos, o acesso e uso, na medida em que seja cabível.” Ou seja, para a CIDH, nem toda área área que os indígenas utilizem para subsistência ou mesmo habitem configura necessariamente uma Terra Indígena. Chama a atenção o fato de que a própria inspeção judicial constatou a presença de populações ribeirinhas na região do Lago do Soares, as quais, ao que parece, estão lá também há muitos anos, sendo que existe uma convivência aparentemente harmoniosa: Na inicial da ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 é também reconhecida a existência de indígenas e ribeirinhos, tendo em vista que há aldeias e povoados na região: No caso acima a Corte também constatou que “efetivamente, dentro do território que os Povos Kaliña e Lokono alegam ser seu território tradicional, haveria, pelo menos 10 assentamentos maroons que estariam excluídos dessa queixa, a saber: 1) Albina; 2) Papatam; 3) Mankelekampu; 4) Mariakondre; 5) Eduardkondre; 6) Akoloikondre; 7) Bamboesi; 8) Koni; 9) Moengotapu; e 10) Adjoemakondre [...]. No entanto, a Corte não dispõe de informação suficiente que lhe permita esclarecer os argumentos relacionados a possíveis assentamentos maroons em: 1) Bilokondre; 2) Krontokondre; 3) Soke; 4) Pakirakondre; 5) Mopikondre; 6) Onikaikondre; 7) Manjabong; 8) Bonikondre ou Baajoebekampu; 9) Nengrekriki; 10) Solegakampu; e 11) Brunswijkkamp […]” E disse que, “sem prejuízo do exposto, sendo que é dever do Estado delimitar os territórios tradicionais, cabe a ele, mediante um processo consultivo e mediante as medidas necessárias de caráter administrativo e legais, conforme as normas internacionais na matéria, primeiramente delimitar os territórios que cabem aos Povos Kaliña e Lokono, em conformidade com o parágrafo 139 desta sentença, para assim proceder a sua demarcação e titulação, garantindo seu uso e gozo efetivo. Para isso, o Estado também deve respeitar os direitos que possam assistir aos povos tribais ou a seus membros na área. Para isso, o Estado deverá desenvolver, de comum acordo com as comunidades indígenas e maroons, regras de convivência pacíficas e harmoniosas no território em questão.” Por fim, o CIM, em 25.9.2023, protocolou petição comunicando que (i) aprovou o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta, bem como que (ii) aprovou pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil Ltda. faça a mineração. Eis a petição (id. 1829380152): Em anexo, foi apresentado o Relatório das Lideranças Mura de Autazes (id. 1829380154): Não houve juntada de documento de aprovação ou de rejeição do OLIMCV. Houve inclusive alteração do Protocolo de Consulta, excluindo a participação do OLIMCV, ou seja, dos Mura do município do Careiro da Várzea, em relação à deliberação da agravante. III.e.2. A Validade da Consulta Efetivada Cumpre examinar a validade da Consulta efetivada. Com efeito, foi devidamente reconhecido com ao CIM compete emitir manifestação de vontade sobre o Povo Mura de Autazes. Pela dicção do art. 6º da Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, “ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”. Não parecem existir argumentos que possam permitir que, ao menos em sede de cognição sumária, que a consulta realizada ao povo CIM não tenha sido efetuada com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. Como se depreendeu do histórico acima, houve um amplo debate com o Povo Mura de Autazes para entender o que significava o processo de consulta, compreender a relevância de examinar o projeto e também os direitos que terão frente a ele. O processo foi iniciado há quase 10 anos. Há notícias de oficinas, reuniões, audiências públicas. A aparência é que tenha sido um processo livre, eis que ainda houve acompanhamento judicial das etapas, algo que não é o usual. Seguiu-se, assim, o que havia determinado a FUNAI (fl. 1362 - id. 297018889): Não há notícia de que o CIM tenha alterado o posicionamento externado na petição acima. Este Relator recebeu as lideranças em seu Gabinete em Audiência e tudo foi reafirmado. Apesar de a consulta ter sido realizada após a emissão da licença prévia pelo IPAAM, ela foi feita antes de concretizado qualquer ato de instalação e exploração do empreendimento. Houve inclusive acordo judicial suspendendo as etapas, até que fosse concluída a Consulta. A licença prévia ainda continha como condicionante de que era necessária a apresentação do estudo de componente indígena à Funai. Confira-se (id. 296936996 - fl. 242): Não se pode, então, dizer que a consulta não obedeceu ao momento adequado. No caso concreto, não há realisticamente como ter existido uma consulta anterior à que foi realizada, uma vez que foi feita durante os estudos para ser decidir sobre a viabilidade ou não da obra. Ou seja, fase meramente preliminar, sem qualquer ato de execução, quando já identificados os riscos do empreendimento e quando ainda há um tempo "adequado para a discussão interna nas comunidades, para oferecer uma resposta adequada ao Estado". Além disso, os indígenas aparentemente tiveram amplo acesso à documentação do empreendimento, ao EIA/RIMA, ao Estudo de Componente Indígena e tiveram ampla chance de compreender o que está sendo proposto. Não se pode dizer que a realização de consulta por meio de audiências públicas não cumpre a obrigação de adequadamente consultar os povos. Os procedimentos apropriados exigidos pela Convenção são aqueles que os indígenas acharem apropriados. Se a audiência pública for assim considerada, não há porque concluir que não é adequado para o fim pretendido. Não há nada que imponha uma forma de consulta diversa, salvo a vontade dos indígenas. Por fim, chama a atenção de que o Protocolo de Consulta tenha sido alterado no curso do processo para separar o consentimento entre o CIM, o qual, como dito acima, inequivocamente representa os Mura que residem em Autazes, e a OLIMCV, entidade representativa que representa os Mura no município de Careiro da Várzea. Esta alteração, contudo, não tem o condão de retirar a validade da consulta efetivada. Isso, porque pela leitura dos autos, percebe-se que a própria Funai sempre se manifestou no sentido de que a população indígena potencialmente afetada era a dos Mura de Autazes. Confira-se o seguinte trecho, por exemplo (fl. 1.362 – id. 297018889), em que é dito que os indígenas que deveriam ser consultados são os da Terra Indígena Jauary e Paracuhuba, as quais, consoante a Análise Cartográfica nº 138/2023, são as que estão próximas do empreendimento: Além disso, o fato de que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, dissidência do CIM, não tenham se manifestado junto com o CIM não impede que eles expressamente se pronunciem sobre a consulta. A documentação dos autos comprova que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, então parte do CIM, receberam todos os documentos relativos ao empreendimento (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). A OLIMCV inclusive confirmou o recebimento do e-mail (id. 297047889 – p. 33): Existe a comprovação de que foram recebidas diversas unidades do protocolo de consulta, requerimento de despesas para realização de reuniões (id. 297018967): Confira-se, ainda, o seguinte documento (id. 637592035): É preciso dizer que a proteção dos povos e terras indígenas é permanente para o Estado Brasileiro. A mera circunstância de que a consulta foi realizada não satisfaz a obrigação permanente de assistência e proteção desses povos, ouvindo-os sempre de boa-fé e atendendo, quando possível, as demandas pleiteadas. O que se estabelece é um diálogo permanente e não momentâneo. Se novas dúvidas surgirem, se problemas antes não imaginados forem detectados, competirá ao Estado Brasileiro lidar com as questões e sanar esses problemas, de forma a dar ampla concretude aos direitos e garantias dos povos originários. Assim, caso a OLIMCV logre comprovar que a delimitação da Funai está de que os Mura de Careiro da Várzea deveriam também ser obrigatoriamente consultados, ainda que não haja notícias de que nenhuma aldeia será diretamente impactada pelo trajeto, tal diálogo tem totais condições de ainda ser estabelecido de maneira satisfatória, com a implantação de reparações necessárias, mesmo com o projeto em curso. Adicionalmente , também é de se considerar que o fato de os Mura da aldeia do Lago de Soares, situada em Autazes, terem ficado vencidos na alteração do protocolo de consulta e, posteriormente, terem decidido romper com a autoridade constituída, qual seja, o CIM, não invalida a alteração. No modelo deliberativo adotado pelos Mura de Autazes, não há exigência de unanimidade para a aprovação da alteração, a qual, é certo, inviabilizaria a conclusão do processo. Não é possível invalidar a alteração do protocolo de consulta somente porque os Mura do Lago de Soares, submetidos, incontroversamente, à data da deliberação, à autoridade do CIM, discordam da decisão. Chancelar a nulidade da alteração diante da discordância de uma parcela dos indígenas afetados representaria a inviabilização da construção de um protocolo de consulta e de qualquer deliberação, especialmente em relação a litígios complexos, vide o caso dos autos. Na obra Constitutional Strategies, o Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Berkeley, Robert Cooter, aponta as deficiências de um sistema baseado na regra da unanimidade: “O poder de barganha depende das consequências da falha na negociação. Se uma negociação é frustrada, cada parte deve fazer o seu melhor sem a cooperação dos demais. As partes que se beneficiam menos da cooperação terão o maior poder de barganha. Como uma parte pode ter êxito sem a cooperação das demais depende da regra da ação coletiva. Primeiramente, considere a regra da unanimidade. Negociações frustradas na regra da unanimidade paralisam as ações coletivas. Consequentemente, quando barganham sob a regra da unanimidade, as regiões e as coletividades com menor necessidade de cooperação podem demandar as melhores condições.[...] A força da negociação está nas mãos dos membros potenciais de uma coalizão majoritária. Quando se negocia sob uma regra de maioria, as regiões e as localidades dentro da coalizão interna podem demandar melhores condições de cooperação dos externos”. Por fim, é importante ter em mente que tanto os povos originários representados pela OLIMCV e pela Organização dos Mura do Lago do Soares tiveram amplo tempo e conhecimento do Projeto Autazes e podem ainda se pronunciar formalmente nos autos de origem sobre o que pensam a respeito do assunto. A circunstância de que houve uma ruptura do formato conjunto de todas as organizações de deliberação do Protocolo de Consulta em nada impede que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares emitam qualquer opinião sobre o Projeto nesses autos judiciais, tampouco que apresentem essa manifestação de vontade a qualquer órgão estatal. Há, ao meu sentir, um deslocamento do debate, como se a circunstância de a alteração do Protocolo represente a inviabilização de que essa emissão de vontade não possa mais ocorrer, o que não faz qualquer sentido. Em verdade, a ausência de manifestação formal sobre o tema da consulta para depois se alegar que a Consulta não ocorreu representa um veto em branco ao Projeto, pois se busca evitar a consolidação de uma etapa necessária deslocando o foco do debate. É importante ressaltar que a CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. Veja-se que essas organizações não alegam que não estão devidamente informadas, que não tiveram tempo para se reunir ou debater, que não receberam documentos, que não tiveram como debater o projeto com órgãos estatais ou com a empresa. O que se alega simplesmente é que o CIM não poderia ter aprovado isoladamente o projeto, sem que se diga se aprovam ou desaprovam e por quais razões. Veja o que disse a CIDH no caso Pueblo Indígena U’WA y sus miembros VS. Colombia: 191. Nos casos em que – tendo os Estados promovido a consulta de boa-fé e em conformidade com os padrões previamente estabelecidos (supra, parágrafos 168 a 178 e 190) – o povo indígena se recuse a participar, deverá ser considerado que o povo indígena está em desacordo com a atividade objeto da consulta e, portanto, a obrigação da consulta será considerada esgotada. Além disso, os Estados devem garantir que as medidas adotadas sejam proporcionais e respeitem o princípio da igualdade e da não discriminação, levando também em consideração a natureza da medida e seu impacto no território e na cultura. Do mesmo modo, os Estados devem garantir o acesso à justiça em relação às medidas que possam afetar diretamente um povo indígena ou tribal, a fim de verificar se a consulta prévia foi realizada em conformidade com as obrigações internacionais do Estado e com a jurisprudência desta Corte. Caso o povo indígena tenha se recusado a participar da consulta, a autoridade judicial deverá verificar se o Estado tomou medidas específicas e agiu de boa-fé para realizar a consulta prévia, livre e informada, e se, nesse contexto, a atividade restringe de forma desproporcional os direitos do povo indígena ou tribal. Tradução livre de: 191. En los casos en los que –habiendo los Estados impulsado la consulta de buena fe y conforme a los estándares previamente señalados (supra, párrs. 168 a 178 y 190)— el pueblo indígena se niegue a participar, deberá considerarse que el pueblo indígena está en desacuerdo con la actividad objeto de la consulta, y por lo tanto la obligación de la consulta se tendrá por agotada271. Además, los Estados deben garantizar que las medidas adoptadas sean proporcionales y respeten el principio de igualdad y no discriminación, tomando además en consideración la naturaleza de la medida y su impacto en el territorio y la cultura272. Asimismo, los Estados deben garantizar el acceso a la justicia frente a las medidas que puedan afectar directamente a un pueblo indígena o tribal, a fin de verificarse si la consulta previa fue realizada de conformidad con las obligaciones internacionales del Estado y la jurisprudencia de esta Corte. En caso de que el pueblo se haya negado a participar en la consulta, la autoridad judicial deberá verificar si el Estado tomó medidas específicas y de buena fe a fin de realizar la consulta previa, libre e informada, y si en ese contexto la actividad limita de forma desproporcionada los derechos del pueblo indígena o tribal. Fonte: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_530_esp.pdf Sendo assim, deve-se considerar que a etapa de consulta foi adequadamente cumprida e que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares, por não emitirem pronunciamento expresso sobre os termos da consulta, apesar de cientes dessa prerrogativa – uma vez que participaram da elaboração do protocolo de consulta –, bem como dos termos do projeto, uma vez que receberam da Potássio o e-mail contendo todas as informações -, simplesmente se recusaram a participar. Por tal razão, os órgãos estatais devem considerar que recusaram o projeto, sem que isso implique poder de veto. Frise-se que a ausência da manifestação dessas associações não exime o Estado de proteger legitimamente os indígenas que habitam nas aldeias que representam. Como disse a União no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000, “todos os impactos ambientais e socioculturais do empreendimento sobre o povo mura do Lago de Soares e da Vila de Urucurituba estão sendo devidamente tratados no licenciamento ambiental em curso. Durante o licenciamento, foi elaborado estudo do Componente Indígena, indicando as consequências sociais e ambientais do empreendimento, bem como apresentados formas de mitigação/compensação” (id. 274290022 – fl. 39). Ante esse quadro, ao menos em juízo preliminar, não há razões para concluir que o Estado Brasileiro não cumpriu os seus compromissos internacionais de respeito aos direitos humanos indígenas em relação ao projeto de aprovação da licença prévia do empreendimento em questão, uma vez que procedeu adequadamente quanto à consulta destes povos. III.e.3. A Competência para Licenciar o Empreendimento A decisão agravada ainda consignou ser o IBAMA o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto. Creio estar a compreensão equivocada e que o correto entendimento foi abordado de forma minuciosa pela União quando da interposição do Agravo de Instrumento n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que será julgado na mesma oportunidade deste recurso. Coaduno com a fundamentação exposta pela União, pelo que integro-a às razões de decidir deste agravo. A Lei Complementar 140, de 8 de dezembro de 2011, regulamenta a competência dos entes federativos em questões ambientais, estabelecendo diretrizes para cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Alinhada à Constituição Federal, a norma aborda ações administrativas conjuntas relacionadas à proteção do meio ambiente, combate à poluição e preservação de recursos naturais, como florestas, fauna e flora. Essa norma promoveu uma divisão clara de competências, reduzindo conflitos especialmente no âmbito do licenciamento ambiental, que antes era regulado majoritariamente pela Resolução 237 do CONAMA. A lei determina que apenas um órgão será responsável pela aprovação, fiscalização e eventual sanção, assegurando celeridade, transparência e segurança jurídica no processo de licenciamento. A lei também prevê instrumentos de cooperação, como consórcios públicos, convênios e delegações de competências, desde que o ente delegado disponha de estrutura técnica e conselho ambiental adequados. A simplificação do licenciamento ambiental permite que empreendimentos poluidores ou potencialmente degradantes sejam licenciados pelo órgão competente de qualquer nível federativo, inclusive municipal, promovendo eficiência administrativa. Confira-se os dispositivos da norma que tratam sobre a competência de cada ente federativo, sobretudo com relação ao licenciamento ambiental: Art. 7º São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: a) localizados ou desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; b) localizados ou desenvolvidos no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva; c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; d) localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pela União, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados; f) de caráter militar, excetuando-se do licenciamento ambiental, nos termos de ato do Poder Executivo, aqueles previstos no preparo e emprego das Forças Armadas, conforme disposto na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999; g) destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen); ou h) que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento; -.-.- Art. 8° São ações administrativas dos Estados: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7° e 9°; XV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pelo Estado, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); -.-.- Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade; ou b) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); Dito isso, peço licença para transcrever a argumentação da União nos autos do AI n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que adoto como razões de decidir: "[p]ercebe-se que a LC nº 140/2011 trouxe diferentes critérios definidores de competência para cada ente (União – localização e tipo de atividade; Município – alcance do impacto ambiental; Estado – residual). Cada critério não se confunde com os demais e não tem aplicação a outros entes federativos. Da leitura do art. 8º, XIV depreende-se que aquilo que não estiver expressamente taxado como sendo competência da União (art. 7º) ou dos Municípios (art. 9º) é competência dos Estados-membros (caráter residual). Por isso, nada mais natural do que ler as competências contidas na LC nº 140 de forma restritiva ou literal em relação a União e Municípios. Como destacou o TRF da 1ª Região, ao tratar da interpretação restritiva em caso envolvendo competência para licenciamento ambiental, assim como na Constituição, “o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal.” (TRF da 1a Região, 5a T., v.u., AC 0000267- 95.2005.4.01.3600, rel. Des. João Batista Moreira, j. em 17/08/2011, eDJF1 26/08/2011, p. 153.) Dessa forma, não cabem considerações expansivas da competência da União, devendo o intérprete trabalhar com o texto dado pela LC 140, não podendo usar argumentos não previstos expressamente na lei. Na perspectiva da LC n. 140/2011, a competência para licenciamento será federal apenas quando estiver configurada uma das hipóteses previstas no art. 7º, XIV, que estabelece apenas critério de localização e de tipo de atividade ou no caso de empreendimentos que atendam a tipologia prevista na alínea "h" (atualmente definida no Decreto nº 8.437, de 22 de abril de 2015). Percebe-se, portanto, que para que haja competência federal para licenciamento prevista no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140/2011 (Terra Indígena), deve-se atender ao critério da localização do empreendimento – não tendo aplicação o critério do alcance dos impactos: Art. 7° São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: (...) c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; Quando o legislador quis adotar o critério do âmbito do impacto ambiental da atividade ou empreendimento, o fez de forma explícita: Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade Percebe-se, claramente, que o legislador adotou o critério do alcance do impacto ambiental no art. 9º, XIV, “a” da LC nº 140 como definidor apenas da competência para licenciamento dos Municípios. Já no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140 constata-se que não houve menção alguma ao âmbito de impacto do empreendimento, mas apenas à localização e ao desenvolvimento da atividade: “localizados ou desenvolvidos em terras indígenas”. Se quisesse adotar o critério do impacto ambiental para competência federal, o legislador teria definido que são ações administrativas da União promover o licenciamento de empreendimentos e atividades que causem ou possam causar impacto ambiental em Terra Indígena. Não o fez. Optou pelo critério da localização. Houve, portanto, silêncio eloquente do legislador, que, em relação ao licenciamento de atividades em Terra Indígena optou por afastar o critério do alcance do impacto e adotar exclusivamente o critério da localização do empreendimento. Ou seja, a competência somente será fixada como federal quando o empreendimento estiver localizado dentro da Terra Indígena, não se aplicando o critério de impacto ambiental para fixação da competência federal. O empreendimento tratado na demanda está localizado e será desenvolvido completamente fora de Terra Indígena (demarcada e em demarcação). Em relação à INSTRUÇÃO NORMATIVA CONJUNTA Nº 1, de 22 de fevereiro de 2021 da Funai, mencionada no despacho a que a Juíza faz referência na decisão agravada, destaca-se que o ato dispõe sobre os procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor seja organização indígena. O que reforça que a competência federal se dá no caso de empreendimento localizado ou desenvolvido no interior de terra indígena – e não de atividades que possam afetar terra indígena. Ademais, as áreas de influência direta e indireta dos impactos ambientais do empreendimento devem vir definidas no EIA, que é elaborado por equipe multidisciplinar habilitada, responsável tecnicamente pelos estudos apresentados. No caso do empreendimento em tela, verifica-se que o EIA apresentado definiu a área de influência dos impactos ambientais do empreendimento em dois quilômetros quadrados (2 km²) no Projeto Autazes. O empreendimento, como demonstrado anteriormente, encontra-se a 8 km dos limites de terras indígenas demarcadas e em demarcação. Quanto à Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, imperioso tecermos alguns comentários. Inicialmente, importante destacar que a referida portaria estabelece procedimentos administrativos para oitiva da FUNAI, da Fundação Cultural Palmares, do IPHAN e do Ministério da Saúde em licenciamentos ambientais que já são de competência do Ibama. A portaria não estabelece, portanto, critério para definição de competência, mas apenas regras e procedimentos administrativos para a oitiva dos mencionados entes e órgãos. Assim, no curso de licenciamento que já está ocorrendo perante o Ibama: (a) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra quilombola, deverá haver manifestação da Fundação Cultural Palmares, (b) se constatada a ocorrência de bens culturais acautelados em âmbito federal na área de influência da atividade, deverá haver manifestação do IPHAN, (c) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra indígena, deverá haver manifestação da FUNAI e (d) se o empreendimento localizar-se em município pertencente à área de risco ou endêmica para malária, deverá haver oitiva do Ministério da Saúde. Percebe-se claramente que a portaria não fixa critérios de definição de competência para licenciamento pelo Ibama. Não se cogita competência do Ibama para licenciar empreendimento pelo simples fato de impactar em terra quilombola, afetar bens culturais acautelados no âmbito federal ou estar localizado em área de risco de malária. Assim, a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Do mesmo modo, a presunção de intervenção em terra quilombola, quando o empreendimento estiver no raio de 10 km (art. 3º, § 2º, II c/c Anexo I), obviamente, também não gera competência automática do Ibama, gerando apenas a necessidade de oitiva da Fundação Cultural Palmares. (...) A Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, portanto, não prevê competência da União (IBAMA) para licenciar quando se presume a intervenção em terra indígena (ou em terra quilombola ou em área de risco de malária ou em área com bens culturais acautelados) pelo fato do empreendimento estar localizado no raio de 10 km. A referida norma infralegal não atrai a competência do IBAMA por ausência de previsão no art. 7º da L.C 140/11, gerando apenas a exigência de oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), e não usurpação da competência para licenciar. Nesse ponto, importante diferenciar o critério para definição de competência para licenciamento, qual seja, a localização dentro de Terra Indígena, que deve ser interpretado restritivamente (art. 7º, XIV, “c” e art. 8º XIV), do critério para realização de Estudo de Componente Indígena ou de Consulta Prévia a povos indígenas e comunidades tradicionais, que é qualquer medida suscetível de afetá-los, o que admite uma interpretação mais elástica e, inclusive, foi objeto de concordância entre as partes para a sua realização. Percebe-se, então, que a hipótese normativa do art. 7º, XIV, inciso “c” da Lei Complementar n. 140 se aplica exclusivamente aos projetos localizados no interior de terras indígenas. No caso de empreendimento fora de terra indígena, a competência será do órgão ambiental estadual, mesmo que haja necessidade de ECI, de Consulta Prévia e haja reflexo na TI". Entendo correta assim a conclusão a que chegou a União, a partir da leitura da legislação, de que a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Afora esse aspecto, existe precedente do STF, com eficácia vinculante, que expressamente abordou a questão e reconheceu que é possível que um órgão ambiental estadual licencie um empreendimento em um caso em que efeitos indiretos para comunidades indígenas possam ocorrer. Foi justamente a ADI 4.757, que analisou a constitucionalidade da Lei Complementar nº 140/2011. Confira-se a ementa: CONSTITUCIONAL. AMBIENTAL. FEDERALISMO COOPERATIVO. COMPETÊNCIA COMUM EM MATÉRIA AMBIENTAL. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 23 CF. LEI COMPLEMENTAR Nº 140/2011. FEDERALISMO ECOLÓGICO. DESENHO INSTITUCIONAL DA REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS FUNDADO NA COOPERAÇÃO. RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE. DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE. DEVERES FUNDAMENTAIS DE PROTEÇÃO COMO PARÂMETRO NORMATIVO DE CONTROLE DE VALIDADE (ARTS. 23, PARÁGRAFO ÚNICO, 225, CAPUT, § 1º). RACIONALIDADE NO QUADRO ORGANIZATIVO DAS COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS. EFICIÊNCIA E COORDENAÇÃO DO AGIR ADMINISTRATIVO. VALORES CONSTITUCIONAIS. PODER DE POLÍCIA AMBIENTAL DE LICENCIAMENTO E ATIVIDADES FISCALIZATÓRIAS. EXISTÊNCIA E CAPACIDADE INSTITUCIONAL DOS ÓRGÃOS AMBIENTAIS COMO REQUISITO DA REGRA GERAL DE COMPETÊNCIA INSTITUÍDA NA LEI COMPLEMENTAR. ATUAÇÃO SUPLETIVA E SUBSIDIÁRIA. TUTELA EFETIVA E ADEQUADA DO MEIO AMBIENTE. LIMITES DA COGNIÇÃO JURISDICIONAL NO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO FEDERAL ATRIBUÍDA AO § 4º DO ART. 14 E AO 3º DO ART. 17. PROCEDÊNCIA PARCIAL. 1. A Lei Complementar nº 140/2011 disciplina a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora, em resposta ao dever de legislar prescrito no art. 23, III, VI e VI, da Constituição Federal. No marco da Política Nacional do Meio Ambiente, instituída pela Lei nº 6.938/1981, e da forma federalista de organização do Estado constitucional e ecológico, a Lei Complementar nº 140/2011 foi a responsável pelo desenho institucional cooperativo de atribuição das competências executivas ambientais aos entes federados. 2. Legitimidade ativa da Associação Nacional dos Servidores de Carreira de Especialista em Meio Ambiente e Pecma (ASIBAMA). Inegável a representatividade nacional da associação requerente, assim como a observância do requisito da pertinência temática para discutir questões versando alteração estrutural do sistema normativo de proteção do meio ambiente, conforme descrito no art. 3º, VI, do Estatuto Social juntado ao processo, quando do ajuizamento da presente ação. Reconhecimento da legitimidade da associação autora na ADI 4.029 (caso Instituto Chico Mendes). 3. O Supremo Tribunal Federal, acerca do alcance normativo do parágrafo único do art. 65 do texto constitucional, definiu interpretação jurídica no sentido de que o retorno à Casa iniciadora apenas deve ocorrer quando a Casa revisora, em seu processo deliberativo, aprovar modificação substancial do conteúdo do projeto de lei. Afastado, no caso, o vício de inconstitucionalidade formal do § 3º do art. 17. 4. Da interpretação do art. 225 da Constituição Federal, fundamento normativo do Estado de Direito e governança ambiental, infere-se estrutura jurídica complexa decomposta em duas direções normativas. A primeira voltada ao reconhecimento do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, em uma perspectiva intergeracional. A segunda relacionada aos deveres de proteção e responsabilidades atribuídos aos poderes constituídos, aos atores públicos e à sociedade civil em conjunto. A preservação da ordem constitucional vigente de proteção do meio ambiente, densificada nos seus deveres fundamentais de proteção, impõe-se, pois, como limite substantivo ao agir legislativo e administrativo. O que significa dizer que tanto a Política Nacional do Meio Ambiente, em todas as suas dimensões, quanto o sistema organizacional e administrativo responsável pela sua implementação, a exemplo do Sistema Nacional do Meio Ambiente, dos Conselhos Nacionais, Estaduais e Municipais, devem traduzir os vetores normativos do constitucionalismo ecológico e do federalismo cooperativo. 5. A Lei Complementar nº 140/2011, em face da intricada teia normativa ambiental, aí incluídos os correlatos deveres fundamentais de tutela, logrou equacionar o sistema descentralizado de competências administrativas em matéria ambiental com os vetores da uniformidade decisória e da racionalidade, valendo-se para tanto da cooperação como superestrutura do diálogo interfederativo. Cumpre assinalar que referida legislação não trata sobre os deveres de tutela ambiental de forma genérica e ampla, como disciplina o art. 225, §1º, IV, tampouco regulamenta o agir legislativo, marcado pela repartição concorrente de competências, inclusive no tocante à normatização do licenciamento em si. 6. O modelo federativo ecológico em matéria de competência comum material delineado pela Lei Complementar nº 140/2011 revela quadro normativo altamente especializado e complexo, na medida em que se relaciona com teia institucional multipolar, como o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), e com outras legislações ambientais, como a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) e a Lei de Infrações penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente (Lei nº 9.605/1998). O diálogo das fontes revela-se nesse quadro como principal método interpretativo. 7. Na repartição da competência comum ( 23, III, VI e VII CF), não cabe ao legislador formular disciplina normativa que exclua o exercício administrativo de qualquer dos entes federados, mas sim que organize a cooperação federativa, assegurando a racionalidade e a efetividade nos encargos constitucionais de proteção dos valores e direitos fundamentais. Ademais, os arranjos institucionais derivados do federalismo cooperativo facilita a realização dos valores caros ao projeto constitucional brasileiro, como a democracia participativa, a proteção dos direitos fundamentais e a desconcentração vertical de poderes, como fórmula responsiva aos controles social e institucional. Precedentes. 8. O nível de ação do agir político-administrativo nos domínios das competências partilhadas, próprio do modelo do federalismo cooperativo, deve ser medido pelo princípio da subsidiariedade. Ou seja, na conformação dos arranjos cooperativos, a ação do ente social ou político maior no menor, justifica-se quando comprovada a incapacidade institucional desse e demonstrada a eficácia protetiva daquele. Todavia, a subsidiariedade apenas apresentará resultados satisfatórios caso haja forte coesão entre as ações dos entes federados. Coesão que é exigida tanto na dimensão da alocação das competências quanto na dimensão do controle e fiscalização das capacidades institucionais dos órgãos responsáveis pela política pública. 9. A Lei Complementar nº 140/2011 tal como desenhada estabelece fórmulas capazes de assegurar a permanente cooperação entre os órgãos administrativos ambientais, a partir da articulação entre as dimensões estáticas e dinâmicas das competências comuns atribuídas aos entes federados. Desse modo, respeitada a moldura constitucional quanto às bases do pacto federativo em competência comum administrativa e quanto aos deveres de proteção adequada e suficiente do meio ambiente, salvo as prescrições dos arts. 14, § 4º, e 17, § 3º, que não passam no teste de validade constitucional. 10. No § 4º do art. 14, o legislador foi insuficiente em sua regulamentação frente aos deveres de tutela, uma vez que não disciplinou qualquer consequência para a hipótese da omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental. Até mesmo porque para a hipótese de omissão do agir administrativo no processo de licenciamento, o legislador ofereceu, como afirmado acima, resposta adequada consistente na atuação supletiva de outro ente federado, prevista no art. 15. Desse modo, mesmo resultado normativo deve incidir para a omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental, disciplinado no referido § 4º do art. 14. 11. Um dos princípios fundamentais do funcionamento do sistema legal de tutela do meio ambiente é o da atuação supletiva do órgão federal, seja em matéria de licenciamento seja em matéria de controle e fiscalização das atividades ou empreendimentos potencialmente poluidores ou degradantes do meio ambiente. No exercício da cooperação administrativa, portanto, cabe atuação suplementar – ainda que não conflitiva – da União com a dos órgãos estadual e municipal. As potenciais omissões e falhas no exercício da atividade fiscalizatória do poder de polícia ambiental por parte dos órgãos que integram o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) não são irrelevantes e devem ser levadas em consideração para constituição da regra de competência fiscalizatória. Diante das características concretas que qualificam a maioria dos danos e ilícitos ambientais de impactos significativos, mostra-se irrazoável e insuficiente regra que estabeleça competência estática do órgão licenciador para a lavratura final do auto de infração. O critério da prevalência de auto de infração do órgão licenciador prescrito no § 3º do art. 17 não oferece resposta aos deveres fundamentais de proteção, nas situações de omissão ou falha da atuação daquele órgão na atividade fiscalizatória e sancionatória, por insuficiência ou inadequação da medida adotada para prevenir ou reparar situação de ilícito ou dano ambiental. 12. O juízo de constitucionalidade não autoriza afirmação no sentido de que a escolha legislativa é a melhor, por apresentar os melhores resultados em termos de gestão, eficiência e efetividade ambiental, mas que está nos limites da moldura constitucional da conformação decisória. Daí porque se exige dos poderes com funções precípuas legislativas e normativas o permanente ajuste da legislação às particularidades e aos conflitos sociais. 13. A título de obter dictum faço apelo ao legislador para a implementação de estudo regulatório retrospectivo acerca da Lei Complementar nº 140/2011, em diálogo com todos os órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente, como método de vigilância legislativa e posterior avaliação para possíveis rearranjos institucionais. Sempre direcionado ao compromisso com a normatividade constitucional ambiental e federativa. Ademais, faço também o apelo ao legislador para o adimplemento constitucional de legislar sobre a proteção e uso da Floresta Amazônia (art. 225, § 4º), região que carece de efetiva e especial regulamentação, em particular das atividades fiscalizadoras, frente às características dos crimes e ilícitos ambientais na região da Amazônia Legal. 14. Improcedência dos pedidos de declaração de inconstitucionalidade dos arts. 4º, V e VI, 7º, XIII, XIV, “h”, XV e parágrafo único, 8º, XIII e XIV, 9º, XIII e XIV, 14 § 3º, 15, 17, caput e §§ 2º, 20 e 21, Lei Complementar nº 140/2011 e, por arrastamento, da integralidade da legislação. 15. Procedência parcial da ação direta para conferir interpretação conforme à Constituição Federal: (i) ao § 4º do art. 14 da Lei Complementar nº 140/2011 para estabelecer que a omissão ou mora administrativa imotivada e desproporcional na manifestação definitiva sobre os pedidos de renovação de licenças ambientais instaura a competência supletiva dos demais entes federados nas ações administrativas de licenciamento e na autorização ambiental, como previsto no art. 15 e (ii) ao § 3º do art. 17 da Lei Complementar nº 140/2011, esclarecendo que a prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ou autorização ambiental não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, desde que comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória. (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023) Importante destacar que também esta Corte já decidiu no sentido de que a competência será do órgão ambiental estadual nos casos em que o empreendimento está localizado fora de terra indígena. Confira-se: DIREITO ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. USINA HIDRELÉTRICA. LICENCIAMENTO. COMPETÊNCIA, EM REGRA, DE ENTIDADE ESTADUAL. CONSTRUÇÃO FORA DE TERRA INDÍGENA E IMPACTOS REGIONAIS INDIRETOS. COMPETÊNCIA FEDERAL TAXATIVAMENTE PREVISTA EM LEI E EM RESOLUÇÃO DO IBAMA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE JUSTIFIQUEM COMPETÊNCIA DA AUTARQUIA FEDERAL. SENTENÇA QUE ACOLHE ORIENTAÇÃO EM SENTIDO OPOSTO. APELAÇÃO. RECEBIMENTO SÓ NO EFEITO DEVOLUTIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM QUE SE PRETENDE TAMBÉM EFEITO SUSPENSIVO. PROVIMENTO. (...) 3. Emerge dos autos que a PCH Paranatinga II não está projetada em rio da União (o que, aliás, não seria determinante de competência do IBAMA para o licenciamento) e nem em terras indígenas, apenas encontrando-se a relativa distância de terras indígenas ("33,81 km da Terra dos Parabubure, 62,52 km da Marechal Rondon e 94,12 km do Parque Nacional do Xingu"). Também emerge claro que o impacto ambiental em outro Estado é indireto. A pouca potencialidade para atingir gravemente, mesmo de forma indireta, terras indígenas, uma região inteira ou outro Estado-membro pode ser deduzida do tamanho do lago (336,8 ha), área à qual foram reduzidos os 1.290 ha inicialmente previstos, questão esta não apreciada na sentença. 4. Algum impacto a construção da usina trará à bacia do Rio Xingu e a terras indígenas, mas esses impactos são indiretos, não afastando a competência da entidade estadual para o licenciamento. (...) justifica-se a competência do IBAMA quando o empreendimento esteja sendo desenvolvido em terras indígenas, não o que possa refletir sobre terras indígenas. O próprio juiz diz que há "prova irrefutável de que o empreendimento questionado nesta lide trará conseqüências ambientais e sociais para os povos e terras indígenas que lhe são próximos". (...) 6. Na Constituição as competências materiais da União vêm expressas (enumeradas), ficando para os Estados-membros e Distrito Federal as competências remanescentes, significando dizer que em regra (por exclusão das competências da União, taxativamente previstas) as competências são dos Estados-membros. Assim na Constituição, o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal. (...) 8. Provimento ao agravo de instrumento, com atribuição de efeito suspensivo à apelação. (TRF da 1ª Região. Processo Numeração Única: 0020981-75.2006.4.01.0000. AG 2006.01.00.020856-8 / MT; AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA. Órgão: QUINTA TURMA. Publicação: 09/11/2006 DJ P. 65. Data Decisão: 20/09/2006) Com efeito, vale destacar trechos relevantes do referido julgado: "(...) Assim, conforme se extrai da legislação supracitada, não seria o caso de competência do IBAMA para conduzir o licenciamento. Isso porque as atividades do empreendimento, embora estejam localizadas a relativa proximidade das comunidades indígenas mencionadas pelo Ministério Público Federal, não se situam em terras indígenas. (...) o empreendimento não está inserido em terras indígenas, estando dispensada a atuação do IBAMA com fundamento no disposto no inciso I do artigo 4º acima transcrito. (...) Portanto, a Lei Complementar nº 140/2011 veio reafirmar as regras de distribuição de competências trazidas pela Resolução nº 237/97 de forma que resta afastada a competência do IBAMA para licenciamento das atividades". Frise-se que não há qualquer alegação de insuficiência ou incapacidade técnica do órgão ambiental estadual do Amazonas para licenciar o empreendimento, o que justifica a manutenção da competência. Ao Ibama, no entanto, ainda que não tenha a competência para licenciar, remanesce um dever de vigilância, podendo impor condicionantes adicionais que julgue adequadas. Confira-se trecho do voto da Ministra Rosa Weber (fl. 85): Assim, considerando o empreendimento objeto da lide se encontra a cerca de 8 quilômetros dos limites de terras indígenas demarcadas, a competência para processar o licenciamento não é do ente federal. Nesse sentido, deve prevalecer o argumento do IBAMA no sentido de que "não compete ao IBAMA o licenciamento ambiental do projeto de mineração Potássio do Brasil por não se desenvolver ou estar localizado em terra indígena, regra prevista no artigo 7º, inciso XIV, alínea c, da Complementar n. 140/2011 como atribuição do ente federal, razão pela qual merece reforma a decisão atacada para definir a atribuição legal do IPAAM para conduzir o licenciamento ambiental em questão". Por fim, não há alegação de que alguma condicionante específica deveria ter sido exigida pelo IPAAM e não foi, o que poderia demandar a competência supletiva do IBAMA. Aparentemente, as condicionantes foram adequadas, consoante se extrai da leitura da Licença Prévia n. 54/15: Confira-se, expressamente, a existência das condicionantes indígenas: Vale ressaltar que o caso em questão em nada se assemelha com o julgado do STF no RE 1.379.751, caso do licenciamento da Usina de Belo Monte, uma vez que lá foi discutida a ausência de consulta aos povos indígenas afetados antes da edição do Decreto Legislativo 778, de 13 de julho de 2005, o qual autorizou o Poder Executivo a implantar o Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte, localizado em trecho do Rio Xingu, no Estado do Pará, antes da necessária oitiva às comunidades afetadas. Aqui houve a oitiva e foi realizada no momento adequado, como se expôs acima. Afora esse aspecto, no caso acima, não houve discussão sobre competência para licenciamento, uma vez que este coube ao IBAMA e não ao órgão ambiental do Pará. Tampouco existe similaridade com o que decidido pelo STJ no AgInt no REsp 1.390.476/PR, citado pelo voto divergente, em que expressamente se assentou que o licenciamento de terminal portuário seria do IBAMA e não do órgão ambiental por conta de diversos fatores, como a circunstância de que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva, nos termos do art. 7º, XIV, ‘a’, da LC 140/2011. Essa situação fática não está presente neste caso. Confira-se: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA. IBAMA. ATIVIDADE DE TERMINAL PORTUÁRIO QUE PODE CAUSAR SIGNIFICATIVO IMPACTO AMBIENTAL. CONTROVÉRSIA RESOLVIDA, PELO TRIBUNAL DE ORIGEM, À LUZ DAS PROVAS DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO, NA VIA ESPECIAL. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara Recurso Especial interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC/73. II. Na origem, "o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública (...) em face do Instituto Ambiental do Paraná e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, requerendo a declaração da competência do órgão ambiental federal - IBAMA, para que assuma a presidência do procedimento do licenciamento ambiental até então conduzido pelo órgão ambiental estadual (IAP), em virtude de manifesta incompetência deste órgão". O Tribunal de origem reformou a sentença, que havia reconhecido a competência do órgão estadual para o licenciamento ambiental. III. O entendimento firmado, à luz das provas dos autos, pelo Tribunal a quo - no sentido de que, "considerando que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva; que o empreendimento, por situar-se em área contígua a terras indígenas, trará impactos a essa comunidade; que serão afetados bens que apresentam relevância histórica e cultural e, por fim, que há potencial de dano ambiental de caráter regional, conclui-se que a competência para o licenciamento ambiental é do IBAMA, razão pela qual deve ser reformada a sentença que julgou improcedente a ação" - não pode ser revisto, pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial, sob pena de ofensa ao comando inscrito na Súmula 7 desta Corte. Precedentes do STJ. IV. Agravo interno improvido. (AgInt no REsp n. 1.390.476/PR, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 29/4/2020, DJe de 5/5/2020.) IV. A Reivindicação da Terra Indígena Soares/Urucurituba Como dito, o MPF propôs a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 na qual alega que omissão estatal na regularização fundiária de Terra Indígena Soares/Urucurituba, mesmo diante de robustas provas documentais e antropológicas que confirmariam a ocupação tradicional. A área encontra-se sob forte pressão devido à exploração de silvinita pela empresa Potássio do Brasil Ltda., que, segundo relatórios técnicos, ameaça o equilíbrio ambiental e o modo de vida das comunidades indígenas. O pedido se baseia na violação de direitos fundamentais dos povos indígenas e no risco iminente de danos irreversíveis ao meio ambiente e à preservação cultural. A FUNAI, apesar de reiterados ofícios e manifestações do MPF, não deu andamento ao processo demarcatório, acarretando prejuízos irreparáveis às comunidades tradicionais. O MPF requereu a suspensão deste processo para fins de aguardar o posicionamento da Diretoria de Proteção Territorial (DPT) Funai sobre o tema relativo a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Além disso, o MPF reiterou, de todo modo, o pedido anteriormente feito sobre a necessidade de suspensão de todo processo judicial, e consequentemente da consulta nos moldes da Convenção 169 da OIT, enquanto a questão prejudicial da demarcação da terra indígena Soares/Urucurituba não for definida pelo juízo. Com todas as vênias, entendo que essa pretensão não merece prosperar. A uma, pois já foi longamente exposto que, historicamente, a posição da FUNAI foi contrária à pretensão de demarcação daquela área (1419622747): Foi ainda devidamente assinalado que aquela área já havia sido estudada quando da delimitação dos limites da Terra Indígena Jauary, bem como que a área, apesar de conter alguns indígenas, também possui população ribeirinhas, o que pode inclusive levar a se concluir não ser Terra Tradicional. Confira-se novamente a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): A União também aduziu a inexistência de fumus boni iuris na petição de agravo protocolada no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000 (id. 274290019): Como aqui se está a examinar o feito em sede de cognição sumária, frente aos prejuízos que o atraso do projeto pode gerar para os objetivos estatais legítimos, é de se concluir que não se faz concretizada aparência legítima de direito a ponto de legitimar a suspensão. Se não se está diante de Terra Indígena demarcada, inclusive sequer limitada, estando o projeto em seu estágio inicial, não se pode presumir que seja Terra Indígena e, portanto, que haja necessidade de autorização do Congresso Nacional para o prosseguimento do empreendimento. Caso seja definido que se trata Terra Indígena, creio que será necessária a edição de autorização do Congresso Nacional, a qual deverá disciplinar a validade dos atos concretos praticados enquanto a demarcação ainda não havia sido concluída, consideradas, sobretudo, as peculiaridades do empreendimento expostas nos autos tais quais confirmadas no Estudo de Componente Indígena: Observe-se que no caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) vs. Argentina, de 2020, a CIDH assentou que “embora a Convenção não possa ser interpretada de modo a impedir que o Estado realize, por si ou por meio de terceiros, projetos e obras sobre o território, seu impacto não pode, em nenhum caso, privar os membros dos povos indígenas e tribais da capacidade de garantir sua própria sobrevivência.” Os dados acima sobre as características do projeto afastam, ao menos em juízo cautelar, qualquer receio de que possa haver impacto na garantia dos Mura e Ribeirinhos do Lago do Soares de prosseguir com o estilo de vida que hoje levam, tampouco garantir a sua subsistência. Não há nenhum indício de que exista a preocupação exposta pelo Ministro Alexandre de Moraes no sentido de que as terras indígenas próximas ao empreendimento serão tornadas “inóspitas, direta ou indiretamente, ou prejudica[rão] drasticamente a cultura e a qualidade de vida das populações indígenas que habitam a região" (RE 1.379.751/PA, Rel. Min. Alexandre de Moraes). A necessidade de estabelecimento de um regime de transição é uma compreensão do texto do art. 231, § 6º, da CF/88: Art. 231. [...] § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. Confiram-se, ainda, as conclusões apresentadas pelo DNPM (FL. 1.531 – id. 297015018): Cabe lembrar o art. 20 da Lei nº 6.001/1973: Art. 20. Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante enumerados, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, em área indígena, determinada a providência por decreto do Presidente da República. 1º A intervenção poderá ser decretada: a) para pôr termo à luta entre grupos tribais; b) para combater graves surtos epidêmicos, que possam acarretar o extermínio da comunidade indígena, ou qualquer mal que ponha em risco a integridade do silvícola ou do grupo tribal; c) por imposição da segurança nacional; d) para a realização de obras públicas que interessem ao desenvolvimento nacional; e) para reprimir a turbação ou esbulho em larga escala; f) para a exploração de riquezas do subsolo de relevante interesse para a segurança e o desenvolvimento nacional. 2º A intervenção executar-se-á nas condições estipuladas no decreto e sempre por meios suasórios, dela podendo resultar, segundo a gravidade do fato, uma ou algumas das medidas seguintes: a) contenção de hostilidades, evitando-se o emprego de força contra os índios; b) deslocamento temporário de grupos tribais de uma para outra área; c) remoção de grupos tribais de uma para outra área. 3º Somente caberá a remoção de grupo tribal quando de todo impossível ou desaconselhável a sua permanência na área sob intervenção, destinando-se à comunidade indígena removida área equivalente à anterior, inclusive quanto às condições ecológicas. 4º A comunidade indígena removida será integralmente ressarcida dos prejuízos decorrentes da remoção. 5º O ato de intervenção terá a assistência direta do órgão federal que exercita a tutela do índio. Assim, não há aparência de necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, não sendo caso de incidência do § 3º do art. 231 da CF/88. V. Conclusão Em face do exposto, ante a ausência de fumus boni iuris, dou provimento ao agravo de instrumento para, reformando a decisão agravada de id. 1769860076, considerar (i) válidos a consulta e o consentimento emanado pelo CIM, como representativo do Povo Mura de Autazes e, em consequência, o requisito da Convenção 169 da OIT; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciar o empreendimento e a validade de todos os atos até agora praticados; (iii) afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional e autorizar o prosseguimento do projeto. É como voto. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator [1] Id. 904360588. [2] Cf. file:///C:/Users/DS93/Downloads/wcms_205225.pdf. [3] Cf. https://ilo.primo.exlibrisgroup.com/discovery/delivery/41ILO_INST:41ILO_V2/126506 9900002676. PODER JUDICIÁRIO Processo Judicial Eletrônico Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 17 - DESEMBARGADORA FEDERAL KÁTIA BALBINO AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) n. 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO VISTA A EXMA. SRA. DESEMBARGADORA FEDERAL KATIA BALBINO: Pedi vista dos autos para melhor examinar as questões fático-jurídicas que motivaram a interposição do agravo de instrumento em apreço. De início, sem prejuízo de assinalar minha integral anuência com o voto do Relator quanto à relevância do Projeto Potássio-Autazes, entendo que as questões a serem dirimidas na insurgência perpassam apenas pelo juízo de adequação da decisão agravada ao contexto fático-processual que justificou a sua prolação. Feito o registro, cumpre também esclarecer que o recurso ora examinado foi interposto pelo Conselho Indígena Mura contra a decisão pela qual o juízo de origem, em caráter dispositivo, assim deliberou: “15. Pelo exposto, reitero decisões anteriores de que o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto Potássio é o IBAMA, reitero que exploração mineral em Terra Indígena depende de autorização do legislador constituinte (do Congresso Nacional) e que o IPAAM não é o órgão ambiental competente para o empreendimento que tem o poder de afetar o bioma, a biomassa, o estoque de carbono, a alteração de recursos hídricos da maior bacia nacional, e portanto tem o poder de gerar mudanças climáticas irreversíveis. 16. A Consulta aos povos indígenas afetados depende da vontade do povo, decorrente da sua autonomia de deliberar seus interesses diante desse e de qualquer empreendimento. Todavia, eventual resultado fica desde já suspenso enquanto não houver o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados na presente decisão. 17. Sem o mínimo início dos requisitos, não haverá inspeção judicial, a qual fica por ora suspensa, mas advirto que poderá ser remarcada em caso de violência ou indícios de violações que importem em ruptura da ordem. 18. Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Tal o contexto, o agravante confronta as seguintes diretrizes decisórias: i) suspensão do procedimento de consulta aos povos indígenas levada a efeito; ii) necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração da área em que se pretende realizar o empreendimento. Passo, assim, a analisar tais questões: - Da suspensão dos procedimentos de consulta – a perda do objeto do agravo de instrumento, quanto ao ponto. O exame dos autos indica que a decisão agravada foi proferida em 25/08/2023. Por outro lado, a leitura do referido comando permite a compreensão de que a questão referente à consulta aos povos indígenas foi abordada pelo juízo a quo por um prisma abstrato de sua validade, em perspectiva com os demais requisitos tidos como necessários para a exploração em litígio (autorização do Congresso Nacional e competência do IBAMA para o licenciamento). É dizer, a julgadora da origem não se manifestou de forma concreta sobre aspectos materiais e formais afetos à consulta que o agravante tem com validamente realizada, pontuando, isto sim, que a validade do referido procedimento deve ser examinada de forma contextualizada com os demais requisitos para a implementação do empreendimento. Tanto assim, que a parte final do comando censurado dispõe (destaquei em itálico): “Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Ocorre que, após a prolação do referido decisum, a magistrada que conduz o processo principal se debruçou de forma mais aprofundada sobre a questão referente à consulta aos povos indígenas e, nos termos da decisão ID 1913974193, proferida em 16.11.2023, consignou (destaques sublinhados acrescidos): “Diante de todo o tumulto (mediante coação, intimidações, pressões indevidas e oferecimento de vantagens) causado pelo CIM e por prepostos da empresa ré, conforme depoimentos colhidos e mencionados no parecer ministerial, defiro o pleito ministerial e determino a imediata suspensão do procedimento de licenciamento ambiental por parte do IPAAM, bem como o da consulta ilegítima realizada após desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta, bem como de qualquer ato de avanço dos trâmites para a implementação do empreendimento da empresa Potássio do Brasil S/A em Autazes, em razão dos vícios mencionados e dos riscos de conflitos e morte que a continuação dos trâmites do empreendimento minerário neste cenário acarretam ao povo Mura na região, ficando expresso que o juízo federal não confere qualquer validade à alteração esdrúxula do Protocolo construído de forma legítima por TODO O POVO MURA.” Como se vê, após a prolação da decisão agravada, o juízo a quo proferiu novo comando com caráter substitutivo do anterior, vindo a apresentar fundamentação mais aprofundada e amparada em elementos concretos sobre as razões de seu convencimento. Em outras palavras, a avaliação no plano concreto da consulta tida como realizada absorveu a deliberação anterior, esta fundada apenas em fatores afetos ao procedimento no plano abstrato. Assim, porque proferida decisão ulterior que a um só tempo incorporou e ampliou as razões contidas na decisão agravada, resulta demonstrada a perda do objeto do recurso tirado contra o aludido comando. Anoto, por fim, que tanto o MPF quanto a Funai já se manifestaram nos autos em sentido concorde com a compreensão ora externada (cf. ID 423687013 e ID 369353129). - Subsidiariamente, ao não conhecimento do recurso Ainda que se supere a questão preliminar já analisada, entendo que a decisão agravada deve ser mantida nos termos em que proferida, salientando, nesse ponto, que sua avaliação deve ser feita com base no exato sentido e alcance nela consignados. Melhor explicando, foi acima esclarecido que na decisão agravada o juízo a quo consignou que “eventual resultado” da consulta ficaria suspenso enquanto não houvesse “o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados” na decisão. Claro, portanto que, na decisão agravada, a julgadora de primeiro grau não empreendeu juízo de valoração da consulta efetivamente levada a efeito, tendo suspendido seus efeitos em razão da necessidade de observância concomitante de outros requisitos tidos como necessários para o licenciamento do empreendimento. Ocorre que a parte agravante não enfrentou de forma suficiente as razões externadas no comando recorrido, restringindo-se a defender a validade da consulta que alega já ter sido realizada, bem assim a desnecessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área em que será realizada a exploração mineral discutida na ação principal. Ora, a decisão agravada, como já afirmado, não positivou em nenhum momento a invalidade factual da consulta debatida (isso só foi feito na decisão posterior), tendo suspendido os respectivos efeitos em razão da necessidade de atendimento de outros requisitos que seriam com ela concorrentes. Um desses requisitos, a competência do Ibama para o licenciamento, não foi (e nem poderia ter sido, por ausência de legitimidade recursal) sequer objeto do presente agravo de instrumento. Assim sendo, ainda que superado o óbice relativo à perda do objeto do recurso, quanto ao ponto, este não pode ser conhecido, diante da ausência de enfrentamento da fundamentação decisória no sentido de que os efeitos da consulta somente poderiam ser efetivados em conjunto com o atendimento dos demais requisitos para a exploração da área, nomeadamente a autorização do Ibama. - Do exame residual do mérito da decisão agravada De todo modo, também na hipótese em que venha a ser desconsiderada a ausência de enfrentamento, pelo agravante, das razões decisórias, o recurso não deve ser provido. Com efeito, os documentos encartados no processo principal revelam uma evidente divisão entre as aldeias dos indígenas Mura, tratando-se de dissenso que compromete a conclusão pela validade do procedimento de consulta que neste agravo se tem como concretizado. Nesse sentido, tomando-se como exemplo a assembleia realizada em 21 e 22/09/2023, mencionada no voto do Exmo. Relator, temos que embora registrada em seu relatório a presença de diversos integrantes da comunidade Mura para debater sobre a implementação do projeto Potássio-Autazes, inclusive com a indicação de participação de cinco entidades representativas (CIM – Conselho Indígena Mura; OASIM – Organização dos Agentes de Saúde; OPIM – Organização dos Professores Indígenas Mura; OEIMA – Organização dos Estudantes Mira de Autazes; APIMA – Associação dos Produtores Indígenas Mura de Autazes), o referido documento foi subscrito por apenas quatro pessoas, dentre elas o coordenador geral do CIM (ora agravante) e um advogado. Inexiste, no documento, a indicação nominal de quem seriam as pessoas presentes no encontro, tendo sido mencionados, tão somente, o quantitativo dessas por aldeia. Também não há registro de ata assemblear, tampouco de subscrição, nesse ou em nenhum outro documento, da alegada aprovação majoritária para a implementação do projeto em debate nos autos principais. É dizer, a referência à aprovação do projeto consta apenas do relatório confeccionado após a assembleia, no qual não se identifica a assinatura da quase totalidade das pessoas que dela teriam participado. Por outro lado, como bem observado pelo Exmo. Relator, é certo que a efetivação da consulta às comunidades indígenas não pressupõe a anuência destas com o respectivo objeto. Todavia, a efetivação plena da consulta reclama a escuta efetiva das referidas comunidades, escuta essa que há de ser valorada em sua perspectiva substancial e não simplesmente formal. Nesse sentido, reportando-me mais uma vez ao voto do Relator, “[É] incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública.” Ocorre que o cenário dos autos não indica a realização dessa escuta efetiva do procedimento de consulta, este que, ao que se infere inclusive da divisão verificada entre os representantes da comunidade Mura, vinha sendo protagonizada, em um primeiro momento, pelo CIM (ora agravante), entidade que vem reiterada e insistentemente se manifestando pela implementação do Projeto Potássio-Autazes. Oportuno ser registrado que os autos principais indicam a adoção de diversos procedimentos tendentes à efetivação de um processo de consulta regular, mostrando-se plausível, neste momento de exame provisório do tema, a inferência de que muitos dos atos praticados sejam efetivamente válidos. Ocorre que o entendimento – precário – da validade de parte dos atos praticados não leva, obviamente, ao reconhecimento automático da validade de todo o processo de consulta. A propósito, em sua segunda decisão proferida sobre o tema a magistrada da origem refere-se à ocorrência de uma "desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta”, posicionamento indicativo de que, por sua ótica, o referido protocolo vinha sendo posto em prática de forma adequada, até que a partir de determinado momento veio a ser desconfigurado em sua essência e finalidade. Esse fato reforça, portanto, o posicionamento no sentido de que a validade de atos pretéritos do Protocolo de Consulta não pode induzir ao reconhecimento de sua validade como um todo. Isso posto, existem dúvidas no mínimo razoáveis acerca da legitimidade do procedimento sob enfoque, ao menos no que se refere à valoração do posicionamento divergente de parte significativa da comunidade Mura. Note-se que a validade (nos planos formal e substancial) desse procedimento tem como premissa a oitiva de todas as comunidades afetadas, levando-se em conta, no mais que possível, as peculiaridades de cada uma delas, além das razões que justificarem seus respectivos posicionamentos. Veja-se, em abono dessa conclusão, que a análise cartográfica 138/2023, juntada aos autos pela Funai e transcrita no voto do Relator, indica que o Projeto Potássio-Autazes encontra-se em distâncias diferentes das diversas comunidades afetadas, sendo que, especificamente em relação à “Aldeia Soares”, cujos representantes se posicionaram em sentido contrário ao do ora agravante, a indicação no mencionado documento é pela “sobreposição da área de influência” e pela distância de apenas 2,52 km entre a planta do projeto e a área em que situada a própria aldeia (a menor distância, ao que se infere, entre todas as comunidades afetadas). Na mesma linha, atente-se para o teor das seguintes passagens da decisão de ID 1913974193 dos autos principais, proferida após a decisão agravada: “O Povo Mura afetado pelo grande empreendimento Potássio, na forma do Protocolo legitimamente aprovado por sua totalidade de comunidades, sequer começou a ser consultado. Especialmente o Povo Mura da Comunidade Lago Soares, onde foi fincada a primeira perfuração para fins de pedido de concessão de lavra e licenças prévia, de instalação e de operação, o povo não foi ouvido em nenhuma das etapas da Consulta. Em inspeção judicial realizada por esta Magistrada, confirmei a tese dos autos de que é exatamente no Lago Soares que parte a pretensão de instalação do Projeto Potássio e essa comunidade não foi ouvida até a presente data, sendo ilegítima qualquer conclusão sem sua participação.” (...) “4.1. Alegam, o MPF, a organização OLIM CV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES, uma série de ilícitos em tese perpetrados pela empresa Requerida Potássio do Brasil. Defendem ocorrência de má fé, assédio, danos psicológicos, danos morais, coação manipulação e intimidação contra indígenas Mura. As alegações são de extrema gravidade e antes mesmo de ouvidos o MPF e a requerida, é dever do juízo adotar providências preliminares para determinar a imediata suspensão dos vícios, pois que a sua continuação pode gerar danos irreversíveis aos povos originários envolvidos, além da transfiguração do meio ambiente, cultura, tradição e do seu modo de vida. 4.2. As provas anexadas com a manifestação da parte interessada (OLIMCV e Comunidade Lago Soares) bem como aquelas referidas pelo MPF em seu Parecer, demonstram inclusive a presença do Presidente da Potássio do Brasil em reuniões com indígenas Mura, levando ideias destorcidas e contrárias ao ordenamento jurídico, além de descumprir claramente decisão constante de ata de audiência onde ficou consignado que a empresa não poderia praticar coação contra os indígenas. Desde a feitura do Protocolo, o Povo Mura assentou expressamente: "não queremos ser pressionados e coagidos". 4.3. São mais de 12 - doze- mil indígenas Mura afetados com o empreendimento, dos quais nem 1% chegou a participar da reunião onde correu uma lista de presença depois transfigurada em lista de aprovação, havendo clara pressão de cerca de dez indivíduos - alguns já identificados e ouvidos no Ministério Público Federal ( ID 1914447184 - Parecer) - no sentido de distorcer a realidade e retirar o direito de participação da imensa maioria dos indígenas nesse complexo processo de Consulta Livre e Informada. Conforme as provas anexadas, o indígena Cleber (ou Kleber) age como um doa encarregados de praticar coação e manipulação. A conduta pode vir a configurar crime, seja pelo 'modus operandi' de alteração da realidade fática e jurídica, seja por escarnecer as tradições culturais fixadas no Protocolo de Consulta ( lei 60001-73, art. 58, I). 4.4. Ainda, o senhor Kleber Mura vem afirmando que a empresa Potássio do Brasil LTDA. realizou uma promessa de pagamento de supostos royalties pela extração do minério em troca da aprovação do empreendimento, por parte das comunidades indígenas. Cumpre esclarecer que para que comunidades tradicionais ou indígenas recebam royalties por grandes empreendimentos exploradores em suas terras, é necessário primeiramente cumprir os passos da lei, não sendo faculdade de nenhuma empresa oferecer vantagens ou promessas de pagamentos, os quais já são fixados pelo legislador em casos de exploração mineral. Em síntese, na hipótese de futura operação licenciada do empreendimento, os roylties que eventualmente serão pagos decorrem de deliberação do legislador e não são mera faculdade da empresa Potássio do Brasil, a qual está causando tumulto, manipulação e pressão indevida em comunidade em situação de vulnerabilidade, o que deve cessar IMEDIATAMENTE. 4.5. Na manifestação trazida ao conhecimento do juízo, haveria indígena Mura recebendo 5 - cinco - mil reais da empresa Potássio, enquanto outros estariam recebendo 10 - dez- mil reais, tudo com o intuito de coagir e manipular as comunidades afetadas para o fim de aprovar o empreendimento, gerando uma confusão entre Consentimento Livre e Informado e licenciamento prévio, de licença de instalação e licença de operação, que a essa altura, estão fazendo parecer como um só fato jurídico quando são atos distintos. A transfiguração dos fatos jurídicos precisa imediatamente ser quebrada para evitar um dano irreversível aos povos originários, à sua cultura, modo de vida e tradição. 4.6. Dessa forma, diante de tanto vícios de consentimento explícitos, trazidos a juízo por indígenas Mura que habitam o principal Lago (Soares) a ser afetado pelo empreendimento, bem como pela organização OLIMCV, tudo isso faz-nos concluir que a tese manejada de ilegitimidade e nulidade do resultado de uma suposta consulta é inevitavelmente pertinente. Sem consulta válida, na forma do Protocolo definido POR TODO O POVO MURA ( e não por uma dúzia de pessoas com fortes indícios de estarem cooptadas) não há que falar em licença prévia válida. Isso porque a consulta depende da vontade livre do povo e decorre da sua autodeterminação em deliberar acerca de seus interesses diante de qualquer empreendimento que possa impactar seu modo de vida, conforma já definiu o STF. 4.7. Portanto, de imediato recebo a manifestação e o Parecer acima aduzidos, determino a manifestação de todas as partes em dez dias sobre o que entenderem pertinente e desde já adoto as deliberações abaixo para o fim de resguardar a dignidade e integridade do Povo Mura, alvo de um processo de coação, manipulação e intimidação. a) Determino a imediata suspensão de qualquer atitude de coação, manipulação, fraude, intimidação, ameaça, pressão e cooptação contra indígenas Mura, praticadas pela empresa requerida ou por quem quer que haja em seu mando. Fixo desde já multa de cem mil reais por cada dia de descumprimento da presente decisão, a contar da intimação da presente decisão. b) Fixo desde já multa de um milhão de reais a ser custeada pela Empresa Potássio do Brasil Ltda, pelo descumprimento dos deveres assumidos durante as audiências de conciliação perante o Juízo, em especial por realizar pressão indevida sobre o povo Mura com o comparecimento pessoal do seu presidente em reuniões internas das comunidades sobre o assunto tratado nos autos, o que já foi vedado pelo juízo. A multa incidirá sobre o dia de comparecimento do Presidente da Potássio, em reunião vedada pelo Protocolo de Consulta e será revertida a favor da Organização requerente e comunidade Lago Soares, pro rata.” A reforçar o posicionamento da julgadora que conduz o processo na origem, as cartas abertas juntadas nos ID 1914200677, 1914200678, 1914200679 indicam a discordância de várias aldeias com os rumos do procedimento. Da mesma forma, confira-se o que foi expressamente consignado no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Carneiro da Várzea (ID1914200682 dos autos principais): Trata-se, com efeito, de diretrizes contidas no Protocolo de Consulta construído para o exame do Projeto Potássio-Autazes. Pois em que pese a clareza dos termos acima transcritos, há no processo principal fortes indícios da participação ativa de “não-índios” no “processo de convencimento” da comunidade Mura (inclusive na assembleia realizada nos dias 21 e 22/08/2023), bem assim de que parte das lideranças não levou em conta, como deveria ter levado segundo as normas protocolares acima transcritas, a opinião do conjunto da comunidade indígena afetada. Com todo esse cenário, tenho que o exame realizado em sede de agravo de instrumento tirado contra uma decisão marcada por seu caráter de provisoriedade e de instrumentalidade para a bom desenrolar do processo, deve ser feito com a adoção de uma postura cautelosa quanto aos riscos do reconhecimento da validade do procedimento de consulta que está na berlinda, ante a irreversibilidade das medidas que eventualmente sejam tomadas com base nessa conclusão (no mínimo precipitada). Isso quer dizer que, diante das incertezas quanto à validade do caráter conclusivo da consulta, o Poder Judiciário deve assumir uma posição preventiva quanto aos possíveis prejuízos que venham a ser causados. Aqui tomando por empréstimo – e por analogia – o ensinamento Délton Winter de Carvalho, tenho como necessária a conclusão de que a alta probabilidade de comprometimento futuro de direitos fundamentais das comunidades indígenas afetadas pelo empreendimento em causa enseja a adoção das medidas preventivas necessárias – tais como as que adotadas pelo juízo de primeiro grau –, “a fim de evitar a concretização dos danos ou minimizar as consequências futuras daqueles já efetivados”. Não procede, portanto, a compreensão de que eventuais prejuízos futuros poderão ensejar indenização por perdas e danos, na medida em que a finalidade precípua da atuação jurisdicional em casos como o presente deve ser a de evitar que o dano ocorra e não simplesmente compensá-lo. Pensar diferente, com todas as vênias, seria abrir a caixa de Pandora para uma pletora de ilegalidades que poderiam ser cometidas sob o escudo de uma incerta indenização reparatória. Não bastasse tudo isso, a eventual validade das deliberações obtidas em assembleias realizadas sob a condução do CIM não pode, em princípio, vincular as comunidades que não são pelo referido conselho representadas. Assim, a eficácia de tais deliberações, para fins de reconhecimento da oitiva real de todas as comunidades afetadas, seria condicionada à obtenção de manifestações convergentes daquelas que não vinculadas ao agravante. Da necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da Terra Indígena – ausência de legitimidade recursal, quanto ao ponto Como já antecipado, a decisão agravada não empreendeu exame qualitativo da consulta que a parte agravante considera legítima, restringindo-se a suspender seus efeitos ante a necessidade de observância de requisitos externos ao referido procedimento. Dentre as externalidades mencionadas na decisão agravada, a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi invocada como pressuposto para a implementação do Projeto Potássio-Autazes, que tem como principal interessado os responsáveis pelo empreendimento. Ainda que se diga que a parte agravante teria algum interesse na implementação no projeto, pelos possíveis benefícios que ele poderia proporcionar, tal não significa que, processualmente, caiba a ela defender a sua concretização. A ilustrar esse entendimento, tome-se como exemplo a hipótese em que o órgão ambiental responsável pelo licenciamento apresente alguma condicionante para o seu deferimento. Diante de tal situação, caberá apenas à agravada Potássio do Brasil Ltda. questionar judicialmente o óbice levantado, falecendo ao Conselho nestes autos agravante legitimidade para o enfrentamento da hipotética decisão administrativa. Mutatis mutandis, é exatamente essa a situação ora analisada, pois a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi levantada como óbice para o licenciamento do projeto discutido, diante do entendimento que ele seria realizado em terras indígenas. Não cabe, portanto, ao Conselho Mura, defender aquilo que em última análise se mostra como de interesse da empresa, o que seja, a implementação de seu empreendimento econômico. Por outro lado, o Conselho agravante não representa a totalidade da Comunidade Mura, mas apenas parte dela, daí porque não possui legitimidade para se manifestar sobre os efeitos do empreendimento nas áreas não alcançadas por sua representação. Em resumo, não cabe ao CIM questionar a avaliação feita pelo juízo processante acerca da repercussão de um projeto empresarial do qual não faz parte, em áreas ocupadas por comunidades que não representa. A legitimidade recursal da agravante, portanto, em relação ao que é objeto do agravo de instrumento, está adstrita à validade de sua manifestação no procedimento de consulta, tema já analisado no tópico anterior deste voto. Conclusão Diante do exposto, julgo prejudicado o agravo de instrumento em relação à suspensão dos efeitos da consulta realizada, diante da prolação de decisão judicial posterior. Na hipótese de superação desse ponto preliminar, não conheço do agravo, por deficiência de fundamentação e, se também afastado esse obstáculo, nego provimento ao recurso. De outro modo, não conheço do agravo de instrumento no que se refere à necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área onde será implementado o projeto, por ausência de legitimidade recursal. Por fim, deixo de me manifestar acerca da questão relativa à competência para o licenciamento do empreendimento, por se tratar de tema estranho ao objeto da insurgência em apreço. É como voto. Desa. Federal KATIA BALBINO Relatora CARVALHO, DéltonWinter de. Dano Ambiental Futuro: A responsabilização Pelo Risco Ambiental. 2ª ed. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2013, pp. 187/202 PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 Processo Referência: 0019192-92.2016.4.01.3200 AGRAVANTE: CONSELHO INDIGENA MURA AGRAVADO: DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUCAO MINERAL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (PROCURADORIA), INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS - IBAMA, INSTITUTO DE PROTECAO AMBIENTAL DO AMAZONAS, POTASSIO DO BRASIL LTDA., FUNDACAO NACIONAL DO INDIO - FUNAI, UNIÃO FEDERAL, ESTADO DO AMAZONAS EMENTA DIREITO AMBIENTAL E DIREITOS INDÍGENAS. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSULTA PRÉVIA AO POVO INDÍGENA MURA. EXPLORAÇÃO MINERAL. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA ESTADUAL. RECONHECIMENTO DE CONSULTA VÁLIDA. PROSSEGUIMENTO DO PROJETO. 1. Agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura (CIM) contra decisão que suspendeu os efeitos da consulta ao povo indígena Mura sobre o Projeto Potássio Autazes, condicionando sua validade ao cumprimento de requisitos ambientais, legais e constitucionais, no bojo de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). 2. Pretensão do agravante de obter efeito suspensivo para reconhecer a validade da consulta realizada, conduzida pelo CIM, e afastar exigências relacionadas à autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas, bem como discutir a competência do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) no licenciamento ambiental do empreendimento. 3. O debate circunscreve-se às seguintes questões: (i) validade da consulta ao povo indígena Mura de Autazes, realizada com base no protocolo próprio; (ii) competência do IPAAM para o licenciamento ambiental do empreendimento; e (iii) necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, considerando a localização do projeto em área não demarcada como terra indígena. 4. Reconhecida a legitimidade do Conselho Indígena Mura (CIM) como entidade representativa das aldeias de Autazes para conduzir a consulta, nos termos da Convenção 169 da OIT, considerando que o processo observou protocolos definidos com acompanhamento judicial. A ausência de pronunciamento de outras comunidades não invalida a consulta, mas mantém a obrigação do Estado de dialogar continuamente com os povos afetados. A CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. 5. A competência do IPAAM para licenciamento ambiental foi reafirmada, uma vez que o empreendimento está localizado fora de terras indígenas demarcadas, observando-se os critérios da Lei Complementar nº 140/2011. A distância de poucos quilômetros entre o projeto e a terra indígena mais próxima não configura causa de deslocamento de competência ao IBAMA, o qual, no entanto, possui o dever de vigilância em relação ao licenciamento estadual. Não há dados que permitam concluir que o órgão ambiental estadual não tem a qualificação ou a estruturação necessária para proceder ao licenciamento, tampouco foram apontadas omissões nas condicionantes fixadas na Licença Prévia, que expressamente consideraram o componente indígena. 6. O STF, na ADI 4.757/DF, expressamente reconheceu a existência do "dever de vigilância da União quanto aos licenciamentos de responsabilidade dos Estados, cujas atividades ou empreendimentos possam causar impactos ambientais indiretos relevantes em áreas indígenas ou unidades de conservação. A exemplo, as atividades de mineração ou empreendimentos hidrelétricos, cujas poluições sonoras ou dos leitos de rios possam impactar a preservação adequada das referidas áreas." O STF acrescentou que, "[n]esse ponto, competirá, com efeito, à União averiguar as capacidades institucionais do órgão ambiental estadual para proceder com o licenciamento, em especial as condicionalidades para a emissão da licença, considerados esses impactos indiretos, que não raras vezes demandam alta espeficiação de instrumentos técnicos e de profissionais" (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023, p. 85 do acórdão). 7. A inexistência de terra indígena demarcada ou delimitada na área do empreendimento afasta a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, conforme art. 231, § 3º, da Constituição Federal, ainda que se instaure processo demarcatório, enquanto não concluído. 8. Agravo de instrumento provido para: (i) considerar válida a consulta realizada pelo CIM como representativo do povo indígena Mura de Autazes e considerar cumprida a obrigação de consultar; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciamento ambiental do empreendimento; (iii) afastar a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração no caso em análise; e (iv) autorizar o prosseguimento do projeto minerário, sem prejuízo de novas medidas para assegurar a proteção aos direitos indígenas e ambientais. ACÓRDÃO Decide a Sexta Turma, por maioria, dar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do voto do Relator. Brasília/DF, data e assinatura eletrônicas. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator
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Processo nº 1037175-40.2023.4.01.0000
ID: 292902564
Tribunal: TRF1
Órgão: Gab. 16 - DESEMBARGADOR FEDERAL FLAVIO JARDIM
Classe: AGRAVO DE INSTRUMENTO
Nº Processo: 1037175-40.2023.4.01.0000
Data de Disponibilização:
09/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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LUIS INACIO LUCENA ADAMS
OAB/DF XXXXXX
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CAROLINA MAR AZEVEDO
OAB/AM XXXXXX
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IVAN DE SOUZA QUEIROZ
OAB/AM XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDI…
JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDIGENA MURA REPRESENTANTE(S) POLO ATIVO: IVAN DE SOUZA QUEIROZ - AM4297 POLO PASSIVO:Ministério Público Federal (Procuradoria) e outros REPRESENTANTE(S) POLO PASSIVO: CAROLINA MAR AZEVEDO - AM8627-A, LUIS INACIO LUCENA ADAMS - DF29512-A, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133, GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133 e GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882 RELATOR(A):FLAVIO JAIME DE MORAES JARDIM PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 RELATÓRIO Agravo de Instrumento interposto em 14.9.2023, pelo Conselho Indígena Mura (CIM), contra decisão da 1ª Vara Federal do Amazonas (id. – ID 1769860076), que suspendeu o resultado de consulta ao povo indígena Mura até que fossem cumpridos requisitos ambientais, legais e constitucionais, no contexto da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). A ação, na origem, busca a anulação da Licença Prévia emitida pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas- IPAAM à Potássio do Brasil Ltda. referente à exploração de silvinita/potássio em Autazes/AM, alegando incompetência do órgão emissor e ausência de consulta prévia aos povos indígenas afetados. O agravante argumenta que a decisão violou sua autonomia, destacando que a consulta foi conduzida conforme protocolo próprio e recursos próprios, com representantes de 46 aldeias. Sustenta que a suspensão judicial desrespeita o resultado soberano da consulta, gera prejuízos financeiros e configura cerceamento de defesa. O CIM defende ainda que os direitos minerários da empresa foram desmembrados de terras indígenas, afastando a necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração mineral. Ao final, requer efeito suspensivo à decisão agravada, permitindo a conclusão e consideração da consulta nos autos antes de eventual sentença. Defende a existência de prejuízos irreparáveis caso o processo seja decidido sem incorporar o resultado da consulta, e reafirma o pedido de Justiça Gratuita, por ser entidade sem fins lucrativos. Foi requerida, ainda, a gratuidade de justiça. Após a distribuição, por meio da petição id. 347816151, foram juntadas atas de reuniões realizadas nos dias 15, 16, 18 e 22.8.2023, nas quais o agravante alega que foi dado início dado procedimento de consulta para representantes de 46 aldeias. Despacho de id. 348177162 intimou os agravados a apresentar contrarrazões e sobrestou a análise do pedido de liminar. Antes de escoado o prazo, o agravante apresentou petição (id. 350573644) comunicando que o Povo Mura de Autazes, nos dias 21 e 22.09.2023, finalizou a Consulta sobre o Projeto Potássio Autazes e outras questões relevantes, de acordo com a ata anexa. Destacou que foi aprovado o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta. Informou, ainda, que foi aprovado pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil faça a mineração. Requereu, assim, a atribuição de efeito suspensivo ao agravo. A Potássio do Brasil Ltda. apresentou as contrarrazões de id. 360785149. Noticiou a existência de decisão da Presidência do TRF1, a qual, nos autos da SLS nº 1040729-80.2023.4.01.0000, suspendeu a decisão original, entendendo que a paralisação antecipada do licenciamento interfere na competência administrativa e nas normas constitucionais que regulam a exploração mineral em terras indígenas. No mais, a Potássio do Brasil Ltda. adere aos argumentos do agravante, solicitando a reforma da decisão agravada. O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) apresentou as contrarrazões de id. 367016144, aduzindo que o projeto e suas jazidas estão a 8 km das terras indígenas mais próximas e que a legislação atual estabelece o critério territorial para definir competências ambientais. Assim, considera desnecessária a autorização do Congresso Nacional, pois não há exploração direta em terras indígenas. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. O IBAMA apresentou a petição id. 368864139 informando carecer de interesse em apresentar contrarrazões em face do mencionado recurso de agravo de instrumento, uma vez que sua posição nos autos de origem sempre foi no sentido de que não possui competência legal para conduzir o licenciamento ambiental em questão e, tampouco, para intervir no âmbito da consulta livre, prévia e informada que deve ser realizada perante a comunidade indígena que venha a ser afetada pelo empreendimento. A FUNAI protocolou a manifestação de id. 369353129. Inicialmente, a FUNAI argumenta pela perda superveniente do objeto do agravo, uma vez que nova decisão foi proferida pelo juízo de origem, abordando fatos e fundamentos distintos, como a inexistência de consulta válida com participação de todos os indígenas afetados, especialmente da Comunidade Lago Soares. A decisão, prolatada por meio do id. 190941615, relata coações, pressões e irregularidades promovidas pela empresa Potássio do Brasil e seus representantes. Entre as medidas adotadas, destaca-se a suspensão do licenciamento ambiental pelo IPAAM e de atos vinculados ao empreendimento, além da fixação de multas e proibição de práticas coercitivas. No mérito, a FUNAI defende a manutenção da decisão agravada, ressaltando que a consulta ao povo Mura é imprescindível, mas deve observar a inclusão de todas as comunidades potencialmente afetadas. A instituição destaca a necessidade de conclusão dos estudos demarcatórios da Terra Indígena Lago do Soares e Urucurituba, conduzidos por grupo técnico da FUNAI, para garantir a legitimidade e abrangência da consulta. Por fim, a FUNAI solicita, em preliminar, o não conhecimento do agravo por perda de objeto e, subsidiariamente, o seu desprovimento, mantendo a decisão que suspendeu o resultado da consulta e os atos administrativos relacionados ao empreendimento até o cumprimento dos requisitos legais. A ORGANIZAÇÃO DE LIDERANÇAS INDÍGENAS MURA DE CAREIRO DA VÁRZEA - OLIMCV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES apresentou a manifestação de id. 357658659. Defenderam a ilegitimidade e a invalidade da consulta realizada para aprovação do Projeto Potássio Autazes, apontando graves violações ao Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Mura de Autazes e Careiro da Várzea. O documento destaca que o Conselho Indígena Mura (CIM), ao conduzir a consulta, ignorou a inclusão de comunidades contrárias ao projeto, como a Aldeia Soares, e promoveu reuniões com fortes indícios de coação, pressão e manipulação, em desrespeito às diretrizes estabelecidas no protocolo previamente aprovado pelas comunidades. Além disso, aponta a participação irregular de representantes da empresa Potássio do Brasil Ltda., prática vedada no contexto das reuniões internas. As lideranças contrárias ao empreendimento denunciaram promessas de compensações financeiras, irregularidades na condução das consultas e a tentativa de impor um novo protocolo de consulta para fragmentar a representação do povo Mura, excluindo as aldeias do município de Careiro da Várzea. A defesa ressalta ainda que a consulta não foi realizada de forma ampla, livre e informada, como determina a Convenção 169 da OIT. Em termos jurídicos, as contrarrazões pedem o reconhecimento da nulidade do resultado da consulta e a manutenção da decisão judicial de suspensão do licenciamento ambiental e de atos administrativos relacionados ao projeto até que sejam cumpridos os requisitos legais e constitucionais, com participação efetiva de todas as comunidades afetadas. O parecer id. 373711134, ofertado pelo MPF, pugna pelo desprovimento do agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura por perda superveniente do objeto. É o relatório. PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL FLÁVIO JARDIM - Relator: I. Estão preenchidos os requisitos de admissibilidade. A peça, subscrita por profissional legalmente habilitado, (a) foi protocolada no prazo legal. O agravante requereu seja o preparo dispensado em razão da hipossuficiência, o que defiro. Conheço do Recurso. II. A decisão agravada, datada de 25.8.2023, no que interessa (id. 1769860076): III. Este agravo foi protocolado pelo Conselho Indígena Mura – CIM e visa a suspender os efeitos da decisão agravada de id. 1769860076, proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, movida pelo MPF. Contra essa decisão, também foram interpostos os seguintes recursos: (i) AI nº 1039810-91.2023.4.01.0000, protocolado pela Potássio do Brasil Ltda. (ii) AI nº 1042776-27.2023.4.01.0000, protocolado pelo Ibama; (iii) Ai nº 1043035-22.2023.4.01.0000, protocolado pela União. No agravo, é postulado que a decisão agravada seja reformada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". III.a. A Relevância do Projeto Potássio-Autazes Consoante destacou a União em petição protocolizada nestes autos, "o Projeto Autazes foi habilitado, na forma do Decreto nº 10.657/2021, pelo Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos – CTAPME, para integrar a política de apoio ao licenciamento ambiental de projetos de investimento para a produção de Minerais Estratégicos – Pró Minerais Estratégicos, em 28 de setembro de 2021." [1] Segundo o que assevera a União, "[d]e acordo o que dispõe o Decreto nº 10.657/2021, os projetos minerários habilitados na Política de Pró-Minerais Estratégicos são considerados prioritários ao país em razão dos seguintes critérios (art. 2º): i) alto percentual de importação para suprimento de setores vitais da economia; ii) aplicação em produtos e processos de alta tecnologia e iii) vantagens comparativas e essencial para a geração de superavit da balança comercial do país." [id.] A União complementa que o projeto "visa a exploração de minério cloreto de potássio, fertilizante fundamental para a agricultura nacional." [id.] Pelas informações prestadas, "o Brasil importa 95% do cloreto de potássio que utiliza para fertilização do solo, ostentado o título de maior importador mundial de potássio, com 10,45 milhões de toneladas adquiridas em 2019, de acordo com dados do Ministério da Economia." [id.] A previsão da empresa é de "atender cerca de 25% do consumo nacional do minério, reduzindo a dependência interna do produto por mais de 30 anos." [id.] A União ainda aponta que a relevância do projeto foi exacerbada com o recente cenário de guerra entre Ucrânia-Rússia: "Ocorre que as recentes sanções econômicas impostas à Bielorrússia, responsável por ¼ de toda produção mundial de cloreto de potássio, gerou enorme preocupação no setor agroindustrial brasileiro em razão da possível escassez do minério, o que poderá impactar o custo de produção e, consequentemente, o aumento do preço dos alimentos. Observa-se, assim, que o desenvolvimento de projetos minerários com capacidade de aumentar significativamente a oferta de fertilizantes ao mercado interno, reduzindo a dependência estrangeira, é essencial para a proteção dos pequenos produtores de alimentos e da população mais vulnerável à variação de preço dos alimentos. [...] Além disso, há apenas três grandes players produtores no mundo, sendo que em dois deles, Rússia e Bielorrússia, há interferência dos governos na atuação internacional das empresas. As duas últimas crises mundiais de fertilizantes, em que os preços ao produtor rural aumentaram mais de 150% em menos de seis meses, ocorreram por ocasião da atuação das empresas de fertilizantes potássicos. Na atual crise de fertilizantes, o primeiro nutriente a faltar para o Brasil foi o potássio." [id.] Segundo o ente público, há altíssima dependência nacional de fertilizantes estrangeiros, o que torna o país ainda mais vulnerável, pois os grandes produtores agrícolas mundiais possuem autonomia no fornecimento de fertilizantes: "O Brasil vem presenciando, nos últimos anos, um forte aumento nas importações de fertilizantes. Estima-se que, em 2020, mais de 80% dos que foram consumidos no Brasil são de origem estrangeira, respondendo a produção nacional por menos de 20% da demanda do país. Estrategicamente, todos os países que são grandes produtores agrícolas no mundo, têm autonomia no fornecimento de fertilizantes, uma vez que produzem, no mínimo, 50% da sua demanda anual, exceto o Brasil. A dependência se agrava quando se verifica que o Brasil deverá responder por quase metade da produção mundial de alimentos nos próximos anos, aumentando proporcionalmente a demanda por fertilizantes. Atualmente, o Brasil é o quarto consumidor global de fertilizantes, responsável por cerca de 8% desse volume e é o maior importador mundial, ou seja, é o país com a maior dependência externa por fertilizantes." [id.] A variação de preços da commodity é também apontada como fator de preocupação, tendo em vista que há ciclos de crises mundiais que elevam os preços a níveis acima do padrão: "Aumentos nos preços desses insumos acontecem em ciclos de crises mundiais, como em 2008 e 2021, períodos em que foram registrados os maiores preços da história. Esse cenário impacta negativamente na competividade dos produtos agrícolas brasileiros, pois os fertilizantes já ocupam mais de 40% do custo de produção de culturas importantes como soja, milho e algodão, que compõem as principais exportações do agronegócio brasileiro, tornando o produto nacional menos competitivo." [id.] Assim, a conclusão da União é a de que "o Projeto Autazes pode proporcionar ao Brasil uma arrancada em direção à segurança do fornecimento de fertilizante potássicos para o país." [id.] Abaixo, as características físicas do projeto: Vale ressaltar que se cuida de empreendimento significativamente menor do que, por exemplo, a UHE Belo Monte, que possui dois reservatórios de regularização, com área total de 478 km², sendo 274 km² do leito original do Rio Xingu. Os dois reservatórios são o Reservatório Xingu, com 359 km², e o Reservatório Intermediário, com 119 km. É, desde já, importante destacar que no caso Comunidade Indígena Yakye vs. Paraguai, decidido em 17.6.2005, a Corte Interamericana de Direitos Humanos assentou que a propriedade indígena pode sofrer restrições quando presente interesse social e um objetivo estatal legítimo. Confira-se trecho do voto: Constam dos autos, ainda, diversas matérias jornalísticas de 2022 informando problemas de escassez do cloreto de potássio no mercado mundial, devido à guerra na Ucrânia (id. 970735666). No volume 3, consta ainda a Nota n. 00144/2023/CONJUR-MAPA/CGU/AGU, a qual atesta que a demanda por fertilizantes potássicos aumentará bastante nos próximos anos e que a produção nacional está decaindo: O documento ainda atesta que o Projeto Autazes está intimamente ligado com caros direitos fundamentais de índole social e com os fundamentos da ordem econômica, os quais incumbe a Administração dar concretude: Por fim, requer-se a aplicação do art. 20 da LINDB no julgamento desta ACP n. 0019192-92.2016.4.01.3200: "Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas." Diante do quadro apresentado, sem resolver a questão sobre o local em que será instalado o projeto minerário é ou não terra indígena, há aparência de que o projeto possui interesse social, eis que visa a fornecer insumos para a agricultura -, e também persegue um objetivo estatal legítimo, podendo ser executado inclusive se estiver em terras indígenas, desde que obedecida a legislação brasileira. III.b. O Conselho Indígena Mura - CIM e a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV O Conselho Indígena Mura - CIM é inequivocamente a entidade representativa dos Mura que residem em Autazes. Da mesma forma, a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV é a organização que representa os Mura no município do Careiro da Várzea. Essa circunstância é inequívoca dos autos e está consignada no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Careiro da Várzea, Amazonas. Confira-se à fl. 30, no capítulo "Quem Fala Em Nome dos Mura?": "Apesar de a Constituição Federal garantir que nossas terras sejam demarcadas, o Estado ainda não demarcou todas. A demarcação é nossa maior luta. "Mas nós sabemos que temos direito à nossa autodeterminação e ao autogoverno. A Constituição Federal de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, e a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, de 2007, assinadas pelo Brasil, garantem nosso direito ao autogoverno: somente nós, Mura, podemos decidir quem representa nossas aldeias e nosso povo. Por isso criamos as nossas organizações. As aldeias da região onde fica o município de Autazes se reúnem nas assembleias do Conselho Indígena Mura - CIM, e as aldeias que ficam na região onde está o município do Careiro da Várzea se reúnem nas assembleias da Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea, OLIMCV. Estas nossas organizações são um direito nosso, assegurado pela Constituição Federal (art. 5º): temos o direito de nos organizar livremente e de tomar nossas decisões de maneira soberana e autônoma nas assembleias das nossas organizações. Quando os não-índios querem elaborar um projeto, medida ou lei, são obrigados a nos consultar antes, sem nos pressionar e nos informando sobre todos os detalhes da proposta. Para começar esse diálogo, que é a consulta prévia, os não-índios " III.c. As Entidades Representativas e o Poder de Fala dos Povos Originários Nos termos do art. 32 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, são as instituições representativas dos povos originários que devem falar pelos indígenas em fases de consulta. Confira-se: "1. Os povos indígenas têm o direito de determinar e de elaborar as prioridades e estratégias para o desenvolvimento ou a utilização de suas terras ou territórios e outros recursos. 2. Os Estados realizarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas próprias instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre e informado antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particularmente em relação ao desenvolvimento, à utilização ou à exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo. 3. Os Estados estabelecerão mecanismos eficazes para a reparação justa e equitativa dessas atividades, e serão adotadas medidas apropriadas para mitigar suas consequências nocivas nos planos ambiental, econômico, social, cultural ou espiritual." Também no caso do Povo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Equador, sentença de 27 de junho de 2012, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi expressamente consignado que “os Estados devem incorporar essas normas aos processos de consulta prévia, de maneira a gerar canais de diálogos sustentados, efetivos e confiáveis com os povos indígenas nos procedimentos de consulta e participação por meio de suas instituições representativas." Sendo assim, como as consultas e cooperação entre indígenas devem ser verbalizadas por meio das suas instituições representativas, não há dúvidas de que, no caso em concreto, quem deve falar sobre os interesses dos Muras de Autazes é o CIM e pelos Mura de Careiro da Várzea é a OLIMCV. A própria decisão de id. 925987687, do Juízo de origem, reconhece que o CIM é a instituição que representa parte do Povo Indígena Mura nestes autos: III.d. A Abrangência do Dever de Consulta, a Inexistência do Poder de Veto e o Momento Adequado Sobre a abrangência do dever de consulta, no document Handbook for ILO Triparte Constituents - Understanding the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), publicado pela OIT, com a finalidade de responder questões essenciais sobre a Convenção 169, é dito que um dos principais desafios da convenção é garantir que consultas apropriadas sejam realizadas antes da adoção de medidas legislativas ou administrativas que provavelmente afetarão diretamente os povos indígenas e tribais [2]. Segundo o que decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos em Garífuna Triunfo de La Cruz e seus membros vs. Honduras, os elementos essenciais do direito de consulta são “a) o caráter prévio da consulta; b) a boa-fé e a finalidade de chegar a um acordo; c) a consulta adequada e acessível; d) o estudo de impacto ambiental; e e) a consulta informada.” É incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública. Essa ideia é pedagogicamente explicada na obra "The Oxford Handbook of International Enviromental Law", de Lavanya Rajamani e Jacqueline Peel, ao tratar da Convenção 169 da OIT (pág. 739): "Governments shall consult, 'in good faith...with the objective of achieving agreement or consent to the proposed measures' when considering legislative or administrative measures which may affect Indigenous peoples directly. Special measures to safeguard persons, institutions, property, labour, cultures, and environment of the Indigenous peoples shall not be contrary to the freelyexpressed wishes of the peoples concerned. The Convention acknowleges Indigenous peoples to be distinct polities within states". Em tradução livre: "Os governos deverão consultar, 'de boa fé... com o objetivo de chegar a acordo ou consentimento para as medidas propostas' ao considerar medidas legislativas ou administrativas que possam afetar diretamente os povos indígenas. Medidas especiais para salvaguardar pessoas, instituições, propriedades, trabalho, culturas e meio ambiente dos povos indígenas não devem ser contrárias aos desejos livremente expressos dos povos envolvidos. A Convenção reconhece os povos indígenas como entidades políticas distintas dentro dos Estados". Portanto, devem os indígenas expressar livremente seus modos de criar, fazer e viver, nos termos do art. 216, II, da Constituição e devem ser ouvidos propriamente quando puderem ser afetados por medidas que os impactem. Mas não basta. É indispensável que suas ideias, expressadas num ambiente livre e sem intimidações, sejam consideradas pelo órgão ambiental e pelo poder público, como um todo, ao analisar o licenciamento e/ou autorização para uma obra ou empreendimento que puderem afetar tais comunidades tradicionais. Em outras palavras, esse poder de fala (livre) dos indígenas gera, em contrapartida, um dever de escuta das autoridades envolvidas. É importante esclarecer, porém, que isso não significa a existência de um poder de veto por parte da comunidade indígena. Realizar a consulta é uma obrigação convencional, com força supra legal. Acatar necessariamente a integralidade do que for demandado não parece ser, ao menos pelo que constatei da jurisprudência do STF e do que consta em documentos da própria OIT. Confira-se, nesse sentido, o que já decidiu o STF, no julgamento da PET 3388 ED/RR: "70. Por fim, conforme observado pelo Ministro Gilmar Mendes, a relevância da consulta às comunidades indígenas “não significa que as decisões dependam formalmente da aceitação das comunidades indígenas como requisito de validade” (fl. 799). Os índios devem ser ouvidos e seus interesses devem ser honesta e seriamente considerados. Disso não se extrai, porém, que a deliberação tomada, ao final, só possa valer se contar com a sua aquiescência . Em uma democracia, as divergências são normais e esperadas. Nenhum indivíduo ou grupo social tem o direito subjetivo de determinar sozinho a decisão do Estado. Não é esse tipo de prerrogativa que a Constituição atribuiu aos índios. 71. A mesma lógica se aplica em matéria ambiental, que também mereceu proteção diferenciada por parte do constituinte. Por isso mesmo, e com a devida vênia em relação à posição da embargante (fl. 16.165), não há um problema a priori no fato de que “as tradições e costumes indígenas” sejam considerados como “apenas mais um fator, a ser sopesado pela autoridade ambiental”. Em verdade, essa é uma circunstância inerente à unidade do sistema constitucional, que promove a tutela de um conjunto variado de interesses e direitos que, em diversas situações, podem entrar em rota de colisão. Ao não instituir uma hierarquia rígida ou estática entre tais elementos, a Constituição impõe a necessidade de que a concordância entre eles seja produzida em cada contexto específico, à luz de suas peculiaridades. 72. Assim, como responsável pela administração das áreas de preservação, o Instituto Chico Mendes não pode decidir apenas com base nos interesses dos indígenas, devendo levar em conta as exigências relacionadas à tutela do meio ambiente. Nesse cenário, é de fato possível – como afirma a embargante – que “o administrador da unidade de conservação, até pela sua posição institucional, ponha em primeiro plano a tutela ambiental, em detrimento do direito das comunidades indígenas”. Contudo, é igualmente possível que isso não ocorra, não cabendo a este Tribunal antecipar o erro, a negligência ou a má-fé. Em qualquer caso, os índios, suas comunidades e o próprio Ministério Público poderão recorrer ao Poder Judiciário sempre que reputarem inválida uma decisão do Instituto (ou de qualquer outra autoridade)." (Emb. Decl. na Petição 3.388/RR, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 23.10.2013) No mesmo sentido, são os comentários feitos no documento editado em 2019, pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, intitulado Excerpts from reports and comments of the ILO Supervisory Bodies - Applying the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), disponível no site da organização: Confira-se o que está dito nas fls. 48-49 do referido documento: "Concerning the nature of consultation, from the review of the preparatory work concerning Convention No. 169 and from the review of the wording of the two authoritative texts of the Convention, the Committee concludes that it was the intention of the drafters of the Convention that the obligation to consult under the Convention was intended to mean that: 1) consultations must be formal, full and exercised in good faith; 26 there must be a genuine dialogue between governments and indigenous and tribal peoples characterized by communication and understanding, mutual respect, good faith and the sincere wish to reach a common accord; 2) appropriate procedural mechanisms have to be put in place at the national level and they have to be in a form appropriate to the circumstances; 3) consultations have to be undertaken through indigenous and tribal peoples’ representative institutions as regards legislative and administrative measures; 4) consultations have to be undertaken with the objective of reaching agreement or consent to the proposed measures It is clear from the above that pro forma consultations or mere information would not meet the requirements of the Convention. At the same time, such consultations do not imply a right to veto, nor is the result of such consultations necessarily the reaching of agreement or consent." [3] A tradução livre deste trecho é a seguinte: "Quanto à natureza da consulta, da revisão dos trabalhos preparatórios relativos à Convenção nº 169 e da análise dos textos das duas versões autorizadas da Convenção, o Comitê conclui que os redatores da Convenção tinham a intenção de que a obrigação de consultar sob a Convenção significasse o seguinte: as consultas devem ser formais, completas e exercidas de boa fé; deve haver um diálogo genuíno entre os governos e os povos indígenas e tribais caracterizado pela comunicação e entendimento mútuos, respeito mútuo, boa fé e o sincero desejo de alcançar um acordo comum; mecanismos procedimentais apropriados devem ser estabelecidos no nível nacional e devem estar em uma forma adequada às circunstâncias; as consultas devem ser realizadas por meio das instituições representativas dos povos indígenas e tribais no que se refere a medidas legislativas e administrativas; as consultas devem ser realizadas com o objetivo de alcançar acordo ou consentimento quanto às medidas propostas. É claro a partir do exposto que consultas meramente formais ou simples fornecimento de informações não satisfariam os requisitos da Convenção. Ao mesmo tempo, tais consultas não implicam um direito de veto, nem o resultado dessas consultas necessariamente é o alcance de um acordo ou consentimento." É essencial, assim, deixar claro que a opção pelo empreendimento, ou não, é do Poder Público e a ele compete, respeitando os termos da Constituição e da legislação, licenciá-lo. Por fim, sobre o momento da consulta, no caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador, decidido em 27.12.2012, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi também referido que o “requisito de consulta prévia implica que essa consulta deva ser realizada antes de tomar-se a medida, ou executar o projeto suscetível de afetar as comunidades [...] e que as comunidades sejam envolvidas o quanto antes no processo”. III.e. Análise das alegações do agravo de instrumento Pois bem, apresentados estes esclarecimentos introdutórios, passa-se ao exame do agravo. Como dito, no recurso, é postulada a reforma da decisão agravada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". Ou seja, o que se deseja é que seja reconhecida como válida da consulta efetivada, bem como que seja definido que a área do projeto não é terra indígena, consequencia lógica para se afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional (art. 231, § 3º, CF). III.e.1. O Processo de Consulta no Caso Concreto O processo de consulta, no caso em questão, demandou anos para ser realizado. Pela análise dos autos, é possível perceber que o anúncio da descoberta das minas se deu 2010 e 2013 e o Estudo de Impacto Ambiental foi concluído em 2015 (id. 296953002), assim como a emissão da licença prévia pelo IPAAM, cuja validade é questionada na origem. Como a Ação Civil Pública nº 0019192-92.2016.4.01.3200 foi ajuizada em 2016, todo o processo de consulta foi acompanhado pelo Juízo. Antes de iniciar a fase de consulta, em 7.5.2018, foi determinada a suspensão de qualquer atividade de prospecção por parte da Potássio do Brasil Ltda., para que fosse iniciada a construção de um protocolo de consulta. O Juízo inclusive homologou a designação um antropólogo, o Dr. Bruno Walter Caporrino, para mediar, facilitar e presidir os trabalhos de construção do protocolo de consulta, tendo este sido remunerado pela Potássio do Brasil Ltda. Tanto a FUNAI, como o DNPM foram devidamente cientificados do procedimento definido. Confira-se o inteiro teor da decisão (id. 297015035): Ou seja, o presente caso apresenta uma particularidade em relação aos que normalmente são judicializados: toda a fase de consulta foi acompanhada pelo Juízo. É interessante verificar também o inteiro teor dos relatórios das oficinas realizadas nas aldeias, cuja elaboração coube ao Dr. Bruno Walter Caporrino. São trabalhos bastante extensos e ricos em em destacar o procedimento que estava sendo levado a efeito pelo perito. Por exemplo, o relatório constante do id. 297015043, protocolado nos autos em 2018, contém 169 páginas e é encaminhado por meio do ofício abaixo, com os seguintes termos: As seguintes aldeias foram visitadas: Ao todo, foram 19 atividades: Posteriormente, ainda houve a protocolização de relatórios complementares em 2019 (fls. 1255 - 1719 - id. 297031909). Após, houve uma Assembleia de Aprovação do Protocolo de Consulta e Consentimento Mura em 18.6.2019. A Lista de presença está à fl. 1.780-1.810 e a ata ás fls. 1.758-1779 - id. 297031909. Há juntada de DVDs com a audiência gravada e também de cópia impressa do protocolo (fls. 1.825-1.880 - id. 297047874). O procedimento foi plenamente aceito por todas as partes envolvidas, chegando o MPF, na petição de 11.9.2019 (fl. 1.906-1.909) a afirmar que se cuida de relevante momento para o Estado democrático de direito. Frise-se que as aldeias do Soares e Careiro receberam Oficinas, conforme acima relatado. Ficou também expresso que o princípio da vinculação ao aos termos do referido instrumento deveria reger a relação e que estava sendo inaugurado um interesse diálogo das fontes: Posteriormente, foi realizada audiência judicial na qual foi acordado que a Potássio do Brasil Ltda. entregaria até o dia 18.11.2019 a proposta do empreendimento oficialmente ao CIM e à OLIMCV. Confira-se a parte final da ata: Ato contínuo, em 18.11.2019, foi protocolada petição pela Potássio do Brasil Ltda. comunicando a entrega do material ao CIM e ao OLIMCV, as quais responderam confirmando o recebimento da documentação e dando o aceite no início do processo de consulta (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). O protocolo também foi feito perante a Justiça Federal, o MPF e o perito do juízo foi copiado nos emails. Em relação às características do empreendimento, foi informado o seguinte em documentos acostados aos autos: Após, com o início da pandemia da COVID-19, o processo sofreu atrasos e apenas foi retomado em 2021, depois da vacinação dos Mura. Foi apresentado orçamento da consulta, equivalente a R$ 1.258.687,90 (id. 637592027). Foi estabelecido um cronograma de reuniões com dos Povos Mura informado pelo CIM (id. 830734065), sendo que o plano era a conclusão até o final de maio de 2022: Após, foi realizada inspeção judicial em 29.3.2022 (Relatório - id. 1061672277) o que representou mais uma paralisação no processo. O ponto mais relevante consignado foi o seguinte: Em seguida, houve notícia de que o MPF protocolou a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200, mediante a qual pleiteia que seja concluída a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Ato contínuo, petição de 20.9.2022, o MPF relatou a existência de pressões e coações por parte da empresa sobre os povos indígenas de Autazes e região e a sobreposição da exploração minerária pretendida pela Potássio do Brasil Ltda. ao referido território tradicional indígena. Ademais, aduziu o MPF que as estruturas minerárias seriam construídas a aproximadamente dois quilômetros da área de moradia (casas da aldeia Soares), e dentro da área indígena reivindicada, território de uso tradicional do povo Mura. Nesse contexto, requer a suspensão da licença expedida quanto ao Projeto Potássio Amazonas/Autazes, bem como a suspensão do procedimento de consulta prévia até finalização do procedimento de demarcação do território (ACP 1015595-88.2022.4.01.3200), no qual haveria liminar concedida. Sobre esse pedido, a FUNAI se manifestou sobre a ausência de indícios de tradicionalidade (id. 1419622747): Após, em 16.2.2023, a FUNAI fez juntar aos autos documento intitulado Análise Cartográfica nº 138/2023, mediante a qual apresentou as seguintes conclusões (id. 1496199359): Veja-se, então, que se diz expressamente que há uma área de sobreposição, mas ao mesmo tempo afirma-se que há uma distância de 2,52 km da aldeia Soares da base de exploração. Foi também apontada uma área de influência considerada uma área de 10 km a partir da área total do “Projeto Potássio Amazonas – Autazes”, nos termos do Anexo I da Portaria Interministerial nº 60/2015 da FUNAI. O mapa trazido na inicial permite a compreensão da área: É curioso notar que a existência de indígenas e também de não indígenas na área do Lago do Soares foi identificada quando da demarcação da Terra Indígena Jauary, mas não entendeu-se que o local onde será instalado a base de exploração da Potássio do Brasil Ltda. não deveria ser abarcado no perímetro da respectiva terra. Confira-se a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): É importante perceber também que, segundo informações da FUNAI, o município de Autazes possui mais de 20 terras indígenas regularizadas ou em processo de demarcação. Ou seja, não é um município em relação ao qual já não se tenham sido feitas delimitações de áreas de tradicionalidade indígena. Além disso, é válido destacar que no Caso Povos Kaliña e Lokono VS. Suriname, decidido em 2015, ficou estabelecido que “para efeitos de delimitação, demarcação e titulação do território tradicional [...], a Corte estima que o direito à propriedade dos povos indígenas e tribais contempla garantias plenas sobre os territórios que tradicionalmente possuíram, ocuparam e utilizaram para exercer sua própria forma de vida, subsistência, tradições, cultura e desenvolvimento como povos”. No entanto a Corte assinalou que “sem prejuízo do exposto, existiriam outras áreas tradicionais complementares ou adicionais às que tenham tido acesso para suas atividades tradicionais ou de subsistência (que, caso seja conveniente, podem compartilhar outras finalidades), a respeito das quais se deve garantir, pelo menos, o acesso e uso, na medida em que seja cabível.” Ou seja, para a CIDH, nem toda área área que os indígenas utilizem para subsistência ou mesmo habitem configura necessariamente uma Terra Indígena. Chama a atenção o fato de que a própria inspeção judicial constatou a presença de populações ribeirinhas na região do Lago do Soares, as quais, ao que parece, estão lá também há muitos anos, sendo que existe uma convivência aparentemente harmoniosa: Na inicial da ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 é também reconhecida a existência de indígenas e ribeirinhos, tendo em vista que há aldeias e povoados na região: No caso acima a Corte também constatou que “efetivamente, dentro do território que os Povos Kaliña e Lokono alegam ser seu território tradicional, haveria, pelo menos 10 assentamentos maroons que estariam excluídos dessa queixa, a saber: 1) Albina; 2) Papatam; 3) Mankelekampu; 4) Mariakondre; 5) Eduardkondre; 6) Akoloikondre; 7) Bamboesi; 8) Koni; 9) Moengotapu; e 10) Adjoemakondre [...]. No entanto, a Corte não dispõe de informação suficiente que lhe permita esclarecer os argumentos relacionados a possíveis assentamentos maroons em: 1) Bilokondre; 2) Krontokondre; 3) Soke; 4) Pakirakondre; 5) Mopikondre; 6) Onikaikondre; 7) Manjabong; 8) Bonikondre ou Baajoebekampu; 9) Nengrekriki; 10) Solegakampu; e 11) Brunswijkkamp […]” E disse que, “sem prejuízo do exposto, sendo que é dever do Estado delimitar os territórios tradicionais, cabe a ele, mediante um processo consultivo e mediante as medidas necessárias de caráter administrativo e legais, conforme as normas internacionais na matéria, primeiramente delimitar os territórios que cabem aos Povos Kaliña e Lokono, em conformidade com o parágrafo 139 desta sentença, para assim proceder a sua demarcação e titulação, garantindo seu uso e gozo efetivo. Para isso, o Estado também deve respeitar os direitos que possam assistir aos povos tribais ou a seus membros na área. Para isso, o Estado deverá desenvolver, de comum acordo com as comunidades indígenas e maroons, regras de convivência pacíficas e harmoniosas no território em questão.” Por fim, o CIM, em 25.9.2023, protocolou petição comunicando que (i) aprovou o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta, bem como que (ii) aprovou pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil Ltda. faça a mineração. Eis a petição (id. 1829380152): Em anexo, foi apresentado o Relatório das Lideranças Mura de Autazes (id. 1829380154): Não houve juntada de documento de aprovação ou de rejeição do OLIMCV. Houve inclusive alteração do Protocolo de Consulta, excluindo a participação do OLIMCV, ou seja, dos Mura do município do Careiro da Várzea, em relação à deliberação da agravante. III.e.2. A Validade da Consulta Efetivada Cumpre examinar a validade da Consulta efetivada. Com efeito, foi devidamente reconhecido com ao CIM compete emitir manifestação de vontade sobre o Povo Mura de Autazes. Pela dicção do art. 6º da Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, “ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”. Não parecem existir argumentos que possam permitir que, ao menos em sede de cognição sumária, que a consulta realizada ao povo CIM não tenha sido efetuada com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. Como se depreendeu do histórico acima, houve um amplo debate com o Povo Mura de Autazes para entender o que significava o processo de consulta, compreender a relevância de examinar o projeto e também os direitos que terão frente a ele. O processo foi iniciado há quase 10 anos. Há notícias de oficinas, reuniões, audiências públicas. A aparência é que tenha sido um processo livre, eis que ainda houve acompanhamento judicial das etapas, algo que não é o usual. Seguiu-se, assim, o que havia determinado a FUNAI (fl. 1362 - id. 297018889): Não há notícia de que o CIM tenha alterado o posicionamento externado na petição acima. Este Relator recebeu as lideranças em seu Gabinete em Audiência e tudo foi reafirmado. Apesar de a consulta ter sido realizada após a emissão da licença prévia pelo IPAAM, ela foi feita antes de concretizado qualquer ato de instalação e exploração do empreendimento. Houve inclusive acordo judicial suspendendo as etapas, até que fosse concluída a Consulta. A licença prévia ainda continha como condicionante de que era necessária a apresentação do estudo de componente indígena à Funai. Confira-se (id. 296936996 - fl. 242): Não se pode, então, dizer que a consulta não obedeceu ao momento adequado. No caso concreto, não há realisticamente como ter existido uma consulta anterior à que foi realizada, uma vez que foi feita durante os estudos para ser decidir sobre a viabilidade ou não da obra. Ou seja, fase meramente preliminar, sem qualquer ato de execução, quando já identificados os riscos do empreendimento e quando ainda há um tempo "adequado para a discussão interna nas comunidades, para oferecer uma resposta adequada ao Estado". Além disso, os indígenas aparentemente tiveram amplo acesso à documentação do empreendimento, ao EIA/RIMA, ao Estudo de Componente Indígena e tiveram ampla chance de compreender o que está sendo proposto. Não se pode dizer que a realização de consulta por meio de audiências públicas não cumpre a obrigação de adequadamente consultar os povos. Os procedimentos apropriados exigidos pela Convenção são aqueles que os indígenas acharem apropriados. Se a audiência pública for assim considerada, não há porque concluir que não é adequado para o fim pretendido. Não há nada que imponha uma forma de consulta diversa, salvo a vontade dos indígenas. Por fim, chama a atenção de que o Protocolo de Consulta tenha sido alterado no curso do processo para separar o consentimento entre o CIM, o qual, como dito acima, inequivocamente representa os Mura que residem em Autazes, e a OLIMCV, entidade representativa que representa os Mura no município de Careiro da Várzea. Esta alteração, contudo, não tem o condão de retirar a validade da consulta efetivada. Isso, porque pela leitura dos autos, percebe-se que a própria Funai sempre se manifestou no sentido de que a população indígena potencialmente afetada era a dos Mura de Autazes. Confira-se o seguinte trecho, por exemplo (fl. 1.362 – id. 297018889), em que é dito que os indígenas que deveriam ser consultados são os da Terra Indígena Jauary e Paracuhuba, as quais, consoante a Análise Cartográfica nº 138/2023, são as que estão próximas do empreendimento: Além disso, o fato de que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, dissidência do CIM, não tenham se manifestado junto com o CIM não impede que eles expressamente se pronunciem sobre a consulta. A documentação dos autos comprova que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, então parte do CIM, receberam todos os documentos relativos ao empreendimento (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). A OLIMCV inclusive confirmou o recebimento do e-mail (id. 297047889 – p. 33): Existe a comprovação de que foram recebidas diversas unidades do protocolo de consulta, requerimento de despesas para realização de reuniões (id. 297018967): Confira-se, ainda, o seguinte documento (id. 637592035): É preciso dizer que a proteção dos povos e terras indígenas é permanente para o Estado Brasileiro. A mera circunstância de que a consulta foi realizada não satisfaz a obrigação permanente de assistência e proteção desses povos, ouvindo-os sempre de boa-fé e atendendo, quando possível, as demandas pleiteadas. O que se estabelece é um diálogo permanente e não momentâneo. Se novas dúvidas surgirem, se problemas antes não imaginados forem detectados, competirá ao Estado Brasileiro lidar com as questões e sanar esses problemas, de forma a dar ampla concretude aos direitos e garantias dos povos originários. Assim, caso a OLIMCV logre comprovar que a delimitação da Funai está de que os Mura de Careiro da Várzea deveriam também ser obrigatoriamente consultados, ainda que não haja notícias de que nenhuma aldeia será diretamente impactada pelo trajeto, tal diálogo tem totais condições de ainda ser estabelecido de maneira satisfatória, com a implantação de reparações necessárias, mesmo com o projeto em curso. Adicionalmente , também é de se considerar que o fato de os Mura da aldeia do Lago de Soares, situada em Autazes, terem ficado vencidos na alteração do protocolo de consulta e, posteriormente, terem decidido romper com a autoridade constituída, qual seja, o CIM, não invalida a alteração. No modelo deliberativo adotado pelos Mura de Autazes, não há exigência de unanimidade para a aprovação da alteração, a qual, é certo, inviabilizaria a conclusão do processo. Não é possível invalidar a alteração do protocolo de consulta somente porque os Mura do Lago de Soares, submetidos, incontroversamente, à data da deliberação, à autoridade do CIM, discordam da decisão. Chancelar a nulidade da alteração diante da discordância de uma parcela dos indígenas afetados representaria a inviabilização da construção de um protocolo de consulta e de qualquer deliberação, especialmente em relação a litígios complexos, vide o caso dos autos. Na obra Constitutional Strategies, o Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Berkeley, Robert Cooter, aponta as deficiências de um sistema baseado na regra da unanimidade: “O poder de barganha depende das consequências da falha na negociação. Se uma negociação é frustrada, cada parte deve fazer o seu melhor sem a cooperação dos demais. As partes que se beneficiam menos da cooperação terão o maior poder de barganha. Como uma parte pode ter êxito sem a cooperação das demais depende da regra da ação coletiva. Primeiramente, considere a regra da unanimidade. Negociações frustradas na regra da unanimidade paralisam as ações coletivas. Consequentemente, quando barganham sob a regra da unanimidade, as regiões e as coletividades com menor necessidade de cooperação podem demandar as melhores condições.[...] A força da negociação está nas mãos dos membros potenciais de uma coalizão majoritária. Quando se negocia sob uma regra de maioria, as regiões e as localidades dentro da coalizão interna podem demandar melhores condições de cooperação dos externos”. Por fim, é importante ter em mente que tanto os povos originários representados pela OLIMCV e pela Organização dos Mura do Lago do Soares tiveram amplo tempo e conhecimento do Projeto Autazes e podem ainda se pronunciar formalmente nos autos de origem sobre o que pensam a respeito do assunto. A circunstância de que houve uma ruptura do formato conjunto de todas as organizações de deliberação do Protocolo de Consulta em nada impede que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares emitam qualquer opinião sobre o Projeto nesses autos judiciais, tampouco que apresentem essa manifestação de vontade a qualquer órgão estatal. Há, ao meu sentir, um deslocamento do debate, como se a circunstância de a alteração do Protocolo represente a inviabilização de que essa emissão de vontade não possa mais ocorrer, o que não faz qualquer sentido. Em verdade, a ausência de manifestação formal sobre o tema da consulta para depois se alegar que a Consulta não ocorreu representa um veto em branco ao Projeto, pois se busca evitar a consolidação de uma etapa necessária deslocando o foco do debate. É importante ressaltar que a CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. Veja-se que essas organizações não alegam que não estão devidamente informadas, que não tiveram tempo para se reunir ou debater, que não receberam documentos, que não tiveram como debater o projeto com órgãos estatais ou com a empresa. O que se alega simplesmente é que o CIM não poderia ter aprovado isoladamente o projeto, sem que se diga se aprovam ou desaprovam e por quais razões. Veja o que disse a CIDH no caso Pueblo Indígena U’WA y sus miembros VS. Colombia: 191. Nos casos em que – tendo os Estados promovido a consulta de boa-fé e em conformidade com os padrões previamente estabelecidos (supra, parágrafos 168 a 178 e 190) – o povo indígena se recuse a participar, deverá ser considerado que o povo indígena está em desacordo com a atividade objeto da consulta e, portanto, a obrigação da consulta será considerada esgotada. Além disso, os Estados devem garantir que as medidas adotadas sejam proporcionais e respeitem o princípio da igualdade e da não discriminação, levando também em consideração a natureza da medida e seu impacto no território e na cultura. Do mesmo modo, os Estados devem garantir o acesso à justiça em relação às medidas que possam afetar diretamente um povo indígena ou tribal, a fim de verificar se a consulta prévia foi realizada em conformidade com as obrigações internacionais do Estado e com a jurisprudência desta Corte. Caso o povo indígena tenha se recusado a participar da consulta, a autoridade judicial deverá verificar se o Estado tomou medidas específicas e agiu de boa-fé para realizar a consulta prévia, livre e informada, e se, nesse contexto, a atividade restringe de forma desproporcional os direitos do povo indígena ou tribal. Tradução livre de: 191. En los casos en los que –habiendo los Estados impulsado la consulta de buena fe y conforme a los estándares previamente señalados (supra, párrs. 168 a 178 y 190)— el pueblo indígena se niegue a participar, deberá considerarse que el pueblo indígena está en desacuerdo con la actividad objeto de la consulta, y por lo tanto la obligación de la consulta se tendrá por agotada271. Además, los Estados deben garantizar que las medidas adoptadas sean proporcionales y respeten el principio de igualdad y no discriminación, tomando además en consideración la naturaleza de la medida y su impacto en el territorio y la cultura272. Asimismo, los Estados deben garantizar el acceso a la justicia frente a las medidas que puedan afectar directamente a un pueblo indígena o tribal, a fin de verificarse si la consulta previa fue realizada de conformidad con las obligaciones internacionales del Estado y la jurisprudencia de esta Corte. En caso de que el pueblo se haya negado a participar en la consulta, la autoridad judicial deberá verificar si el Estado tomó medidas específicas y de buena fe a fin de realizar la consulta previa, libre e informada, y si en ese contexto la actividad limita de forma desproporcionada los derechos del pueblo indígena o tribal. Fonte: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_530_esp.pdf Sendo assim, deve-se considerar que a etapa de consulta foi adequadamente cumprida e que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares, por não emitirem pronunciamento expresso sobre os termos da consulta, apesar de cientes dessa prerrogativa – uma vez que participaram da elaboração do protocolo de consulta –, bem como dos termos do projeto, uma vez que receberam da Potássio o e-mail contendo todas as informações -, simplesmente se recusaram a participar. Por tal razão, os órgãos estatais devem considerar que recusaram o projeto, sem que isso implique poder de veto. Frise-se que a ausência da manifestação dessas associações não exime o Estado de proteger legitimamente os indígenas que habitam nas aldeias que representam. Como disse a União no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000, “todos os impactos ambientais e socioculturais do empreendimento sobre o povo mura do Lago de Soares e da Vila de Urucurituba estão sendo devidamente tratados no licenciamento ambiental em curso. Durante o licenciamento, foi elaborado estudo do Componente Indígena, indicando as consequências sociais e ambientais do empreendimento, bem como apresentados formas de mitigação/compensação” (id. 274290022 – fl. 39). Ante esse quadro, ao menos em juízo preliminar, não há razões para concluir que o Estado Brasileiro não cumpriu os seus compromissos internacionais de respeito aos direitos humanos indígenas em relação ao projeto de aprovação da licença prévia do empreendimento em questão, uma vez que procedeu adequadamente quanto à consulta destes povos. III.e.3. A Competência para Licenciar o Empreendimento A decisão agravada ainda consignou ser o IBAMA o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto. Creio estar a compreensão equivocada e que o correto entendimento foi abordado de forma minuciosa pela União quando da interposição do Agravo de Instrumento n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que será julgado na mesma oportunidade deste recurso. Coaduno com a fundamentação exposta pela União, pelo que integro-a às razões de decidir deste agravo. A Lei Complementar 140, de 8 de dezembro de 2011, regulamenta a competência dos entes federativos em questões ambientais, estabelecendo diretrizes para cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Alinhada à Constituição Federal, a norma aborda ações administrativas conjuntas relacionadas à proteção do meio ambiente, combate à poluição e preservação de recursos naturais, como florestas, fauna e flora. Essa norma promoveu uma divisão clara de competências, reduzindo conflitos especialmente no âmbito do licenciamento ambiental, que antes era regulado majoritariamente pela Resolução 237 do CONAMA. A lei determina que apenas um órgão será responsável pela aprovação, fiscalização e eventual sanção, assegurando celeridade, transparência e segurança jurídica no processo de licenciamento. A lei também prevê instrumentos de cooperação, como consórcios públicos, convênios e delegações de competências, desde que o ente delegado disponha de estrutura técnica e conselho ambiental adequados. A simplificação do licenciamento ambiental permite que empreendimentos poluidores ou potencialmente degradantes sejam licenciados pelo órgão competente de qualquer nível federativo, inclusive municipal, promovendo eficiência administrativa. Confira-se os dispositivos da norma que tratam sobre a competência de cada ente federativo, sobretudo com relação ao licenciamento ambiental: Art. 7º São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: a) localizados ou desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; b) localizados ou desenvolvidos no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva; c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; d) localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pela União, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados; f) de caráter militar, excetuando-se do licenciamento ambiental, nos termos de ato do Poder Executivo, aqueles previstos no preparo e emprego das Forças Armadas, conforme disposto na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999; g) destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen); ou h) que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento; -.-.- Art. 8° São ações administrativas dos Estados: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7° e 9°; XV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pelo Estado, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); -.-.- Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade; ou b) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); Dito isso, peço licença para transcrever a argumentação da União nos autos do AI n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que adoto como razões de decidir: "[p]ercebe-se que a LC nº 140/2011 trouxe diferentes critérios definidores de competência para cada ente (União – localização e tipo de atividade; Município – alcance do impacto ambiental; Estado – residual). Cada critério não se confunde com os demais e não tem aplicação a outros entes federativos. Da leitura do art. 8º, XIV depreende-se que aquilo que não estiver expressamente taxado como sendo competência da União (art. 7º) ou dos Municípios (art. 9º) é competência dos Estados-membros (caráter residual). Por isso, nada mais natural do que ler as competências contidas na LC nº 140 de forma restritiva ou literal em relação a União e Municípios. Como destacou o TRF da 1ª Região, ao tratar da interpretação restritiva em caso envolvendo competência para licenciamento ambiental, assim como na Constituição, “o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal.” (TRF da 1a Região, 5a T., v.u., AC 0000267- 95.2005.4.01.3600, rel. Des. João Batista Moreira, j. em 17/08/2011, eDJF1 26/08/2011, p. 153.) Dessa forma, não cabem considerações expansivas da competência da União, devendo o intérprete trabalhar com o texto dado pela LC 140, não podendo usar argumentos não previstos expressamente na lei. Na perspectiva da LC n. 140/2011, a competência para licenciamento será federal apenas quando estiver configurada uma das hipóteses previstas no art. 7º, XIV, que estabelece apenas critério de localização e de tipo de atividade ou no caso de empreendimentos que atendam a tipologia prevista na alínea "h" (atualmente definida no Decreto nº 8.437, de 22 de abril de 2015). Percebe-se, portanto, que para que haja competência federal para licenciamento prevista no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140/2011 (Terra Indígena), deve-se atender ao critério da localização do empreendimento – não tendo aplicação o critério do alcance dos impactos: Art. 7° São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: (...) c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; Quando o legislador quis adotar o critério do âmbito do impacto ambiental da atividade ou empreendimento, o fez de forma explícita: Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade Percebe-se, claramente, que o legislador adotou o critério do alcance do impacto ambiental no art. 9º, XIV, “a” da LC nº 140 como definidor apenas da competência para licenciamento dos Municípios. Já no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140 constata-se que não houve menção alguma ao âmbito de impacto do empreendimento, mas apenas à localização e ao desenvolvimento da atividade: “localizados ou desenvolvidos em terras indígenas”. Se quisesse adotar o critério do impacto ambiental para competência federal, o legislador teria definido que são ações administrativas da União promover o licenciamento de empreendimentos e atividades que causem ou possam causar impacto ambiental em Terra Indígena. Não o fez. Optou pelo critério da localização. Houve, portanto, silêncio eloquente do legislador, que, em relação ao licenciamento de atividades em Terra Indígena optou por afastar o critério do alcance do impacto e adotar exclusivamente o critério da localização do empreendimento. Ou seja, a competência somente será fixada como federal quando o empreendimento estiver localizado dentro da Terra Indígena, não se aplicando o critério de impacto ambiental para fixação da competência federal. O empreendimento tratado na demanda está localizado e será desenvolvido completamente fora de Terra Indígena (demarcada e em demarcação). Em relação à INSTRUÇÃO NORMATIVA CONJUNTA Nº 1, de 22 de fevereiro de 2021 da Funai, mencionada no despacho a que a Juíza faz referência na decisão agravada, destaca-se que o ato dispõe sobre os procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor seja organização indígena. O que reforça que a competência federal se dá no caso de empreendimento localizado ou desenvolvido no interior de terra indígena – e não de atividades que possam afetar terra indígena. Ademais, as áreas de influência direta e indireta dos impactos ambientais do empreendimento devem vir definidas no EIA, que é elaborado por equipe multidisciplinar habilitada, responsável tecnicamente pelos estudos apresentados. No caso do empreendimento em tela, verifica-se que o EIA apresentado definiu a área de influência dos impactos ambientais do empreendimento em dois quilômetros quadrados (2 km²) no Projeto Autazes. O empreendimento, como demonstrado anteriormente, encontra-se a 8 km dos limites de terras indígenas demarcadas e em demarcação. Quanto à Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, imperioso tecermos alguns comentários. Inicialmente, importante destacar que a referida portaria estabelece procedimentos administrativos para oitiva da FUNAI, da Fundação Cultural Palmares, do IPHAN e do Ministério da Saúde em licenciamentos ambientais que já são de competência do Ibama. A portaria não estabelece, portanto, critério para definição de competência, mas apenas regras e procedimentos administrativos para a oitiva dos mencionados entes e órgãos. Assim, no curso de licenciamento que já está ocorrendo perante o Ibama: (a) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra quilombola, deverá haver manifestação da Fundação Cultural Palmares, (b) se constatada a ocorrência de bens culturais acautelados em âmbito federal na área de influência da atividade, deverá haver manifestação do IPHAN, (c) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra indígena, deverá haver manifestação da FUNAI e (d) se o empreendimento localizar-se em município pertencente à área de risco ou endêmica para malária, deverá haver oitiva do Ministério da Saúde. Percebe-se claramente que a portaria não fixa critérios de definição de competência para licenciamento pelo Ibama. Não se cogita competência do Ibama para licenciar empreendimento pelo simples fato de impactar em terra quilombola, afetar bens culturais acautelados no âmbito federal ou estar localizado em área de risco de malária. Assim, a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Do mesmo modo, a presunção de intervenção em terra quilombola, quando o empreendimento estiver no raio de 10 km (art. 3º, § 2º, II c/c Anexo I), obviamente, também não gera competência automática do Ibama, gerando apenas a necessidade de oitiva da Fundação Cultural Palmares. (...) A Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, portanto, não prevê competência da União (IBAMA) para licenciar quando se presume a intervenção em terra indígena (ou em terra quilombola ou em área de risco de malária ou em área com bens culturais acautelados) pelo fato do empreendimento estar localizado no raio de 10 km. A referida norma infralegal não atrai a competência do IBAMA por ausência de previsão no art. 7º da L.C 140/11, gerando apenas a exigência de oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), e não usurpação da competência para licenciar. Nesse ponto, importante diferenciar o critério para definição de competência para licenciamento, qual seja, a localização dentro de Terra Indígena, que deve ser interpretado restritivamente (art. 7º, XIV, “c” e art. 8º XIV), do critério para realização de Estudo de Componente Indígena ou de Consulta Prévia a povos indígenas e comunidades tradicionais, que é qualquer medida suscetível de afetá-los, o que admite uma interpretação mais elástica e, inclusive, foi objeto de concordância entre as partes para a sua realização. Percebe-se, então, que a hipótese normativa do art. 7º, XIV, inciso “c” da Lei Complementar n. 140 se aplica exclusivamente aos projetos localizados no interior de terras indígenas. No caso de empreendimento fora de terra indígena, a competência será do órgão ambiental estadual, mesmo que haja necessidade de ECI, de Consulta Prévia e haja reflexo na TI". Entendo correta assim a conclusão a que chegou a União, a partir da leitura da legislação, de que a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Afora esse aspecto, existe precedente do STF, com eficácia vinculante, que expressamente abordou a questão e reconheceu que é possível que um órgão ambiental estadual licencie um empreendimento em um caso em que efeitos indiretos para comunidades indígenas possam ocorrer. Foi justamente a ADI 4.757, que analisou a constitucionalidade da Lei Complementar nº 140/2011. Confira-se a ementa: CONSTITUCIONAL. AMBIENTAL. FEDERALISMO COOPERATIVO. COMPETÊNCIA COMUM EM MATÉRIA AMBIENTAL. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 23 CF. LEI COMPLEMENTAR Nº 140/2011. FEDERALISMO ECOLÓGICO. DESENHO INSTITUCIONAL DA REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS FUNDADO NA COOPERAÇÃO. RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE. DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE. DEVERES FUNDAMENTAIS DE PROTEÇÃO COMO PARÂMETRO NORMATIVO DE CONTROLE DE VALIDADE (ARTS. 23, PARÁGRAFO ÚNICO, 225, CAPUT, § 1º). RACIONALIDADE NO QUADRO ORGANIZATIVO DAS COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS. EFICIÊNCIA E COORDENAÇÃO DO AGIR ADMINISTRATIVO. VALORES CONSTITUCIONAIS. PODER DE POLÍCIA AMBIENTAL DE LICENCIAMENTO E ATIVIDADES FISCALIZATÓRIAS. EXISTÊNCIA E CAPACIDADE INSTITUCIONAL DOS ÓRGÃOS AMBIENTAIS COMO REQUISITO DA REGRA GERAL DE COMPETÊNCIA INSTITUÍDA NA LEI COMPLEMENTAR. ATUAÇÃO SUPLETIVA E SUBSIDIÁRIA. TUTELA EFETIVA E ADEQUADA DO MEIO AMBIENTE. LIMITES DA COGNIÇÃO JURISDICIONAL NO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO FEDERAL ATRIBUÍDA AO § 4º DO ART. 14 E AO 3º DO ART. 17. PROCEDÊNCIA PARCIAL. 1. A Lei Complementar nº 140/2011 disciplina a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora, em resposta ao dever de legislar prescrito no art. 23, III, VI e VI, da Constituição Federal. No marco da Política Nacional do Meio Ambiente, instituída pela Lei nº 6.938/1981, e da forma federalista de organização do Estado constitucional e ecológico, a Lei Complementar nº 140/2011 foi a responsável pelo desenho institucional cooperativo de atribuição das competências executivas ambientais aos entes federados. 2. Legitimidade ativa da Associação Nacional dos Servidores de Carreira de Especialista em Meio Ambiente e Pecma (ASIBAMA). Inegável a representatividade nacional da associação requerente, assim como a observância do requisito da pertinência temática para discutir questões versando alteração estrutural do sistema normativo de proteção do meio ambiente, conforme descrito no art. 3º, VI, do Estatuto Social juntado ao processo, quando do ajuizamento da presente ação. Reconhecimento da legitimidade da associação autora na ADI 4.029 (caso Instituto Chico Mendes). 3. O Supremo Tribunal Federal, acerca do alcance normativo do parágrafo único do art. 65 do texto constitucional, definiu interpretação jurídica no sentido de que o retorno à Casa iniciadora apenas deve ocorrer quando a Casa revisora, em seu processo deliberativo, aprovar modificação substancial do conteúdo do projeto de lei. Afastado, no caso, o vício de inconstitucionalidade formal do § 3º do art. 17. 4. Da interpretação do art. 225 da Constituição Federal, fundamento normativo do Estado de Direito e governança ambiental, infere-se estrutura jurídica complexa decomposta em duas direções normativas. A primeira voltada ao reconhecimento do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, em uma perspectiva intergeracional. A segunda relacionada aos deveres de proteção e responsabilidades atribuídos aos poderes constituídos, aos atores públicos e à sociedade civil em conjunto. A preservação da ordem constitucional vigente de proteção do meio ambiente, densificada nos seus deveres fundamentais de proteção, impõe-se, pois, como limite substantivo ao agir legislativo e administrativo. O que significa dizer que tanto a Política Nacional do Meio Ambiente, em todas as suas dimensões, quanto o sistema organizacional e administrativo responsável pela sua implementação, a exemplo do Sistema Nacional do Meio Ambiente, dos Conselhos Nacionais, Estaduais e Municipais, devem traduzir os vetores normativos do constitucionalismo ecológico e do federalismo cooperativo. 5. A Lei Complementar nº 140/2011, em face da intricada teia normativa ambiental, aí incluídos os correlatos deveres fundamentais de tutela, logrou equacionar o sistema descentralizado de competências administrativas em matéria ambiental com os vetores da uniformidade decisória e da racionalidade, valendo-se para tanto da cooperação como superestrutura do diálogo interfederativo. Cumpre assinalar que referida legislação não trata sobre os deveres de tutela ambiental de forma genérica e ampla, como disciplina o art. 225, §1º, IV, tampouco regulamenta o agir legislativo, marcado pela repartição concorrente de competências, inclusive no tocante à normatização do licenciamento em si. 6. O modelo federativo ecológico em matéria de competência comum material delineado pela Lei Complementar nº 140/2011 revela quadro normativo altamente especializado e complexo, na medida em que se relaciona com teia institucional multipolar, como o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), e com outras legislações ambientais, como a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) e a Lei de Infrações penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente (Lei nº 9.605/1998). O diálogo das fontes revela-se nesse quadro como principal método interpretativo. 7. Na repartição da competência comum ( 23, III, VI e VII CF), não cabe ao legislador formular disciplina normativa que exclua o exercício administrativo de qualquer dos entes federados, mas sim que organize a cooperação federativa, assegurando a racionalidade e a efetividade nos encargos constitucionais de proteção dos valores e direitos fundamentais. Ademais, os arranjos institucionais derivados do federalismo cooperativo facilita a realização dos valores caros ao projeto constitucional brasileiro, como a democracia participativa, a proteção dos direitos fundamentais e a desconcentração vertical de poderes, como fórmula responsiva aos controles social e institucional. Precedentes. 8. O nível de ação do agir político-administrativo nos domínios das competências partilhadas, próprio do modelo do federalismo cooperativo, deve ser medido pelo princípio da subsidiariedade. Ou seja, na conformação dos arranjos cooperativos, a ação do ente social ou político maior no menor, justifica-se quando comprovada a incapacidade institucional desse e demonstrada a eficácia protetiva daquele. Todavia, a subsidiariedade apenas apresentará resultados satisfatórios caso haja forte coesão entre as ações dos entes federados. Coesão que é exigida tanto na dimensão da alocação das competências quanto na dimensão do controle e fiscalização das capacidades institucionais dos órgãos responsáveis pela política pública. 9. A Lei Complementar nº 140/2011 tal como desenhada estabelece fórmulas capazes de assegurar a permanente cooperação entre os órgãos administrativos ambientais, a partir da articulação entre as dimensões estáticas e dinâmicas das competências comuns atribuídas aos entes federados. Desse modo, respeitada a moldura constitucional quanto às bases do pacto federativo em competência comum administrativa e quanto aos deveres de proteção adequada e suficiente do meio ambiente, salvo as prescrições dos arts. 14, § 4º, e 17, § 3º, que não passam no teste de validade constitucional. 10. No § 4º do art. 14, o legislador foi insuficiente em sua regulamentação frente aos deveres de tutela, uma vez que não disciplinou qualquer consequência para a hipótese da omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental. Até mesmo porque para a hipótese de omissão do agir administrativo no processo de licenciamento, o legislador ofereceu, como afirmado acima, resposta adequada consistente na atuação supletiva de outro ente federado, prevista no art. 15. Desse modo, mesmo resultado normativo deve incidir para a omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental, disciplinado no referido § 4º do art. 14. 11. Um dos princípios fundamentais do funcionamento do sistema legal de tutela do meio ambiente é o da atuação supletiva do órgão federal, seja em matéria de licenciamento seja em matéria de controle e fiscalização das atividades ou empreendimentos potencialmente poluidores ou degradantes do meio ambiente. No exercício da cooperação administrativa, portanto, cabe atuação suplementar – ainda que não conflitiva – da União com a dos órgãos estadual e municipal. As potenciais omissões e falhas no exercício da atividade fiscalizatória do poder de polícia ambiental por parte dos órgãos que integram o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) não são irrelevantes e devem ser levadas em consideração para constituição da regra de competência fiscalizatória. Diante das características concretas que qualificam a maioria dos danos e ilícitos ambientais de impactos significativos, mostra-se irrazoável e insuficiente regra que estabeleça competência estática do órgão licenciador para a lavratura final do auto de infração. O critério da prevalência de auto de infração do órgão licenciador prescrito no § 3º do art. 17 não oferece resposta aos deveres fundamentais de proteção, nas situações de omissão ou falha da atuação daquele órgão na atividade fiscalizatória e sancionatória, por insuficiência ou inadequação da medida adotada para prevenir ou reparar situação de ilícito ou dano ambiental. 12. O juízo de constitucionalidade não autoriza afirmação no sentido de que a escolha legislativa é a melhor, por apresentar os melhores resultados em termos de gestão, eficiência e efetividade ambiental, mas que está nos limites da moldura constitucional da conformação decisória. Daí porque se exige dos poderes com funções precípuas legislativas e normativas o permanente ajuste da legislação às particularidades e aos conflitos sociais. 13. A título de obter dictum faço apelo ao legislador para a implementação de estudo regulatório retrospectivo acerca da Lei Complementar nº 140/2011, em diálogo com todos os órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente, como método de vigilância legislativa e posterior avaliação para possíveis rearranjos institucionais. Sempre direcionado ao compromisso com a normatividade constitucional ambiental e federativa. Ademais, faço também o apelo ao legislador para o adimplemento constitucional de legislar sobre a proteção e uso da Floresta Amazônia (art. 225, § 4º), região que carece de efetiva e especial regulamentação, em particular das atividades fiscalizadoras, frente às características dos crimes e ilícitos ambientais na região da Amazônia Legal. 14. Improcedência dos pedidos de declaração de inconstitucionalidade dos arts. 4º, V e VI, 7º, XIII, XIV, “h”, XV e parágrafo único, 8º, XIII e XIV, 9º, XIII e XIV, 14 § 3º, 15, 17, caput e §§ 2º, 20 e 21, Lei Complementar nº 140/2011 e, por arrastamento, da integralidade da legislação. 15. Procedência parcial da ação direta para conferir interpretação conforme à Constituição Federal: (i) ao § 4º do art. 14 da Lei Complementar nº 140/2011 para estabelecer que a omissão ou mora administrativa imotivada e desproporcional na manifestação definitiva sobre os pedidos de renovação de licenças ambientais instaura a competência supletiva dos demais entes federados nas ações administrativas de licenciamento e na autorização ambiental, como previsto no art. 15 e (ii) ao § 3º do art. 17 da Lei Complementar nº 140/2011, esclarecendo que a prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ou autorização ambiental não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, desde que comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória. (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023) Importante destacar que também esta Corte já decidiu no sentido de que a competência será do órgão ambiental estadual nos casos em que o empreendimento está localizado fora de terra indígena. Confira-se: DIREITO ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. USINA HIDRELÉTRICA. LICENCIAMENTO. COMPETÊNCIA, EM REGRA, DE ENTIDADE ESTADUAL. CONSTRUÇÃO FORA DE TERRA INDÍGENA E IMPACTOS REGIONAIS INDIRETOS. COMPETÊNCIA FEDERAL TAXATIVAMENTE PREVISTA EM LEI E EM RESOLUÇÃO DO IBAMA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE JUSTIFIQUEM COMPETÊNCIA DA AUTARQUIA FEDERAL. SENTENÇA QUE ACOLHE ORIENTAÇÃO EM SENTIDO OPOSTO. APELAÇÃO. RECEBIMENTO SÓ NO EFEITO DEVOLUTIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM QUE SE PRETENDE TAMBÉM EFEITO SUSPENSIVO. PROVIMENTO. (...) 3. Emerge dos autos que a PCH Paranatinga II não está projetada em rio da União (o que, aliás, não seria determinante de competência do IBAMA para o licenciamento) e nem em terras indígenas, apenas encontrando-se a relativa distância de terras indígenas ("33,81 km da Terra dos Parabubure, 62,52 km da Marechal Rondon e 94,12 km do Parque Nacional do Xingu"). Também emerge claro que o impacto ambiental em outro Estado é indireto. A pouca potencialidade para atingir gravemente, mesmo de forma indireta, terras indígenas, uma região inteira ou outro Estado-membro pode ser deduzida do tamanho do lago (336,8 ha), área à qual foram reduzidos os 1.290 ha inicialmente previstos, questão esta não apreciada na sentença. 4. Algum impacto a construção da usina trará à bacia do Rio Xingu e a terras indígenas, mas esses impactos são indiretos, não afastando a competência da entidade estadual para o licenciamento. (...) justifica-se a competência do IBAMA quando o empreendimento esteja sendo desenvolvido em terras indígenas, não o que possa refletir sobre terras indígenas. O próprio juiz diz que há "prova irrefutável de que o empreendimento questionado nesta lide trará conseqüências ambientais e sociais para os povos e terras indígenas que lhe são próximos". (...) 6. Na Constituição as competências materiais da União vêm expressas (enumeradas), ficando para os Estados-membros e Distrito Federal as competências remanescentes, significando dizer que em regra (por exclusão das competências da União, taxativamente previstas) as competências são dos Estados-membros. Assim na Constituição, o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal. (...) 8. Provimento ao agravo de instrumento, com atribuição de efeito suspensivo à apelação. (TRF da 1ª Região. Processo Numeração Única: 0020981-75.2006.4.01.0000. AG 2006.01.00.020856-8 / MT; AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA. Órgão: QUINTA TURMA. Publicação: 09/11/2006 DJ P. 65. Data Decisão: 20/09/2006) Com efeito, vale destacar trechos relevantes do referido julgado: "(...) Assim, conforme se extrai da legislação supracitada, não seria o caso de competência do IBAMA para conduzir o licenciamento. Isso porque as atividades do empreendimento, embora estejam localizadas a relativa proximidade das comunidades indígenas mencionadas pelo Ministério Público Federal, não se situam em terras indígenas. (...) o empreendimento não está inserido em terras indígenas, estando dispensada a atuação do IBAMA com fundamento no disposto no inciso I do artigo 4º acima transcrito. (...) Portanto, a Lei Complementar nº 140/2011 veio reafirmar as regras de distribuição de competências trazidas pela Resolução nº 237/97 de forma que resta afastada a competência do IBAMA para licenciamento das atividades". Frise-se que não há qualquer alegação de insuficiência ou incapacidade técnica do órgão ambiental estadual do Amazonas para licenciar o empreendimento, o que justifica a manutenção da competência. Ao Ibama, no entanto, ainda que não tenha a competência para licenciar, remanesce um dever de vigilância, podendo impor condicionantes adicionais que julgue adequadas. Confira-se trecho do voto da Ministra Rosa Weber (fl. 85): Assim, considerando o empreendimento objeto da lide se encontra a cerca de 8 quilômetros dos limites de terras indígenas demarcadas, a competência para processar o licenciamento não é do ente federal. Nesse sentido, deve prevalecer o argumento do IBAMA no sentido de que "não compete ao IBAMA o licenciamento ambiental do projeto de mineração Potássio do Brasil por não se desenvolver ou estar localizado em terra indígena, regra prevista no artigo 7º, inciso XIV, alínea c, da Complementar n. 140/2011 como atribuição do ente federal, razão pela qual merece reforma a decisão atacada para definir a atribuição legal do IPAAM para conduzir o licenciamento ambiental em questão". Por fim, não há alegação de que alguma condicionante específica deveria ter sido exigida pelo IPAAM e não foi, o que poderia demandar a competência supletiva do IBAMA. Aparentemente, as condicionantes foram adequadas, consoante se extrai da leitura da Licença Prévia n. 54/15: Confira-se, expressamente, a existência das condicionantes indígenas: Vale ressaltar que o caso em questão em nada se assemelha com o julgado do STF no RE 1.379.751, caso do licenciamento da Usina de Belo Monte, uma vez que lá foi discutida a ausência de consulta aos povos indígenas afetados antes da edição do Decreto Legislativo 778, de 13 de julho de 2005, o qual autorizou o Poder Executivo a implantar o Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte, localizado em trecho do Rio Xingu, no Estado do Pará, antes da necessária oitiva às comunidades afetadas. Aqui houve a oitiva e foi realizada no momento adequado, como se expôs acima. Afora esse aspecto, no caso acima, não houve discussão sobre competência para licenciamento, uma vez que este coube ao IBAMA e não ao órgão ambiental do Pará. Tampouco existe similaridade com o que decidido pelo STJ no AgInt no REsp 1.390.476/PR, citado pelo voto divergente, em que expressamente se assentou que o licenciamento de terminal portuário seria do IBAMA e não do órgão ambiental por conta de diversos fatores, como a circunstância de que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva, nos termos do art. 7º, XIV, ‘a’, da LC 140/2011. Essa situação fática não está presente neste caso. Confira-se: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA. IBAMA. ATIVIDADE DE TERMINAL PORTUÁRIO QUE PODE CAUSAR SIGNIFICATIVO IMPACTO AMBIENTAL. CONTROVÉRSIA RESOLVIDA, PELO TRIBUNAL DE ORIGEM, À LUZ DAS PROVAS DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO, NA VIA ESPECIAL. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara Recurso Especial interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC/73. II. Na origem, "o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública (...) em face do Instituto Ambiental do Paraná e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, requerendo a declaração da competência do órgão ambiental federal - IBAMA, para que assuma a presidência do procedimento do licenciamento ambiental até então conduzido pelo órgão ambiental estadual (IAP), em virtude de manifesta incompetência deste órgão". O Tribunal de origem reformou a sentença, que havia reconhecido a competência do órgão estadual para o licenciamento ambiental. III. O entendimento firmado, à luz das provas dos autos, pelo Tribunal a quo - no sentido de que, "considerando que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva; que o empreendimento, por situar-se em área contígua a terras indígenas, trará impactos a essa comunidade; que serão afetados bens que apresentam relevância histórica e cultural e, por fim, que há potencial de dano ambiental de caráter regional, conclui-se que a competência para o licenciamento ambiental é do IBAMA, razão pela qual deve ser reformada a sentença que julgou improcedente a ação" - não pode ser revisto, pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial, sob pena de ofensa ao comando inscrito na Súmula 7 desta Corte. Precedentes do STJ. IV. Agravo interno improvido. (AgInt no REsp n. 1.390.476/PR, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 29/4/2020, DJe de 5/5/2020.) IV. A Reivindicação da Terra Indígena Soares/Urucurituba Como dito, o MPF propôs a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 na qual alega que omissão estatal na regularização fundiária de Terra Indígena Soares/Urucurituba, mesmo diante de robustas provas documentais e antropológicas que confirmariam a ocupação tradicional. A área encontra-se sob forte pressão devido à exploração de silvinita pela empresa Potássio do Brasil Ltda., que, segundo relatórios técnicos, ameaça o equilíbrio ambiental e o modo de vida das comunidades indígenas. O pedido se baseia na violação de direitos fundamentais dos povos indígenas e no risco iminente de danos irreversíveis ao meio ambiente e à preservação cultural. A FUNAI, apesar de reiterados ofícios e manifestações do MPF, não deu andamento ao processo demarcatório, acarretando prejuízos irreparáveis às comunidades tradicionais. O MPF requereu a suspensão deste processo para fins de aguardar o posicionamento da Diretoria de Proteção Territorial (DPT) Funai sobre o tema relativo a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Além disso, o MPF reiterou, de todo modo, o pedido anteriormente feito sobre a necessidade de suspensão de todo processo judicial, e consequentemente da consulta nos moldes da Convenção 169 da OIT, enquanto a questão prejudicial da demarcação da terra indígena Soares/Urucurituba não for definida pelo juízo. Com todas as vênias, entendo que essa pretensão não merece prosperar. A uma, pois já foi longamente exposto que, historicamente, a posição da FUNAI foi contrária à pretensão de demarcação daquela área (1419622747): Foi ainda devidamente assinalado que aquela área já havia sido estudada quando da delimitação dos limites da Terra Indígena Jauary, bem como que a área, apesar de conter alguns indígenas, também possui população ribeirinhas, o que pode inclusive levar a se concluir não ser Terra Tradicional. Confira-se novamente a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): A União também aduziu a inexistência de fumus boni iuris na petição de agravo protocolada no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000 (id. 274290019): Como aqui se está a examinar o feito em sede de cognição sumária, frente aos prejuízos que o atraso do projeto pode gerar para os objetivos estatais legítimos, é de se concluir que não se faz concretizada aparência legítima de direito a ponto de legitimar a suspensão. Se não se está diante de Terra Indígena demarcada, inclusive sequer limitada, estando o projeto em seu estágio inicial, não se pode presumir que seja Terra Indígena e, portanto, que haja necessidade de autorização do Congresso Nacional para o prosseguimento do empreendimento. Caso seja definido que se trata Terra Indígena, creio que será necessária a edição de autorização do Congresso Nacional, a qual deverá disciplinar a validade dos atos concretos praticados enquanto a demarcação ainda não havia sido concluída, consideradas, sobretudo, as peculiaridades do empreendimento expostas nos autos tais quais confirmadas no Estudo de Componente Indígena: Observe-se que no caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) vs. Argentina, de 2020, a CIDH assentou que “embora a Convenção não possa ser interpretada de modo a impedir que o Estado realize, por si ou por meio de terceiros, projetos e obras sobre o território, seu impacto não pode, em nenhum caso, privar os membros dos povos indígenas e tribais da capacidade de garantir sua própria sobrevivência.” Os dados acima sobre as características do projeto afastam, ao menos em juízo cautelar, qualquer receio de que possa haver impacto na garantia dos Mura e Ribeirinhos do Lago do Soares de prosseguir com o estilo de vida que hoje levam, tampouco garantir a sua subsistência. Não há nenhum indício de que exista a preocupação exposta pelo Ministro Alexandre de Moraes no sentido de que as terras indígenas próximas ao empreendimento serão tornadas “inóspitas, direta ou indiretamente, ou prejudica[rão] drasticamente a cultura e a qualidade de vida das populações indígenas que habitam a região" (RE 1.379.751/PA, Rel. Min. Alexandre de Moraes). A necessidade de estabelecimento de um regime de transição é uma compreensão do texto do art. 231, § 6º, da CF/88: Art. 231. [...] § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. Confiram-se, ainda, as conclusões apresentadas pelo DNPM (FL. 1.531 – id. 297015018): Cabe lembrar o art. 20 da Lei nº 6.001/1973: Art. 20. Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante enumerados, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, em área indígena, determinada a providência por decreto do Presidente da República. 1º A intervenção poderá ser decretada: a) para pôr termo à luta entre grupos tribais; b) para combater graves surtos epidêmicos, que possam acarretar o extermínio da comunidade indígena, ou qualquer mal que ponha em risco a integridade do silvícola ou do grupo tribal; c) por imposição da segurança nacional; d) para a realização de obras públicas que interessem ao desenvolvimento nacional; e) para reprimir a turbação ou esbulho em larga escala; f) para a exploração de riquezas do subsolo de relevante interesse para a segurança e o desenvolvimento nacional. 2º A intervenção executar-se-á nas condições estipuladas no decreto e sempre por meios suasórios, dela podendo resultar, segundo a gravidade do fato, uma ou algumas das medidas seguintes: a) contenção de hostilidades, evitando-se o emprego de força contra os índios; b) deslocamento temporário de grupos tribais de uma para outra área; c) remoção de grupos tribais de uma para outra área. 3º Somente caberá a remoção de grupo tribal quando de todo impossível ou desaconselhável a sua permanência na área sob intervenção, destinando-se à comunidade indígena removida área equivalente à anterior, inclusive quanto às condições ecológicas. 4º A comunidade indígena removida será integralmente ressarcida dos prejuízos decorrentes da remoção. 5º O ato de intervenção terá a assistência direta do órgão federal que exercita a tutela do índio. Assim, não há aparência de necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, não sendo caso de incidência do § 3º do art. 231 da CF/88. V. Conclusão Em face do exposto, ante a ausência de fumus boni iuris, dou provimento ao agravo de instrumento para, reformando a decisão agravada de id. 1769860076, considerar (i) válidos a consulta e o consentimento emanado pelo CIM, como representativo do Povo Mura de Autazes e, em consequência, o requisito da Convenção 169 da OIT; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciar o empreendimento e a validade de todos os atos até agora praticados; (iii) afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional e autorizar o prosseguimento do projeto. É como voto. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator [1] Id. 904360588. [2] Cf. file:///C:/Users/DS93/Downloads/wcms_205225.pdf. [3] Cf. https://ilo.primo.exlibrisgroup.com/discovery/delivery/41ILO_INST:41ILO_V2/126506 9900002676. PODER JUDICIÁRIO Processo Judicial Eletrônico Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 17 - DESEMBARGADORA FEDERAL KÁTIA BALBINO AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) n. 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO VISTA A EXMA. SRA. DESEMBARGADORA FEDERAL KATIA BALBINO: Pedi vista dos autos para melhor examinar as questões fático-jurídicas que motivaram a interposição do agravo de instrumento em apreço. De início, sem prejuízo de assinalar minha integral anuência com o voto do Relator quanto à relevância do Projeto Potássio-Autazes, entendo que as questões a serem dirimidas na insurgência perpassam apenas pelo juízo de adequação da decisão agravada ao contexto fático-processual que justificou a sua prolação. Feito o registro, cumpre também esclarecer que o recurso ora examinado foi interposto pelo Conselho Indígena Mura contra a decisão pela qual o juízo de origem, em caráter dispositivo, assim deliberou: “15. Pelo exposto, reitero decisões anteriores de que o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto Potássio é o IBAMA, reitero que exploração mineral em Terra Indígena depende de autorização do legislador constituinte (do Congresso Nacional) e que o IPAAM não é o órgão ambiental competente para o empreendimento que tem o poder de afetar o bioma, a biomassa, o estoque de carbono, a alteração de recursos hídricos da maior bacia nacional, e portanto tem o poder de gerar mudanças climáticas irreversíveis. 16. A Consulta aos povos indígenas afetados depende da vontade do povo, decorrente da sua autonomia de deliberar seus interesses diante desse e de qualquer empreendimento. Todavia, eventual resultado fica desde já suspenso enquanto não houver o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados na presente decisão. 17. Sem o mínimo início dos requisitos, não haverá inspeção judicial, a qual fica por ora suspensa, mas advirto que poderá ser remarcada em caso de violência ou indícios de violações que importem em ruptura da ordem. 18. Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Tal o contexto, o agravante confronta as seguintes diretrizes decisórias: i) suspensão do procedimento de consulta aos povos indígenas levada a efeito; ii) necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração da área em que se pretende realizar o empreendimento. Passo, assim, a analisar tais questões: - Da suspensão dos procedimentos de consulta – a perda do objeto do agravo de instrumento, quanto ao ponto. O exame dos autos indica que a decisão agravada foi proferida em 25/08/2023. Por outro lado, a leitura do referido comando permite a compreensão de que a questão referente à consulta aos povos indígenas foi abordada pelo juízo a quo por um prisma abstrato de sua validade, em perspectiva com os demais requisitos tidos como necessários para a exploração em litígio (autorização do Congresso Nacional e competência do IBAMA para o licenciamento). É dizer, a julgadora da origem não se manifestou de forma concreta sobre aspectos materiais e formais afetos à consulta que o agravante tem com validamente realizada, pontuando, isto sim, que a validade do referido procedimento deve ser examinada de forma contextualizada com os demais requisitos para a implementação do empreendimento. Tanto assim, que a parte final do comando censurado dispõe (destaquei em itálico): “Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Ocorre que, após a prolação do referido decisum, a magistrada que conduz o processo principal se debruçou de forma mais aprofundada sobre a questão referente à consulta aos povos indígenas e, nos termos da decisão ID 1913974193, proferida em 16.11.2023, consignou (destaques sublinhados acrescidos): “Diante de todo o tumulto (mediante coação, intimidações, pressões indevidas e oferecimento de vantagens) causado pelo CIM e por prepostos da empresa ré, conforme depoimentos colhidos e mencionados no parecer ministerial, defiro o pleito ministerial e determino a imediata suspensão do procedimento de licenciamento ambiental por parte do IPAAM, bem como o da consulta ilegítima realizada após desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta, bem como de qualquer ato de avanço dos trâmites para a implementação do empreendimento da empresa Potássio do Brasil S/A em Autazes, em razão dos vícios mencionados e dos riscos de conflitos e morte que a continuação dos trâmites do empreendimento minerário neste cenário acarretam ao povo Mura na região, ficando expresso que o juízo federal não confere qualquer validade à alteração esdrúxula do Protocolo construído de forma legítima por TODO O POVO MURA.” Como se vê, após a prolação da decisão agravada, o juízo a quo proferiu novo comando com caráter substitutivo do anterior, vindo a apresentar fundamentação mais aprofundada e amparada em elementos concretos sobre as razões de seu convencimento. Em outras palavras, a avaliação no plano concreto da consulta tida como realizada absorveu a deliberação anterior, esta fundada apenas em fatores afetos ao procedimento no plano abstrato. Assim, porque proferida decisão ulterior que a um só tempo incorporou e ampliou as razões contidas na decisão agravada, resulta demonstrada a perda do objeto do recurso tirado contra o aludido comando. Anoto, por fim, que tanto o MPF quanto a Funai já se manifestaram nos autos em sentido concorde com a compreensão ora externada (cf. ID 423687013 e ID 369353129). - Subsidiariamente, ao não conhecimento do recurso Ainda que se supere a questão preliminar já analisada, entendo que a decisão agravada deve ser mantida nos termos em que proferida, salientando, nesse ponto, que sua avaliação deve ser feita com base no exato sentido e alcance nela consignados. Melhor explicando, foi acima esclarecido que na decisão agravada o juízo a quo consignou que “eventual resultado” da consulta ficaria suspenso enquanto não houvesse “o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados” na decisão. Claro, portanto que, na decisão agravada, a julgadora de primeiro grau não empreendeu juízo de valoração da consulta efetivamente levada a efeito, tendo suspendido seus efeitos em razão da necessidade de observância concomitante de outros requisitos tidos como necessários para o licenciamento do empreendimento. Ocorre que a parte agravante não enfrentou de forma suficiente as razões externadas no comando recorrido, restringindo-se a defender a validade da consulta que alega já ter sido realizada, bem assim a desnecessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área em que será realizada a exploração mineral discutida na ação principal. Ora, a decisão agravada, como já afirmado, não positivou em nenhum momento a invalidade factual da consulta debatida (isso só foi feito na decisão posterior), tendo suspendido os respectivos efeitos em razão da necessidade de atendimento de outros requisitos que seriam com ela concorrentes. Um desses requisitos, a competência do Ibama para o licenciamento, não foi (e nem poderia ter sido, por ausência de legitimidade recursal) sequer objeto do presente agravo de instrumento. Assim sendo, ainda que superado o óbice relativo à perda do objeto do recurso, quanto ao ponto, este não pode ser conhecido, diante da ausência de enfrentamento da fundamentação decisória no sentido de que os efeitos da consulta somente poderiam ser efetivados em conjunto com o atendimento dos demais requisitos para a exploração da área, nomeadamente a autorização do Ibama. - Do exame residual do mérito da decisão agravada De todo modo, também na hipótese em que venha a ser desconsiderada a ausência de enfrentamento, pelo agravante, das razões decisórias, o recurso não deve ser provido. Com efeito, os documentos encartados no processo principal revelam uma evidente divisão entre as aldeias dos indígenas Mura, tratando-se de dissenso que compromete a conclusão pela validade do procedimento de consulta que neste agravo se tem como concretizado. Nesse sentido, tomando-se como exemplo a assembleia realizada em 21 e 22/09/2023, mencionada no voto do Exmo. Relator, temos que embora registrada em seu relatório a presença de diversos integrantes da comunidade Mura para debater sobre a implementação do projeto Potássio-Autazes, inclusive com a indicação de participação de cinco entidades representativas (CIM – Conselho Indígena Mura; OASIM – Organização dos Agentes de Saúde; OPIM – Organização dos Professores Indígenas Mura; OEIMA – Organização dos Estudantes Mira de Autazes; APIMA – Associação dos Produtores Indígenas Mura de Autazes), o referido documento foi subscrito por apenas quatro pessoas, dentre elas o coordenador geral do CIM (ora agravante) e um advogado. Inexiste, no documento, a indicação nominal de quem seriam as pessoas presentes no encontro, tendo sido mencionados, tão somente, o quantitativo dessas por aldeia. Também não há registro de ata assemblear, tampouco de subscrição, nesse ou em nenhum outro documento, da alegada aprovação majoritária para a implementação do projeto em debate nos autos principais. É dizer, a referência à aprovação do projeto consta apenas do relatório confeccionado após a assembleia, no qual não se identifica a assinatura da quase totalidade das pessoas que dela teriam participado. Por outro lado, como bem observado pelo Exmo. Relator, é certo que a efetivação da consulta às comunidades indígenas não pressupõe a anuência destas com o respectivo objeto. Todavia, a efetivação plena da consulta reclama a escuta efetiva das referidas comunidades, escuta essa que há de ser valorada em sua perspectiva substancial e não simplesmente formal. Nesse sentido, reportando-me mais uma vez ao voto do Relator, “[É] incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública.” Ocorre que o cenário dos autos não indica a realização dessa escuta efetiva do procedimento de consulta, este que, ao que se infere inclusive da divisão verificada entre os representantes da comunidade Mura, vinha sendo protagonizada, em um primeiro momento, pelo CIM (ora agravante), entidade que vem reiterada e insistentemente se manifestando pela implementação do Projeto Potássio-Autazes. Oportuno ser registrado que os autos principais indicam a adoção de diversos procedimentos tendentes à efetivação de um processo de consulta regular, mostrando-se plausível, neste momento de exame provisório do tema, a inferência de que muitos dos atos praticados sejam efetivamente válidos. Ocorre que o entendimento – precário – da validade de parte dos atos praticados não leva, obviamente, ao reconhecimento automático da validade de todo o processo de consulta. A propósito, em sua segunda decisão proferida sobre o tema a magistrada da origem refere-se à ocorrência de uma "desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta”, posicionamento indicativo de que, por sua ótica, o referido protocolo vinha sendo posto em prática de forma adequada, até que a partir de determinado momento veio a ser desconfigurado em sua essência e finalidade. Esse fato reforça, portanto, o posicionamento no sentido de que a validade de atos pretéritos do Protocolo de Consulta não pode induzir ao reconhecimento de sua validade como um todo. Isso posto, existem dúvidas no mínimo razoáveis acerca da legitimidade do procedimento sob enfoque, ao menos no que se refere à valoração do posicionamento divergente de parte significativa da comunidade Mura. Note-se que a validade (nos planos formal e substancial) desse procedimento tem como premissa a oitiva de todas as comunidades afetadas, levando-se em conta, no mais que possível, as peculiaridades de cada uma delas, além das razões que justificarem seus respectivos posicionamentos. Veja-se, em abono dessa conclusão, que a análise cartográfica 138/2023, juntada aos autos pela Funai e transcrita no voto do Relator, indica que o Projeto Potássio-Autazes encontra-se em distâncias diferentes das diversas comunidades afetadas, sendo que, especificamente em relação à “Aldeia Soares”, cujos representantes se posicionaram em sentido contrário ao do ora agravante, a indicação no mencionado documento é pela “sobreposição da área de influência” e pela distância de apenas 2,52 km entre a planta do projeto e a área em que situada a própria aldeia (a menor distância, ao que se infere, entre todas as comunidades afetadas). Na mesma linha, atente-se para o teor das seguintes passagens da decisão de ID 1913974193 dos autos principais, proferida após a decisão agravada: “O Povo Mura afetado pelo grande empreendimento Potássio, na forma do Protocolo legitimamente aprovado por sua totalidade de comunidades, sequer começou a ser consultado. Especialmente o Povo Mura da Comunidade Lago Soares, onde foi fincada a primeira perfuração para fins de pedido de concessão de lavra e licenças prévia, de instalação e de operação, o povo não foi ouvido em nenhuma das etapas da Consulta. Em inspeção judicial realizada por esta Magistrada, confirmei a tese dos autos de que é exatamente no Lago Soares que parte a pretensão de instalação do Projeto Potássio e essa comunidade não foi ouvida até a presente data, sendo ilegítima qualquer conclusão sem sua participação.” (...) “4.1. Alegam, o MPF, a organização OLIM CV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES, uma série de ilícitos em tese perpetrados pela empresa Requerida Potássio do Brasil. Defendem ocorrência de má fé, assédio, danos psicológicos, danos morais, coação manipulação e intimidação contra indígenas Mura. As alegações são de extrema gravidade e antes mesmo de ouvidos o MPF e a requerida, é dever do juízo adotar providências preliminares para determinar a imediata suspensão dos vícios, pois que a sua continuação pode gerar danos irreversíveis aos povos originários envolvidos, além da transfiguração do meio ambiente, cultura, tradição e do seu modo de vida. 4.2. As provas anexadas com a manifestação da parte interessada (OLIMCV e Comunidade Lago Soares) bem como aquelas referidas pelo MPF em seu Parecer, demonstram inclusive a presença do Presidente da Potássio do Brasil em reuniões com indígenas Mura, levando ideias destorcidas e contrárias ao ordenamento jurídico, além de descumprir claramente decisão constante de ata de audiência onde ficou consignado que a empresa não poderia praticar coação contra os indígenas. Desde a feitura do Protocolo, o Povo Mura assentou expressamente: "não queremos ser pressionados e coagidos". 4.3. São mais de 12 - doze- mil indígenas Mura afetados com o empreendimento, dos quais nem 1% chegou a participar da reunião onde correu uma lista de presença depois transfigurada em lista de aprovação, havendo clara pressão de cerca de dez indivíduos - alguns já identificados e ouvidos no Ministério Público Federal ( ID 1914447184 - Parecer) - no sentido de distorcer a realidade e retirar o direito de participação da imensa maioria dos indígenas nesse complexo processo de Consulta Livre e Informada. Conforme as provas anexadas, o indígena Cleber (ou Kleber) age como um doa encarregados de praticar coação e manipulação. A conduta pode vir a configurar crime, seja pelo 'modus operandi' de alteração da realidade fática e jurídica, seja por escarnecer as tradições culturais fixadas no Protocolo de Consulta ( lei 60001-73, art. 58, I). 4.4. Ainda, o senhor Kleber Mura vem afirmando que a empresa Potássio do Brasil LTDA. realizou uma promessa de pagamento de supostos royalties pela extração do minério em troca da aprovação do empreendimento, por parte das comunidades indígenas. Cumpre esclarecer que para que comunidades tradicionais ou indígenas recebam royalties por grandes empreendimentos exploradores em suas terras, é necessário primeiramente cumprir os passos da lei, não sendo faculdade de nenhuma empresa oferecer vantagens ou promessas de pagamentos, os quais já são fixados pelo legislador em casos de exploração mineral. Em síntese, na hipótese de futura operação licenciada do empreendimento, os roylties que eventualmente serão pagos decorrem de deliberação do legislador e não são mera faculdade da empresa Potássio do Brasil, a qual está causando tumulto, manipulação e pressão indevida em comunidade em situação de vulnerabilidade, o que deve cessar IMEDIATAMENTE. 4.5. Na manifestação trazida ao conhecimento do juízo, haveria indígena Mura recebendo 5 - cinco - mil reais da empresa Potássio, enquanto outros estariam recebendo 10 - dez- mil reais, tudo com o intuito de coagir e manipular as comunidades afetadas para o fim de aprovar o empreendimento, gerando uma confusão entre Consentimento Livre e Informado e licenciamento prévio, de licença de instalação e licença de operação, que a essa altura, estão fazendo parecer como um só fato jurídico quando são atos distintos. A transfiguração dos fatos jurídicos precisa imediatamente ser quebrada para evitar um dano irreversível aos povos originários, à sua cultura, modo de vida e tradição. 4.6. Dessa forma, diante de tanto vícios de consentimento explícitos, trazidos a juízo por indígenas Mura que habitam o principal Lago (Soares) a ser afetado pelo empreendimento, bem como pela organização OLIMCV, tudo isso faz-nos concluir que a tese manejada de ilegitimidade e nulidade do resultado de uma suposta consulta é inevitavelmente pertinente. Sem consulta válida, na forma do Protocolo definido POR TODO O POVO MURA ( e não por uma dúzia de pessoas com fortes indícios de estarem cooptadas) não há que falar em licença prévia válida. Isso porque a consulta depende da vontade livre do povo e decorre da sua autodeterminação em deliberar acerca de seus interesses diante de qualquer empreendimento que possa impactar seu modo de vida, conforma já definiu o STF. 4.7. Portanto, de imediato recebo a manifestação e o Parecer acima aduzidos, determino a manifestação de todas as partes em dez dias sobre o que entenderem pertinente e desde já adoto as deliberações abaixo para o fim de resguardar a dignidade e integridade do Povo Mura, alvo de um processo de coação, manipulação e intimidação. a) Determino a imediata suspensão de qualquer atitude de coação, manipulação, fraude, intimidação, ameaça, pressão e cooptação contra indígenas Mura, praticadas pela empresa requerida ou por quem quer que haja em seu mando. Fixo desde já multa de cem mil reais por cada dia de descumprimento da presente decisão, a contar da intimação da presente decisão. b) Fixo desde já multa de um milhão de reais a ser custeada pela Empresa Potássio do Brasil Ltda, pelo descumprimento dos deveres assumidos durante as audiências de conciliação perante o Juízo, em especial por realizar pressão indevida sobre o povo Mura com o comparecimento pessoal do seu presidente em reuniões internas das comunidades sobre o assunto tratado nos autos, o que já foi vedado pelo juízo. A multa incidirá sobre o dia de comparecimento do Presidente da Potássio, em reunião vedada pelo Protocolo de Consulta e será revertida a favor da Organização requerente e comunidade Lago Soares, pro rata.” A reforçar o posicionamento da julgadora que conduz o processo na origem, as cartas abertas juntadas nos ID 1914200677, 1914200678, 1914200679 indicam a discordância de várias aldeias com os rumos do procedimento. Da mesma forma, confira-se o que foi expressamente consignado no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Carneiro da Várzea (ID1914200682 dos autos principais): Trata-se, com efeito, de diretrizes contidas no Protocolo de Consulta construído para o exame do Projeto Potássio-Autazes. Pois em que pese a clareza dos termos acima transcritos, há no processo principal fortes indícios da participação ativa de “não-índios” no “processo de convencimento” da comunidade Mura (inclusive na assembleia realizada nos dias 21 e 22/08/2023), bem assim de que parte das lideranças não levou em conta, como deveria ter levado segundo as normas protocolares acima transcritas, a opinião do conjunto da comunidade indígena afetada. Com todo esse cenário, tenho que o exame realizado em sede de agravo de instrumento tirado contra uma decisão marcada por seu caráter de provisoriedade e de instrumentalidade para a bom desenrolar do processo, deve ser feito com a adoção de uma postura cautelosa quanto aos riscos do reconhecimento da validade do procedimento de consulta que está na berlinda, ante a irreversibilidade das medidas que eventualmente sejam tomadas com base nessa conclusão (no mínimo precipitada). Isso quer dizer que, diante das incertezas quanto à validade do caráter conclusivo da consulta, o Poder Judiciário deve assumir uma posição preventiva quanto aos possíveis prejuízos que venham a ser causados. Aqui tomando por empréstimo – e por analogia – o ensinamento Délton Winter de Carvalho, tenho como necessária a conclusão de que a alta probabilidade de comprometimento futuro de direitos fundamentais das comunidades indígenas afetadas pelo empreendimento em causa enseja a adoção das medidas preventivas necessárias – tais como as que adotadas pelo juízo de primeiro grau –, “a fim de evitar a concretização dos danos ou minimizar as consequências futuras daqueles já efetivados”. Não procede, portanto, a compreensão de que eventuais prejuízos futuros poderão ensejar indenização por perdas e danos, na medida em que a finalidade precípua da atuação jurisdicional em casos como o presente deve ser a de evitar que o dano ocorra e não simplesmente compensá-lo. Pensar diferente, com todas as vênias, seria abrir a caixa de Pandora para uma pletora de ilegalidades que poderiam ser cometidas sob o escudo de uma incerta indenização reparatória. Não bastasse tudo isso, a eventual validade das deliberações obtidas em assembleias realizadas sob a condução do CIM não pode, em princípio, vincular as comunidades que não são pelo referido conselho representadas. Assim, a eficácia de tais deliberações, para fins de reconhecimento da oitiva real de todas as comunidades afetadas, seria condicionada à obtenção de manifestações convergentes daquelas que não vinculadas ao agravante. Da necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da Terra Indígena – ausência de legitimidade recursal, quanto ao ponto Como já antecipado, a decisão agravada não empreendeu exame qualitativo da consulta que a parte agravante considera legítima, restringindo-se a suspender seus efeitos ante a necessidade de observância de requisitos externos ao referido procedimento. Dentre as externalidades mencionadas na decisão agravada, a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi invocada como pressuposto para a implementação do Projeto Potássio-Autazes, que tem como principal interessado os responsáveis pelo empreendimento. Ainda que se diga que a parte agravante teria algum interesse na implementação no projeto, pelos possíveis benefícios que ele poderia proporcionar, tal não significa que, processualmente, caiba a ela defender a sua concretização. A ilustrar esse entendimento, tome-se como exemplo a hipótese em que o órgão ambiental responsável pelo licenciamento apresente alguma condicionante para o seu deferimento. Diante de tal situação, caberá apenas à agravada Potássio do Brasil Ltda. questionar judicialmente o óbice levantado, falecendo ao Conselho nestes autos agravante legitimidade para o enfrentamento da hipotética decisão administrativa. Mutatis mutandis, é exatamente essa a situação ora analisada, pois a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi levantada como óbice para o licenciamento do projeto discutido, diante do entendimento que ele seria realizado em terras indígenas. Não cabe, portanto, ao Conselho Mura, defender aquilo que em última análise se mostra como de interesse da empresa, o que seja, a implementação de seu empreendimento econômico. Por outro lado, o Conselho agravante não representa a totalidade da Comunidade Mura, mas apenas parte dela, daí porque não possui legitimidade para se manifestar sobre os efeitos do empreendimento nas áreas não alcançadas por sua representação. Em resumo, não cabe ao CIM questionar a avaliação feita pelo juízo processante acerca da repercussão de um projeto empresarial do qual não faz parte, em áreas ocupadas por comunidades que não representa. A legitimidade recursal da agravante, portanto, em relação ao que é objeto do agravo de instrumento, está adstrita à validade de sua manifestação no procedimento de consulta, tema já analisado no tópico anterior deste voto. Conclusão Diante do exposto, julgo prejudicado o agravo de instrumento em relação à suspensão dos efeitos da consulta realizada, diante da prolação de decisão judicial posterior. Na hipótese de superação desse ponto preliminar, não conheço do agravo, por deficiência de fundamentação e, se também afastado esse obstáculo, nego provimento ao recurso. De outro modo, não conheço do agravo de instrumento no que se refere à necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área onde será implementado o projeto, por ausência de legitimidade recursal. Por fim, deixo de me manifestar acerca da questão relativa à competência para o licenciamento do empreendimento, por se tratar de tema estranho ao objeto da insurgência em apreço. É como voto. Desa. Federal KATIA BALBINO Relatora CARVALHO, DéltonWinter de. Dano Ambiental Futuro: A responsabilização Pelo Risco Ambiental. 2ª ed. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2013, pp. 187/202 PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 Processo Referência: 0019192-92.2016.4.01.3200 AGRAVANTE: CONSELHO INDIGENA MURA AGRAVADO: DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUCAO MINERAL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (PROCURADORIA), INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS - IBAMA, INSTITUTO DE PROTECAO AMBIENTAL DO AMAZONAS, POTASSIO DO BRASIL LTDA., FUNDACAO NACIONAL DO INDIO - FUNAI, UNIÃO FEDERAL, ESTADO DO AMAZONAS EMENTA DIREITO AMBIENTAL E DIREITOS INDÍGENAS. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSULTA PRÉVIA AO POVO INDÍGENA MURA. EXPLORAÇÃO MINERAL. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA ESTADUAL. RECONHECIMENTO DE CONSULTA VÁLIDA. PROSSEGUIMENTO DO PROJETO. 1. Agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura (CIM) contra decisão que suspendeu os efeitos da consulta ao povo indígena Mura sobre o Projeto Potássio Autazes, condicionando sua validade ao cumprimento de requisitos ambientais, legais e constitucionais, no bojo de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). 2. Pretensão do agravante de obter efeito suspensivo para reconhecer a validade da consulta realizada, conduzida pelo CIM, e afastar exigências relacionadas à autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas, bem como discutir a competência do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) no licenciamento ambiental do empreendimento. 3. O debate circunscreve-se às seguintes questões: (i) validade da consulta ao povo indígena Mura de Autazes, realizada com base no protocolo próprio; (ii) competência do IPAAM para o licenciamento ambiental do empreendimento; e (iii) necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, considerando a localização do projeto em área não demarcada como terra indígena. 4. Reconhecida a legitimidade do Conselho Indígena Mura (CIM) como entidade representativa das aldeias de Autazes para conduzir a consulta, nos termos da Convenção 169 da OIT, considerando que o processo observou protocolos definidos com acompanhamento judicial. A ausência de pronunciamento de outras comunidades não invalida a consulta, mas mantém a obrigação do Estado de dialogar continuamente com os povos afetados. A CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. 5. A competência do IPAAM para licenciamento ambiental foi reafirmada, uma vez que o empreendimento está localizado fora de terras indígenas demarcadas, observando-se os critérios da Lei Complementar nº 140/2011. A distância de poucos quilômetros entre o projeto e a terra indígena mais próxima não configura causa de deslocamento de competência ao IBAMA, o qual, no entanto, possui o dever de vigilância em relação ao licenciamento estadual. Não há dados que permitam concluir que o órgão ambiental estadual não tem a qualificação ou a estruturação necessária para proceder ao licenciamento, tampouco foram apontadas omissões nas condicionantes fixadas na Licença Prévia, que expressamente consideraram o componente indígena. 6. O STF, na ADI 4.757/DF, expressamente reconheceu a existência do "dever de vigilância da União quanto aos licenciamentos de responsabilidade dos Estados, cujas atividades ou empreendimentos possam causar impactos ambientais indiretos relevantes em áreas indígenas ou unidades de conservação. A exemplo, as atividades de mineração ou empreendimentos hidrelétricos, cujas poluições sonoras ou dos leitos de rios possam impactar a preservação adequada das referidas áreas." O STF acrescentou que, "[n]esse ponto, competirá, com efeito, à União averiguar as capacidades institucionais do órgão ambiental estadual para proceder com o licenciamento, em especial as condicionalidades para a emissão da licença, considerados esses impactos indiretos, que não raras vezes demandam alta espeficiação de instrumentos técnicos e de profissionais" (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023, p. 85 do acórdão). 7. A inexistência de terra indígena demarcada ou delimitada na área do empreendimento afasta a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, conforme art. 231, § 3º, da Constituição Federal, ainda que se instaure processo demarcatório, enquanto não concluído. 8. Agravo de instrumento provido para: (i) considerar válida a consulta realizada pelo CIM como representativo do povo indígena Mura de Autazes e considerar cumprida a obrigação de consultar; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciamento ambiental do empreendimento; (iii) afastar a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração no caso em análise; e (iv) autorizar o prosseguimento do projeto minerário, sem prejuízo de novas medidas para assegurar a proteção aos direitos indígenas e ambientais. ACÓRDÃO Decide a Sexta Turma, por maioria, dar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do voto do Relator. Brasília/DF, data e assinatura eletrônicas. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator
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Processo nº 1037175-40.2023.4.01.0000
ID: 292902579
Tribunal: TRF1
Órgão: Gab. 16 - DESEMBARGADOR FEDERAL FLAVIO JARDIM
Classe: AGRAVO DE INSTRUMENTO
Nº Processo: 1037175-40.2023.4.01.0000
Data de Disponibilização:
09/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL ESPERANCA LISBOA
OAB/AM XXXXXX
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GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION
OAB/AM XXXXXX
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RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS
OAB/AM XXXXXX
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ISABELE AUGUSTO VILACA
OAB/AM XXXXXX
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JOAO VITOR LISBOA BATISTA
OAB/AM XXXXXX
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LUIS INACIO LUCENA ADAMS
OAB/DF XXXXXX
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CAROLINA MAR AZEVEDO
OAB/AM XXXXXX
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IVAN DE SOUZA QUEIROZ
OAB/AM XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDI…
JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1037175-40.2023.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 0019192-92.2016.4.01.3200 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: CONSELHO INDIGENA MURA REPRESENTANTE(S) POLO ATIVO: IVAN DE SOUZA QUEIROZ - AM4297 POLO PASSIVO:Ministério Público Federal (Procuradoria) e outros REPRESENTANTE(S) POLO PASSIVO: CAROLINA MAR AZEVEDO - AM8627-A, LUIS INACIO LUCENA ADAMS - DF29512-A, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133, GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882, JOAO VITOR LISBOA BATISTA - AM18198, ISABELE AUGUSTO VILACA - AM18446, RAFAEL OLIVEIRA CAMPOS - AM18028, GABRIEL HENRIQUE PINHEIRO ANDION - AM19133 e GABRIEL ESPERANCA LISBOA - AM18882 RELATOR(A):FLAVIO JAIME DE MORAES JARDIM PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 RELATÓRIO Agravo de Instrumento interposto em 14.9.2023, pelo Conselho Indígena Mura (CIM), contra decisão da 1ª Vara Federal do Amazonas (id. – ID 1769860076), que suspendeu o resultado de consulta ao povo indígena Mura até que fossem cumpridos requisitos ambientais, legais e constitucionais, no contexto da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). A ação, na origem, busca a anulação da Licença Prévia emitida pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas- IPAAM à Potássio do Brasil Ltda. referente à exploração de silvinita/potássio em Autazes/AM, alegando incompetência do órgão emissor e ausência de consulta prévia aos povos indígenas afetados. O agravante argumenta que a decisão violou sua autonomia, destacando que a consulta foi conduzida conforme protocolo próprio e recursos próprios, com representantes de 46 aldeias. Sustenta que a suspensão judicial desrespeita o resultado soberano da consulta, gera prejuízos financeiros e configura cerceamento de defesa. O CIM defende ainda que os direitos minerários da empresa foram desmembrados de terras indígenas, afastando a necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração mineral. Ao final, requer efeito suspensivo à decisão agravada, permitindo a conclusão e consideração da consulta nos autos antes de eventual sentença. Defende a existência de prejuízos irreparáveis caso o processo seja decidido sem incorporar o resultado da consulta, e reafirma o pedido de Justiça Gratuita, por ser entidade sem fins lucrativos. Foi requerida, ainda, a gratuidade de justiça. Após a distribuição, por meio da petição id. 347816151, foram juntadas atas de reuniões realizadas nos dias 15, 16, 18 e 22.8.2023, nas quais o agravante alega que foi dado início dado procedimento de consulta para representantes de 46 aldeias. Despacho de id. 348177162 intimou os agravados a apresentar contrarrazões e sobrestou a análise do pedido de liminar. Antes de escoado o prazo, o agravante apresentou petição (id. 350573644) comunicando que o Povo Mura de Autazes, nos dias 21 e 22.09.2023, finalizou a Consulta sobre o Projeto Potássio Autazes e outras questões relevantes, de acordo com a ata anexa. Destacou que foi aprovado o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta. Informou, ainda, que foi aprovado pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil faça a mineração. Requereu, assim, a atribuição de efeito suspensivo ao agravo. A Potássio do Brasil Ltda. apresentou as contrarrazões de id. 360785149. Noticiou a existência de decisão da Presidência do TRF1, a qual, nos autos da SLS nº 1040729-80.2023.4.01.0000, suspendeu a decisão original, entendendo que a paralisação antecipada do licenciamento interfere na competência administrativa e nas normas constitucionais que regulam a exploração mineral em terras indígenas. No mais, a Potássio do Brasil Ltda. adere aos argumentos do agravante, solicitando a reforma da decisão agravada. O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) apresentou as contrarrazões de id. 367016144, aduzindo que o projeto e suas jazidas estão a 8 km das terras indígenas mais próximas e que a legislação atual estabelece o critério territorial para definir competências ambientais. Assim, considera desnecessária a autorização do Congresso Nacional, pois não há exploração direta em terras indígenas. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. A autarquia também aponta distinções entre este caso e precedentes como o da Usina de Belo Monte, afirmando que as decisões anteriores foram proferidas sob normas ultrapassadas. O IPAAM defende que as competências estaduais devem prevalecer e que decisões como a suspensão do licenciamento afrontam a separação de poderes e a ordem administrativa. No pedido, o IPAAM solicita a reforma da decisão para restabelecer sua competência e remover a exigência de autorização legislativa federal. O IBAMA apresentou a petição id. 368864139 informando carecer de interesse em apresentar contrarrazões em face do mencionado recurso de agravo de instrumento, uma vez que sua posição nos autos de origem sempre foi no sentido de que não possui competência legal para conduzir o licenciamento ambiental em questão e, tampouco, para intervir no âmbito da consulta livre, prévia e informada que deve ser realizada perante a comunidade indígena que venha a ser afetada pelo empreendimento. A FUNAI protocolou a manifestação de id. 369353129. Inicialmente, a FUNAI argumenta pela perda superveniente do objeto do agravo, uma vez que nova decisão foi proferida pelo juízo de origem, abordando fatos e fundamentos distintos, como a inexistência de consulta válida com participação de todos os indígenas afetados, especialmente da Comunidade Lago Soares. A decisão, prolatada por meio do id. 190941615, relata coações, pressões e irregularidades promovidas pela empresa Potássio do Brasil e seus representantes. Entre as medidas adotadas, destaca-se a suspensão do licenciamento ambiental pelo IPAAM e de atos vinculados ao empreendimento, além da fixação de multas e proibição de práticas coercitivas. No mérito, a FUNAI defende a manutenção da decisão agravada, ressaltando que a consulta ao povo Mura é imprescindível, mas deve observar a inclusão de todas as comunidades potencialmente afetadas. A instituição destaca a necessidade de conclusão dos estudos demarcatórios da Terra Indígena Lago do Soares e Urucurituba, conduzidos por grupo técnico da FUNAI, para garantir a legitimidade e abrangência da consulta. Por fim, a FUNAI solicita, em preliminar, o não conhecimento do agravo por perda de objeto e, subsidiariamente, o seu desprovimento, mantendo a decisão que suspendeu o resultado da consulta e os atos administrativos relacionados ao empreendimento até o cumprimento dos requisitos legais. A ORGANIZAÇÃO DE LIDERANÇAS INDÍGENAS MURA DE CAREIRO DA VÁRZEA - OLIMCV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES apresentou a manifestação de id. 357658659. Defenderam a ilegitimidade e a invalidade da consulta realizada para aprovação do Projeto Potássio Autazes, apontando graves violações ao Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Mura de Autazes e Careiro da Várzea. O documento destaca que o Conselho Indígena Mura (CIM), ao conduzir a consulta, ignorou a inclusão de comunidades contrárias ao projeto, como a Aldeia Soares, e promoveu reuniões com fortes indícios de coação, pressão e manipulação, em desrespeito às diretrizes estabelecidas no protocolo previamente aprovado pelas comunidades. Além disso, aponta a participação irregular de representantes da empresa Potássio do Brasil Ltda., prática vedada no contexto das reuniões internas. As lideranças contrárias ao empreendimento denunciaram promessas de compensações financeiras, irregularidades na condução das consultas e a tentativa de impor um novo protocolo de consulta para fragmentar a representação do povo Mura, excluindo as aldeias do município de Careiro da Várzea. A defesa ressalta ainda que a consulta não foi realizada de forma ampla, livre e informada, como determina a Convenção 169 da OIT. Em termos jurídicos, as contrarrazões pedem o reconhecimento da nulidade do resultado da consulta e a manutenção da decisão judicial de suspensão do licenciamento ambiental e de atos administrativos relacionados ao projeto até que sejam cumpridos os requisitos legais e constitucionais, com participação efetiva de todas as comunidades afetadas. O parecer id. 373711134, ofertado pelo MPF, pugna pelo desprovimento do agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura por perda superveniente do objeto. É o relatório. PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL FLÁVIO JARDIM - Relator: I. Estão preenchidos os requisitos de admissibilidade. A peça, subscrita por profissional legalmente habilitado, (a) foi protocolada no prazo legal. O agravante requereu seja o preparo dispensado em razão da hipossuficiência, o que defiro. Conheço do Recurso. II. A decisão agravada, datada de 25.8.2023, no que interessa (id. 1769860076): III. Este agravo foi protocolado pelo Conselho Indígena Mura – CIM e visa a suspender os efeitos da decisão agravada de id. 1769860076, proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 0019192- 92.2016.4.01.3200, movida pelo MPF. Contra essa decisão, também foram interpostos os seguintes recursos: (i) AI nº 1039810-91.2023.4.01.0000, protocolado pela Potássio do Brasil Ltda. (ii) AI nº 1042776-27.2023.4.01.0000, protocolado pelo Ibama; (iii) Ai nº 1043035-22.2023.4.01.0000, protocolado pela União. No agravo, é postulado que a decisão agravada seja reformada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". III.a. A Relevância do Projeto Potássio-Autazes Consoante destacou a União em petição protocolizada nestes autos, "o Projeto Autazes foi habilitado, na forma do Decreto nº 10.657/2021, pelo Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos – CTAPME, para integrar a política de apoio ao licenciamento ambiental de projetos de investimento para a produção de Minerais Estratégicos – Pró Minerais Estratégicos, em 28 de setembro de 2021." [1] Segundo o que assevera a União, "[d]e acordo o que dispõe o Decreto nº 10.657/2021, os projetos minerários habilitados na Política de Pró-Minerais Estratégicos são considerados prioritários ao país em razão dos seguintes critérios (art. 2º): i) alto percentual de importação para suprimento de setores vitais da economia; ii) aplicação em produtos e processos de alta tecnologia e iii) vantagens comparativas e essencial para a geração de superavit da balança comercial do país." [id.] A União complementa que o projeto "visa a exploração de minério cloreto de potássio, fertilizante fundamental para a agricultura nacional." [id.] Pelas informações prestadas, "o Brasil importa 95% do cloreto de potássio que utiliza para fertilização do solo, ostentado o título de maior importador mundial de potássio, com 10,45 milhões de toneladas adquiridas em 2019, de acordo com dados do Ministério da Economia." [id.] A previsão da empresa é de "atender cerca de 25% do consumo nacional do minério, reduzindo a dependência interna do produto por mais de 30 anos." [id.] A União ainda aponta que a relevância do projeto foi exacerbada com o recente cenário de guerra entre Ucrânia-Rússia: "Ocorre que as recentes sanções econômicas impostas à Bielorrússia, responsável por ¼ de toda produção mundial de cloreto de potássio, gerou enorme preocupação no setor agroindustrial brasileiro em razão da possível escassez do minério, o que poderá impactar o custo de produção e, consequentemente, o aumento do preço dos alimentos. Observa-se, assim, que o desenvolvimento de projetos minerários com capacidade de aumentar significativamente a oferta de fertilizantes ao mercado interno, reduzindo a dependência estrangeira, é essencial para a proteção dos pequenos produtores de alimentos e da população mais vulnerável à variação de preço dos alimentos. [...] Além disso, há apenas três grandes players produtores no mundo, sendo que em dois deles, Rússia e Bielorrússia, há interferência dos governos na atuação internacional das empresas. As duas últimas crises mundiais de fertilizantes, em que os preços ao produtor rural aumentaram mais de 150% em menos de seis meses, ocorreram por ocasião da atuação das empresas de fertilizantes potássicos. Na atual crise de fertilizantes, o primeiro nutriente a faltar para o Brasil foi o potássio." [id.] Segundo o ente público, há altíssima dependência nacional de fertilizantes estrangeiros, o que torna o país ainda mais vulnerável, pois os grandes produtores agrícolas mundiais possuem autonomia no fornecimento de fertilizantes: "O Brasil vem presenciando, nos últimos anos, um forte aumento nas importações de fertilizantes. Estima-se que, em 2020, mais de 80% dos que foram consumidos no Brasil são de origem estrangeira, respondendo a produção nacional por menos de 20% da demanda do país. Estrategicamente, todos os países que são grandes produtores agrícolas no mundo, têm autonomia no fornecimento de fertilizantes, uma vez que produzem, no mínimo, 50% da sua demanda anual, exceto o Brasil. A dependência se agrava quando se verifica que o Brasil deverá responder por quase metade da produção mundial de alimentos nos próximos anos, aumentando proporcionalmente a demanda por fertilizantes. Atualmente, o Brasil é o quarto consumidor global de fertilizantes, responsável por cerca de 8% desse volume e é o maior importador mundial, ou seja, é o país com a maior dependência externa por fertilizantes." [id.] A variação de preços da commodity é também apontada como fator de preocupação, tendo em vista que há ciclos de crises mundiais que elevam os preços a níveis acima do padrão: "Aumentos nos preços desses insumos acontecem em ciclos de crises mundiais, como em 2008 e 2021, períodos em que foram registrados os maiores preços da história. Esse cenário impacta negativamente na competividade dos produtos agrícolas brasileiros, pois os fertilizantes já ocupam mais de 40% do custo de produção de culturas importantes como soja, milho e algodão, que compõem as principais exportações do agronegócio brasileiro, tornando o produto nacional menos competitivo." [id.] Assim, a conclusão da União é a de que "o Projeto Autazes pode proporcionar ao Brasil uma arrancada em direção à segurança do fornecimento de fertilizante potássicos para o país." [id.] Abaixo, as características físicas do projeto: Vale ressaltar que se cuida de empreendimento significativamente menor do que, por exemplo, a UHE Belo Monte, que possui dois reservatórios de regularização, com área total de 478 km², sendo 274 km² do leito original do Rio Xingu. Os dois reservatórios são o Reservatório Xingu, com 359 km², e o Reservatório Intermediário, com 119 km. É, desde já, importante destacar que no caso Comunidade Indígena Yakye vs. Paraguai, decidido em 17.6.2005, a Corte Interamericana de Direitos Humanos assentou que a propriedade indígena pode sofrer restrições quando presente interesse social e um objetivo estatal legítimo. Confira-se trecho do voto: Constam dos autos, ainda, diversas matérias jornalísticas de 2022 informando problemas de escassez do cloreto de potássio no mercado mundial, devido à guerra na Ucrânia (id. 970735666). No volume 3, consta ainda a Nota n. 00144/2023/CONJUR-MAPA/CGU/AGU, a qual atesta que a demanda por fertilizantes potássicos aumentará bastante nos próximos anos e que a produção nacional está decaindo: O documento ainda atesta que o Projeto Autazes está intimamente ligado com caros direitos fundamentais de índole social e com os fundamentos da ordem econômica, os quais incumbe a Administração dar concretude: Por fim, requer-se a aplicação do art. 20 da LINDB no julgamento desta ACP n. 0019192-92.2016.4.01.3200: "Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas." Diante do quadro apresentado, sem resolver a questão sobre o local em que será instalado o projeto minerário é ou não terra indígena, há aparência de que o projeto possui interesse social, eis que visa a fornecer insumos para a agricultura -, e também persegue um objetivo estatal legítimo, podendo ser executado inclusive se estiver em terras indígenas, desde que obedecida a legislação brasileira. III.b. O Conselho Indígena Mura - CIM e a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV O Conselho Indígena Mura - CIM é inequivocamente a entidade representativa dos Mura que residem em Autazes. Da mesma forma, a Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea - OLIMCV é a organização que representa os Mura no município do Careiro da Várzea. Essa circunstância é inequívoca dos autos e está consignada no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Careiro da Várzea, Amazonas. Confira-se à fl. 30, no capítulo "Quem Fala Em Nome dos Mura?": "Apesar de a Constituição Federal garantir que nossas terras sejam demarcadas, o Estado ainda não demarcou todas. A demarcação é nossa maior luta. "Mas nós sabemos que temos direito à nossa autodeterminação e ao autogoverno. A Constituição Federal de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, e a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, de 2007, assinadas pelo Brasil, garantem nosso direito ao autogoverno: somente nós, Mura, podemos decidir quem representa nossas aldeias e nosso povo. Por isso criamos as nossas organizações. As aldeias da região onde fica o município de Autazes se reúnem nas assembleias do Conselho Indígena Mura - CIM, e as aldeias que ficam na região onde está o município do Careiro da Várzea se reúnem nas assembleias da Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea, OLIMCV. Estas nossas organizações são um direito nosso, assegurado pela Constituição Federal (art. 5º): temos o direito de nos organizar livremente e de tomar nossas decisões de maneira soberana e autônoma nas assembleias das nossas organizações. Quando os não-índios querem elaborar um projeto, medida ou lei, são obrigados a nos consultar antes, sem nos pressionar e nos informando sobre todos os detalhes da proposta. Para começar esse diálogo, que é a consulta prévia, os não-índios " III.c. As Entidades Representativas e o Poder de Fala dos Povos Originários Nos termos do art. 32 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, são as instituições representativas dos povos originários que devem falar pelos indígenas em fases de consulta. Confira-se: "1. Os povos indígenas têm o direito de determinar e de elaborar as prioridades e estratégias para o desenvolvimento ou a utilização de suas terras ou territórios e outros recursos. 2. Os Estados realizarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas próprias instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre e informado antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particularmente em relação ao desenvolvimento, à utilização ou à exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo. 3. Os Estados estabelecerão mecanismos eficazes para a reparação justa e equitativa dessas atividades, e serão adotadas medidas apropriadas para mitigar suas consequências nocivas nos planos ambiental, econômico, social, cultural ou espiritual." Também no caso do Povo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Equador, sentença de 27 de junho de 2012, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi expressamente consignado que “os Estados devem incorporar essas normas aos processos de consulta prévia, de maneira a gerar canais de diálogos sustentados, efetivos e confiáveis com os povos indígenas nos procedimentos de consulta e participação por meio de suas instituições representativas." Sendo assim, como as consultas e cooperação entre indígenas devem ser verbalizadas por meio das suas instituições representativas, não há dúvidas de que, no caso em concreto, quem deve falar sobre os interesses dos Muras de Autazes é o CIM e pelos Mura de Careiro da Várzea é a OLIMCV. A própria decisão de id. 925987687, do Juízo de origem, reconhece que o CIM é a instituição que representa parte do Povo Indígena Mura nestes autos: III.d. A Abrangência do Dever de Consulta, a Inexistência do Poder de Veto e o Momento Adequado Sobre a abrangência do dever de consulta, no document Handbook for ILO Triparte Constituents - Understanding the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), publicado pela OIT, com a finalidade de responder questões essenciais sobre a Convenção 169, é dito que um dos principais desafios da convenção é garantir que consultas apropriadas sejam realizadas antes da adoção de medidas legislativas ou administrativas que provavelmente afetarão diretamente os povos indígenas e tribais [2]. Segundo o que decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos em Garífuna Triunfo de La Cruz e seus membros vs. Honduras, os elementos essenciais do direito de consulta são “a) o caráter prévio da consulta; b) a boa-fé e a finalidade de chegar a um acordo; c) a consulta adequada e acessível; d) o estudo de impacto ambiental; e e) a consulta informada.” É incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública. Essa ideia é pedagogicamente explicada na obra "The Oxford Handbook of International Enviromental Law", de Lavanya Rajamani e Jacqueline Peel, ao tratar da Convenção 169 da OIT (pág. 739): "Governments shall consult, 'in good faith...with the objective of achieving agreement or consent to the proposed measures' when considering legislative or administrative measures which may affect Indigenous peoples directly. Special measures to safeguard persons, institutions, property, labour, cultures, and environment of the Indigenous peoples shall not be contrary to the freelyexpressed wishes of the peoples concerned. The Convention acknowleges Indigenous peoples to be distinct polities within states". Em tradução livre: "Os governos deverão consultar, 'de boa fé... com o objetivo de chegar a acordo ou consentimento para as medidas propostas' ao considerar medidas legislativas ou administrativas que possam afetar diretamente os povos indígenas. Medidas especiais para salvaguardar pessoas, instituições, propriedades, trabalho, culturas e meio ambiente dos povos indígenas não devem ser contrárias aos desejos livremente expressos dos povos envolvidos. A Convenção reconhece os povos indígenas como entidades políticas distintas dentro dos Estados". Portanto, devem os indígenas expressar livremente seus modos de criar, fazer e viver, nos termos do art. 216, II, da Constituição e devem ser ouvidos propriamente quando puderem ser afetados por medidas que os impactem. Mas não basta. É indispensável que suas ideias, expressadas num ambiente livre e sem intimidações, sejam consideradas pelo órgão ambiental e pelo poder público, como um todo, ao analisar o licenciamento e/ou autorização para uma obra ou empreendimento que puderem afetar tais comunidades tradicionais. Em outras palavras, esse poder de fala (livre) dos indígenas gera, em contrapartida, um dever de escuta das autoridades envolvidas. É importante esclarecer, porém, que isso não significa a existência de um poder de veto por parte da comunidade indígena. Realizar a consulta é uma obrigação convencional, com força supra legal. Acatar necessariamente a integralidade do que for demandado não parece ser, ao menos pelo que constatei da jurisprudência do STF e do que consta em documentos da própria OIT. Confira-se, nesse sentido, o que já decidiu o STF, no julgamento da PET 3388 ED/RR: "70. Por fim, conforme observado pelo Ministro Gilmar Mendes, a relevância da consulta às comunidades indígenas “não significa que as decisões dependam formalmente da aceitação das comunidades indígenas como requisito de validade” (fl. 799). Os índios devem ser ouvidos e seus interesses devem ser honesta e seriamente considerados. Disso não se extrai, porém, que a deliberação tomada, ao final, só possa valer se contar com a sua aquiescência . Em uma democracia, as divergências são normais e esperadas. Nenhum indivíduo ou grupo social tem o direito subjetivo de determinar sozinho a decisão do Estado. Não é esse tipo de prerrogativa que a Constituição atribuiu aos índios. 71. A mesma lógica se aplica em matéria ambiental, que também mereceu proteção diferenciada por parte do constituinte. Por isso mesmo, e com a devida vênia em relação à posição da embargante (fl. 16.165), não há um problema a priori no fato de que “as tradições e costumes indígenas” sejam considerados como “apenas mais um fator, a ser sopesado pela autoridade ambiental”. Em verdade, essa é uma circunstância inerente à unidade do sistema constitucional, que promove a tutela de um conjunto variado de interesses e direitos que, em diversas situações, podem entrar em rota de colisão. Ao não instituir uma hierarquia rígida ou estática entre tais elementos, a Constituição impõe a necessidade de que a concordância entre eles seja produzida em cada contexto específico, à luz de suas peculiaridades. 72. Assim, como responsável pela administração das áreas de preservação, o Instituto Chico Mendes não pode decidir apenas com base nos interesses dos indígenas, devendo levar em conta as exigências relacionadas à tutela do meio ambiente. Nesse cenário, é de fato possível – como afirma a embargante – que “o administrador da unidade de conservação, até pela sua posição institucional, ponha em primeiro plano a tutela ambiental, em detrimento do direito das comunidades indígenas”. Contudo, é igualmente possível que isso não ocorra, não cabendo a este Tribunal antecipar o erro, a negligência ou a má-fé. Em qualquer caso, os índios, suas comunidades e o próprio Ministério Público poderão recorrer ao Poder Judiciário sempre que reputarem inválida uma decisão do Instituto (ou de qualquer outra autoridade)." (Emb. Decl. na Petição 3.388/RR, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 23.10.2013) No mesmo sentido, são os comentários feitos no documento editado em 2019, pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, intitulado Excerpts from reports and comments of the ILO Supervisory Bodies - Applying the Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169), disponível no site da organização: Confira-se o que está dito nas fls. 48-49 do referido documento: "Concerning the nature of consultation, from the review of the preparatory work concerning Convention No. 169 and from the review of the wording of the two authoritative texts of the Convention, the Committee concludes that it was the intention of the drafters of the Convention that the obligation to consult under the Convention was intended to mean that: 1) consultations must be formal, full and exercised in good faith; 26 there must be a genuine dialogue between governments and indigenous and tribal peoples characterized by communication and understanding, mutual respect, good faith and the sincere wish to reach a common accord; 2) appropriate procedural mechanisms have to be put in place at the national level and they have to be in a form appropriate to the circumstances; 3) consultations have to be undertaken through indigenous and tribal peoples’ representative institutions as regards legislative and administrative measures; 4) consultations have to be undertaken with the objective of reaching agreement or consent to the proposed measures It is clear from the above that pro forma consultations or mere information would not meet the requirements of the Convention. At the same time, such consultations do not imply a right to veto, nor is the result of such consultations necessarily the reaching of agreement or consent." [3] A tradução livre deste trecho é a seguinte: "Quanto à natureza da consulta, da revisão dos trabalhos preparatórios relativos à Convenção nº 169 e da análise dos textos das duas versões autorizadas da Convenção, o Comitê conclui que os redatores da Convenção tinham a intenção de que a obrigação de consultar sob a Convenção significasse o seguinte: as consultas devem ser formais, completas e exercidas de boa fé; deve haver um diálogo genuíno entre os governos e os povos indígenas e tribais caracterizado pela comunicação e entendimento mútuos, respeito mútuo, boa fé e o sincero desejo de alcançar um acordo comum; mecanismos procedimentais apropriados devem ser estabelecidos no nível nacional e devem estar em uma forma adequada às circunstâncias; as consultas devem ser realizadas por meio das instituições representativas dos povos indígenas e tribais no que se refere a medidas legislativas e administrativas; as consultas devem ser realizadas com o objetivo de alcançar acordo ou consentimento quanto às medidas propostas. É claro a partir do exposto que consultas meramente formais ou simples fornecimento de informações não satisfariam os requisitos da Convenção. Ao mesmo tempo, tais consultas não implicam um direito de veto, nem o resultado dessas consultas necessariamente é o alcance de um acordo ou consentimento." É essencial, assim, deixar claro que a opção pelo empreendimento, ou não, é do Poder Público e a ele compete, respeitando os termos da Constituição e da legislação, licenciá-lo. Por fim, sobre o momento da consulta, no caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador, decidido em 27.12.2012, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi também referido que o “requisito de consulta prévia implica que essa consulta deva ser realizada antes de tomar-se a medida, ou executar o projeto suscetível de afetar as comunidades [...] e que as comunidades sejam envolvidas o quanto antes no processo”. III.e. Análise das alegações do agravo de instrumento Pois bem, apresentados estes esclarecimentos introdutórios, passa-se ao exame do agravo. Como dito, no recurso, é postulada a reforma da decisão agravada, "excluindo-se a suspensão quanto a apresentação do resultado da Consulta do Povo Mura que, sendo juntado aos autos, deverá ser considerado válido e ser respeitado, devendo ainda ser excluída da decisão questões que não são objeto da ação, como a necessidade de autorização do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas e as questões climáticas que não são objeto de discussão na ação". Ou seja, o que se deseja é que seja reconhecida como válida da consulta efetivada, bem como que seja definido que a área do projeto não é terra indígena, consequencia lógica para se afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional (art. 231, § 3º, CF). III.e.1. O Processo de Consulta no Caso Concreto O processo de consulta, no caso em questão, demandou anos para ser realizado. Pela análise dos autos, é possível perceber que o anúncio da descoberta das minas se deu 2010 e 2013 e o Estudo de Impacto Ambiental foi concluído em 2015 (id. 296953002), assim como a emissão da licença prévia pelo IPAAM, cuja validade é questionada na origem. Como a Ação Civil Pública nº 0019192-92.2016.4.01.3200 foi ajuizada em 2016, todo o processo de consulta foi acompanhado pelo Juízo. Antes de iniciar a fase de consulta, em 7.5.2018, foi determinada a suspensão de qualquer atividade de prospecção por parte da Potássio do Brasil Ltda., para que fosse iniciada a construção de um protocolo de consulta. O Juízo inclusive homologou a designação um antropólogo, o Dr. Bruno Walter Caporrino, para mediar, facilitar e presidir os trabalhos de construção do protocolo de consulta, tendo este sido remunerado pela Potássio do Brasil Ltda. Tanto a FUNAI, como o DNPM foram devidamente cientificados do procedimento definido. Confira-se o inteiro teor da decisão (id. 297015035): Ou seja, o presente caso apresenta uma particularidade em relação aos que normalmente são judicializados: toda a fase de consulta foi acompanhada pelo Juízo. É interessante verificar também o inteiro teor dos relatórios das oficinas realizadas nas aldeias, cuja elaboração coube ao Dr. Bruno Walter Caporrino. São trabalhos bastante extensos e ricos em em destacar o procedimento que estava sendo levado a efeito pelo perito. Por exemplo, o relatório constante do id. 297015043, protocolado nos autos em 2018, contém 169 páginas e é encaminhado por meio do ofício abaixo, com os seguintes termos: As seguintes aldeias foram visitadas: Ao todo, foram 19 atividades: Posteriormente, ainda houve a protocolização de relatórios complementares em 2019 (fls. 1255 - 1719 - id. 297031909). Após, houve uma Assembleia de Aprovação do Protocolo de Consulta e Consentimento Mura em 18.6.2019. A Lista de presença está à fl. 1.780-1.810 e a ata ás fls. 1.758-1779 - id. 297031909. Há juntada de DVDs com a audiência gravada e também de cópia impressa do protocolo (fls. 1.825-1.880 - id. 297047874). O procedimento foi plenamente aceito por todas as partes envolvidas, chegando o MPF, na petição de 11.9.2019 (fl. 1.906-1.909) a afirmar que se cuida de relevante momento para o Estado democrático de direito. Frise-se que as aldeias do Soares e Careiro receberam Oficinas, conforme acima relatado. Ficou também expresso que o princípio da vinculação ao aos termos do referido instrumento deveria reger a relação e que estava sendo inaugurado um interesse diálogo das fontes: Posteriormente, foi realizada audiência judicial na qual foi acordado que a Potássio do Brasil Ltda. entregaria até o dia 18.11.2019 a proposta do empreendimento oficialmente ao CIM e à OLIMCV. Confira-se a parte final da ata: Ato contínuo, em 18.11.2019, foi protocolada petição pela Potássio do Brasil Ltda. comunicando a entrega do material ao CIM e ao OLIMCV, as quais responderam confirmando o recebimento da documentação e dando o aceite no início do processo de consulta (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). O protocolo também foi feito perante a Justiça Federal, o MPF e o perito do juízo foi copiado nos emails. Em relação às características do empreendimento, foi informado o seguinte em documentos acostados aos autos: Após, com o início da pandemia da COVID-19, o processo sofreu atrasos e apenas foi retomado em 2021, depois da vacinação dos Mura. Foi apresentado orçamento da consulta, equivalente a R$ 1.258.687,90 (id. 637592027). Foi estabelecido um cronograma de reuniões com dos Povos Mura informado pelo CIM (id. 830734065), sendo que o plano era a conclusão até o final de maio de 2022: Após, foi realizada inspeção judicial em 29.3.2022 (Relatório - id. 1061672277) o que representou mais uma paralisação no processo. O ponto mais relevante consignado foi o seguinte: Em seguida, houve notícia de que o MPF protocolou a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200, mediante a qual pleiteia que seja concluída a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Ato contínuo, petição de 20.9.2022, o MPF relatou a existência de pressões e coações por parte da empresa sobre os povos indígenas de Autazes e região e a sobreposição da exploração minerária pretendida pela Potássio do Brasil Ltda. ao referido território tradicional indígena. Ademais, aduziu o MPF que as estruturas minerárias seriam construídas a aproximadamente dois quilômetros da área de moradia (casas da aldeia Soares), e dentro da área indígena reivindicada, território de uso tradicional do povo Mura. Nesse contexto, requer a suspensão da licença expedida quanto ao Projeto Potássio Amazonas/Autazes, bem como a suspensão do procedimento de consulta prévia até finalização do procedimento de demarcação do território (ACP 1015595-88.2022.4.01.3200), no qual haveria liminar concedida. Sobre esse pedido, a FUNAI se manifestou sobre a ausência de indícios de tradicionalidade (id. 1419622747): Após, em 16.2.2023, a FUNAI fez juntar aos autos documento intitulado Análise Cartográfica nº 138/2023, mediante a qual apresentou as seguintes conclusões (id. 1496199359): Veja-se, então, que se diz expressamente que há uma área de sobreposição, mas ao mesmo tempo afirma-se que há uma distância de 2,52 km da aldeia Soares da base de exploração. Foi também apontada uma área de influência considerada uma área de 10 km a partir da área total do “Projeto Potássio Amazonas – Autazes”, nos termos do Anexo I da Portaria Interministerial nº 60/2015 da FUNAI. O mapa trazido na inicial permite a compreensão da área: É curioso notar que a existência de indígenas e também de não indígenas na área do Lago do Soares foi identificada quando da demarcação da Terra Indígena Jauary, mas não entendeu-se que o local onde será instalado a base de exploração da Potássio do Brasil Ltda. não deveria ser abarcado no perímetro da respectiva terra. Confira-se a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): É importante perceber também que, segundo informações da FUNAI, o município de Autazes possui mais de 20 terras indígenas regularizadas ou em processo de demarcação. Ou seja, não é um município em relação ao qual já não se tenham sido feitas delimitações de áreas de tradicionalidade indígena. Além disso, é válido destacar que no Caso Povos Kaliña e Lokono VS. Suriname, decidido em 2015, ficou estabelecido que “para efeitos de delimitação, demarcação e titulação do território tradicional [...], a Corte estima que o direito à propriedade dos povos indígenas e tribais contempla garantias plenas sobre os territórios que tradicionalmente possuíram, ocuparam e utilizaram para exercer sua própria forma de vida, subsistência, tradições, cultura e desenvolvimento como povos”. No entanto a Corte assinalou que “sem prejuízo do exposto, existiriam outras áreas tradicionais complementares ou adicionais às que tenham tido acesso para suas atividades tradicionais ou de subsistência (que, caso seja conveniente, podem compartilhar outras finalidades), a respeito das quais se deve garantir, pelo menos, o acesso e uso, na medida em que seja cabível.” Ou seja, para a CIDH, nem toda área área que os indígenas utilizem para subsistência ou mesmo habitem configura necessariamente uma Terra Indígena. Chama a atenção o fato de que a própria inspeção judicial constatou a presença de populações ribeirinhas na região do Lago do Soares, as quais, ao que parece, estão lá também há muitos anos, sendo que existe uma convivência aparentemente harmoniosa: Na inicial da ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 é também reconhecida a existência de indígenas e ribeirinhos, tendo em vista que há aldeias e povoados na região: No caso acima a Corte também constatou que “efetivamente, dentro do território que os Povos Kaliña e Lokono alegam ser seu território tradicional, haveria, pelo menos 10 assentamentos maroons que estariam excluídos dessa queixa, a saber: 1) Albina; 2) Papatam; 3) Mankelekampu; 4) Mariakondre; 5) Eduardkondre; 6) Akoloikondre; 7) Bamboesi; 8) Koni; 9) Moengotapu; e 10) Adjoemakondre [...]. No entanto, a Corte não dispõe de informação suficiente que lhe permita esclarecer os argumentos relacionados a possíveis assentamentos maroons em: 1) Bilokondre; 2) Krontokondre; 3) Soke; 4) Pakirakondre; 5) Mopikondre; 6) Onikaikondre; 7) Manjabong; 8) Bonikondre ou Baajoebekampu; 9) Nengrekriki; 10) Solegakampu; e 11) Brunswijkkamp […]” E disse que, “sem prejuízo do exposto, sendo que é dever do Estado delimitar os territórios tradicionais, cabe a ele, mediante um processo consultivo e mediante as medidas necessárias de caráter administrativo e legais, conforme as normas internacionais na matéria, primeiramente delimitar os territórios que cabem aos Povos Kaliña e Lokono, em conformidade com o parágrafo 139 desta sentença, para assim proceder a sua demarcação e titulação, garantindo seu uso e gozo efetivo. Para isso, o Estado também deve respeitar os direitos que possam assistir aos povos tribais ou a seus membros na área. Para isso, o Estado deverá desenvolver, de comum acordo com as comunidades indígenas e maroons, regras de convivência pacíficas e harmoniosas no território em questão.” Por fim, o CIM, em 25.9.2023, protocolou petição comunicando que (i) aprovou o desmembramento entre as aldeias de Autazes e Careiro da Várzea, havendo o Povo Mura de Autazes aprovado o seu próprio protocolo de consulta, bem como que (ii) aprovou pela maioria das aldeias de Autazes (mais de 60%, conforme o protocolo de consulta) a realização e execução do Projeto Potássio Autazes, concordando que a Potássio do Brasil Ltda. faça a mineração. Eis a petição (id. 1829380152): Em anexo, foi apresentado o Relatório das Lideranças Mura de Autazes (id. 1829380154): Não houve juntada de documento de aprovação ou de rejeição do OLIMCV. Houve inclusive alteração do Protocolo de Consulta, excluindo a participação do OLIMCV, ou seja, dos Mura do município do Careiro da Várzea, em relação à deliberação da agravante. III.e.2. A Validade da Consulta Efetivada Cumpre examinar a validade da Consulta efetivada. Com efeito, foi devidamente reconhecido com ao CIM compete emitir manifestação de vontade sobre o Povo Mura de Autazes. Pela dicção do art. 6º da Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, “ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”. Não parecem existir argumentos que possam permitir que, ao menos em sede de cognição sumária, que a consulta realizada ao povo CIM não tenha sido efetuada com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. Como se depreendeu do histórico acima, houve um amplo debate com o Povo Mura de Autazes para entender o que significava o processo de consulta, compreender a relevância de examinar o projeto e também os direitos que terão frente a ele. O processo foi iniciado há quase 10 anos. Há notícias de oficinas, reuniões, audiências públicas. A aparência é que tenha sido um processo livre, eis que ainda houve acompanhamento judicial das etapas, algo que não é o usual. Seguiu-se, assim, o que havia determinado a FUNAI (fl. 1362 - id. 297018889): Não há notícia de que o CIM tenha alterado o posicionamento externado na petição acima. Este Relator recebeu as lideranças em seu Gabinete em Audiência e tudo foi reafirmado. Apesar de a consulta ter sido realizada após a emissão da licença prévia pelo IPAAM, ela foi feita antes de concretizado qualquer ato de instalação e exploração do empreendimento. Houve inclusive acordo judicial suspendendo as etapas, até que fosse concluída a Consulta. A licença prévia ainda continha como condicionante de que era necessária a apresentação do estudo de componente indígena à Funai. Confira-se (id. 296936996 - fl. 242): Não se pode, então, dizer que a consulta não obedeceu ao momento adequado. No caso concreto, não há realisticamente como ter existido uma consulta anterior à que foi realizada, uma vez que foi feita durante os estudos para ser decidir sobre a viabilidade ou não da obra. Ou seja, fase meramente preliminar, sem qualquer ato de execução, quando já identificados os riscos do empreendimento e quando ainda há um tempo "adequado para a discussão interna nas comunidades, para oferecer uma resposta adequada ao Estado". Além disso, os indígenas aparentemente tiveram amplo acesso à documentação do empreendimento, ao EIA/RIMA, ao Estudo de Componente Indígena e tiveram ampla chance de compreender o que está sendo proposto. Não se pode dizer que a realização de consulta por meio de audiências públicas não cumpre a obrigação de adequadamente consultar os povos. Os procedimentos apropriados exigidos pela Convenção são aqueles que os indígenas acharem apropriados. Se a audiência pública for assim considerada, não há porque concluir que não é adequado para o fim pretendido. Não há nada que imponha uma forma de consulta diversa, salvo a vontade dos indígenas. Por fim, chama a atenção de que o Protocolo de Consulta tenha sido alterado no curso do processo para separar o consentimento entre o CIM, o qual, como dito acima, inequivocamente representa os Mura que residem em Autazes, e a OLIMCV, entidade representativa que representa os Mura no município de Careiro da Várzea. Esta alteração, contudo, não tem o condão de retirar a validade da consulta efetivada. Isso, porque pela leitura dos autos, percebe-se que a própria Funai sempre se manifestou no sentido de que a população indígena potencialmente afetada era a dos Mura de Autazes. Confira-se o seguinte trecho, por exemplo (fl. 1.362 – id. 297018889), em que é dito que os indígenas que deveriam ser consultados são os da Terra Indígena Jauary e Paracuhuba, as quais, consoante a Análise Cartográfica nº 138/2023, são as que estão próximas do empreendimento: Além disso, o fato de que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, dissidência do CIM, não tenham se manifestado junto com o CIM não impede que eles expressamente se pronunciem sobre a consulta. A documentação dos autos comprova que a OLIMCV e a Organização Mura do Lago do Soares, então parte do CIM, receberam todos os documentos relativos ao empreendimento (fls. 1.993-2000 -id. 297047889). A OLIMCV inclusive confirmou o recebimento do e-mail (id. 297047889 – p. 33): Existe a comprovação de que foram recebidas diversas unidades do protocolo de consulta, requerimento de despesas para realização de reuniões (id. 297018967): Confira-se, ainda, o seguinte documento (id. 637592035): É preciso dizer que a proteção dos povos e terras indígenas é permanente para o Estado Brasileiro. A mera circunstância de que a consulta foi realizada não satisfaz a obrigação permanente de assistência e proteção desses povos, ouvindo-os sempre de boa-fé e atendendo, quando possível, as demandas pleiteadas. O que se estabelece é um diálogo permanente e não momentâneo. Se novas dúvidas surgirem, se problemas antes não imaginados forem detectados, competirá ao Estado Brasileiro lidar com as questões e sanar esses problemas, de forma a dar ampla concretude aos direitos e garantias dos povos originários. Assim, caso a OLIMCV logre comprovar que a delimitação da Funai está de que os Mura de Careiro da Várzea deveriam também ser obrigatoriamente consultados, ainda que não haja notícias de que nenhuma aldeia será diretamente impactada pelo trajeto, tal diálogo tem totais condições de ainda ser estabelecido de maneira satisfatória, com a implantação de reparações necessárias, mesmo com o projeto em curso. Adicionalmente , também é de se considerar que o fato de os Mura da aldeia do Lago de Soares, situada em Autazes, terem ficado vencidos na alteração do protocolo de consulta e, posteriormente, terem decidido romper com a autoridade constituída, qual seja, o CIM, não invalida a alteração. No modelo deliberativo adotado pelos Mura de Autazes, não há exigência de unanimidade para a aprovação da alteração, a qual, é certo, inviabilizaria a conclusão do processo. Não é possível invalidar a alteração do protocolo de consulta somente porque os Mura do Lago de Soares, submetidos, incontroversamente, à data da deliberação, à autoridade do CIM, discordam da decisão. Chancelar a nulidade da alteração diante da discordância de uma parcela dos indígenas afetados representaria a inviabilização da construção de um protocolo de consulta e de qualquer deliberação, especialmente em relação a litígios complexos, vide o caso dos autos. Na obra Constitutional Strategies, o Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Berkeley, Robert Cooter, aponta as deficiências de um sistema baseado na regra da unanimidade: “O poder de barganha depende das consequências da falha na negociação. Se uma negociação é frustrada, cada parte deve fazer o seu melhor sem a cooperação dos demais. As partes que se beneficiam menos da cooperação terão o maior poder de barganha. Como uma parte pode ter êxito sem a cooperação das demais depende da regra da ação coletiva. Primeiramente, considere a regra da unanimidade. Negociações frustradas na regra da unanimidade paralisam as ações coletivas. Consequentemente, quando barganham sob a regra da unanimidade, as regiões e as coletividades com menor necessidade de cooperação podem demandar as melhores condições.[...] A força da negociação está nas mãos dos membros potenciais de uma coalizão majoritária. Quando se negocia sob uma regra de maioria, as regiões e as localidades dentro da coalizão interna podem demandar melhores condições de cooperação dos externos”. Por fim, é importante ter em mente que tanto os povos originários representados pela OLIMCV e pela Organização dos Mura do Lago do Soares tiveram amplo tempo e conhecimento do Projeto Autazes e podem ainda se pronunciar formalmente nos autos de origem sobre o que pensam a respeito do assunto. A circunstância de que houve uma ruptura do formato conjunto de todas as organizações de deliberação do Protocolo de Consulta em nada impede que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares emitam qualquer opinião sobre o Projeto nesses autos judiciais, tampouco que apresentem essa manifestação de vontade a qualquer órgão estatal. Há, ao meu sentir, um deslocamento do debate, como se a circunstância de a alteração do Protocolo represente a inviabilização de que essa emissão de vontade não possa mais ocorrer, o que não faz qualquer sentido. Em verdade, a ausência de manifestação formal sobre o tema da consulta para depois se alegar que a Consulta não ocorreu representa um veto em branco ao Projeto, pois se busca evitar a consolidação de uma etapa necessária deslocando o foco do debate. É importante ressaltar que a CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. Veja-se que essas organizações não alegam que não estão devidamente informadas, que não tiveram tempo para se reunir ou debater, que não receberam documentos, que não tiveram como debater o projeto com órgãos estatais ou com a empresa. O que se alega simplesmente é que o CIM não poderia ter aprovado isoladamente o projeto, sem que se diga se aprovam ou desaprovam e por quais razões. Veja o que disse a CIDH no caso Pueblo Indígena U’WA y sus miembros VS. Colombia: 191. Nos casos em que – tendo os Estados promovido a consulta de boa-fé e em conformidade com os padrões previamente estabelecidos (supra, parágrafos 168 a 178 e 190) – o povo indígena se recuse a participar, deverá ser considerado que o povo indígena está em desacordo com a atividade objeto da consulta e, portanto, a obrigação da consulta será considerada esgotada. Além disso, os Estados devem garantir que as medidas adotadas sejam proporcionais e respeitem o princípio da igualdade e da não discriminação, levando também em consideração a natureza da medida e seu impacto no território e na cultura. Do mesmo modo, os Estados devem garantir o acesso à justiça em relação às medidas que possam afetar diretamente um povo indígena ou tribal, a fim de verificar se a consulta prévia foi realizada em conformidade com as obrigações internacionais do Estado e com a jurisprudência desta Corte. Caso o povo indígena tenha se recusado a participar da consulta, a autoridade judicial deverá verificar se o Estado tomou medidas específicas e agiu de boa-fé para realizar a consulta prévia, livre e informada, e se, nesse contexto, a atividade restringe de forma desproporcional os direitos do povo indígena ou tribal. Tradução livre de: 191. En los casos en los que –habiendo los Estados impulsado la consulta de buena fe y conforme a los estándares previamente señalados (supra, párrs. 168 a 178 y 190)— el pueblo indígena se niegue a participar, deberá considerarse que el pueblo indígena está en desacuerdo con la actividad objeto de la consulta, y por lo tanto la obligación de la consulta se tendrá por agotada271. Además, los Estados deben garantizar que las medidas adoptadas sean proporcionales y respeten el principio de igualdad y no discriminación, tomando además en consideración la naturaleza de la medida y su impacto en el territorio y la cultura272. Asimismo, los Estados deben garantizar el acceso a la justicia frente a las medidas que puedan afectar directamente a un pueblo indígena o tribal, a fin de verificarse si la consulta previa fue realizada de conformidad con las obligaciones internacionales del Estado y la jurisprudencia de esta Corte. En caso de que el pueblo se haya negado a participar en la consulta, la autoridad judicial deberá verificar si el Estado tomó medidas específicas y de buena fe a fin de realizar la consulta previa, libre e informada, y si en ese contexto la actividad limita de forma desproporcionada los derechos del pueblo indígena o tribal. Fonte: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_530_esp.pdf Sendo assim, deve-se considerar que a etapa de consulta foi adequadamente cumprida e que a OLIMCV e a Organização dos Mura do Lago do Soares, por não emitirem pronunciamento expresso sobre os termos da consulta, apesar de cientes dessa prerrogativa – uma vez que participaram da elaboração do protocolo de consulta –, bem como dos termos do projeto, uma vez que receberam da Potássio o e-mail contendo todas as informações -, simplesmente se recusaram a participar. Por tal razão, os órgãos estatais devem considerar que recusaram o projeto, sem que isso implique poder de veto. Frise-se que a ausência da manifestação dessas associações não exime o Estado de proteger legitimamente os indígenas que habitam nas aldeias que representam. Como disse a União no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000, “todos os impactos ambientais e socioculturais do empreendimento sobre o povo mura do Lago de Soares e da Vila de Urucurituba estão sendo devidamente tratados no licenciamento ambiental em curso. Durante o licenciamento, foi elaborado estudo do Componente Indígena, indicando as consequências sociais e ambientais do empreendimento, bem como apresentados formas de mitigação/compensação” (id. 274290022 – fl. 39). Ante esse quadro, ao menos em juízo preliminar, não há razões para concluir que o Estado Brasileiro não cumpriu os seus compromissos internacionais de respeito aos direitos humanos indígenas em relação ao projeto de aprovação da licença prévia do empreendimento em questão, uma vez que procedeu adequadamente quanto à consulta destes povos. III.e.3. A Competência para Licenciar o Empreendimento A decisão agravada ainda consignou ser o IBAMA o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto. Creio estar a compreensão equivocada e que o correto entendimento foi abordado de forma minuciosa pela União quando da interposição do Agravo de Instrumento n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que será julgado na mesma oportunidade deste recurso. Coaduno com a fundamentação exposta pela União, pelo que integro-a às razões de decidir deste agravo. A Lei Complementar 140, de 8 de dezembro de 2011, regulamenta a competência dos entes federativos em questões ambientais, estabelecendo diretrizes para cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Alinhada à Constituição Federal, a norma aborda ações administrativas conjuntas relacionadas à proteção do meio ambiente, combate à poluição e preservação de recursos naturais, como florestas, fauna e flora. Essa norma promoveu uma divisão clara de competências, reduzindo conflitos especialmente no âmbito do licenciamento ambiental, que antes era regulado majoritariamente pela Resolução 237 do CONAMA. A lei determina que apenas um órgão será responsável pela aprovação, fiscalização e eventual sanção, assegurando celeridade, transparência e segurança jurídica no processo de licenciamento. A lei também prevê instrumentos de cooperação, como consórcios públicos, convênios e delegações de competências, desde que o ente delegado disponha de estrutura técnica e conselho ambiental adequados. A simplificação do licenciamento ambiental permite que empreendimentos poluidores ou potencialmente degradantes sejam licenciados pelo órgão competente de qualquer nível federativo, inclusive municipal, promovendo eficiência administrativa. Confira-se os dispositivos da norma que tratam sobre a competência de cada ente federativo, sobretudo com relação ao licenciamento ambiental: Art. 7º São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: a) localizados ou desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; b) localizados ou desenvolvidos no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva; c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; d) localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pela União, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados; f) de caráter militar, excetuando-se do licenciamento ambiental, nos termos de ato do Poder Executivo, aqueles previstos no preparo e emprego das Forças Armadas, conforme disposto na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999; g) destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen); ou h) que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento; -.-.- Art. 8° São ações administrativas dos Estados: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7° e 9°; XV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pelo Estado, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); -.-.- Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade; ou b) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); Dito isso, peço licença para transcrever a argumentação da União nos autos do AI n° 1014645-76.2022.4.01.0000, que adoto como razões de decidir: "[p]ercebe-se que a LC nº 140/2011 trouxe diferentes critérios definidores de competência para cada ente (União – localização e tipo de atividade; Município – alcance do impacto ambiental; Estado – residual). Cada critério não se confunde com os demais e não tem aplicação a outros entes federativos. Da leitura do art. 8º, XIV depreende-se que aquilo que não estiver expressamente taxado como sendo competência da União (art. 7º) ou dos Municípios (art. 9º) é competência dos Estados-membros (caráter residual). Por isso, nada mais natural do que ler as competências contidas na LC nº 140 de forma restritiva ou literal em relação a União e Municípios. Como destacou o TRF da 1ª Região, ao tratar da interpretação restritiva em caso envolvendo competência para licenciamento ambiental, assim como na Constituição, “o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal.” (TRF da 1a Região, 5a T., v.u., AC 0000267- 95.2005.4.01.3600, rel. Des. João Batista Moreira, j. em 17/08/2011, eDJF1 26/08/2011, p. 153.) Dessa forma, não cabem considerações expansivas da competência da União, devendo o intérprete trabalhar com o texto dado pela LC 140, não podendo usar argumentos não previstos expressamente na lei. Na perspectiva da LC n. 140/2011, a competência para licenciamento será federal apenas quando estiver configurada uma das hipóteses previstas no art. 7º, XIV, que estabelece apenas critério de localização e de tipo de atividade ou no caso de empreendimentos que atendam a tipologia prevista na alínea "h" (atualmente definida no Decreto nº 8.437, de 22 de abril de 2015). Percebe-se, portanto, que para que haja competência federal para licenciamento prevista no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140/2011 (Terra Indígena), deve-se atender ao critério da localização do empreendimento – não tendo aplicação o critério do alcance dos impactos: Art. 7° São ações administrativas da União: (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: (...) c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; Quando o legislador quis adotar o critério do âmbito do impacto ambiental da atividade ou empreendimento, o fez de forma explícita: Art. 9° São ações administrativas dos Municípios: (...) XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos: a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade Percebe-se, claramente, que o legislador adotou o critério do alcance do impacto ambiental no art. 9º, XIV, “a” da LC nº 140 como definidor apenas da competência para licenciamento dos Municípios. Já no art. 7º, XIV, “c” da LC nº 140 constata-se que não houve menção alguma ao âmbito de impacto do empreendimento, mas apenas à localização e ao desenvolvimento da atividade: “localizados ou desenvolvidos em terras indígenas”. Se quisesse adotar o critério do impacto ambiental para competência federal, o legislador teria definido que são ações administrativas da União promover o licenciamento de empreendimentos e atividades que causem ou possam causar impacto ambiental em Terra Indígena. Não o fez. Optou pelo critério da localização. Houve, portanto, silêncio eloquente do legislador, que, em relação ao licenciamento de atividades em Terra Indígena optou por afastar o critério do alcance do impacto e adotar exclusivamente o critério da localização do empreendimento. Ou seja, a competência somente será fixada como federal quando o empreendimento estiver localizado dentro da Terra Indígena, não se aplicando o critério de impacto ambiental para fixação da competência federal. O empreendimento tratado na demanda está localizado e será desenvolvido completamente fora de Terra Indígena (demarcada e em demarcação). Em relação à INSTRUÇÃO NORMATIVA CONJUNTA Nº 1, de 22 de fevereiro de 2021 da Funai, mencionada no despacho a que a Juíza faz referência na decisão agravada, destaca-se que o ato dispõe sobre os procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor seja organização indígena. O que reforça que a competência federal se dá no caso de empreendimento localizado ou desenvolvido no interior de terra indígena – e não de atividades que possam afetar terra indígena. Ademais, as áreas de influência direta e indireta dos impactos ambientais do empreendimento devem vir definidas no EIA, que é elaborado por equipe multidisciplinar habilitada, responsável tecnicamente pelos estudos apresentados. No caso do empreendimento em tela, verifica-se que o EIA apresentado definiu a área de influência dos impactos ambientais do empreendimento em dois quilômetros quadrados (2 km²) no Projeto Autazes. O empreendimento, como demonstrado anteriormente, encontra-se a 8 km dos limites de terras indígenas demarcadas e em demarcação. Quanto à Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, imperioso tecermos alguns comentários. Inicialmente, importante destacar que a referida portaria estabelece procedimentos administrativos para oitiva da FUNAI, da Fundação Cultural Palmares, do IPHAN e do Ministério da Saúde em licenciamentos ambientais que já são de competência do Ibama. A portaria não estabelece, portanto, critério para definição de competência, mas apenas regras e procedimentos administrativos para a oitiva dos mencionados entes e órgãos. Assim, no curso de licenciamento que já está ocorrendo perante o Ibama: (a) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra quilombola, deverá haver manifestação da Fundação Cultural Palmares, (b) se constatada a ocorrência de bens culturais acautelados em âmbito federal na área de influência da atividade, deverá haver manifestação do IPHAN, (c) se constatado que pode haver impacto socioambiental em terra indígena, deverá haver manifestação da FUNAI e (d) se o empreendimento localizar-se em município pertencente à área de risco ou endêmica para malária, deverá haver oitiva do Ministério da Saúde. Percebe-se claramente que a portaria não fixa critérios de definição de competência para licenciamento pelo Ibama. Não se cogita competência do Ibama para licenciar empreendimento pelo simples fato de impactar em terra quilombola, afetar bens culturais acautelados no âmbito federal ou estar localizado em área de risco de malária. Assim, a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Do mesmo modo, a presunção de intervenção em terra quilombola, quando o empreendimento estiver no raio de 10 km (art. 3º, § 2º, II c/c Anexo I), obviamente, também não gera competência automática do Ibama, gerando apenas a necessidade de oitiva da Fundação Cultural Palmares. (...) A Portaria Interministerial n. 60/2015, dos Ministérios do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, portanto, não prevê competência da União (IBAMA) para licenciar quando se presume a intervenção em terra indígena (ou em terra quilombola ou em área de risco de malária ou em área com bens culturais acautelados) pelo fato do empreendimento estar localizado no raio de 10 km. A referida norma infralegal não atrai a competência do IBAMA por ausência de previsão no art. 7º da L.C 140/11, gerando apenas a exigência de oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), e não usurpação da competência para licenciar. Nesse ponto, importante diferenciar o critério para definição de competência para licenciamento, qual seja, a localização dentro de Terra Indígena, que deve ser interpretado restritivamente (art. 7º, XIV, “c” e art. 8º XIV), do critério para realização de Estudo de Componente Indígena ou de Consulta Prévia a povos indígenas e comunidades tradicionais, que é qualquer medida suscetível de afetá-los, o que admite uma interpretação mais elástica e, inclusive, foi objeto de concordância entre as partes para a sua realização. Percebe-se, então, que a hipótese normativa do art. 7º, XIV, inciso “c” da Lei Complementar n. 140 se aplica exclusivamente aos projetos localizados no interior de terras indígenas. No caso de empreendimento fora de terra indígena, a competência será do órgão ambiental estadual, mesmo que haja necessidade de ECI, de Consulta Prévia e haja reflexo na TI". Entendo correta assim a conclusão a que chegou a União, a partir da leitura da legislação, de que a presunção de intervenção em terra indígena, quando o empreendimento estiver localizado no raio de 10 km de TI (art.3, § 2º, I c/c Anexo I) serve como uma cautela para proteção dos direitos dos indígenas e gera apenas a oitiva da FUNAI (art.2º, III, “c” c/c arts. 3º e 7º, caput, I), não definindo competência federal para licenciamento. Afora esse aspecto, existe precedente do STF, com eficácia vinculante, que expressamente abordou a questão e reconheceu que é possível que um órgão ambiental estadual licencie um empreendimento em um caso em que efeitos indiretos para comunidades indígenas possam ocorrer. Foi justamente a ADI 4.757, que analisou a constitucionalidade da Lei Complementar nº 140/2011. Confira-se a ementa: CONSTITUCIONAL. AMBIENTAL. FEDERALISMO COOPERATIVO. COMPETÊNCIA COMUM EM MATÉRIA AMBIENTAL. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 23 CF. LEI COMPLEMENTAR Nº 140/2011. FEDERALISMO ECOLÓGICO. DESENHO INSTITUCIONAL DA REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS FUNDADO NA COOPERAÇÃO. RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE. DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE. DEVERES FUNDAMENTAIS DE PROTEÇÃO COMO PARÂMETRO NORMATIVO DE CONTROLE DE VALIDADE (ARTS. 23, PARÁGRAFO ÚNICO, 225, CAPUT, § 1º). RACIONALIDADE NO QUADRO ORGANIZATIVO DAS COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS. EFICIÊNCIA E COORDENAÇÃO DO AGIR ADMINISTRATIVO. VALORES CONSTITUCIONAIS. PODER DE POLÍCIA AMBIENTAL DE LICENCIAMENTO E ATIVIDADES FISCALIZATÓRIAS. EXISTÊNCIA E CAPACIDADE INSTITUCIONAL DOS ÓRGÃOS AMBIENTAIS COMO REQUISITO DA REGRA GERAL DE COMPETÊNCIA INSTITUÍDA NA LEI COMPLEMENTAR. ATUAÇÃO SUPLETIVA E SUBSIDIÁRIA. TUTELA EFETIVA E ADEQUADA DO MEIO AMBIENTE. LIMITES DA COGNIÇÃO JURISDICIONAL NO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO FEDERAL ATRIBUÍDA AO § 4º DO ART. 14 E AO 3º DO ART. 17. PROCEDÊNCIA PARCIAL. 1. A Lei Complementar nº 140/2011 disciplina a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora, em resposta ao dever de legislar prescrito no art. 23, III, VI e VI, da Constituição Federal. No marco da Política Nacional do Meio Ambiente, instituída pela Lei nº 6.938/1981, e da forma federalista de organização do Estado constitucional e ecológico, a Lei Complementar nº 140/2011 foi a responsável pelo desenho institucional cooperativo de atribuição das competências executivas ambientais aos entes federados. 2. Legitimidade ativa da Associação Nacional dos Servidores de Carreira de Especialista em Meio Ambiente e Pecma (ASIBAMA). Inegável a representatividade nacional da associação requerente, assim como a observância do requisito da pertinência temática para discutir questões versando alteração estrutural do sistema normativo de proteção do meio ambiente, conforme descrito no art. 3º, VI, do Estatuto Social juntado ao processo, quando do ajuizamento da presente ação. Reconhecimento da legitimidade da associação autora na ADI 4.029 (caso Instituto Chico Mendes). 3. O Supremo Tribunal Federal, acerca do alcance normativo do parágrafo único do art. 65 do texto constitucional, definiu interpretação jurídica no sentido de que o retorno à Casa iniciadora apenas deve ocorrer quando a Casa revisora, em seu processo deliberativo, aprovar modificação substancial do conteúdo do projeto de lei. Afastado, no caso, o vício de inconstitucionalidade formal do § 3º do art. 17. 4. Da interpretação do art. 225 da Constituição Federal, fundamento normativo do Estado de Direito e governança ambiental, infere-se estrutura jurídica complexa decomposta em duas direções normativas. A primeira voltada ao reconhecimento do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, em uma perspectiva intergeracional. A segunda relacionada aos deveres de proteção e responsabilidades atribuídos aos poderes constituídos, aos atores públicos e à sociedade civil em conjunto. A preservação da ordem constitucional vigente de proteção do meio ambiente, densificada nos seus deveres fundamentais de proteção, impõe-se, pois, como limite substantivo ao agir legislativo e administrativo. O que significa dizer que tanto a Política Nacional do Meio Ambiente, em todas as suas dimensões, quanto o sistema organizacional e administrativo responsável pela sua implementação, a exemplo do Sistema Nacional do Meio Ambiente, dos Conselhos Nacionais, Estaduais e Municipais, devem traduzir os vetores normativos do constitucionalismo ecológico e do federalismo cooperativo. 5. A Lei Complementar nº 140/2011, em face da intricada teia normativa ambiental, aí incluídos os correlatos deveres fundamentais de tutela, logrou equacionar o sistema descentralizado de competências administrativas em matéria ambiental com os vetores da uniformidade decisória e da racionalidade, valendo-se para tanto da cooperação como superestrutura do diálogo interfederativo. Cumpre assinalar que referida legislação não trata sobre os deveres de tutela ambiental de forma genérica e ampla, como disciplina o art. 225, §1º, IV, tampouco regulamenta o agir legislativo, marcado pela repartição concorrente de competências, inclusive no tocante à normatização do licenciamento em si. 6. O modelo federativo ecológico em matéria de competência comum material delineado pela Lei Complementar nº 140/2011 revela quadro normativo altamente especializado e complexo, na medida em que se relaciona com teia institucional multipolar, como o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), e com outras legislações ambientais, como a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) e a Lei de Infrações penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente (Lei nº 9.605/1998). O diálogo das fontes revela-se nesse quadro como principal método interpretativo. 7. Na repartição da competência comum ( 23, III, VI e VII CF), não cabe ao legislador formular disciplina normativa que exclua o exercício administrativo de qualquer dos entes federados, mas sim que organize a cooperação federativa, assegurando a racionalidade e a efetividade nos encargos constitucionais de proteção dos valores e direitos fundamentais. Ademais, os arranjos institucionais derivados do federalismo cooperativo facilita a realização dos valores caros ao projeto constitucional brasileiro, como a democracia participativa, a proteção dos direitos fundamentais e a desconcentração vertical de poderes, como fórmula responsiva aos controles social e institucional. Precedentes. 8. O nível de ação do agir político-administrativo nos domínios das competências partilhadas, próprio do modelo do federalismo cooperativo, deve ser medido pelo princípio da subsidiariedade. Ou seja, na conformação dos arranjos cooperativos, a ação do ente social ou político maior no menor, justifica-se quando comprovada a incapacidade institucional desse e demonstrada a eficácia protetiva daquele. Todavia, a subsidiariedade apenas apresentará resultados satisfatórios caso haja forte coesão entre as ações dos entes federados. Coesão que é exigida tanto na dimensão da alocação das competências quanto na dimensão do controle e fiscalização das capacidades institucionais dos órgãos responsáveis pela política pública. 9. A Lei Complementar nº 140/2011 tal como desenhada estabelece fórmulas capazes de assegurar a permanente cooperação entre os órgãos administrativos ambientais, a partir da articulação entre as dimensões estáticas e dinâmicas das competências comuns atribuídas aos entes federados. Desse modo, respeitada a moldura constitucional quanto às bases do pacto federativo em competência comum administrativa e quanto aos deveres de proteção adequada e suficiente do meio ambiente, salvo as prescrições dos arts. 14, § 4º, e 17, § 3º, que não passam no teste de validade constitucional. 10. No § 4º do art. 14, o legislador foi insuficiente em sua regulamentação frente aos deveres de tutela, uma vez que não disciplinou qualquer consequência para a hipótese da omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental. Até mesmo porque para a hipótese de omissão do agir administrativo no processo de licenciamento, o legislador ofereceu, como afirmado acima, resposta adequada consistente na atuação supletiva de outro ente federado, prevista no art. 15. Desse modo, mesmo resultado normativo deve incidir para a omissão ou mora imotivada e desproporcional do órgão ambiental diante de pedido de renovação de licença ambiental, disciplinado no referido § 4º do art. 14. 11. Um dos princípios fundamentais do funcionamento do sistema legal de tutela do meio ambiente é o da atuação supletiva do órgão federal, seja em matéria de licenciamento seja em matéria de controle e fiscalização das atividades ou empreendimentos potencialmente poluidores ou degradantes do meio ambiente. No exercício da cooperação administrativa, portanto, cabe atuação suplementar – ainda que não conflitiva – da União com a dos órgãos estadual e municipal. As potenciais omissões e falhas no exercício da atividade fiscalizatória do poder de polícia ambiental por parte dos órgãos que integram o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) não são irrelevantes e devem ser levadas em consideração para constituição da regra de competência fiscalizatória. Diante das características concretas que qualificam a maioria dos danos e ilícitos ambientais de impactos significativos, mostra-se irrazoável e insuficiente regra que estabeleça competência estática do órgão licenciador para a lavratura final do auto de infração. O critério da prevalência de auto de infração do órgão licenciador prescrito no § 3º do art. 17 não oferece resposta aos deveres fundamentais de proteção, nas situações de omissão ou falha da atuação daquele órgão na atividade fiscalizatória e sancionatória, por insuficiência ou inadequação da medida adotada para prevenir ou reparar situação de ilícito ou dano ambiental. 12. O juízo de constitucionalidade não autoriza afirmação no sentido de que a escolha legislativa é a melhor, por apresentar os melhores resultados em termos de gestão, eficiência e efetividade ambiental, mas que está nos limites da moldura constitucional da conformação decisória. Daí porque se exige dos poderes com funções precípuas legislativas e normativas o permanente ajuste da legislação às particularidades e aos conflitos sociais. 13. A título de obter dictum faço apelo ao legislador para a implementação de estudo regulatório retrospectivo acerca da Lei Complementar nº 140/2011, em diálogo com todos os órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente, como método de vigilância legislativa e posterior avaliação para possíveis rearranjos institucionais. Sempre direcionado ao compromisso com a normatividade constitucional ambiental e federativa. Ademais, faço também o apelo ao legislador para o adimplemento constitucional de legislar sobre a proteção e uso da Floresta Amazônia (art. 225, § 4º), região que carece de efetiva e especial regulamentação, em particular das atividades fiscalizadoras, frente às características dos crimes e ilícitos ambientais na região da Amazônia Legal. 14. Improcedência dos pedidos de declaração de inconstitucionalidade dos arts. 4º, V e VI, 7º, XIII, XIV, “h”, XV e parágrafo único, 8º, XIII e XIV, 9º, XIII e XIV, 14 § 3º, 15, 17, caput e §§ 2º, 20 e 21, Lei Complementar nº 140/2011 e, por arrastamento, da integralidade da legislação. 15. Procedência parcial da ação direta para conferir interpretação conforme à Constituição Federal: (i) ao § 4º do art. 14 da Lei Complementar nº 140/2011 para estabelecer que a omissão ou mora administrativa imotivada e desproporcional na manifestação definitiva sobre os pedidos de renovação de licenças ambientais instaura a competência supletiva dos demais entes federados nas ações administrativas de licenciamento e na autorização ambiental, como previsto no art. 15 e (ii) ao § 3º do art. 17 da Lei Complementar nº 140/2011, esclarecendo que a prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ou autorização ambiental não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, desde que comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória. (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023) Importante destacar que também esta Corte já decidiu no sentido de que a competência será do órgão ambiental estadual nos casos em que o empreendimento está localizado fora de terra indígena. Confira-se: DIREITO ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. USINA HIDRELÉTRICA. LICENCIAMENTO. COMPETÊNCIA, EM REGRA, DE ENTIDADE ESTADUAL. CONSTRUÇÃO FORA DE TERRA INDÍGENA E IMPACTOS REGIONAIS INDIRETOS. COMPETÊNCIA FEDERAL TAXATIVAMENTE PREVISTA EM LEI E EM RESOLUÇÃO DO IBAMA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE JUSTIFIQUEM COMPETÊNCIA DA AUTARQUIA FEDERAL. SENTENÇA QUE ACOLHE ORIENTAÇÃO EM SENTIDO OPOSTO. APELAÇÃO. RECEBIMENTO SÓ NO EFEITO DEVOLUTIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM QUE SE PRETENDE TAMBÉM EFEITO SUSPENSIVO. PROVIMENTO. (...) 3. Emerge dos autos que a PCH Paranatinga II não está projetada em rio da União (o que, aliás, não seria determinante de competência do IBAMA para o licenciamento) e nem em terras indígenas, apenas encontrando-se a relativa distância de terras indígenas ("33,81 km da Terra dos Parabubure, 62,52 km da Marechal Rondon e 94,12 km do Parque Nacional do Xingu"). Também emerge claro que o impacto ambiental em outro Estado é indireto. A pouca potencialidade para atingir gravemente, mesmo de forma indireta, terras indígenas, uma região inteira ou outro Estado-membro pode ser deduzida do tamanho do lago (336,8 ha), área à qual foram reduzidos os 1.290 ha inicialmente previstos, questão esta não apreciada na sentença. 4. Algum impacto a construção da usina trará à bacia do Rio Xingu e a terras indígenas, mas esses impactos são indiretos, não afastando a competência da entidade estadual para o licenciamento. (...) justifica-se a competência do IBAMA quando o empreendimento esteja sendo desenvolvido em terras indígenas, não o que possa refletir sobre terras indígenas. O próprio juiz diz que há "prova irrefutável de que o empreendimento questionado nesta lide trará conseqüências ambientais e sociais para os povos e terras indígenas que lhe são próximos". (...) 6. Na Constituição as competências materiais da União vêm expressas (enumeradas), ficando para os Estados-membros e Distrito Federal as competências remanescentes, significando dizer que em regra (por exclusão das competências da União, taxativamente previstas) as competências são dos Estados-membros. Assim na Constituição, o mesmo critério deve ser empregado na interpretação das normas infraconstitucionais. Não há, pois, lugar para interpretação extensiva ou analógica da regra de competência da entidade federal. (...) 8. Provimento ao agravo de instrumento, com atribuição de efeito suspensivo à apelação. (TRF da 1ª Região. Processo Numeração Única: 0020981-75.2006.4.01.0000. AG 2006.01.00.020856-8 / MT; AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA. Órgão: QUINTA TURMA. Publicação: 09/11/2006 DJ P. 65. Data Decisão: 20/09/2006) Com efeito, vale destacar trechos relevantes do referido julgado: "(...) Assim, conforme se extrai da legislação supracitada, não seria o caso de competência do IBAMA para conduzir o licenciamento. Isso porque as atividades do empreendimento, embora estejam localizadas a relativa proximidade das comunidades indígenas mencionadas pelo Ministério Público Federal, não se situam em terras indígenas. (...) o empreendimento não está inserido em terras indígenas, estando dispensada a atuação do IBAMA com fundamento no disposto no inciso I do artigo 4º acima transcrito. (...) Portanto, a Lei Complementar nº 140/2011 veio reafirmar as regras de distribuição de competências trazidas pela Resolução nº 237/97 de forma que resta afastada a competência do IBAMA para licenciamento das atividades". Frise-se que não há qualquer alegação de insuficiência ou incapacidade técnica do órgão ambiental estadual do Amazonas para licenciar o empreendimento, o que justifica a manutenção da competência. Ao Ibama, no entanto, ainda que não tenha a competência para licenciar, remanesce um dever de vigilância, podendo impor condicionantes adicionais que julgue adequadas. Confira-se trecho do voto da Ministra Rosa Weber (fl. 85): Assim, considerando o empreendimento objeto da lide se encontra a cerca de 8 quilômetros dos limites de terras indígenas demarcadas, a competência para processar o licenciamento não é do ente federal. Nesse sentido, deve prevalecer o argumento do IBAMA no sentido de que "não compete ao IBAMA o licenciamento ambiental do projeto de mineração Potássio do Brasil por não se desenvolver ou estar localizado em terra indígena, regra prevista no artigo 7º, inciso XIV, alínea c, da Complementar n. 140/2011 como atribuição do ente federal, razão pela qual merece reforma a decisão atacada para definir a atribuição legal do IPAAM para conduzir o licenciamento ambiental em questão". Por fim, não há alegação de que alguma condicionante específica deveria ter sido exigida pelo IPAAM e não foi, o que poderia demandar a competência supletiva do IBAMA. Aparentemente, as condicionantes foram adequadas, consoante se extrai da leitura da Licença Prévia n. 54/15: Confira-se, expressamente, a existência das condicionantes indígenas: Vale ressaltar que o caso em questão em nada se assemelha com o julgado do STF no RE 1.379.751, caso do licenciamento da Usina de Belo Monte, uma vez que lá foi discutida a ausência de consulta aos povos indígenas afetados antes da edição do Decreto Legislativo 778, de 13 de julho de 2005, o qual autorizou o Poder Executivo a implantar o Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte, localizado em trecho do Rio Xingu, no Estado do Pará, antes da necessária oitiva às comunidades afetadas. Aqui houve a oitiva e foi realizada no momento adequado, como se expôs acima. Afora esse aspecto, no caso acima, não houve discussão sobre competência para licenciamento, uma vez que este coube ao IBAMA e não ao órgão ambiental do Pará. Tampouco existe similaridade com o que decidido pelo STJ no AgInt no REsp 1.390.476/PR, citado pelo voto divergente, em que expressamente se assentou que o licenciamento de terminal portuário seria do IBAMA e não do órgão ambiental por conta de diversos fatores, como a circunstância de que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva, nos termos do art. 7º, XIV, ‘a’, da LC 140/2011. Essa situação fática não está presente neste caso. Confira-se: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA. IBAMA. ATIVIDADE DE TERMINAL PORTUÁRIO QUE PODE CAUSAR SIGNIFICATIVO IMPACTO AMBIENTAL. CONTROVÉRSIA RESOLVIDA, PELO TRIBUNAL DE ORIGEM, À LUZ DAS PROVAS DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO, NA VIA ESPECIAL. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara Recurso Especial interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC/73. II. Na origem, "o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública (...) em face do Instituto Ambiental do Paraná e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, requerendo a declaração da competência do órgão ambiental federal - IBAMA, para que assuma a presidência do procedimento do licenciamento ambiental até então conduzido pelo órgão ambiental estadual (IAP), em virtude de manifesta incompetência deste órgão". O Tribunal de origem reformou a sentença, que havia reconhecido a competência do órgão estadual para o licenciamento ambiental. III. O entendimento firmado, à luz das provas dos autos, pelo Tribunal a quo - no sentido de que, "considerando que as atividades do empreendedor serão desenvolvidas no mar continental e na zona econômica exclusiva; que o empreendimento, por situar-se em área contígua a terras indígenas, trará impactos a essa comunidade; que serão afetados bens que apresentam relevância histórica e cultural e, por fim, que há potencial de dano ambiental de caráter regional, conclui-se que a competência para o licenciamento ambiental é do IBAMA, razão pela qual deve ser reformada a sentença que julgou improcedente a ação" - não pode ser revisto, pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial, sob pena de ofensa ao comando inscrito na Súmula 7 desta Corte. Precedentes do STJ. IV. Agravo interno improvido. (AgInt no REsp n. 1.390.476/PR, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 29/4/2020, DJe de 5/5/2020.) IV. A Reivindicação da Terra Indígena Soares/Urucurituba Como dito, o MPF propôs a ACP nº 1015595-88.2022.4.01.3200 na qual alega que omissão estatal na regularização fundiária de Terra Indígena Soares/Urucurituba, mesmo diante de robustas provas documentais e antropológicas que confirmariam a ocupação tradicional. A área encontra-se sob forte pressão devido à exploração de silvinita pela empresa Potássio do Brasil Ltda., que, segundo relatórios técnicos, ameaça o equilíbrio ambiental e o modo de vida das comunidades indígenas. O pedido se baseia na violação de direitos fundamentais dos povos indígenas e no risco iminente de danos irreversíveis ao meio ambiente e à preservação cultural. A FUNAI, apesar de reiterados ofícios e manifestações do MPF, não deu andamento ao processo demarcatório, acarretando prejuízos irreparáveis às comunidades tradicionais. O MPF requereu a suspensão deste processo para fins de aguardar o posicionamento da Diretoria de Proteção Territorial (DPT) Funai sobre o tema relativo a demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. Além disso, o MPF reiterou, de todo modo, o pedido anteriormente feito sobre a necessidade de suspensão de todo processo judicial, e consequentemente da consulta nos moldes da Convenção 169 da OIT, enquanto a questão prejudicial da demarcação da terra indígena Soares/Urucurituba não for definida pelo juízo. Com todas as vênias, entendo que essa pretensão não merece prosperar. A uma, pois já foi longamente exposto que, historicamente, a posição da FUNAI foi contrária à pretensão de demarcação daquela área (1419622747): Foi ainda devidamente assinalado que aquela área já havia sido estudada quando da delimitação dos limites da Terra Indígena Jauary, bem como que a área, apesar de conter alguns indígenas, também possui população ribeirinhas, o que pode inclusive levar a se concluir não ser Terra Tradicional. Confira-se novamente a menção à população indígena Mura no Lago do Soares, constante do Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Jaurary (id 296993382 - fl. 40): A União também aduziu a inexistência de fumus boni iuris na petição de agravo protocolada no AI nº 1038777-03.2022.4.01.0000 (id. 274290019): Como aqui se está a examinar o feito em sede de cognição sumária, frente aos prejuízos que o atraso do projeto pode gerar para os objetivos estatais legítimos, é de se concluir que não se faz concretizada aparência legítima de direito a ponto de legitimar a suspensão. Se não se está diante de Terra Indígena demarcada, inclusive sequer limitada, estando o projeto em seu estágio inicial, não se pode presumir que seja Terra Indígena e, portanto, que haja necessidade de autorização do Congresso Nacional para o prosseguimento do empreendimento. Caso seja definido que se trata Terra Indígena, creio que será necessária a edição de autorização do Congresso Nacional, a qual deverá disciplinar a validade dos atos concretos praticados enquanto a demarcação ainda não havia sido concluída, consideradas, sobretudo, as peculiaridades do empreendimento expostas nos autos tais quais confirmadas no Estudo de Componente Indígena: Observe-se que no caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) vs. Argentina, de 2020, a CIDH assentou que “embora a Convenção não possa ser interpretada de modo a impedir que o Estado realize, por si ou por meio de terceiros, projetos e obras sobre o território, seu impacto não pode, em nenhum caso, privar os membros dos povos indígenas e tribais da capacidade de garantir sua própria sobrevivência.” Os dados acima sobre as características do projeto afastam, ao menos em juízo cautelar, qualquer receio de que possa haver impacto na garantia dos Mura e Ribeirinhos do Lago do Soares de prosseguir com o estilo de vida que hoje levam, tampouco garantir a sua subsistência. Não há nenhum indício de que exista a preocupação exposta pelo Ministro Alexandre de Moraes no sentido de que as terras indígenas próximas ao empreendimento serão tornadas “inóspitas, direta ou indiretamente, ou prejudica[rão] drasticamente a cultura e a qualidade de vida das populações indígenas que habitam a região" (RE 1.379.751/PA, Rel. Min. Alexandre de Moraes). A necessidade de estabelecimento de um regime de transição é uma compreensão do texto do art. 231, § 6º, da CF/88: Art. 231. [...] § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. Confiram-se, ainda, as conclusões apresentadas pelo DNPM (FL. 1.531 – id. 297015018): Cabe lembrar o art. 20 da Lei nº 6.001/1973: Art. 20. Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante enumerados, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, em área indígena, determinada a providência por decreto do Presidente da República. 1º A intervenção poderá ser decretada: a) para pôr termo à luta entre grupos tribais; b) para combater graves surtos epidêmicos, que possam acarretar o extermínio da comunidade indígena, ou qualquer mal que ponha em risco a integridade do silvícola ou do grupo tribal; c) por imposição da segurança nacional; d) para a realização de obras públicas que interessem ao desenvolvimento nacional; e) para reprimir a turbação ou esbulho em larga escala; f) para a exploração de riquezas do subsolo de relevante interesse para a segurança e o desenvolvimento nacional. 2º A intervenção executar-se-á nas condições estipuladas no decreto e sempre por meios suasórios, dela podendo resultar, segundo a gravidade do fato, uma ou algumas das medidas seguintes: a) contenção de hostilidades, evitando-se o emprego de força contra os índios; b) deslocamento temporário de grupos tribais de uma para outra área; c) remoção de grupos tribais de uma para outra área. 3º Somente caberá a remoção de grupo tribal quando de todo impossível ou desaconselhável a sua permanência na área sob intervenção, destinando-se à comunidade indígena removida área equivalente à anterior, inclusive quanto às condições ecológicas. 4º A comunidade indígena removida será integralmente ressarcida dos prejuízos decorrentes da remoção. 5º O ato de intervenção terá a assistência direta do órgão federal que exercita a tutela do índio. Assim, não há aparência de necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, não sendo caso de incidência do § 3º do art. 231 da CF/88. V. Conclusão Em face do exposto, ante a ausência de fumus boni iuris, dou provimento ao agravo de instrumento para, reformando a decisão agravada de id. 1769860076, considerar (i) válidos a consulta e o consentimento emanado pelo CIM, como representativo do Povo Mura de Autazes e, em consequência, o requisito da Convenção 169 da OIT; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciar o empreendimento e a validade de todos os atos até agora praticados; (iii) afastar a necessidade de autorização do Congresso Nacional e autorizar o prosseguimento do projeto. É como voto. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator [1] Id. 904360588. [2] Cf. file:///C:/Users/DS93/Downloads/wcms_205225.pdf. [3] Cf. https://ilo.primo.exlibrisgroup.com/discovery/delivery/41ILO_INST:41ILO_V2/126506 9900002676. PODER JUDICIÁRIO Processo Judicial Eletrônico Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 17 - DESEMBARGADORA FEDERAL KÁTIA BALBINO AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) n. 1037175-40.2023.4.01.0000 VOTO VISTA A EXMA. SRA. DESEMBARGADORA FEDERAL KATIA BALBINO: Pedi vista dos autos para melhor examinar as questões fático-jurídicas que motivaram a interposição do agravo de instrumento em apreço. De início, sem prejuízo de assinalar minha integral anuência com o voto do Relator quanto à relevância do Projeto Potássio-Autazes, entendo que as questões a serem dirimidas na insurgência perpassam apenas pelo juízo de adequação da decisão agravada ao contexto fático-processual que justificou a sua prolação. Feito o registro, cumpre também esclarecer que o recurso ora examinado foi interposto pelo Conselho Indígena Mura contra a decisão pela qual o juízo de origem, em caráter dispositivo, assim deliberou: “15. Pelo exposto, reitero decisões anteriores de que o órgão ambiental competente para licenciamento do projeto Potássio é o IBAMA, reitero que exploração mineral em Terra Indígena depende de autorização do legislador constituinte (do Congresso Nacional) e que o IPAAM não é o órgão ambiental competente para o empreendimento que tem o poder de afetar o bioma, a biomassa, o estoque de carbono, a alteração de recursos hídricos da maior bacia nacional, e portanto tem o poder de gerar mudanças climáticas irreversíveis. 16. A Consulta aos povos indígenas afetados depende da vontade do povo, decorrente da sua autonomia de deliberar seus interesses diante desse e de qualquer empreendimento. Todavia, eventual resultado fica desde já suspenso enquanto não houver o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados na presente decisão. 17. Sem o mínimo início dos requisitos, não haverá inspeção judicial, a qual fica por ora suspensa, mas advirto que poderá ser remarcada em caso de violência ou indícios de violações que importem em ruptura da ordem. 18. Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Tal o contexto, o agravante confronta as seguintes diretrizes decisórias: i) suspensão do procedimento de consulta aos povos indígenas levada a efeito; ii) necessidade de autorização do Congresso Nacional para exploração da área em que se pretende realizar o empreendimento. Passo, assim, a analisar tais questões: - Da suspensão dos procedimentos de consulta – a perda do objeto do agravo de instrumento, quanto ao ponto. O exame dos autos indica que a decisão agravada foi proferida em 25/08/2023. Por outro lado, a leitura do referido comando permite a compreensão de que a questão referente à consulta aos povos indígenas foi abordada pelo juízo a quo por um prisma abstrato de sua validade, em perspectiva com os demais requisitos tidos como necessários para a exploração em litígio (autorização do Congresso Nacional e competência do IBAMA para o licenciamento). É dizer, a julgadora da origem não se manifestou de forma concreta sobre aspectos materiais e formais afetos à consulta que o agravante tem com validamente realizada, pontuando, isto sim, que a validade do referido procedimento deve ser examinada de forma contextualizada com os demais requisitos para a implementação do empreendimento. Tanto assim, que a parte final do comando censurado dispõe (destaquei em itálico): “Todos os atos administrativos contrários ao bloco de constitucionalidade aqui tratado, conforme farta fundamentação da presente decisão e das anteriores, são nulos e não possuem qualquer valor jurídico, pelo grave risco ambiental de um empreendimento mineral de 23 anos com afetação em terras indígenas e sem a autorização do legislador e sem o licenciamento do órgão competente.” Ocorre que, após a prolação do referido decisum, a magistrada que conduz o processo principal se debruçou de forma mais aprofundada sobre a questão referente à consulta aos povos indígenas e, nos termos da decisão ID 1913974193, proferida em 16.11.2023, consignou (destaques sublinhados acrescidos): “Diante de todo o tumulto (mediante coação, intimidações, pressões indevidas e oferecimento de vantagens) causado pelo CIM e por prepostos da empresa ré, conforme depoimentos colhidos e mencionados no parecer ministerial, defiro o pleito ministerial e determino a imediata suspensão do procedimento de licenciamento ambiental por parte do IPAAM, bem como o da consulta ilegítima realizada após desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta, bem como de qualquer ato de avanço dos trâmites para a implementação do empreendimento da empresa Potássio do Brasil S/A em Autazes, em razão dos vícios mencionados e dos riscos de conflitos e morte que a continuação dos trâmites do empreendimento minerário neste cenário acarretam ao povo Mura na região, ficando expresso que o juízo federal não confere qualquer validade à alteração esdrúxula do Protocolo construído de forma legítima por TODO O POVO MURA.” Como se vê, após a prolação da decisão agravada, o juízo a quo proferiu novo comando com caráter substitutivo do anterior, vindo a apresentar fundamentação mais aprofundada e amparada em elementos concretos sobre as razões de seu convencimento. Em outras palavras, a avaliação no plano concreto da consulta tida como realizada absorveu a deliberação anterior, esta fundada apenas em fatores afetos ao procedimento no plano abstrato. Assim, porque proferida decisão ulterior que a um só tempo incorporou e ampliou as razões contidas na decisão agravada, resulta demonstrada a perda do objeto do recurso tirado contra o aludido comando. Anoto, por fim, que tanto o MPF quanto a Funai já se manifestaram nos autos em sentido concorde com a compreensão ora externada (cf. ID 423687013 e ID 369353129). - Subsidiariamente, ao não conhecimento do recurso Ainda que se supere a questão preliminar já analisada, entendo que a decisão agravada deve ser mantida nos termos em que proferida, salientando, nesse ponto, que sua avaliação deve ser feita com base no exato sentido e alcance nela consignados. Melhor explicando, foi acima esclarecido que na decisão agravada o juízo a quo consignou que “eventual resultado” da consulta ficaria suspenso enquanto não houvesse “o cumprimento dos requisitos ambientais, legais e constitucionais tratados” na decisão. Claro, portanto que, na decisão agravada, a julgadora de primeiro grau não empreendeu juízo de valoração da consulta efetivamente levada a efeito, tendo suspendido seus efeitos em razão da necessidade de observância concomitante de outros requisitos tidos como necessários para o licenciamento do empreendimento. Ocorre que a parte agravante não enfrentou de forma suficiente as razões externadas no comando recorrido, restringindo-se a defender a validade da consulta que alega já ter sido realizada, bem assim a desnecessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área em que será realizada a exploração mineral discutida na ação principal. Ora, a decisão agravada, como já afirmado, não positivou em nenhum momento a invalidade factual da consulta debatida (isso só foi feito na decisão posterior), tendo suspendido os respectivos efeitos em razão da necessidade de atendimento de outros requisitos que seriam com ela concorrentes. Um desses requisitos, a competência do Ibama para o licenciamento, não foi (e nem poderia ter sido, por ausência de legitimidade recursal) sequer objeto do presente agravo de instrumento. Assim sendo, ainda que superado o óbice relativo à perda do objeto do recurso, quanto ao ponto, este não pode ser conhecido, diante da ausência de enfrentamento da fundamentação decisória no sentido de que os efeitos da consulta somente poderiam ser efetivados em conjunto com o atendimento dos demais requisitos para a exploração da área, nomeadamente a autorização do Ibama. - Do exame residual do mérito da decisão agravada De todo modo, também na hipótese em que venha a ser desconsiderada a ausência de enfrentamento, pelo agravante, das razões decisórias, o recurso não deve ser provido. Com efeito, os documentos encartados no processo principal revelam uma evidente divisão entre as aldeias dos indígenas Mura, tratando-se de dissenso que compromete a conclusão pela validade do procedimento de consulta que neste agravo se tem como concretizado. Nesse sentido, tomando-se como exemplo a assembleia realizada em 21 e 22/09/2023, mencionada no voto do Exmo. Relator, temos que embora registrada em seu relatório a presença de diversos integrantes da comunidade Mura para debater sobre a implementação do projeto Potássio-Autazes, inclusive com a indicação de participação de cinco entidades representativas (CIM – Conselho Indígena Mura; OASIM – Organização dos Agentes de Saúde; OPIM – Organização dos Professores Indígenas Mura; OEIMA – Organização dos Estudantes Mira de Autazes; APIMA – Associação dos Produtores Indígenas Mura de Autazes), o referido documento foi subscrito por apenas quatro pessoas, dentre elas o coordenador geral do CIM (ora agravante) e um advogado. Inexiste, no documento, a indicação nominal de quem seriam as pessoas presentes no encontro, tendo sido mencionados, tão somente, o quantitativo dessas por aldeia. Também não há registro de ata assemblear, tampouco de subscrição, nesse ou em nenhum outro documento, da alegada aprovação majoritária para a implementação do projeto em debate nos autos principais. É dizer, a referência à aprovação do projeto consta apenas do relatório confeccionado após a assembleia, no qual não se identifica a assinatura da quase totalidade das pessoas que dela teriam participado. Por outro lado, como bem observado pelo Exmo. Relator, é certo que a efetivação da consulta às comunidades indígenas não pressupõe a anuência destas com o respectivo objeto. Todavia, a efetivação plena da consulta reclama a escuta efetiva das referidas comunidades, escuta essa que há de ser valorada em sua perspectiva substancial e não simplesmente formal. Nesse sentido, reportando-me mais uma vez ao voto do Relator, “[É] incontroverso que, para ser considerada legítima, qualquer consulta deve ser capaz de verdadeiramente influenciar o poder de decisão da Administração Pública.” Ocorre que o cenário dos autos não indica a realização dessa escuta efetiva do procedimento de consulta, este que, ao que se infere inclusive da divisão verificada entre os representantes da comunidade Mura, vinha sendo protagonizada, em um primeiro momento, pelo CIM (ora agravante), entidade que vem reiterada e insistentemente se manifestando pela implementação do Projeto Potássio-Autazes. Oportuno ser registrado que os autos principais indicam a adoção de diversos procedimentos tendentes à efetivação de um processo de consulta regular, mostrando-se plausível, neste momento de exame provisório do tema, a inferência de que muitos dos atos praticados sejam efetivamente válidos. Ocorre que o entendimento – precário – da validade de parte dos atos praticados não leva, obviamente, ao reconhecimento automático da validade de todo o processo de consulta. A propósito, em sua segunda decisão proferida sobre o tema a magistrada da origem refere-se à ocorrência de uma "desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta”, posicionamento indicativo de que, por sua ótica, o referido protocolo vinha sendo posto em prática de forma adequada, até que a partir de determinado momento veio a ser desconfigurado em sua essência e finalidade. Esse fato reforça, portanto, o posicionamento no sentido de que a validade de atos pretéritos do Protocolo de Consulta não pode induzir ao reconhecimento de sua validade como um todo. Isso posto, existem dúvidas no mínimo razoáveis acerca da legitimidade do procedimento sob enfoque, ao menos no que se refere à valoração do posicionamento divergente de parte significativa da comunidade Mura. Note-se que a validade (nos planos formal e substancial) desse procedimento tem como premissa a oitiva de todas as comunidades afetadas, levando-se em conta, no mais que possível, as peculiaridades de cada uma delas, além das razões que justificarem seus respectivos posicionamentos. Veja-se, em abono dessa conclusão, que a análise cartográfica 138/2023, juntada aos autos pela Funai e transcrita no voto do Relator, indica que o Projeto Potássio-Autazes encontra-se em distâncias diferentes das diversas comunidades afetadas, sendo que, especificamente em relação à “Aldeia Soares”, cujos representantes se posicionaram em sentido contrário ao do ora agravante, a indicação no mencionado documento é pela “sobreposição da área de influência” e pela distância de apenas 2,52 km entre a planta do projeto e a área em que situada a própria aldeia (a menor distância, ao que se infere, entre todas as comunidades afetadas). Na mesma linha, atente-se para o teor das seguintes passagens da decisão de ID 1913974193 dos autos principais, proferida após a decisão agravada: “O Povo Mura afetado pelo grande empreendimento Potássio, na forma do Protocolo legitimamente aprovado por sua totalidade de comunidades, sequer começou a ser consultado. Especialmente o Povo Mura da Comunidade Lago Soares, onde foi fincada a primeira perfuração para fins de pedido de concessão de lavra e licenças prévia, de instalação e de operação, o povo não foi ouvido em nenhuma das etapas da Consulta. Em inspeção judicial realizada por esta Magistrada, confirmei a tese dos autos de que é exatamente no Lago Soares que parte a pretensão de instalação do Projeto Potássio e essa comunidade não foi ouvida até a presente data, sendo ilegítima qualquer conclusão sem sua participação.” (...) “4.1. Alegam, o MPF, a organização OLIM CV e COMUNIDADE INDÍGENA DO LAGO DO SOARES, uma série de ilícitos em tese perpetrados pela empresa Requerida Potássio do Brasil. Defendem ocorrência de má fé, assédio, danos psicológicos, danos morais, coação manipulação e intimidação contra indígenas Mura. As alegações são de extrema gravidade e antes mesmo de ouvidos o MPF e a requerida, é dever do juízo adotar providências preliminares para determinar a imediata suspensão dos vícios, pois que a sua continuação pode gerar danos irreversíveis aos povos originários envolvidos, além da transfiguração do meio ambiente, cultura, tradição e do seu modo de vida. 4.2. As provas anexadas com a manifestação da parte interessada (OLIMCV e Comunidade Lago Soares) bem como aquelas referidas pelo MPF em seu Parecer, demonstram inclusive a presença do Presidente da Potássio do Brasil em reuniões com indígenas Mura, levando ideias destorcidas e contrárias ao ordenamento jurídico, além de descumprir claramente decisão constante de ata de audiência onde ficou consignado que a empresa não poderia praticar coação contra os indígenas. Desde a feitura do Protocolo, o Povo Mura assentou expressamente: "não queremos ser pressionados e coagidos". 4.3. São mais de 12 - doze- mil indígenas Mura afetados com o empreendimento, dos quais nem 1% chegou a participar da reunião onde correu uma lista de presença depois transfigurada em lista de aprovação, havendo clara pressão de cerca de dez indivíduos - alguns já identificados e ouvidos no Ministério Público Federal ( ID 1914447184 - Parecer) - no sentido de distorcer a realidade e retirar o direito de participação da imensa maioria dos indígenas nesse complexo processo de Consulta Livre e Informada. Conforme as provas anexadas, o indígena Cleber (ou Kleber) age como um doa encarregados de praticar coação e manipulação. A conduta pode vir a configurar crime, seja pelo 'modus operandi' de alteração da realidade fática e jurídica, seja por escarnecer as tradições culturais fixadas no Protocolo de Consulta ( lei 60001-73, art. 58, I). 4.4. Ainda, o senhor Kleber Mura vem afirmando que a empresa Potássio do Brasil LTDA. realizou uma promessa de pagamento de supostos royalties pela extração do minério em troca da aprovação do empreendimento, por parte das comunidades indígenas. Cumpre esclarecer que para que comunidades tradicionais ou indígenas recebam royalties por grandes empreendimentos exploradores em suas terras, é necessário primeiramente cumprir os passos da lei, não sendo faculdade de nenhuma empresa oferecer vantagens ou promessas de pagamentos, os quais já são fixados pelo legislador em casos de exploração mineral. Em síntese, na hipótese de futura operação licenciada do empreendimento, os roylties que eventualmente serão pagos decorrem de deliberação do legislador e não são mera faculdade da empresa Potássio do Brasil, a qual está causando tumulto, manipulação e pressão indevida em comunidade em situação de vulnerabilidade, o que deve cessar IMEDIATAMENTE. 4.5. Na manifestação trazida ao conhecimento do juízo, haveria indígena Mura recebendo 5 - cinco - mil reais da empresa Potássio, enquanto outros estariam recebendo 10 - dez- mil reais, tudo com o intuito de coagir e manipular as comunidades afetadas para o fim de aprovar o empreendimento, gerando uma confusão entre Consentimento Livre e Informado e licenciamento prévio, de licença de instalação e licença de operação, que a essa altura, estão fazendo parecer como um só fato jurídico quando são atos distintos. A transfiguração dos fatos jurídicos precisa imediatamente ser quebrada para evitar um dano irreversível aos povos originários, à sua cultura, modo de vida e tradição. 4.6. Dessa forma, diante de tanto vícios de consentimento explícitos, trazidos a juízo por indígenas Mura que habitam o principal Lago (Soares) a ser afetado pelo empreendimento, bem como pela organização OLIMCV, tudo isso faz-nos concluir que a tese manejada de ilegitimidade e nulidade do resultado de uma suposta consulta é inevitavelmente pertinente. Sem consulta válida, na forma do Protocolo definido POR TODO O POVO MURA ( e não por uma dúzia de pessoas com fortes indícios de estarem cooptadas) não há que falar em licença prévia válida. Isso porque a consulta depende da vontade livre do povo e decorre da sua autodeterminação em deliberar acerca de seus interesses diante de qualquer empreendimento que possa impactar seu modo de vida, conforma já definiu o STF. 4.7. Portanto, de imediato recebo a manifestação e o Parecer acima aduzidos, determino a manifestação de todas as partes em dez dias sobre o que entenderem pertinente e desde já adoto as deliberações abaixo para o fim de resguardar a dignidade e integridade do Povo Mura, alvo de um processo de coação, manipulação e intimidação. a) Determino a imediata suspensão de qualquer atitude de coação, manipulação, fraude, intimidação, ameaça, pressão e cooptação contra indígenas Mura, praticadas pela empresa requerida ou por quem quer que haja em seu mando. Fixo desde já multa de cem mil reais por cada dia de descumprimento da presente decisão, a contar da intimação da presente decisão. b) Fixo desde já multa de um milhão de reais a ser custeada pela Empresa Potássio do Brasil Ltda, pelo descumprimento dos deveres assumidos durante as audiências de conciliação perante o Juízo, em especial por realizar pressão indevida sobre o povo Mura com o comparecimento pessoal do seu presidente em reuniões internas das comunidades sobre o assunto tratado nos autos, o que já foi vedado pelo juízo. A multa incidirá sobre o dia de comparecimento do Presidente da Potássio, em reunião vedada pelo Protocolo de Consulta e será revertida a favor da Organização requerente e comunidade Lago Soares, pro rata.” A reforçar o posicionamento da julgadora que conduz o processo na origem, as cartas abertas juntadas nos ID 1914200677, 1914200678, 1914200679 indicam a discordância de várias aldeias com os rumos do procedimento. Da mesma forma, confira-se o que foi expressamente consignado no Protocolo de Consulta e Consentimento do Povo Indígena Mura de Autazes e Carneiro da Várzea (ID1914200682 dos autos principais): Trata-se, com efeito, de diretrizes contidas no Protocolo de Consulta construído para o exame do Projeto Potássio-Autazes. Pois em que pese a clareza dos termos acima transcritos, há no processo principal fortes indícios da participação ativa de “não-índios” no “processo de convencimento” da comunidade Mura (inclusive na assembleia realizada nos dias 21 e 22/08/2023), bem assim de que parte das lideranças não levou em conta, como deveria ter levado segundo as normas protocolares acima transcritas, a opinião do conjunto da comunidade indígena afetada. Com todo esse cenário, tenho que o exame realizado em sede de agravo de instrumento tirado contra uma decisão marcada por seu caráter de provisoriedade e de instrumentalidade para a bom desenrolar do processo, deve ser feito com a adoção de uma postura cautelosa quanto aos riscos do reconhecimento da validade do procedimento de consulta que está na berlinda, ante a irreversibilidade das medidas que eventualmente sejam tomadas com base nessa conclusão (no mínimo precipitada). Isso quer dizer que, diante das incertezas quanto à validade do caráter conclusivo da consulta, o Poder Judiciário deve assumir uma posição preventiva quanto aos possíveis prejuízos que venham a ser causados. Aqui tomando por empréstimo – e por analogia – o ensinamento Délton Winter de Carvalho, tenho como necessária a conclusão de que a alta probabilidade de comprometimento futuro de direitos fundamentais das comunidades indígenas afetadas pelo empreendimento em causa enseja a adoção das medidas preventivas necessárias – tais como as que adotadas pelo juízo de primeiro grau –, “a fim de evitar a concretização dos danos ou minimizar as consequências futuras daqueles já efetivados”. Não procede, portanto, a compreensão de que eventuais prejuízos futuros poderão ensejar indenização por perdas e danos, na medida em que a finalidade precípua da atuação jurisdicional em casos como o presente deve ser a de evitar que o dano ocorra e não simplesmente compensá-lo. Pensar diferente, com todas as vênias, seria abrir a caixa de Pandora para uma pletora de ilegalidades que poderiam ser cometidas sob o escudo de uma incerta indenização reparatória. Não bastasse tudo isso, a eventual validade das deliberações obtidas em assembleias realizadas sob a condução do CIM não pode, em princípio, vincular as comunidades que não são pelo referido conselho representadas. Assim, a eficácia de tais deliberações, para fins de reconhecimento da oitiva real de todas as comunidades afetadas, seria condicionada à obtenção de manifestações convergentes daquelas que não vinculadas ao agravante. Da necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da Terra Indígena – ausência de legitimidade recursal, quanto ao ponto Como já antecipado, a decisão agravada não empreendeu exame qualitativo da consulta que a parte agravante considera legítima, restringindo-se a suspender seus efeitos ante a necessidade de observância de requisitos externos ao referido procedimento. Dentre as externalidades mencionadas na decisão agravada, a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi invocada como pressuposto para a implementação do Projeto Potássio-Autazes, que tem como principal interessado os responsáveis pelo empreendimento. Ainda que se diga que a parte agravante teria algum interesse na implementação no projeto, pelos possíveis benefícios que ele poderia proporcionar, tal não significa que, processualmente, caiba a ela defender a sua concretização. A ilustrar esse entendimento, tome-se como exemplo a hipótese em que o órgão ambiental responsável pelo licenciamento apresente alguma condicionante para o seu deferimento. Diante de tal situação, caberá apenas à agravada Potássio do Brasil Ltda. questionar judicialmente o óbice levantado, falecendo ao Conselho nestes autos agravante legitimidade para o enfrentamento da hipotética decisão administrativa. Mutatis mutandis, é exatamente essa a situação ora analisada, pois a necessidade de autorização do Congresso Nacional foi levantada como óbice para o licenciamento do projeto discutido, diante do entendimento que ele seria realizado em terras indígenas. Não cabe, portanto, ao Conselho Mura, defender aquilo que em última análise se mostra como de interesse da empresa, o que seja, a implementação de seu empreendimento econômico. Por outro lado, o Conselho agravante não representa a totalidade da Comunidade Mura, mas apenas parte dela, daí porque não possui legitimidade para se manifestar sobre os efeitos do empreendimento nas áreas não alcançadas por sua representação. Em resumo, não cabe ao CIM questionar a avaliação feita pelo juízo processante acerca da repercussão de um projeto empresarial do qual não faz parte, em áreas ocupadas por comunidades que não representa. A legitimidade recursal da agravante, portanto, em relação ao que é objeto do agravo de instrumento, está adstrita à validade de sua manifestação no procedimento de consulta, tema já analisado no tópico anterior deste voto. Conclusão Diante do exposto, julgo prejudicado o agravo de instrumento em relação à suspensão dos efeitos da consulta realizada, diante da prolação de decisão judicial posterior. Na hipótese de superação desse ponto preliminar, não conheço do agravo, por deficiência de fundamentação e, se também afastado esse obstáculo, nego provimento ao recurso. De outro modo, não conheço do agravo de instrumento no que se refere à necessidade de autorização do Congresso Nacional para a exploração da área onde será implementado o projeto, por ausência de legitimidade recursal. Por fim, deixo de me manifestar acerca da questão relativa à competência para o licenciamento do empreendimento, por se tratar de tema estranho ao objeto da insurgência em apreço. É como voto. Desa. Federal KATIA BALBINO Relatora CARVALHO, DéltonWinter de. Dano Ambiental Futuro: A responsabilização Pelo Risco Ambiental. 2ª ed. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2013, pp. 187/202 PODER JUDICIÁRIO FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PJe/TRF1ª – Processo Judicial Eletrônico AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 1037175-40.2023.4.01.0000 Processo Referência: 0019192-92.2016.4.01.3200 AGRAVANTE: CONSELHO INDIGENA MURA AGRAVADO: DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUCAO MINERAL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (PROCURADORIA), INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS - IBAMA, INSTITUTO DE PROTECAO AMBIENTAL DO AMAZONAS, POTASSIO DO BRASIL LTDA., FUNDACAO NACIONAL DO INDIO - FUNAI, UNIÃO FEDERAL, ESTADO DO AMAZONAS EMENTA DIREITO AMBIENTAL E DIREITOS INDÍGENAS. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSULTA PRÉVIA AO POVO INDÍGENA MURA. EXPLORAÇÃO MINERAL. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. COMPETÊNCIA ESTADUAL. RECONHECIMENTO DE CONSULTA VÁLIDA. PROSSEGUIMENTO DO PROJETO. 1. Agravo de instrumento interposto pelo Conselho Indígena Mura (CIM) contra decisão que suspendeu os efeitos da consulta ao povo indígena Mura sobre o Projeto Potássio Autazes, condicionando sua validade ao cumprimento de requisitos ambientais, legais e constitucionais, no bojo de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF). 2. Pretensão do agravante de obter efeito suspensivo para reconhecer a validade da consulta realizada, conduzida pelo CIM, e afastar exigências relacionadas à autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração em terras indígenas, bem como discutir a competência do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) no licenciamento ambiental do empreendimento. 3. O debate circunscreve-se às seguintes questões: (i) validade da consulta ao povo indígena Mura de Autazes, realizada com base no protocolo próprio; (ii) competência do IPAAM para o licenciamento ambiental do empreendimento; e (iii) necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, considerando a localização do projeto em área não demarcada como terra indígena. 4. Reconhecida a legitimidade do Conselho Indígena Mura (CIM) como entidade representativa das aldeias de Autazes para conduzir a consulta, nos termos da Convenção 169 da OIT, considerando que o processo observou protocolos definidos com acompanhamento judicial. A ausência de pronunciamento de outras comunidades não invalida a consulta, mas mantém a obrigação do Estado de dialogar continuamente com os povos afetados. A CIDH já se pronunciou no sentido de que a obrigação de consultar estatal se conclui quando fornece os elementos aos povos indígenas, ainda que esses se recusem a participar do processo. 5. A competência do IPAAM para licenciamento ambiental foi reafirmada, uma vez que o empreendimento está localizado fora de terras indígenas demarcadas, observando-se os critérios da Lei Complementar nº 140/2011. A distância de poucos quilômetros entre o projeto e a terra indígena mais próxima não configura causa de deslocamento de competência ao IBAMA, o qual, no entanto, possui o dever de vigilância em relação ao licenciamento estadual. Não há dados que permitam concluir que o órgão ambiental estadual não tem a qualificação ou a estruturação necessária para proceder ao licenciamento, tampouco foram apontadas omissões nas condicionantes fixadas na Licença Prévia, que expressamente consideraram o componente indígena. 6. O STF, na ADI 4.757/DF, expressamente reconheceu a existência do "dever de vigilância da União quanto aos licenciamentos de responsabilidade dos Estados, cujas atividades ou empreendimentos possam causar impactos ambientais indiretos relevantes em áreas indígenas ou unidades de conservação. A exemplo, as atividades de mineração ou empreendimentos hidrelétricos, cujas poluições sonoras ou dos leitos de rios possam impactar a preservação adequada das referidas áreas." O STF acrescentou que, "[n]esse ponto, competirá, com efeito, à União averiguar as capacidades institucionais do órgão ambiental estadual para proceder com o licenciamento, em especial as condicionalidades para a emissão da licença, considerados esses impactos indiretos, que não raras vezes demandam alta espeficiação de instrumentos técnicos e de profissionais" (ADI 4757, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 13-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023, p. 85 do acórdão). 7. A inexistência de terra indígena demarcada ou delimitada na área do empreendimento afasta a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional, conforme art. 231, § 3º, da Constituição Federal, ainda que se instaure processo demarcatório, enquanto não concluído. 8. Agravo de instrumento provido para: (i) considerar válida a consulta realizada pelo CIM como representativo do povo indígena Mura de Autazes e considerar cumprida a obrigação de consultar; (ii) reconhecer a competência do IPAAM para licenciamento ambiental do empreendimento; (iii) afastar a necessidade de autorização legislativa do Congresso Nacional para mineração no caso em análise; e (iv) autorizar o prosseguimento do projeto minerário, sem prejuízo de novas medidas para assegurar a proteção aos direitos indígenas e ambientais. ACÓRDÃO Decide a Sexta Turma, por maioria, dar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do voto do Relator. Brasília/DF, data e assinatura eletrônicas. Desembargador Federal FLÁVIO JARDIM Relator
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Processo nº 0004711-56.2009.4.01.3302
ID: 325590429
Tribunal: TRF1
Órgão: Gab. 09 - DESEMBARGADOR FEDERAL NÉVITON GUEDES
Classe: APELAçãO CíVEL
Nº Processo: 0004711-56.2009.4.01.3302
Data de Disponibilização:
15/07/2025
Advogados:
ITAMAR DA SILVA RIOS
OAB/BA XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 0004711-56.2009.4.01.3302 PROCESSO REFERÊNCIA: 0004711-56.2009.4.01.3302 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) POLO ATIVO: ESPÓLIO DE RAULINDO …
JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 0004711-56.2009.4.01.3302 PROCESSO REFERÊNCIA: 0004711-56.2009.4.01.3302 CLASSE: APELAÇÃO CÍVEL (198) POLO ATIVO: ESPÓLIO DE RAULINDO DE ARAUJO RIOS REPRESENTANTES POLO ATIVO: ITAMAR DA SILVA RIOS - BA13331-A POLO PASSIVO:Ministério Público Federal RELATOR(A):NEVITON DE OLIVEIRA BATISTA GUEDES PODER JUDICIÁRIO Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 09 - DESEMBARGADOR FEDERAL NÉVITON GUEDES Processo Judicial Eletrônico APELAÇÃO CÍVEL (198) n. 0004711-56.2009.4.01.3302 Processo Referência: 0004711-56.2009.4.01.3302 RELATÓRIO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL NÉVITON GUEDES (RELATOR): Trata-se de recurso de apelação interposto por Raulindo de Araújo Rios, ex-Prefeito do Município de Quixabeira/BA, no período de 2001 a 2004, contra sentença proferida em ação civil pública por ato de improbidade administrativa, ajuizada pelo Ministério Público Federal, que julgou parcialmente procedentes os pedidos, condenando o apelante pela prática de atos previstos nos artigos 10, inciso XI, e 11, caput, da Lei n.º 8.429/1992. Na petição inicial, o Ministério Público Federal imputa ao requerido a prática de atos de improbidade administrativa, consistentes na malversação dos recursos públicos destinados à execução dos Convênios n.º 6.21.2001.027-00 e 6.21.2001.023-00, firmados com o Ministério da Integração Nacional, por intermédio da CODEVASF. O primeiro convênio, celebrado em 31.12.2001, previa a construção de uma barragem na localidade de Poço Comprido, com repasse total de R$ 57.500,00, realizado em duas parcelas em 2002, e vigência de 10.07.2002 a 31.03.2003. O segundo, também firmado em 31.12.2001, tinha como objeto a construção de barragem de terra na Fazenda Aroeira, com repasse total de R$ 28.007,63, também em duas parcelas, e vigência inicialmente de 10.07.2002 a 31.03.2003. Em suas razões recursais, Raulindo de Araújo Rios suscita, preliminarmente: a) incompetência da Justiça Federal; b) ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal; c) ilegitimidade passiva; d) imprestabilidade das provas produzidas pela Controladoria-Geral da União (CGU); e) ocorrência da prescrição da pretensão punitiva. No mérito, defende, em síntese, que: a) “Toda a prova dos autos é no sentido da INEXISTÊNCIA de dano. O serviço foi prestado adequadamente”; b) “Inexistiu qualquer prova (...) de que teria ocorrido dano, mormente com a não prestação dos serviços. Da mesma forma, não houve prova de má-fé ou acréscimo patrimonial”; c) “As imputações não ultrapassam a mera irregularidade e o magistério da jurisprudência do STJ, estatui que a lei de Improbidade não deve ser aplicada para punir meras irregularidades administrativas ou transgressões disciplinares”; d) “No caso posto, inexistiram sequer indícios de DESONESTIDADE e DOLO/MÁ-FÉ. Veja que a própria sentença diz que não houve qualquer enriquecimento e, logo, inexistiu qualquer dano ao erário”. Ao final, requer o conhecimento e provimento do recurso (ID 25950037, págs. 06/40). Contrarrazões do MPF (ID 25950037, págs. 43/57). A Procuradoria Regional da República manifestou-se pelo não provimento do recurso (ID 25950037, págs. 63/75). Certidão de óbito do réu juntada (ID 94855037). Decisão homologando o pedido do Ministério Público de habilitação dos herdeiros/sucessores de Raulindo de Araújo Rios (ID 420339459). É o relatório. Desembargador Federal NÉVITON GUEDES Relator PODER JUDICIÁRIO Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 09 - DESEMBARGADOR FEDERAL NÉVITON GUEDES Processo Judicial Eletrônico APELAÇÃO CÍVEL (198) n. 0004711-56.2009.4.01.3302 Processo Referência: 0004711-56.2009.4.01.3302 VOTO O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL NÉVITON GUEDES (RELATOR): Do pedido de gratuidade de justiça e preparo recursal Analisando os autos, verifica-se que o apelante, por ocasião da interposição de seu recurso, requereu a concessão da gratuidade de justiça (ID 25950037, págs. 06/40). Com efeito, dispõe o art. 4º da Lei n. 1.060/1950 que “a parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família”. A mesma lei preceitua, ainda, que se presume pobre “quem afirmar essa condição nos termos da lei” (art. 4º, § 1º). A questão atualmente se encontra disciplinada no Código de Processo Civil, cujo art. 98 dispõe que "a pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei". Com efeito, a gratuidade de justiça pode ser requerida em qualquer momento processual, inclusive após a interposição de recurso, segundo dicção do art. 99, caput, do CPC: Art. 99. O pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso. O § 2º do art. 99 estabelece que "o juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos", e acrescentando, no § 3º, que se presume "verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural". Sobre o assunto, a jurisprudência desta Corte: ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. GRATUIDADE DA JUSTIÇA PARA PESSOA JURÍDICA. DEFERIMENTO, MEDIANTE COMPROVAÇÃO. ALTERAÇÕES NA LEI 8.429/1992 PELA LEI 14.230/2021. RETROATIVIDADE. POSSIBILIDADE, NO CASO CONCRETO. STF, ARE 843.989/PR. TEMA 1.199. ART. 10 DA LIA. DANO AO ERÁRIO NÃO COMPROVADO. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. ART. 11, I, DA LIA. REVOGAÇÃO. ATIPICIDADE. SENTENÇA REFORMADA. EXTENSÃO DOS EFEITOS À CORRÉ. ART. 1.005 DO CPC E ART. 17, § 11º, DA LEI 8.249/1992. PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE, DE OFÍCIO, EM RELAÇÃO À CORRÉ. APELAÇÕES PROVIDAS. 1. Nos termos do art. 98 do CPC "A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça". De acordo com a Súmula 481 do STJ: "Faz jus ao benefício da justiça gratuita a pessoa jurídica com ou sem fins lucrativos que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais". Comprovada a insuficiência de recursos, deve ser deferida a gratuidade de justiça. 10. Apelações providas. Pedido julgado improcedente, de ofício, em relação à corré Maria Conceição Santana dos Reis Santo (...) (AC 0036456-89.2011.4.01.3300, DESEMBARGADOR FEDERAL MARCOS AUGUSTO DE SOUSA, TRF1 - QUARTA TURMA, PJe 03/09/2024 PAG.) AÇÃO RESCISÓRIA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. NULIDADE CITAÇÃO POR EDITAL NÃO CONFIGURADA. DIVERSAS TENTATIVAS INFRUTÍFERAS DE CITAÇÃO PESSOAL POR OFICIAL DE JUSTIÇA. ESGOTAMENTO DOS MEIOS CITAÇÃO. RÉU EM LOCAL INCERTO OU INDETERMINADO. PEDIDO IMPROCEDENTE. 1. Satisfeitos os requisitos legais, devem ser concedidos ao autor os benefícios da justiça gratuita. 2. Não há que se falar em nulidade da citação editalícia, uma vez que foram realizadas inúmeras tentativas de citação do réu, ora autor, por oficial de justiça, promovidas tanto no estado da Bahia quanto no estado de Rondônia, que restaram infrutíferas. 3. Sendo suficientes as diligências empreendidas para a localização do réu nos endereços constantes dos autos, correta a citação por edital que se pretende anular. Precedentes. 4. Pedido rescisório que se julga improcedente. Condenação do autor em custas e honorários, suspensa a exigibilidade por ser beneficiário da justiça gratuita. (AR 1005613-86.2018.4.01.0000, DESEMBARGADOR FEDERAL CÉSAR JATAHY, TRF1 - SEGUNDA SEÇÃO, PJe 18/09/2023 PAG.) No caso em análise, a parte ré declarou não possuir condições de arcar com as custas e despesas processuais sem comprometer seu próprio sustento. Diante do cumprimento dos requisitos legais, devem ser concedidos ao autor os benefícios da justiça gratuita. Defiro, pois, o pedido de gratuidade da justiça. Avançando, constata-se que o recurso é tempestivo e a sentença atacada é recorrível via apelação (art. 1.009, caput, do CPC). Portanto, presentes os pressupostos de admissibilidade recursal, dele conheço. Da Incompetência da Justiça Federal O entendimento jurisprudencial desta Corte é firme no sentido de que as ações civis públicas por ato de improbidade administrativa em que se busca a responsabilização por desvio de verbas federais devem ser processadas e julgadas pela Justiça Federal. Confiram-se: ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PRELIMINARES REJEITADAS. ART. 10, I, VIII, XI, E ART. 11, II, VI, DA LEI 8.429/92, NA REDAÇÃO ANTERIOR À LEI 14.230/2021. RECAPITULAÇÃO. INDEVIDA. EFETIVO PREJUÍZO E DOLO NA CONDUTA DA RÉU. ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVO QUANTO À CONDUTA DO ART. 10, XI, LIA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Rejeita-se a preliminar de incompetência da Justiça Federal, considerando que nas demandas em que se apura possível malversação de recursos públicos federais a competência é da Justiça Federal. 2. Adequada, outrossim, a via processual eleita, ante a possibilidade da condenação dos agentes políticos - prefeitos - nas sanções da Lei nº 8.429/92. 3. A Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), que regulamentou o art. 37, § 4º,da Constituição Federal de 1988, tem como finalidade impor sanções aos agentes públicos pela prática de atos de improbidade nos casos em que: a) importem enriquecimento ilícito (art. 9º); b) causem prejuízo ao erário (art. 10); e c) atentem contra os princípios da Administração Pública (art. 11), neste também compreendida a lesão à moralidade administrativa. 4. Com a superveniência da Lei 14.230/2021, que introduziu consideráveis alterações na Lei 8.429/92, para que o agente público possa ser responsabilizado por ato de improbidade administrativa, faz-se necessária a demonstração do dolo específico, conforme o artigo 1º, §2º, da Lei 8.429/92, ao dispor: "§ 2º considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente". 5. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 1.199 (ARE 843989 RG, Relator Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, publicado em 04.03.2022), após analisar as questões submetidas ao respectivo tema em decorrência da superveniência da Lei 14.230/2021 que introduziu as alterações promovidas na Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), fixou as seguintes teses: "1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - DOLO;2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei." 6. O d. magistrado de primeiro grau recapitulou a tipificação da conduta das rés e, pelo ato de "pagamento indevido de despesas referentes a exercícios anteriores" com recursos do FUNDEB/FUNDEF, as condenou como incursas em tipo legal não capitulado pelo autor na petição inicial. 7. Em razão da impossibilidade de recapitulação da conduta na forma preconizada pela atual redação da Lei 8.429/92, merece ser reformada a sentença, para afastar a condenação das rés pela conduta da alínea "a4" da petição inicial, enquadrada no art. 10, IX, da Lei 8.429/92. 8. Todavia, merece ser mantida a condenação pela conduta da alínea "a1" da petição inicial, consubstanciada nos "pagamentos de curso superior, com verbas do fundo, em favor da própria ex-prefeita, de um vereador e de servidores municipais que não eram professores" com recursos do FUNDEF/FUNDEB, com fundamento no inciso XI do art. 10 da LIA. 9. Isso porque não obstante a apelante alegue ausência de elemento subjetivo em sua conduta, não é possível desconsiderar o uso indevido de recursos do FUNDEF e do FUNDEB em proveito próprio e de terceiros, cujas funções são estranhas ao magistério da educação básica e do ensino fundamental, pois o próprio nome dos fundos - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério– FUNDEF e Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica – FUNDEB, já preveem a finalidade de seus recursos. Ademais, a apelante limitou-se a negar dolo em sua conduta, não trazendo qualquer elemento apto a justificar o uso dos recursos para finalidades diversas do seu fim, em proveito próprio. 10. Não é possível prosperar a pretensão de que a referida conduta seja caracterizada tão somente como uma irregularidade administrativa, tampouco que não tenha causado prejuízo ao erário, considerando os já tão poucos recursos destinados à educação. 11. Apelação parcialmente provida (itens 6 e 7). (AC 0002508-82.2014.4.01.4002, JUIZ FEDERAL CLODOMIR SEBASTIAO REIS, TRF1 - QUARTA TURMA, PJe 13/03/2025 PAG.) No presente caso, busca-se a responsabilização do recorrente por malversação na aplicação de recursos oriundos do Ministério da Integração Nacional, por intermédio da CODEVASF, de natureza sabidamente federal. Registre-se, ainda, que, nas demandas em que se apura possível malversação de recursos públicos federais, a competência é da Justiça Federal, ainda que tais verbas tenham sido incorporadas ao patrimônio do município. Essa é precisamente a situação dos autos, nos quais se discute a malversação e a ausência de prestação de contas de recursos federais repassados ao ente municipal. Nesse sentido: (AC 0001935-05.2013.4.01.3315, JUIZ FEDERAL CLODOMIR SEBASTIAO REIS, TRF1 - QUARTA TURMA, PJe 13/03/2025 PAG.). Ademais, relevante à controvérsia o entendimento no sentido de que “o autor da presente ação é o Ministério Público Federal, órgão federal, o que atrai a competência da Justiça Comum Federal para o processamento e julgamento do feito, conforme art. 109, I, da Constituição Federal” (AC 0000607-61.2009.4.01.3903, Juiz Federal Érico Rodrigo Freitas Pinheiro (Conv.), TRF1 - Quarta Turma, PJe 30/05/2022). Preliminar rejeitada. Da ilegitimidade passiva O réu alega sua ilegitimidade passiva ao argumento de que os fatos que lhe são imputados caracterizariam, na verdade, crimes de responsabilidade e não atos de improbidade administrativa. Contudo, sem razão. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 976.566, em regime de repercussão geral, definiu a seguinte tese: "O processo e o julgamento de prefeito municipal por crime de responsabilidade (Decreto-lei 201/67) não impede sua responsabilização por atos de improbidade administrativa previstos na Lei 8.429/92, em virtude da autonomia das instâncias" (RE 976.566, Rel. Ministro Alexandre de Moraes, Pleno, Julgamento: 13/09/2019 Publicação: 26/09/2019). Nesse sentido: (AC 0047630-88.2013.4.01.3700, DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ALVES DE SOUZA, TRF1 - TERCEIRA TURMA, PJe 05/02/2025) e (AC 0000613-34.2010.4.01.4000, DESEMBARGADOR FEDERAL NÉVITON GUEDES, TRF1 - QUARTA TURMA, e-DJF1 02/07/2021). Também não merece acolhimento a alegação de que o réu foi incluído na ação apenas por ter exercido o cargo de prefeito, sem participação direta nas irregularidades, pois essa tese se confunde com o mérito da causa e será com ele juntamente apreciada. Preliminar afastada. Da ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal A legitimidade ativa do Ministério Público Federal está devidamente amparada na previsão expressa do art. 129, inciso III, da Constituição Federal de 1988, especialmente quando presente o interesse de ente público federal na demanda. Nos termos da jurisprudência do STJ, o Ministério Público Federal possui legitimidade ativa para a propositura de ação civil pública em defesa do patrimônio público, nos termos da Súmula 329/STJ (AgInt nos EDcl no REsp 1461454/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 31/08/2020, DJe 03/09/2020; AgRg no REsp 1253805/SP, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 11/12/2012, DJe 04/02/2013). No mesmo sentido, a Jurisprudência da Segunda Seção desta Corte: AÇÃO RESCISÓRIA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. IRREGULARIDADES CONSTATADAS NA APLICAÇÃO DE VERBAS REPASSADAS PELO MINISTÉRIO DO INTERIOR PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA PRAÇA NO MUNICÍPIO DE PACARAIMA/RR. CONDENAÇÃO DO EX-PREFEITO. REJEIÇÃO DAS PRELIMINARES DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL, DE ILEGITIMIDADE ATIVA DO MPF E DA UNIÃO, DE CERCEAMENTO DE DEFESA E DE VIOLAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. CONDENAÇÃO DEVIDAMENTE MOTIVADA. SANÇÕES APLICADAS DE ACORDO COM A NORMA LEGAL. REDISCUSSÃO DA CAUSA. IMPOSSIBILIDADE. PEDIDO IMPROCEDENTE. 1. Ação rescisória ajuizada por ex-prefeito municipal em desfavor do Ministério Público Federal, objetivando rescindir sentença proferida pelo juízo federal da 1ª Vara da Seção Judiciária de Roraima, confirmada pela Terceira Turma deste Tribunal, que, nos autos da ação de improbidade administrativa 0002588-49.2005.4.01.4200 (reunida com a ação de improbidade 2005.42.00.002245-8, ajuizada pelo Município de Pacaraima/RR), julgou procedente o pedido para condenar o requerido nas sanções previstas no art. 12, incisos II e III, da Lei 8.429/92, pela pelas irregularidades constatadas na aplicação de verbas repassadas pelo Ministério do Interior para a construção de uma praça no município de Pacaraima/RR. (...) 6. A União manifestou seu interesse em integrar o feito, tendo sido admitida no processo na condição de litisconsorte ativa, ratificando, assim, o interesse federal na causa, a teor do art. 109, I, da CF, e, em consequência, a competência da Justiça Federal. 7. O Ministério Público Federal possui legitimidade ativa para a propositura de ação civil pública em defesa do patrimônio público, nos termos da Súmula 329/STJ (AgInt nos EDcl no REsp 1461454/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 31/08/2020, DJe 03/09/2020; AgRg no REsp 1253805/SP, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 11/12/2012, DJe 04/02/2013). (...)Condenação do autor ao pagamento das custas e dos honorários advocatícios, estes fixados no percentual de 10% (dez por cento) sobre o valor da causa atualizado (art. 85, § 2º, do CPC), cuja exigibilidade, contudo, fica suspensa pelo prazo de 05 (cinco) anos, a teor do art. 98, § 3º, do CPC. (AR 0071763-71.2015.4.01.0000, JUIZ FEDERAL ÉRICO RODRIGO FREITAS PINHEIRO (CONV.), TRF1 - SEGUNDA SEÇÃO, e-DJF1 02/09/2022 PAG.) Preliminar afastada. Da ilegalidade das provas produzidas pela CGU O réu argumenta que a fiscalização de recursos municipais compete ao Poder Legislativo local, com apoio dos Tribunais de Contas estaduais ou do TCU, em caso de repasses federais, mas nunca à CGU – órgão de controle interno da União. Defende que a atuação da CGU é inconstitucional, tornando nulo o relatório por ela produzido, o qual fundamenta toda a acusação, ensejando o reconhecimento da ilicitude das provas (teoria dos frutos da árvore envenenada) e, consequentemente, a nulidade da ação. O Juízo a quo rejeitou a preliminar, nos seguintes termos (ID 25950102, pág. 278): (...). 1. Da imprestabilidade da prova colhida pela CGU. O artigo 17 da Lei nº 10.683/2003 disciplina “à Controladoria-Geral da União compete assisti direta e imediatamente Presidente da República no desempenho de suas atribuições quanto aos assuntos e providências que, no âmbito do Poder Executivo, sejam atinentes à defesa do patrimônio Público, ao controle interno, à auditoria pública, à correição, à prevenção e ao combate à corrupção, às atividades de ouvidoria e ao incremento da transparência da gestão no âmbito da administração pública federal. A norma descrita reconhece portanto, a competência da CGU para fiscalizar a aplicação dos recursos financeiros provenientes do orçamento da União, ainda quando repassados aos demais ente federais como o município requerido, realizando o controle interno do Executivo na defesa do patrimônio público (art. 74 da CF/88). Nesse sentido, importa destacar pronunciamento do Supremo Tribunal Federal quanto à matéria: EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSOS PÚBLICOS FEDERAIS REPASSADOS AOS MUNICÍPIOS. FISCALIZAÇÃO PELA CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO – CGU. POSSIBILIDADE. RECURSO DESPROVIDO. I – A Controladoria-Geral da União pode fiscalizar a aplicação de verbas federais onde quer que elas estejam sendo aplicadas, mesmo que em outro ente federado às quais foram destinadas. II. A fiscalização exercida pela CGU é interna, pois feita exclusivamente sobre verbas provenientes do orçamento do Executivo. III – Recurso a que se nega provimento. (RMS 25943, RICARDO LEWANDOWSKI, STF) Devidamente demonstrada a competência da CGU para a execução dos atos fiscalizatórios questionados pelo requerido, hão há que se falar em ilegalidade da prova por ela produzida. A decisão proferida pelo Juízo a quo fundamentou-se em entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça, o qual se encontra em harmonia com a jurisprudência dominante desta Corte. Confira-se: PROCESSUAL PENAL E PENAL. OPERAÇÃO MAUS CAMINHOS. REAFIRMAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. REJEIÇÃO DA PRELIMINAR DE ILICITUDE DA ATUAÇÃO DA CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO – CGU. CRIME DE PECULATO. AUTORIA, MATERIALIDADE E DOLO COMPROVADOS. DOSIMETRIA AJUSTADA. REDUÇÃO DA PENA-BASE. 1. Trata-se de apelações interpostas pelos Réus contra sentença que rejeitou as preliminares suscitadas e julgou procedente a pretensão punitiva do Estado para condená-los como incursos nas penas do artigo 312 (peculato), caput, c/c os artigos 30 e 71, todos do Código Penal. (...). 10. Preliminar de ilicitude da atuação da Controladoria-Geral da União – CGU rejeitada. No que tange ao controle interno federal das verbas repassadas pela União a título de complementação, cabe apontar que a titularidade é da Controladoria Geral da União (CGU), órgão com natureza e status ministerial, que centraliza o controle interno da Administração Pública Federal, tendo sua competência definida no art. 51 da Lei nº 13.844/2019. Sobre o tema, cabe ressaltar que "a CGU pode fiscalizar a aplicação de verbas federais onde quer que elas estejam sendo aplicadas, mesmo que em outro ente federado às quais foram destinadas. Ressalte-se que, nesses casos, a fiscalização exercida pela CGU é interna, pois feita exclusivamente sobre verbas provenientes do orçamento do Executivo". (RMS 25.943). No caso concreto, compete à CGU realizar ações de fiscalização, eis que os valores pagos à D'FLORES pelo INC foram provenientes de verbas repassadas pela União (SUS e FUNDEB). (...). Apelações dos Réus parcialmente providas, para ajustar a dosimetria, reduzindo a pena-base, ficando o Relator parcialmente vencido apenas quanto à fixação do regime inicial do corréu M.M. (ACR 0009516-86.2017.4.01.3200, DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ALVES DE SOUZA, TRF1 - TERCEIRA TURMA, PJe 13/07/2023 PAG.) Preliminar rejeitada. Da prescrição da pretensão punitiva estatal O réu alega a ocorrência da prescrição com base no art. 23, I, da Lei nº 8.429/92, que estabelece o prazo de cinco anos após o término do mandato para o ajuizamento da ação. Afirma que os fatos ocorreram em 2004, com o fim do mandato em 31/12/2004, e que, embora a ação tenha sido proposta em 11/12/2009, a citação só ocorreu em 09/02/2012, ultrapassando o prazo de 90 dias previsto por analogia ao art. 10 do Código Penal e ao art. 202, I, do Código Civil. Assim, sustenta que não houve interrupção válida da prescrição e requer o seu reconhecimento. Nesse ponto, é importante destacar que, no julgamento do ARE 843.989/PR, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que o novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 não possui caráter retroativo. Dessa forma, os novos marcos temporais aplicáveis devem ser considerados a partir da publicação da referida lei. (ARE 843.989/PR, Relator: Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, Julgamento em 18/08/2022 e Publicação em 12/12/2022). Desse modo, não se aplica ao presente caso os prazos prescricionais previstos pela Lei 14.230/2021. Passo a análise da prescrição sob a égide das regras vigentes antes da publicação da Lei 14.230/2021. Nos termos do artigo 37, §5º, da Constituição Federal: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: § 5º - A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento. Por outro lado, o artigo 23 da Lei n. 8.429/92, vigente à época do ajuizamento da ação (11/12/2009), assim dispunha: Art. 23. As ações destinadas a levar a efeitos as sanções previstas nesta lei podem ser propostas: I - até cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança; O Juízo a quo rejeitou a prejudicial de prescrição, nos seguintes termos (ID 25950114, págs. 107/143): (...) entendo não operada a prescrição da pretensão condenatória. De fato, o mandato do acionado encerrou-se em 31.12.2004 e a presente ação foi proposta em 11.12.2009. Neste contexto, não foi ultrapassado o período previsto no inciso I, art. 23 da Lei n° 8.429/92, sendo irrelevante para a análise da prescrição o fato de a citação ter ocorrido em data posterior (09.02.2012- fl. 771). Ressalte-se que o art. 219 do Código de Processo Civil vigente à época estabelecia o seguinte: Art. 219. A citação válida toma prevento o juizo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa; e, ainda quando ordenada por juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição. § 1º A Interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação. (...) Por oportuno, registro que a discussão quanto à prescritibilidade ou imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento do dano ao erário, tema do RE 852475, cuja repercussão geral foi reconhecida pelo STF, não possui qualquer relevância para o deslinde do presente feito, haja vista que, como acima consignado, a pretensão autoral não se encontra fulminada pela prescrição. Afastadas as preliminares e a prejudicial de mérito, passo à análise do mérito (...). No caso, não está prescrita a pretensão da pretensão punitiva estatal. Como previsto pelo artigo 23, inciso I, da Lei nº 8.429/92 (redação original) o prazo prescricional, na hipótese de o ato ímprobo ser praticado por ex-agente público, é de 5 (cinco) anos, contados do fim do mandato ou da dispensa do cargo em comissão. Nesse contexto, não há que se falar em prescrição, pois o mandato do ex-prefeito e apelante, Raulindo de Araújo Rios, encerrou-se em 31/12/2004, conforme informado pelo próprio réu na apelação, e a presente ação foi proposta em 11/12/2009 (ID 25959532, pág. 01), antes, portanto, do transcurso do prazo prescricional de 5 (cinco) anos. A esse respeito, confira-se ementa do STJ: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DECISÃO QUE RECEBE A INICIAL EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO AOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO MONOCRÁTICA RECORRIDA. SÚMULA 284 DO STF. PRESCRIÇÃO PARA O AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE IMPROBIDADE. CONTADO A PARTIR DO TÉRMINO DO EXERCÍCIO DO CARGO. INDÍCIOS DE COMETIMENTO DE ATO ÍMPROBO. IN DUBIO PRO SOCIEDATE. RECEBIMENTO DA INICIAL. IMPUTAÇÃO DE ATOS DOLOSOS NÃO EXTINTOS PELA LEI 14.230/2021. NÃO APLICAÇÃO DO TEMA 1.199/ST. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Cuida-se, na origem, de Agravo de Instrumento contra decisão que recebeu a inicial em Ação Civil de Improbidade Administrativa, a qual tem como causa de pedir a inobservância às regras e princípios que regem a maneira pela qual o Poder Público adquire bens e serviços. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE RECURSAL 2. A parte agravante, no caso em espécie, insiste nos argumentos já analisados na decisão recorrida, não impugnado especificamente os fundamentos da decisão atacada - notadamente de que "a averiguação do transcurso do prazo prescricional da pretensão punitiva por ato de improbidade administrativa deve ser feita individualmente, a partir do término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança, consoante dispõe o art. 23, I, da Lei 8.429/1992 (AgInt no REsp 1.536.133/CE, Rel. Ministra Regina Helena Consta, Primeira Turma, DJe 14.8.2018)." (fl. 255, grifei). 3. Ao assim proceder, descumpriu o ônus da dialeticidade. Incide o teor da Súmula 283/STF. (AgRg no RMS 43.815/MG, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 27/5/2016). PRESCRIÇÃO APLICADA AOS PARTICULARES: MESMA SISTEMÁTICA ATRIBUÍDA AOS AGENTES PÚBLICOS - SÚMULA 634 DO STJ 4. Ainda que superado o óbice acima, verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que, nos termos do artigo 23, I e II, da Lei 8429/92, com redação anterior às alterações da Lei 14.230/21, aos particulares, réus na ação de improbidade administrativa, aplica-se a mesma sistemática atribuída aos agentes públicos para fins de fixação do termo inicial da prescrição. Nessa linha, a Súmula 634/STJ: "Ao particular aplica-se o mesmo regime prescricional previsto na lei de improbidade administrativa para os agentes públicos." A propósito: AgInt no REsp n. 1.725.544/PE, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, Primeira Turma, DJe de 11/4/2024, AgInt no REsp 1.868.436/RN, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 2/12/2020, AgInt no AREsp 1.710.507/RS, Rel. Min. Herman Benjamin Segunda Turma, DJe 13/4/2021 e AgRg no REsp 1.541.598/RJ, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe de 13.11.2015. 5. Cuida-se de prescrição ordinária, instituto de direito material. Nessas hipóteses, o STJ entende que deve prevalecer a garantia do ato jurídico perfeito e a segurança jurídica, de modo que o ato de improbidade administrativa praticado antes da alteração legislativa deve ser regulado pela lei em vigor ao tempo da sua prática (MS 9.157/DF, Rel. Min. Eliana Calmon, Corte Especial e DJ 7/11/2005). 6. No caso dos autos, o Prefeito Municipal se manteve no cargo entre os anos de 2009 a 2016 (fl. 106). Assim, a averiguação do transcurso do prazo prescricional da pretensão punitiva por ato de improbidade administrativa deve ser feita individualmente, a partir do término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança, consoante dispõe o art. 23, I, da Lei 8.429/92 (AgInt no REsp 1.536.133/CE, Rel. Min. Regina Helena Consta, Primeira Turma, DJe 14/8/2018). 7. Considerando que o final do mandato do Prefeito Municipal ocorreu em 2016 e a Ação Civil Pública foi proposta em 11/5/2017, não transcorreu o prazo quinquenal da prescrição impeditivo da propositura da ação. RECEBIMENTO DA INICIAL: IN DUBIO PRO SOCIETATE 8. O Tribunal de origem assim consignou (fls. 105-107): "Quanto à preliminar de ilegitimidade passiva, constata-se que esta se confunde com o mérito e com ele será analisada oportunamente pelo juízo de origem. (...) Em uma análise preliminar e diante dos elementos probatórios trazidos aos autos, vislumbra-se a possibilidade de cometimento de ato ímprobo praticado pelos corréus, uma vez que aparentemente houve fraude em procedimento licitatório, no qual se anulou a concorrência em razão da participação de empresas pertencentes à mesma família, não podendo se afastar tal hipótese neste momento processual. O douto juízo de origem demonstrou claramente os indícios de autoria e de materialidade, o que impossibilita o indeferimento da inicial". 9. O acórdão recorrido está em consonância com a jurisprudência do STJ, firmada no sentido de que a presença de indícios de cometimento de atos previstos na Lei de Improbidade Administrativa autoriza o recebimento da peça vestibular, devendo prevalecer na fase inicial o princípio do in dubio pro societate. Sendo assim, somente após a regular instrução processual é que se poderá concluir pela existência ou não de eventual prática de ato de improbidade administrativa. Nesse sentido: REsp 1.567.026/RS, Rel. Min. Francisco Falcão Segunda Turma, DJe de 27/8/2018 e STJ, AgInt no AREsp 952.487/MS, Rel. Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe de 18/9/2018. 10. Ademais, registre-se que "constatada a presença de indícios da prática de ato de improbidade administrativa, é necessária instrução processual regular para verificar a presença ou não de elemento subjetivo, bem como do efetivo dano ao erário, sendo que para fins do juízo preliminar de admissibilidade, previsto no art. 17, §§ 7º, 8º e 9º, da Lei 8.429/92, é suficiente a demonstração de indícios razoáveis de prática de atos de improbidade e autoria, para que se determine o processamento da ação, em obediência ao princípio do in dubio pro societate, a fim de possibilitar o maior resguardo do interesse público" (AgRg no REsp 1.384.970/RN, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 29/9/2014). ATRIBUIÇÃO DE ATO DOLOSO DO ART. 10 DA LEI 8.429/1992: NÃO APLICAÇÃO DO TEMA 1.199/STF 11. Por fim, inaplicável o Tema 1.199/STF, uma vez que foram imputados aos réus atos dolosos capitulados no art. 10, incisos VII e XII, da Lei 8.429/92, os quais não tratam de tipos extintos pela Lei 14.230/21 e nem sequer foram alterados por ela. Acerca da matéria, o acórdão de origem consignou (fl. 107, grifei): "Ademais, como assentou o C. STF, são imprescritíveis os atos dolosos de improbidade e, visto que o autor imputa aos réus o cometimento doloso de ato ímprobo, não há que se falar em prescrição, matéria a ser reanalisada quando do julgamento do mérito da causa". 12. E no que toca a eventual prescrição interfases, também no Tema 1.199/STF ficou assentado que o "novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei". CONCLUSÃO 13. Agravo Interno não provido. (AgInt no AREsp n. 1.865.853/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 11/6/2024, DJe de 24/6/2024.) No mesmo sentido, já decidiu esta Corte Regional: ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. ART. 10, VIII DA LEI 8.429/92. FRACIONAMENTO INDEVIDO COM EFETIVO PREJUÍZO AO ERÁRIO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO DOLO NAS CONDUTAS DOS MEMBROS DA COMISSÃO DE LICITAÇÃO. ABSOLVIÇÃO. COMPROVADO DOLO NA CONDUTA DO EX-PREFEITO. MANUTENÇÃO DA CONDENAÇÃO. PARCIAL PROVIMENTO. 1. O prazo prescricional a ser aplicado ao particular que praticou ou se beneficiou do ato de improbidade é o mesmo fixado para responsabilização do servidor público. O prefeito à época dos fatos permaneceu no mandato até 31.12.2004. O prazo prescricional teve início após o término do mandato, não havendo que se falar em prescrição, haja vista o ajuizamento em 16/04/2009. Preliminar rejeitada. (...) 5.Dado parcial provimento à apelação da defesa para absolver os membros da comissão de licitação e manter a condenação do ex-prefeito, mantendo-se a sentença integralmente em seus demais termos. (AC 0005233-62.2009.4.01.3600, JUIZ FEDERAL MARLLON SOUSA (CONV.), TRF1 - TERCEIRA TURMA, PJe 24/03/2023 PAG.) Vale ressaltar, ainda, que é a distribuição da ação de improbidade administrativa que interrompe a fluência do prazo prescricional, segundo dicção do art. 312 do CPC, e não o despacho que determina a citação dos réus, como sustentou o apelante Raulindo de Araújo Rios. Ademais, a regra insculpida no parágrafo 1º do art. 240 do CPC prevê que a prescrição retroagirá à data da propositura da ação. Confira-se: Art. 312. Considera-se proposta a ação quando a petição inicial for protocolada, todavia, a propositura da ação só produz quanto ao réu os efeitos mencionados no art. 240 depois que for validamente citado. Art. 240. A citação válida, ainda quando ordenada por juízo incompetente, induz litispendência, torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado o disposto nos arts. 397 e 398 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). § 1º A interrupção da prescrição, operada pelo despacho que ordena a citação, ainda que proferido por juízo incompetente, retroagirá à data de propositura da ação. Outrossim, conforme orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, "o prazo quinquenal de prescrição, na ação de improbidade administrativa, interrompe-se com a propositura da ação, independentemente da data da citação, que, mesmo efetivada em data posterior, retroage à data do ajuizamento da ação (arts. 219, § 1º e 263 - CPC), ressalvada a hipótese (não ocorrente) de prescrição intercorrente" (STJ, REsp 1.374.355/RJ, Rel. Ministro Olindo Menezes (Desembargador Federal Convocado TRF/1ª Região), Primeira Turma, DJe de 28/10/2015). Logo, para fins prescricionais, deve ser considerada como marco interruptivo da prescrição a data do ajuizamento da ação, haja vista o disposto no art. 219, § 1º, c/c o art. 263, ambos do Código de Processo Civil, que expressamente prescreve que a interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação. Prejudicial de prescrição rejeitada. Passo, então, ao exame do mérito do recurso interposto Na inicial, o MPF acusa o requerido de improbidade administrativa por suposta má gestão de recursos públicos referentes aos Convênios n.º 6.21.2001.027-00 e n.º 6.21.2001.023-00, firmados com o Ministério da Integração Nacional via CODEVASF. O primeiro convênio, de R$ 57.500,00, destinava-se à construção de uma barragem em Poço Comprido; o segundo, no valor de R$ 28.007,63, previa obra similar na Fazenda Aroeira. Ambos foram celebrados em 31.12.2001, com repasses feitos em 2002 e prorrogações de vigência até 2003. Narra a ocorrência de fortes indícios de simulação no Convite n.º 020/2002, destacando que a empresa vencedora, São Luiz Construtora e Serviços Ltda., teria sido criada a pedido de Raulindo Rios, com sócios "laranjas", sem certidões regulares, obras registradas, vínculos empregatícios ou recolhimentos ao INSS. Depoimentos de um sócio e da ex-contadora reforçam essas alegações. O processo licitatório carecia de documentação essencial (habilitação jurídica, regularidade fiscal, qualificação técnica, projeto básico e orçamento), sendo ainda referendado por parecer do procurador jurídico do município, filho do demandado. Foram identificadas coincidências suspeitas nos valores das propostas, ausência de datas e propostas apresentadas após o julgamento do certame. Quanto ao Convênio n.º 6.21.2001.023-00, firmado com a CODEVASF, também houve irregularidades semelhantes: proposta vencedora no valor exato do repasse (R$ 46.030,52), ausência de documentos exigidos para habilitação e suspeita de violação da proposta da empresa Freitas Brandão Ltda. para montagem das demais. A CODEVASF instaurou tomada de contas especial e inicialmente imputou débito de R$ 182.904,48 ao réu, mas posteriormente reconheceu a inexistência de dano ao erário e arquivou o procedimento. Pois bem. Inicialmente, no que se refere à incidência da Lei 14.230/2021, no caso em espécie, passo a expor as seguintes considerações. Em 26/10/2021, foi publicada a referida lei que modificou consideravelmente a Lei 8.429/92 (Lei da Improbidade Administrativa). Como já pacificado, a referida norma legal aplica-se ao caso dos autos, eis que atinge as ações em curso, considerando que o seu art. 1º, § 4º, determina, expressamente, a aplicação imediata de seus dispositivos em razão dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador, conforme já reconheceu o STF, no julgamento do ARE 843.989/PR, fixando, a propósito, a seguinte tese: 1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - dolo; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é irretroativa, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei. (ARE 843.989/PR, Rel. Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, Julgamento: 18/08/2022 Publicação: 12/12/2022.) Passo, então, ao exame da apelação interposta, à luz das inovações legislativas advindas da Lei 14.230/21. Conforme já exposto, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública por ato de improbidade administrativa em face de Raulindo de Araújo Rios, ex-Prefeito do Município de Quixabeira/BA, cuja gestão compreendeu o período de 2001 a 2004. Na inicial, imputam-se ao réu condutas tipificadas nos artigos 10, inciso XI, e 11, caput, da Lei nº 8.429/1992, consistentes na má gestão e na aplicação irregular de recursos públicos federais vinculados à execução dos Convênios nº 6.21.2001.027-00 e nº 6.21.2001.023-00, celebrados com o Ministério da Integração Nacional, por intermédio da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba – CODEVASF. Com as alterações introduzidas pela Lei 14.230/21, os arts. 10, inciso XI, e 11, caput, da Lei 8.429/92 passaram a ter a seguinte redação: Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente: (...) XI - liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular; (...). Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas: (...). De acordo com a nova redação dada pela Lei 14.230/2021, os arts. 9º, 10 e 11 da Lei 8.429/92 passaram a exigir, para fins de configuração do ato ímprobo, a prática de conduta dolosa, excluindo-se, por conseguinte, a possibilidade de condenação por conduta culposa ou dolo genérico. Confira-se: Art. 9º Constitui ato de improbidade administrativa importando em enriquecimento ilícito auferir, mediante a prática de ato doloso, qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, de mandato, de função, de emprego ou de atividade nas entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente: (...). Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente: (...). Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas: (Grifei) Portanto, a partir da nova lei, é necessária a comprovação do dolo específico para a condenação por ato de improbidade administrativa. No caso em apreço, não há qualquer comprovação do dolo específico exigido pela Lei de Improbidade Administrativa, tampouco evidência de prejuízo efetivo ao erário. A sentença recorrida foi proferida pelo eminente Juiz Federal Rafael Ianner Silva, da Vara Única da Subseção Judiciária de Campo Formoso/BA, nestes termos, no que importa (ID 25950114, págs. 107/143): (...) Afastadas as preliminares e a prejudicial de mérito, passo à análise do mérito. Como acima consignado, o Ministério Público Federal imputa ao réu a prática de atos de improbidade administrativa previstos no inciso VIII e XI do art. 10 e, subsidiariamente, no caput do art. 11, todos da Lei 8.429/92, assim descritas nos dispositivos legais: Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1° desta lei, e notadamente: (...). VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente; XI - liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular; Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: Compulsando os autos, observo que o procedimento investigatório instaurado pela Procuradoria da República em Campo Formoso decorreu de representação encaminhada pelo Ministro de Controle e da Transparência, em face de fiscalização empreendida pela CGU no Município de Quixabeira (f 1. 31). No que interessa ao presente feito, o Relatório de Fiscalização n. 00749, de 26.03.2006, refere que, no período de 04.04.2005 a 19.06.2006, a equipe da CGU fez as seguintes constatações quanto aos convênios celebrados com o Ministério da Integração Nacional (fls. 33-51): - CONSTATAÇÃO 3.1.1 - CELEBRAÇÃO DE CONVÊNIO E APROVAÇÃO DE RECURSOS LIBERADOS PARA OBRA JÁ EXISTENTE. A constatação realizada pela equipe da CGU - e encampada pelo Ministério Público Federal em sua exordial - merece ser rechaçada. De fato, o Relatório Técnico de Viagem realizada no período de 19.11.2009 a 20.11.2009 deixa evidente a existência de três barragens (ou aguadas) nas localidades de Aroeira e Poço Comprido, lançando por terra a alegação de não construção das barragens objeto dos dois convênios celebrados com o Ministério da Integração Nacional Ademais, como se pode observar dos depoimentos transcritos no próximo tópico, as testemunhas ouvidas em juízo afirmaram que as duas barragens foram construídas na gestão de RAULINDO, além de indicarem a existência de uma terceira barragem na região, construída na década de 1990. - CONSTATAÇÃO 3.1.2 - PREPARAÇÃO FRAUDULENTA DE LICITAÇÃO Quanto a este ponto entendo restar plenamente comprovado o caráter fraudulento dos Convites 011/2002 e 020/2002. De início, constato que o relatório acostado à fl. 290 evidencia que a empresa São Luiz Construções e Serviços Ltda. apenas solicitou emissão de certidão negativa de débitos tributários à Receita Federal em 09.07.2001 ou seja, em data anterior às licitações sob comento. Quanto ao Convite n. 020/2002, chama atenção que, entre o pedido de abertura de processo administrativo (fl. 238) e a data de homologação do certame, transcorreram apenas 10 (dez) dias, com diversos atos sendo praticados na mesma data por órgãos distintos da prefeitura (Gabinete da Prefeitura, Departamento de Contabilidade, Secretaria de Obras, Procuradoria Jurídica e Comissão Permanente de 4110 Licitação). Situação semelhante pode ser observada quanto ao Convite n. 011/2002 (fls. 295/326). Ademais, é observo que a equipe de fiscalização da CGU constatou "coincidência de valores entre a proposta da empresa São Luiz Construtora e Serviços Ltda. e o plano de aplicação do plano de trabalho, reforçando a suspeita de conhecimento antecipado dos valores do repasse por parte do licitante vencedor. O valor da proposta, que está sem data, foi de R$ 94.985,99, aproximadamente o valor do repasse pelo concedente de R$ 95.000,00". Noutro giro, a inexistência de concorrência efetiva entre os participantes dos certames citados e seu caráter fraudulento também são corroborados pelos depoimentos colhidos nos autos. Em depoimento prestado perante a Procuradoria da República em Campo Formoso (fls.150/151) o sócio da empresa São Luiz Construções e Serviços Ltda. qualificou-se como lavrador e disse que: a) conhecia RAULINDO há mais de 30 anos; b) que RAULINDO o convidou para constituir uma "firma"; c) que entregou seus documentos pessoais a RAULINDO; d) que, após isso, passou a desempenhar a atividade de pedreiro para o município, percebendo por dia de trabalho; e) que apenas tomou conhecimento de que a empresa estava em seu nome ao final do mandato de RAULINDO, no ano de 2004; f) que RAULINDO sempre mandava alguém para procurar o depoente para assinar documentos, os quais achava guardar relação com as diárias de pedreiro; g) afirmou não saber o que era uma licitação e sequer sabe quantas licitações participou e em quantas se sagrou vencedor; h) apenas recebeu valor da prefeitura para pagamento de suas diárias em razão da sua atividade de pedreiro; i) que não sabe informar se a empresa São Luiz ainda estaria ativa; j) que nunca estudou, sabendo apenas escrever o seu nome. Em sede judicial (arquivo PKT_33871-48049, constante da mídia acostada à fl. 1397 dos autos), Luiz Pereira Souza disse: a) que constituiu a empresa São Luiz por orientação de RAULINDO, para que "tivesse trabalho no município"; b) que não sabe informar se a empresa possuía pendências quando da participação de certames licitatórios, pois apenas recebia ordens; c) que não tinha conhecimento sobre licitação e recebia "tudo pronto", pois apenas "fazia o trabalho"; d) que sempre exerceu a profissão de lavrador e pedreiro; e) que não escolheu o nome, o ramo de atividade e nem a sede da empresa, pois recebeu "tudo pronto" para assinar; f) que seus documentos pessoais ficavam sempre em um escritório na cidade de Quixabeira/BA; g) que não sabe quem escolheu o "ponto" onde a empresa funcionava; h) que não era o depoente quem determinava o valor do seu serviço e que recebia por diária pelo serviço feito; i) que não sabe afirmar como a empresa era escolhida para realizar obras públicas; j) que eram servidores da prefeitura quem indicavam qual serviço a ser feito; I) que, depois que RAULINDO encerrou seu mandato, não manteve mais contratos ou prestou serviços à Prefeitura de Quixabeira, passando a trabalhar como pedreiro autônomo; m) que todas as obras públicas das quais participou no Município de Quixabeira na gestão de RAULINDO foram concluídas; n) que não se envolvia com a parte burocrática da empresa São Luiz (pagamento de pessoal e de impostos); o) que, atualmente, apenas presta serviço "particular e para a LMarquezzo, nos Municípios de Jacobina e Feira de Santana; p) que ainda utiliza o veículo descrito à fl. 1380 para trabalho; q) que o aludido veículo pertence ao depoente e foi comprado no Estado de São Paulo; r) que colocou o adesivo da São Luiz no veículo há aproximadamente uns 06 a 07 meses; s) que já possuiu um ônibus e com ele fazia transporte escolar para a Prefeitura de Quixabeira, sempre que algum ônibus contratado "dava problema" ou na falta de algum motorista; t) que tais transportes eram realizados na época em que o depoente estava executando as obras para a Prefeitura; u) que, ao final, vendeu o aludido ônibus a RAULINDO, mas, por conta do estado do veículo, foi levado ao desmanche. Ao seu turno, Marleide Rodrigues dos Santos prestou depoimento na Procuradoria da República (fls. 156/157), onde disse: a) que foi contadora da empresa São Luiz Construções e Serviços Ltda, cujo proprietário é Luiz Pereira; b) que trabalhou nessa empresa no mesmo período que laborou na empresa Jalmir Ribeiro Rios e Cia. Ltda; c) que deixou de trabalhar na São Luiz após o Sr. Itamar Rios ter transferido as atividades de contabilidade para o Sr. Jotan; d) que tanto o Sr. Jalmir Ribeiro Rios quanto o Sr. Luiz possuíam formação apenas de primeiro grau e não eram pessoas esclarecidas. Em sede judicial (mídia acostada à fl. 1334 dos autos), Marleide Rodrigues dos Santos disse: a) que foi contadora da empresa São Luiz; b) que os sócios eram dois, um deles Luiz Pereira; c) que Luiz Pereira era uma pessoa simples; d) que Luiz Pereira era quem comparecia a seu escritório de contabilidade; e) que a São Luiz prestava serviços para a Prefeitura de Quixabeira; f) que foi Itamar Rios quem ligou para a depoente, informando que iria "passar a contabilidade" da empresa para um contador de prenome Jotan, cunhado de Itamar Rios; g) que possuía divergências políticas com 'tomar; h) que nunca tratou diretamente com RAULINDO sobre a aludida empresa; i) que foi o próprio Luiz Pereira que foi ao seu escritório para pegar a documentação e levar para o novo contador. Cumpre destacar que a testemunha Marleide. por diversas vezes, foi evasiva quanto às circunstâncias fáticas que ensejaram a constituição da empresa, tampouco forneceu explicação factível quanto ao motivo de ter aceitado uma determinação de pessoa estranha aos quadros societários - a saber. ltamar Rios – acerca da mudança do escritório de contabilidade. Ademais. foi extremamente confusa e lacônica quanto à participação de Itomar Rios na administração ou gestão da empresa São Luiz. Restou nítida a intenção da autora em omitir fatos essenciais para o deslinde do feito. Registre-se que Erilberto Oliveira Lima e Marlene Oliveira Gomes, servidores municipais e integrantes da comissão de licitação no período relativo aos convites tratados no presente feito prestaram depoimento em 22.06.2013 (mídia acostada à fl. 1334). Erilberto Oliveira Lima declarou que: a) fez parte da comissão de licitação da Prefeitura de Quixabeira; b) que atuava sob orientação do setor de contabilidade da prefeitura, no sentido de analisar a regularidade da documentação apresentada; c) não sabe informar se houve direcionamento das licitações para a empresa São Luiz; d) que as barragens de Aroeira e de Poço Comprido foram construídas nos anos 2000 e que a barragem construída no início da década de 1990 foi a de Baixa Grande; e) que conhecia Luiz Pereira como "dono" da empresa São Luiz, o qual compareceu às sessões de licitação; f) que não sabe informar se Luiz Pereira já trabalhou como pedreiro, mas sim como "tocador de obra"; g) que a empresa São Luiz não era a única vencedora das licitações da Prefeitura de Quixabeira; h) que considerava habilitadas as empresas participantes dos certames, a despeito da existência de pendências, por orientação do setor de contabilidade, qual seja, um escritório de contabilidade sediado no município de Miguel Calmon/BA; i) que já viu Luiz Pereira e RAULINDO juntos e os dois tinham "aproximação", apesar de não saber precisar o grau de amizade existente entre eles. Vale frisar que, durante o procedimento investigatório, o Sr. Eriberto Oliveira Lima afirmou que Luiz Pereira era próximo a RAULINDO, mantendo com ele uma relação de amizade (fls. 159/160) Por sua vez, Marlene Oliveira Gomes afirmou: a) que participou como membro da comissão de licitação pública da Prefeitura de Quixabeira; b) que recebia a documentação para assinar pronta da "contabilidade"; c) que assinava a documentação sem questionamentos; d) que nunca "tomou treinamento" para participar de certames licitatórios; e) que as barragens foram construídas na década de 2000; f) que Luiz Pereira era uma pessoa humilde; g) que Luiz Pereira não possuía inimizade com RAULINDO; h) que não participava da abertura dos envelopes das licitações; i) que sempre via Luiz Pereira na "contabilidade", apesar de não saber o que ele fazia por lá; j) que, em 2013, viu Luiz Pereira com um carro com o logotipo da São Luiz; I) que Fazenda Aroeira, Poço Comprido e Baixa Grande são localidades distintas do Município de Quixabeira. O terceiro integrante da comissão de licitação da Prefeitura de Quixabeira à época dos fatos tratados no presente feito, Adinael Martins de Lima, prestou depoimento em 14.06.2016 (mídia acostada à fl. 1442) e afirmou: a) que exerceu o cargo de presidente da comissão de licitação da Prefeitura de Quixabeira na gestão de RAULINDO; b) que não possuía conhecimento sobre licitação e sua função se resumia a assinar a documentação que já vinha pronta e elaborada por uma empresa de contabilidade. Tal sistemática aconteceu em vários processos licitatórios; c) que não participou de nenhuma sessão de recebimento de propostas; d) que conhece a empresa São Luiz e que não sabe afirmar se tinha ligação com RAULINDO; e) que as obras referentes às barragens objeto das licitações foram realizadas; f) que Luiz Pereira era o "dono" da empresa São Luiz e acha que era o administrador; g) que nunca viu o Sr. Luiz Pereira participando de uma sessão de licitação; h) que não sabe se RAULINDO determinou que alguma empresa fosse sagrada vencedora de determinada licitação; i) 10 que à época dos fatos tratados no presente feito. a Prefeitura de Quixabeira realizava pagamentos no Posto do Banco do Brasil situado no município j) que não sabe dizer se a empresa São Luiz continuou a prestar serviços à prefeitura após a gestão de RAULINDO; I) que conhece como de propriedade de Luiz Pereira o veículo cuja fotografia está acostada à fl. 1380 dos autos. A fraude à licitação, da forma como perpetrada consubstancia evidente ofensa ao princípio da legalidade e da moralidade. basilares da Administração Pública, ensejando o enquadramento do ato de improbidade no caput do art. 11 da Lei de improbidade. - CONSTATAÇÃO 3.2.2 - DESVIO DE RECURSOS POR MEIO DE PAGAMENTOS A CREDORES SEM VÍNCULO COM O OBJETO DO CONVÊNIO De fato, entendo documentalmente comprovado que RAULINDO RIOS, na qualidade de prefeito do Quixabeira assinou o cheque n. 850002. no valor de R$ 2.301.52 (fls. 346/347) em favor da empresa RG Supermercado. pessoa estranha à execução do contrato decorrente do Convite 011/2002 (fls. 336/345). Em nenhum momento dos autos, o réu apresentou justificativa para tamanha irregularidade, sendo absolutamente censurável a conduta de pagar, com cheque de conta bancária vinculada a convênio federal, terceiro estranho à avença Neste diapasão entendo que a conduta se amolda à figura típica prevista no inciso XI do art. 10 da Lei de Improbidade: ART. 10. CONSTITUI ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA QUE CAUSA LESÃO AO ERÁRIO QUALQUER AÇÃO OU OMISSÃO, DOLOSA OU CULPOSA, QUE ENSEJE PERDA PATRIMONIAL, DESVIO, APROPRIAÇÃO, MALBARATAMENTO OU DILAPIDAÇÃO DOS BENS OU HAVERES DAS ENTIDADES REFERIDAS NO ART. 1° DESTA LEI, E NOTADAMENTE: (...) XI - LIBERAR VERBA PÚBLICA SEM A ESTRITA OBSERVÂNCIA DAS NORMAS PERTINENTES OU INFLUIR DE QUALQUER FORMA PARA A SUA APLICAÇÃO IRREGULAR; - CONSTATAÇÃO 3.2.3 - INDÍCIOS DE DESVIO DE RECURSOS POR MEIO DE SAQUES DIRETOS NAS CONTAS DOS CONVÊNIOS A documentação acostada às fls. 349/371 deixa evidente que o réu emitiu os cheques 850004 e 851520, nos valores de R$ 6.007,63 e R$ 10.000,00, Nominais à própria Prefeitura Municipal de Quixabeira, prática esta que possibilitou o saque direto dos valores pelo próprio gestor. Outrossim, chama a atenção o endosso "em branco" realizado por Luiz Pereira Souza no cheque 850001, no valor de R$ 22.000,00 nominal à empresa São Luiz Construções e Serviços Ltda. (fl. 363). Saliente-se que a assinatura de RAULINDO também consta do verso do aludido título de crédito. As duas práticas adotadas são indiciárias da ocorrência de desvio das verbas federais repassadas, uma vez que, na prática, impedem a fiscalização da destinação da quantia dada em pagamento ao executor da obra/serviço do objeto do convênio, sendo vedada pela Secretaria do Tesouro Nacional, no art. 20 da INSTRUÇÃO NORMATIVA STN N° 1, DE 15 DE JANEIRO DE 1997, in verbis: Art. 20. Os recursos serão mantidos em conta bancária específica somente permitidos saques para pagamento de despesas constantes do Programa de Trabalho ou para aplicação no mercado financeiro, nas hipóteses previstas em lei ou nesta Instrução Normativa devendo sua movimentação realizar-se. exclusivamente. mediante cheque nominativo, ordem bancária transferência eletrônica disponível ou outra modalidade de saque autorizada pelo Banco Central do Brasil, em que fiquem identificados sua destinação e. no caso de pagamento. o credor. A propósito, a justificativa trazida pelo réu para a adoção das duas práticas - qual seja, inexistência de agencia bancária do Banco do Brasil no município de Quixabeira à época dos fatos - não encontra comprovação nos autos. Ao contrário, a testemunha Adinael Martins de Lima, como já acima consignado, fez expressa menção à existência de um posto do Banco do Brasil no município, no qual a Prefeitura de Quixabeira realizava pagamentos. Contudo, a despeito das práticas adotadas pelo réu, entendo que quanto aos pagamentos realizados através dos cheques n. 850001. 850004 e 851520, não restou configurado dano ao erário mediante o desvio dos recursos federais repassados. De fato, constato que, no âmbito da tomada de contas especial, depois de uma significativa balbúrdia processual-administrativa, a CODEVASF optou pelo arquivamento daquele feito, por entender não ter havido comprovação de dano ao erário (f Is. 442/443, 445, 449, 463/464, 471/474, 478/479, 480/491). Digno de nota que, em laudos técnicos, o Chefe da 6° Superintendência Regional da CODEVASF atestou que "as obras/serviços foram executados a contento conforme normas e instrumentos contratuais de acordo com o valor repassado". Somado a isso, o Relatório Técnico de Viagem realizada no período de 19.11.2009 a 20.11.2009 deixa evidente a existência de três barragens (ou aguadas) nas localidades de Aroeira e Poço Comprido, lançando por terra a alegação de não construção das barragens objeto dos dois convênios celebrados com o Ministério da integração Nacional Ressalte-se que não foi realizada qualquer perícia - seja no âmbito administrativo, seja na seara judicial - capaz de atestar a qualidade das obras executadas, bem como o emprego integral (ou não) das verbas repassadas. Passando à análise da participação do réu nos atos de improbidade acima reconhecidos, entendo restar patente o protagonismo de RAULINDO para perpetração da fraude às licitações. Os depoimentos acima transcritos deixam evidente a íntima relação entre RAULINDO e o sócio da empresa São Luiz Construções e Serviços, Sr. Luiz Pereira, o qual afirmou ter constituído a pessoa jurídica por orientação do réu, tendo inclusive lhe entregue os documentos pessoais. Outrossim, o controle sobre as atividades da empresa também resplandece no depoimento da testemunha Marleide Rodrigues dos Santos, ex-contadora da São Luiz Construções, a qual afirmou que foi ltamar Rios - filho do réu e procurador jurídico do Município de Quixabeira à época dos fatos - quem ligou para a depoente, informando que iria "passar a contabilidade" da empresa para um contador de prenome Jotan, cunhado de Itamar. A testemunha Edilberto Oliveira Lima também afirmou que Luiz Pereira e RAULINDO tinham "aproximação", apesar de não saber precisar o grau de amizade existente entre eles. Vale frisar que, durante o procedimento investigatório, o Sr. Eriberto Oliveira Lima afirmou que Luiz Pereira era próximo a RAULINDO, mantendo com ele uma relação de amizade (fls. 159/160) Cumpre ressaltar que a tese da suposta perseguição política do prefeito posterior e do Controlador-Geral da União à época dos fatos não restou sequer indiciada nos autos. A existência de rivalidade política entre o gestor municipal posterior ao mandato do réu não é suficiente para abalizar a tese da perseguição. Além disso, o robusto relatório de fiscalização da equipe da CGU - cujas constatações foram majoritariamente comprovadas no presente feito, afastam qualquer possibilidade de direcionamento dos trabalhos da equipe de auditoria. III - Dispositivo. Em face do exposto, julgo PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido formulado à inicial, para CONDENAR o réu RAULINDO DE ARAUJO RIOS pela prática dos atos de improbidade administrativa insculpidos no inciso XI do art. 10 e no caput do art. 11, todos da Lei 8.429/92. Por conseguinte, passo a dosar-lhe a pena. O art. 12 possui a seguinte redação: Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: (...) II - na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos. Parágrafo único. Na fixação das penas previstas nesta lei o juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente. Em aplicação do art. 12, incisos II e III, condeno o réu: a) ressarcimento integral do dano, ora fixado em R$ 2.301,52 (dois mil, trezentos e um reais e cinquenta e dois centavos), valor histórico que remonta a 13.08.2002 (f1.344): b) ao pagamento de multa civil no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) que reputo proporcional para a gravidade da conduta: c) suspendo o exercício dos direitos políticos do requerido pelo prazo de 06 (seis) anos: d) e proíbo-o de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou Incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por Intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, também, pelo prazo de OS (cinco) anos. Não há condenação a honorários (aplicação isonômica do art. 18 da Lei 7347/85). Verificando-se o trânsito em julgado, após a competente certificação: a) oficie-se ao Tribunal Regional Eleitoral, para os fins de efetivação da suspensão dos direitos políticos; b) oficie-se ao Tribunal de Contas da União e ao Banco Central do Brasil, para efeito de aplicação das sanções referentes à proibição de contratar com o poder público; c) promova-se a inscrição do réu no Cadastro Nacional de Condenações Cíveis por Ato de Improbidade. Independentemente do trânsito em julgado do feito, oficie-se Imediatamente à Delegacia da Policia Federal em Juazeiro a fim de que Instaure inquérito para apurar a prática do crime de falso testemunho pela testemunha Marielde Rodrigues dos Santos. pelas razões explicitadas na fundamentação desta sentenca. Com o oficio, encaminhe-se cópia desta sentença. da mídia acostada à fl. 1334. Bem como do termo de depoimento de fls. 1561157. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Campo Formoso/BA, 20 de março de 2017. (original com negrito) Da análise do excerto transcrito da sentença recorrida, verifica-se que o juízo a quo reconheceu a ocorrência de fraude nos procedimentos licitatórios relativos aos Convites nº 011/2002 e 020/2002, imputando ao então prefeito Raulindo Rios a responsabilidade pela condução irregular dos certames. Também foi apontado o pagamento irregular de recursos federais ao estabelecimento RG Supermercado, sem a devida comprovação documental, considerado como liberação indevida de verba pública. Contudo, a instrução processual não apresenta provas robustas e consistentes que evidenciem a prática de ato doloso por parte de Raulindo Rios. As imputações são genéricas, baseadas em depoimentos frágeis e contraditórios, que não comprovam sua participação direta na elaboração ou manipulação das propostas licitatórias. O depoimento de Luiz Pereira, por exemplo, não atribui ao requerido qualquer conduta fraudulenta, apenas revela desconhecimento dos trâmites legais. Com a entrada em vigor da Lei nº 14.230/2021, que promoveu alterações substanciais na Lei de Improbidade Administrativa, tornou-se indispensável a demonstração de dolo específico para a responsabilização do agente público, bem como a comprovação concreta de dano ao erário nos casos previstos no art. 10 da LIA. Não se admite mais a responsabilização fundada unicamente em omissão, negligência ou irregularidades formais. Exige-se a comprovação de intenção deliberada de causar prejuízo ao patrimônio público ou de obter vantagem indevida – o que não restou demonstrado nos autos. Além disso, a própria sentença reconhece que as barragens previstas nos convênios foram efetivamente construídas, afastando, por consequência, a alegação de dano ao erário quanto à execução do objeto. Também não foi produzido qualquer laudo técnico que evidenciasse sobrepreço ou superfaturamento nos valores pagos à empresa São Luiz, o que fragiliza ainda mais a tese de prejuízo ao erário. Eventuais inconsistências, se existentes, podem decorrer de falhas burocráticas ou administrativas, mas não evidenciam, por si sós, conduta dolosa voltada ao desvio de recursos públicos. O Relatório de Fiscalização da CGU nº 00749, de 26 de março de 2006, embora aponte diversas irregularidades na aplicação dos recursos dos Convênios nº 6.21.2001.027-00 e nº 6.21.2001.023-00, não fornece elementos suficientes para atestar, de forma inequívoca, a prática de ato ímprobo por parte do requerido, sobretudo ante a exigência legal atual de demonstração cabal do dolo específico. Dessa forma, a inexistência de provas consistentes que evidenciem a intenção ilícita reveladora do dolo específico do agente, bem como de demonstração concreta de prejuízo ao erário, inviabiliza a subsunção das condutas ao tipo previsto no art. 10 da LIA, impondo-se, por conseguinte, a reforma da sentença condenatória. Sobre o assunto, confira-se a jurisprudência desta Corte: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI N. 8.429/92. EX-PREFEITO. OMISSÃO NA PRESTAÇÃO DE CONTAS. IRREGULARIDADE NA APLICAÇÃO DE RECURSOS. ART. 10, XI E ART.11,VI, DA LIA. DOLO ESPECÍFICO E DANO AO ERÁRIO. NÃO COMPROVAÇÃO. ATO ÍMPROBO MANIFESTAMENTE INEXISTENTE. ART. 17, §11, DA LEI 8.429/92. RECURSO DO RÉU PROVIDO. EXTENSÃO A CORRÉU POR FORÇA DO ART. 1.005 DO CPC. SENTENÇA REFORMADA. 1. Cuida-se de recurso de apelação interposto por Corréu contra sentença que, em sede de ação civil de improbidade administrativa, movida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL contra si e contra A.B.P., julgou procedentes os pedidos para condená-los como incursos nas condutas do art.10, caput, e art.11, inciso VI, da Lei nº 8.429/92, e aplicar-lhe as penas do art.12, II, do mesmo diploma legal (art.487, I, do CPC). (...) 7. A partir das modificações introduzidas pela Lei n° 14.230/2021, para além do animus doloso (em relação ao qual não basta a mera voluntariedade do agente - §2° do art. 1º da LIA), a nova redação do caput art. 10 da Lei n° 8.429/92 passou a adotar a perda patrimonial efetiva como aspecto nuclear das condutas ímprobas que causam lesão ao erário, havendo óbice, por exemplo, à configuração do ato ímprobo com base na culpa grave e no "dano presumido" (dano in re ipsa cf. art. 21, I, da LIA). 8. Os incisos do art. 11 da LIA deixaram de lado o caráter exemplificativo e passaram a ostentar caráter taxativo (numerus clausus). Desse modo, apenas a prática das condutas expressamente tipificadas no rol do mencionado dispositivo será configurada como ato ímprobo por violação aos princípios da administração pública, sendo certo, ademais, que os incisos I, II, IX e X do art.11 da LIA foram expressamente revogados. Ainda no tocante ao art. 11 da LIA, o enquadramento na conduta relativa a não prestação de contas (inciso VI imputação dirigida aos Réus), para fins de responsabilização de acordo com o novo sistema persecutório, impõe: (i) a demonstração de que o agente dispunha de condições para realizar o procedimento; (ii) a comprovação de que ele (o agente) tinha por escopo "ocultar irregularidades" (inciso VI e §1 do art. 11 da LIA). 9. De acordo com o §1° do art. 11 da LIA, aplicável aos atos de improbidade previstos no art. 10 da LIA, por força do §2° do art. 11 da LIA: "Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade". (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021). 10. O legislador ordinário, validamente (cf. permissivo do art. 37, §4° da CF/88), estabeleceu maior rigidez para a caracterização dos atos ímprobos. 11. O exame detido dos autos impõe a reforma da sentença de primeiro grau, já que o posicionamento externado pelo Juízo singular pautou-se na caracterização de condutas movidas por "dolo genérico", e com a consideração de um dano presumido, o que não mais admite pelo atual ordenamento. De acordo com a narrativa exordiana, os Réus deixaram de apresentar documentos que comprovassem os gastos de verbas federais recebidas através do FNS, no período de janeiro/2007 a dezembro/2008. Apontou o MPF, outrossim, que o Tribunal de Contas da União (TCU), por meio do acórdão n° 7849/2016, julgou irregulares as contas dos Réus, também em razão da não comprovação de despesas realizadas pela Secretaria de Saúde do Município de Cachoeira do Piriá/PA. 12. Do alegado prejuízo ao erário. Não se olvida que, no processo de tomada de contas especial instaurado pelo FNS em razão de omissão dos Réus no dever de prestar contas dos recursos repassados pelo FNS, na modalidade fundo a fundo (de janeiro/2007 a dezembro/2008), o TCU, por meio do Acórdão n° 7.849/2016, de fato, julgou as contas irregulares, entendendo que não foram reunidos elementos que pudessem comprovar a regular aplicação dos recursos em ações destinada à saúde. 13. Embora repousem nos autos indícios de materialidade e autoria dos atos imputados ao ora Apelante, ex-secretário municipal de saúde do Município de Cacheira do Piriá/PA, gestor da pasta à época dos fatos e saber do seu dever e responsabilidades perante o município, não há qualquer comprovação de que a sua conduta tenha tido nítido e deliberado propósito de desviar ou de se apropriar dos recursos transferidos à Comuna, ou mesmo beneficiar algum terceiro. Em verdade, não há prova contundente de que o ora Apelante, por exemplo, teria atuado em conluio com o Corréu (ex-prefeito), ou, ainda que agindo de forma isolada, estaria imbuído de um ardil manifesto no trato da coisa pública, sobretudo visando obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade. 14. As condutas pautadas em dolo genérico (elemento expressamente considerado pelo Juízo singular para fins de condenação) ou "culpa grave" não podem mais ser sancionadas como ato de improbidade administrativa. É dizer, ausente o animus doloso, não há como enquadrar a conduta do art. 10 como ímproba. 15. A circunstância de o Tribunal de Contas ter considerado as contas irregulares (cf. Acórdão n° 7.849/2016 - TCU) não vincula este Juízo, tal como estabelece o art. 21, II, da LIA. Em verdade, embora as irregularidades apontadas possam contrariar alguma disposição expressa de lei, não assumem a configuração de ato ímprobo, porquanto absolutamente dissociadas do elemento subjetivo doloso do agente. 16. Da alegada não prestação de contas. Para o sentenciante, os Réus, na qualidade de ex-prefeito e ex-secretário de saúde do Município de Cachoeira do Piriá/PA, não teriam exibido a prestação das contas relativas aos recursos repassados pelo FNS ao Fundo Municipal de Saúde no município, na modalidade fundo a fundo. Embora haja indícios de materialidade e autoria do ato imputado ao ora Apelante, ex-secretário de saúde do município (omissão no dever de prestar contas), não há qualquer comprovação de que a sua conduta teve o fim específico de ocultar alguma irregularidade, ou mesmo que tenha sido voltada à obtenção de algum proveito para si ou para outrem. 17. Assente a compreensão de que a Lei de Improbidade Administrativa visa punir apenas o agente público (ou o particular a ele equiparado, cf. art. 2°, parágrafo único, da Lei n° 8.429/92), que age com dolo, desprovido de lealdade, honestidade e boa-fé, o que não é possível extrair, com segurança, do relato exordiano, tampouco das provas colacionadas. 18. Em recente julgamento proferido pelo Plenário do STF (ARE 803568, em 22/08/2023), restou consignado que as alterações promovidas pela Lei n° 14.230/202, no art. 11 da Lei n° 8.429/92, aplicam-se aos atos de improbidade administrativa praticados na vigência do texto anterior, porém sem trânsito em julgado. 19. Dada a identidade dos fatos e da imputação dirigida a ambos os Réus, o recurso do ora Apelante B. E. N. S. aproveita ao Requerido A. B. P., cujos interesses, no caso vertente, não se revelam distintos ou opostos (cf. art. 1.005 do CPC). 20. Ante a manifesta inexistência de ato de improbidade ausente a comprovação cabal do dolo específico e do dano ao erário o reconhecimento da improcedência dos pedidos é medida que se impõe, tal como prevê o art.17, §11, da Lei n° 8.429/92. 21. Apelação B. E. N. S. provida para reformar a sentença e julgar improcedentes os pedidos (com extensão ao Corréu A. B. P. cf. art. 1.005 do CPC). (AC 0000737-61.2017.4.01.3906, DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ALVES DE SOUZA, TRF1 - TERCEIRA TURMA, PJe 13/12/2024.) ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 10, VIII E XI, E ART 11, I, DA LEI 8.429/92 NA REDAÇÃO ANTERIOR À LEI 14.230/2021. FRUSTRAR PROCEDIMENTO LICITATÓRIO MEDIANTE SIMULAÇÃO E DIRECIONAMENTO. REENQUADRAMENTO DAS CONDUTAS PELO JUÍZO. IMPOSSIBILIDADE. §§ 10-C E 10-F, ART. 17, DA LEI 8.429/92. EFETIVO PREJUÍZO AO ERÁRIO NÃO DEMONSTRADO. DOLO NA CONDUTA DOS RÉUS NÃO COMPROVADO. MERA IRREGULARIDADE. ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATATIVA NÃO CONFIGURADO. APELAÇÃO DO MPF DESPROVIDA. APELAÇÕES DOS RÉUS PROVIDAS 1. Rejeitam-se as preliminares de inépcia da inicial e de cerceamento de defesa. A uma, porque petição inicial descreveu os fatos de forma clara e individualizou a conduta, demonstrando evidências da prática de ato de improbidade por parte dos requeridos. E a duas, porque a produção de outras provas foi indeferida e finalizou-se a fase de instrução, por entender o Juiz de primeiro grau que a causa encontrava-se pronta para julgamento, estando os fatos devidamente esclarecidos em face dos documentos acostados, não se fazendo necessária a produção de novas provas. 2. A Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), que regulamentou o art. 37, § 4º, da Constituição Federal de 1988, tem como finalidade impor sanções aos agentes públicos pela prática de atos de improbidade nos casos em que: a) importem enriquecimento ilícito (art. 9º); b) causem prejuízo ao erário (art. 10); e c) atentem contra os princípios da Administração Pública (art. 11), neste também compreendida a lesão à moralidade administrativa. 3. Com a superveniência da Lei 14.230/2021, que introduziu consideráveis alterações na Lei 8.429/92, para que o agente público possa ser responsabilizado por ato de improbidade administrativa, faz-se necessária a demonstração do dolo específico, conforme o artigo 1º, §2º, da Lei 8.429/92, ao dispor: "§ 2º considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente". 4. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 1.199 (ARE 843989 RG, Relator Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, publicado em 04.03.2022), após analisar as questões submetidas ao respectivo tema em decorrência da superveniência da Lei 14.230/2021 que introduziu as alterações promovidas na Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), fixou as seguintes teses :"1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei." 5. No caso concreto, o Juízo de primeiro grau, por não vislumbrar a comprovação do prejuízo ao erário, reenquadrou a conduta dos requeridos para o inciso V do art. 11 da LIA. Todavia, a Lei 8.429/92, com alteração promovida pela Lei 14.230/2021, vedou a possibilidade de modificação de capitulação da conduta apresentada pelo autor no âmbito da ação civil pública de improbidade administrativa (art. 17, § 10-C). Precedente do STF: ARE 803568 AgR-segundo-EDv-ED. Assim, deve ser mantida a capitulação das condutas nos incisos VIII e XI do art. 10 e inciso I do art. 11, da Lei 8.429/92. 6. Para a configuração do ato de improbidade previsto nos arts. 9º, 10 e 11, e incisos, da Lei nº 8.429/92, com as alterações promovidas pela Lei 14.230/21, ficou afastado o elemento culposo, persistindo a necessidade da demonstração do elemento subjetivo doloso, considerando o dolo específico, bem como a comprovação do efetivo dano ao erário que, no caso, não pode ser presumido. 7. No que se refere à conduta tipificada no inciso I do art. 11 da Lei 8.429/92, na redação anterior à Lei 14.230/2021, foi revogada, não mais subsistindo a imputação por violação ao respectivo dispositivo de lei, de modo que se torna incabível a condenação por suposta violação ao referido tipo legal que deixou de existir no mundo jurídico. 8. Para a configuração da conduta nos incisos VIII e XI do art. 10 da Lei 8.429, com a redação dada pela Lei 14.230/2021, não basta a conduta de frustrar o caráter concorrencial do procedimento licitatório, com a simulação e direcionamento da licitação, violando a Lei 8.666/93, exigindo o novo dispositivo de Lei que aquele que ofende o princípio da imparcialidade o faça com vistas a obter benefício próprio, direta ou indiretamente, ou para terceiros, ou seja, o dolo exigido para a configuração do ato de improbidade administrativa, previsto no art. 10 e incisos, da LIA, passou a ser o dolo específico, o que afasta a aplicação apenas do dolo genérico como vinha entendendo a jurisprudência pátria, assim como do prejuízo presumido. 9. No caso concreto, não restou demonstrado o dolo específico na conduta dos réus. E ainda que tenham sido detectadas irregularidades no procedimento licitatório promovido pelo ex-prefeito e pelo ex-presidente da comissão permanente de licitação do Município, não foi comprovado que tenham agido com o fim causar prejuízo ao erário, tampouco de se beneficiarem a si ou a terceiros. 10. A improbidade administrativa é uma espécie de moralidade qualificada pelo elemento desonestidade, que pressupõe a conduta intencional, dolosa, a má-fé do agente ímprobo. A má-fé, caracterizada pelo dolo, é que deve ser apenada. 11. Na hipótese, não havendo nos autos prova a demonstrar a existência de ato de improbidade administrativa praticado pelos réus, não há espaço para a condenação por ato de improbidade administrativa na forma requerida na inicial, quanto mais para ampliação da condenação pretendida pelo MPF. 12. Apelação do MPF desprovida (item 11) e apelações dos réus providas para, reformando a sentença, julgar improcedente o pedido inicial. (AC 1000321-05.2018.4.01.3304, DESEMBARGADOR FEDERAL CESAR CINTRA JATAHY FONSECA, TRF1 - QUARTA TURMA, PJe 13/11/2024.) Quanto ao pedido de condenação do réu pela prática da conduta prevista no art. 11, caput, da LIA, ressalte-se que a Lei 14.230/2021, ao introduzir e alterar diversos dispositivos da Lei 8.429/92, revogou expressamente a conduta genérica prevista no caput do art. 11, bem como os inciso I, II, IX e X, da Lei de Improbidade Administrativa. No que se refere à imputação de ato de improbidade administrativa por violação aos princípios que regem a Administração Pública, com base no art. 11, caput, da Lei 8.429/92, cumpre destacar que, a partir da vigência da Lei 14.230/21, o dispositivo passou a exigir, para a configuração do ato de improbidade administrativa, além da presença do dolo, a prática de alguma das condutas taxativamente estabelecidas nos seus incisos. Em casos que tais, o que antes decorria de um rol exemplificativo, passou a necessitar de enquadramento em uma das hipóteses expressamente previstas nos incisos do art. 11, a fim de se caracterizar o ato de improbidade administrativa por violação aos princípios da Administração Pública. Veja-se a redação atual, inserida pela Lei 14.230/21: Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas: (...). Com efeito, abolidas as condutas genericamente tipificadas no caput ou nos incisos revogados do artigo 11, não haveria mais substrato jurídico normativo para o prosseguimento da demanda quanto à pretensão condenatória lastreada em tais hipóteses. Nessa linha de compreensão, cito precedente do STJ: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SUPERVENIÊNCIA DA LEI N. 14.230/2021. RESPONSABILIZAÇÃO POR DOLO GENÉRICO. REVOGAÇÃO. APLICAÇÃO IMEDIATA. 1. (...). 3. A Primeira Turma desta Corte Superior, no julgamento do AREsp 2.031.414/MG, em 9/5/2023, firmou a orientação de conferir interpretação restritiva às hipóteses de aplicação retroativa da LIA (com a redação da Lei n. 14.230/2021), adstrita aos atos ímprobos culposos não transitados em julgado, de acordo com a tese 3 do Tema 1.199 do STF. 4. Acontece que o STF, posteriormente, ampliou a abrangência do Tema 1.199/STF, a exemplo do que ocorreu no ARE 803568 AgR-segundo-EDv-ED, admitindo que a norma mais benéfica prevista na Lei n. 14.230/2021, decorrente da revogação (naquele caso, tratava-se de discussão sobre o art. 11 da LIA), poderia ser aplicada aos processos em curso. 5. Tal como aconteceu com a modalidade culposa e com os incisos I e II do art. 11 da LIA (questões diretamente examinadas pelo STF), a conduta ímproba escorada em dolo genérico (tema ainda não examinado pelo Supremo) também foi revogada pela Lei n. 14.230/2021, pelo que deve receber rigorosamente o mesmo tratamento. 6. (...). 7. Recurso especial não provido. (Grifei) (REsp 2.107.601/MG, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 02/05/2024.) PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA TIPIFICADA NO ART. 10, VIII E IX, DA LEI 8.429/1992. DOLO VERIFICADO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. SÚMULA 7 DO STJ. EMBARGOS ACOLHIDOS APENAS PARA PRESTAR ESCLARECIMENTOS. 1. (...). 2. No julgamento do Tema 1.199/STF (ARE 843989 RG, Rel. Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, publicado em 4.3.2022), fixou-se o entendimento vinculante de que "A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente". 3. Embora, inicialmente, tal entendimento tivesse abrangido, apenas, pessoas sem condenação transitada em julgado, incursas em improbidades culposas do art. 10 da LIA, mais recentemente o STF tem ampliado a incidência da tese para extinguir as ações de improbidade cujos acusados estejam incursos nos tipos dolosos extintos da previsão genérica do caput do art. 11 da Lei 8.429/1992 e, também, dos seus incisos I, II ou III, haja vista que, tanto quanto os tipos culposos, não haveria mais substrato jurídico normativo para o próprio prosseguimento da persecução em juízo. 4. (...). 6. Embargos de Declaração acolhidos apenas para prestar esclarecimentos. (Grifei) (EDcl nos EDcl no REsp 1.788.624/PE, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 22/08/2024.) Dessa maneira, seria o caso de manutenção de plano do afastamento da imputação feita ao réu, com base na referência ao caput, do art. 11, da Lei 8.429/92. Contudo, o Superior Tribunal de Justiça tem adotado entendimento no sentido de que a conduta antes enquadrada no caput de forma genérica, deve persistir se houver enquadramento em alguns dos incisos da nova redação do art. 11, da Lei 8.429/92, de acordo com o princípio da continuidade típico-normativa. Nessa linha de intelecção, cito precedentes do Superior Tribunal de Justiça: DIREITO ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. TEMA 1.199/STF. SUPERVENIÊNCIA DA LEI 14.230/2021. OMISSÃO RECONHECIDA. RECURSO ACOLHIDO, SEM EFEITOS INFRINGENTES. 1. (...). 2. Haverá abolição da figura típica quando a conduta a concretizar a anterior redação do art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) se tornar irrelevante para os fins de tal lei, e não quando houver evidente correspondência na atual redação dos incisos do art. 11 da mesma lei. 3. Estando os fatos cristalizados no acórdão recorrido a tipificar a hipótese prevista no inciso XI do art. 11 da LIA, tem-se por presente verdadeira continuidade típico-normativa, não havendo que se falar em abolição da tipicidade. 4. Embargos de declaração acolhidos, sem efeitos modificativos. (Grifei) (EDcl no AgInt no AREsp 2.150.580/MG, Rel. Ministro Paulo Sérgio Domingos, Primeira Turma, DJe 17/06/2024.) ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS. INCÊNDIO EM PRÉDIO PÚBLICO. SITUAÇÃO EMERGENCIAL A PERMITIR CONTRATAÇÃO DIRETA. INCLUSÃO DE OBRAS E REFORMAS DE AMBIENTES NÃO ATINGIDOS PELO EVENTO DANOSO. DISPENSA INDEVIDA DE LICITAÇÃO. FAVORECIMENTO DE PARTICULAR E TERCEIRO. COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. CONDENAÇÃO COM BASE NO ART. 11 DA LIA. PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE TÍPICO-NORMATIVA. INEXISTÊNCIA DE ABOLIÇÃO DA IMPROBIDADE NO CASO CONCRETO. EXPRESSA TIPIFICAÇÃO DA CONDUTA NO INCISO V DO ART. 11 DA LIA. DOSIMETRIA DAS SANÇÕES. NECESSIDADE DE NOVA ADEQUAÇÃO. 1. (...). 2. A Primeira Turma do STJ, por unanimidade, em julgamento realizado no dia 6/2/2024, no AgInt no AREsp n. 2.380.545/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, acórdão pendente de publicação, seguiu a orientação da Suprema Corte no sentido de que "as alterações promovidas pela Lei n. 14.230/2021 ao art. 11 da Lei n. 8.429/1992 aplicam-se aos atos de improbidade administrativa praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado" (ARE 803.568 AgR-segundo-EDv-ED, Relator(a): LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, DJe 6/9/2023). 3. Na sessão de 27/2/2024, no julgamento do AgInt no AREsp n. 1.206.630, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, DJe 1/3/2024, a Primeira Turma desta Corte, alinhando ao entendimento do STF, adotou a tese da continuidade típico-normativa do art. 11 quando, dentre os incisos inseridos pela Lei n. 14.230/2021, remanescer típica a conduta considerada no acórdão como violadora dos princípios da Administração Pública. 4. Na espécie, o Tribunal de origem, com base no conjunto fático e probatório constante dos autos, atestou a prática de ato ímprobo, em razão de dispensa indevida de licitação e do favorecimento de particular e terceiro, consignando a presença do elemento subjetivo em relação aos fatos apurados. A reversão de tal entendimento exige o reexame de matéria fático-probatória, o que é vedado em sede de recurso especial, nos termos da Súmula 7/STJ. 5. Nesse contexto, nota-se que a referida conduta (dispensa indevida de licitação e favorecimento de particular e terceiro) guarda correspondência com a hipótese prevista no inciso V do art. 11 da LIA, de maneira a atrair a referida tese da continuidade típico-normativa. 6. Considerando que a sanção de vedação de contratar com o Poder Público foi fixada em prazo superior ao limite legal (art. 12, III, da LIA, com a redação original), merece ser reduzida para 3 anos, de modo, também, a melhor atender os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, dadas as circunstâncias contidas no acórdão recorrido e as diversas outras penalidades aplicadas. 7. Agravo interno parcialmente provido, para conhecer do agravo, a fim de conhecer em parte do recurso especial, e, nessa extensão, dar-lhe parcial provimento, tão somente para reduzir a 3 anos a pena de proibição de contratar com a Administração Pública. (Grifei) (AgInt no AREsp 1.611.566/SC, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 29/05/2024.) No caso dos autos, revogada a conduta prevista no art. 11, caput, deve a conduta ser tipificada, s.m.j., no art. 11, V da Lei 8.429/92, que prevê como ato ímprobo frustrar o caráter concorrencial de procedimento licitatório, na hipótese de constatada a ação dolosa. Eis a redação do referido dispositivo legal: Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas: (...). V - frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros; No entanto, a alegação do MPF de que o réu teria atuado de forma consciente para fraudar as licitações, com base em suposto vínculo com a empresa vencedora - São Luiz Construtora e Serviços Ltda., criada a pedido de Raulindo Rios, com sócios laranjas e sem regularidade fiscal ou previdenciária - não se sustenta. As demais circunstâncias apontadas, como a coincidência entre a proposta vencedora e o plano de aplicação do convênio, a ausência de data em duas propostas e a emissão de certidão apenas por uma das concorrentes, não são suficientes para comprovar o dolo específico necessário à caracterização do ato de improbidade (Cito): PROCESSUAL CIVIL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE TÍPICO-NORMATIVA. INAPLICABILIDADE. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. ARGUMENTOS INSUFICIENTES PARA DESCONSTITUIR A DECISÃO ATACADA. APLICAÇÃO DE MULTA. ART. 1.021, § 4º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. DESCABIMENTO. I - Impossibilidade de aplicação do princípio da continuidade típico-normativa - mormente considerando a ausência de indicação do dolo específico voltado à obtenção de benefício ou vantagem indevida para si ou terceiros -, a fim de proceder o reenquadramento da conduta ora examinada nas hipóteses taxativas do art. 11 da LIA, de rigor afastar a condenação imposta em desfavor dos Recorrentes. II - (...). IV - Agravo Interno improvido. (Grifei) (AgInt no REsp 2.187.866/SP, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJEN 05/05/2025) A responsabilização por improbidade administrativa requer a comprovação cabal de que os agentes públicos ou quaisquer outros envolvidos que tenham colaborado ou se beneficiado do ilícito atuaram com intenção deliberada de fraudar o processo ou de obter vantagem ilícita, o que, no caso em exame, não foi demonstrado nos autos. Por fim, ainda que se reconheçam eventuais irregularidades no procedimento licitatório, não se pode vislumbrar a prática de ato de improbidade administrativa por parte do recorrido. Tal conduta exige a presença inequívoca de desonestidade, deslealdade ou má-fé, seja do agente público ou de terceiros que eventualmente tenham colaborado ou se beneficiado do ilícito. Contudo, conforme demonstrado pelos elementos constantes nos autos, não há comprovação robusta e inequívoca de que o requerido tenha direcionado os objetos licitatórios, o que afasta a configuração do referido ato ímprobo. Conclui-se, pois, que não ficou configurada a prática de ato de improbidade administrativa por parte do recorrido, mas meras irregularidades ou inabilidade dos agentes públicos que não podem ser acoimadas como condutas ímprobas, tendo em vista que o ato ímprobo, além de ilegal, é pautado pela desonestidade, deslealdade funcional e má-fé. Confira-se: Nesse sentido, em casos análogos ao presente, cito os seguintes precedentes desta Corte Revisora: PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ALTERAÇÕES DA LEI 14.230/2021. APLICAÇÃO IMEDIATA DOS DISPOSITIVOS. ART. 1º § 4º DA LEI 14.230/2021. ART. 10 DA LEI 8.429/92. AUSÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO. DANO AO ERÁRIO NÃO COMPROVADO. TEMA 1.199 DO STF. SENTENÇA REFORMADA. APELAÇÕES DOS RÉUS PROVIDAS. 1. Os apelantes foram condenados pela prática do ato ímprobo previsto no art. 10 da Lei 8.429/92, já na vigência da Lei 14.230/21, uma vez que a sentença foi registrada eletronicamente no sistema do PJe em 07/01/2022. 2. As condutas descritas nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº. 8.429/92, em 26/10/2021, sofreram alteração pela Lei nº. 14.230/21, que modificou consideravelmente a Lei de Improbidade Administrativa. 3. O Supremo Tribunal Federal, em 18/08/2022, ao finalizar o julgamento do Recurso Extraordinário no Agravo nº 843989, fixou a tese do Tema 1199 nos seguintes termos:"1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei". 4. A atual tipologia normativa dos atos de improbidade administrativa, exige a comprovação do ato doloso com finalidade de atingir objetivo ilícito, assim como a efetiva comprovação do prejuízo ao erário, enriquecimento ilícito próprio ou em favor de terceiros, sob pena de inadequação típica. 5. De acordo com a inicial formulada pelo Ministério Público Federal, é atribuído aos réus, a prática de atos ímprobos descritos no artigo 10, incisos I e VIII, da Lei nº. 8.429/92, consistente em suposta fraude no certame licitatório – Convite nº. 020/2010 – realizado pelo Município de Itaberaba/BA, envolvendo verbas federais, cujo objeto era a contratação de empresa especializada na confecção e reforma de materiais de aço, ferro e vidro para atender as demandas das secretarias da municipalidade, no valor de R$ 76.234,77 (setenta e seis mil e duzentos e trinta e quatro reais e setenta e sete centavos). 6. Afigura-se dos autos que o contrato nº. 205/2010, firmado entre o Município de Itaberaba/BA e o requerido Edson Nonato de Oliveira, foi cumprido em sua integralidade, o que foi reconhecido pelo próprio juízo sentenciante. 7. As irregularidades apontadas no procedimento licitatório Carta Convite nº. 020/2010, pelo Relatório de Demandas Externas nº. 00205.000125/2010-66 da CGU, não comprovaram a existência do elemento subjetivo na conduta dos requerido, nem o efetivo prejuízo ao erário. 8. O que se verifica é a existência de irregularidades formais ligadas à condução do processo licitatório. Entretanto, desacompanhadas de comprovação da conduta dolosa e do efetivo prejuízo ao erário. Ao meu sentir cuida-se de meras irregularidades. 9. Necessário se faz distinguir dolo e má-fé, de um lado, com desorganização administrativa de outro. Essa última, via de regra, não se acompanha dos predicados que justificam a aplicação das sanções de caráter civis e políticas previstas no diploma legal. O caso concreto se mostra como o clássico exemplo de má gestão administrativa. Não se pode punir o administrador público despreparado, inábil, mas apenas o desonesto, que tenha a intenção de causar dano ao erário, obter vantagem indevida, o que não é o caso dos autos. 10. A mera ilegalidade do ato ou inabilidade do agente público que o pratica nem sempre pode ser enquadrada como improbidade administrativa. O ato ímprobo, além de ilegal, é pautado pela desonestidade, deslealdade funcional e má-fé. 11. A configuração da improbidade administrativa capitulada no art. 10 da Lei nº 8.429/92, com as alterações da Lei 14.230/21 depende da demonstração do elemento subjetivo doloso, bem como a comprovação do efetivo dano acarretado ao erário, sob pena de inadequação típica, o que não ficou demonstrado nos autos. 12. Ausentes o elemento subjetivo doloso e a comprovação de dano ao erário, razão pela qual afasta-se a caracterização do ato de improbidade administrativa reconhecida na sentença para julgar improcedentes os pedidos formulados na inicial. 13. Sentença reformada. 14. Apelações dos requeridos providas, para julgar improcedentes os pedidos formulados na petição inicial. (AC 1000332-34.2018.4.01.3304, Rel. Desembargador Federal Ney Bello, Terceira Turma, PJe 17/05/2023) PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 10, VIII, DA LEI 8.429/92. IRREGULARIDADES NA APLICAÇÃO DE RECURSOS PÚBLICOS. DANO AO ERÁRIO. VERBAS PROVENIENTES DO FUNDO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇAO FNDE. FRAUDE EM LICITAÇÃO. DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR (ART. 1º, § 4º). ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 14.230/2021. DOLO ESPECÍFICO NÃO COMPROVADO. RETROATIVIDADE. LEI NOVA MAIS BENÉFICA. INADEQUAÇÃO TÍPICA. ENTENDIMENTO DO STF. TEMA 1.199. AUTOBENEFÍCIO OU DE TERCEIROS. COMPROVAÇÃO. AUSÊNCIA. PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇÃO FEDERAL REJEITADA. SENTENÇA REFORMADA. APELAÇÃO DO REQEURIDO PROVIDA. APELAÇÃO DO MPF PREJUDICADA. 1. Trata-se de apelações interpostas pelo Ministério Público Federal e pela parte requerida contra sentença que, em ação de improbidade administrativa ajuizada em desfavor do ex-prefeito de Ipixuna do Pará/PA e outros, julgou procedente o pedido para condená-los pela prática da conduta descrita no art. 10, VIII, da Lei 8.429/92, consubstanciada em irregularidades em procedimento licitatório para a aquisição de gêneros alimentícios destinados à merenda escolar da rede municipal de ensino, cujos recursos foram repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O MPF, por sua vez, pugna pela condenação dos réus também ao ressarcimento ao erário no valor de R$ 53.559,60 (cinquenta e três mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e sessenta centavos). 2. Elementares dos tipos de improbidade e legislação superveniente. Para a configuração de quaisquer das condutas ímprobas de enriquecimento ilícito, dano ao erário e violação de princípios da administração pública, previstas na Lei n. 8.429/92, sempre deve estar presente o dolo específico, sendo insuficiente a culpa grave e até mesmo o dolo genérico, consoante inteligência dos §§ 2º e 3º do art. 1º do referido diploma, alterado pela Lei 14.230/2021, tendo o STF, inclusive, fixado a seguinte tese: 1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo DOLO (Tema 1199, RE nº 843989/PR). Igualmente, é necessária a comprovação de que o agente público visava obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade (art. 1º, § 2º). 4. Dano ao Erário. A novel legislação, ao alterar o caput do art. 10 da Lei n. 8.429/92, excluiu do tipo as condutas culposas, passando a exigir elemento subjetivo específico (dolo) para a caracterização dos atos ímprobos, além de estabelecer que a ação ou omissão dolosa deve efetiva e comprovadamente causar prejuízo. Exige-se, portanto: a) ação ou omissão ilícita; b) dolo específico; e c) prejuízo ao erário, que deve causar i) perda patrimonial aos haveres do Poder Público; ii) desvio, em que determinado bem público é extraviado para outra destinação que não seja a para qual este devia ser empregado efetivamente; iii) apropriação, em que o agente toma posse indevida de bem público para si; iv) malbaratamento, que é a alienação de determinado bem público por valor abaixo do que lhe cabe ou; v) dilapidação, em que há destruição total ou parcial de certo bem da Administração. 5. Considerando a natureza sancionatória da Lei n. 8.429/92, e firme no entendimento de que o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador, há que ser aplicada retroativamente a Lei n. 14.230/2021, no que diz com as condutas tidas por ímprobas e em relação às sanções a elas impostas, conforme já decidido pelo STF no Tema 1199. (ARE 843989, Relator(a): Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 18/08/2022, Processo Eletrônico, Repercussão Geral - Mérito DJe-251 Divulg 09-12-2022 Public 12-12-2022). 6. Caso concreto. o Ministério Público Federal imputa ao ex-gestor municipal e outros irregularidades em procedimento licitatório - Carta Convite n° 11/2005 - para aquisição de gêneros alimentícios destinados à merenda escolar, com verbas oriundas do FNDE. Segundo a acusação, lastreada em acórdão do Tribunal de Contas dos Municípios, o certame incorreu nas seguintes ilegalidades i) não constar o instrumento contratual hábil que substitua o termo de contrato; ii) ausência de publicidade do certame e do resumo do instrumento de contratação; e iii) ausência de fundamentação legal do processo licitatório. Não teria havido, ainda, realização prévia de pesquisa de mercado. Além disso, a empresa vencedora do certame só existia formalmente. 6.1. Ocorre que, não obstante a constatação de desconformidades do certame licitatório com as exigências da Lei 8.666/93, a acusação não se desincumbiu de comprovar o efetivo desvio doloso de recursos públicos ou de prejuízo ao erário (art. 10, VIII), com perda patrimonial efetiva, por meio da conduta de frustrar a licitude de processo licitatório, considerando que o juízo sentenciante reconheceu apenas o dolo geral e sem amparo probatório para reconhecer o dolo específico, condição, hoje, necessária para a condenação. 6.2. Com efeito, a sentença reputou suficiente para caracterizar o ato de improbidade administrativa por parte do apelante o fato de, na condição de prefeito do município, ter homologado o certame. O dolo específico, no entanto, não restou comprovado, tanto que, em relação ao ora apelante e o réu Carlos André Vieira Guedes, consigna apenas que foram negligentes ao permitirem a homologação e adjudicação em processo licitatório com tantos vícios, o que permite o enquadramento também no art. art. 10, VIII, primeira parte, da LIA, ainda que de forma culposa, o que sói ocorrer no caso dos atos ímprobos que causam prejuízo ao erário. 7. Nesse contexto, não demonstrado o dolo específico, tampouco as demais elementares dos tipos infracionais imputados, a conclusão, à luz das novas disposições inseridas na Lei 8.429/92, é pela improcedência in totum dos pedidos formulados na ação. 8. Apelação do requerido a que se dá provimento para absolvê-lo da conduta que lhe foi imputada. 9. Apelação do MPF prejudicada. (AC 0003738-87.2008.4.01.3900, Rel. Desembargadora Daniele Maranhão Costa, Décima Turma, PJe 06/05/2024) Nesse contexto, considerando a ausência de dolo específico na conduta atribuída ao apelante, deve ser reformada a sentença apelada. Tudo considerado, DOU PROVIMENTO à apelação para, reformando integralmente a sentença, julgar improcedentes os pedidos formulados na inicial. É como voto. Desembargador Federal NÉVITON GUEDES Relator PODER JUDICIÁRIO Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 09 - DESEMBARGADOR FEDERAL NÉVITON GUEDES Processo Judicial Eletrônico APELAÇÃO CÍVEL (198) n. 0004711-56.2009.4.01.3302 HERDEIRO: ROSANA DA SILVA RIOS PEREIRA, ITIEL DA SILVA RIOS, ITAMAR DA SILVA RIOS, SALETE DA SILVA RIOS APELANTE: ESPÓLIO DE RAULINDO DE ARAUJO RIOS Advogados do(a) APELANTE: ITAMAR DA SILVA RIOS - BA13331-A, ITAMAR DA SILVA RIOS - BA13331-A, ROSANA DA SILVA RIOS PEREIRA - BA25717, Advogado do(a) HERDEIRO: ITAMAR DA SILVA RIOS - BA13331-A APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL E M E N T A APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. EX-PREFEITO MUNICIPAL. APLICAÇÃO DE RECURSOS FEDERAIS. CONVÊNIOS COM A CODEVASF. LEI 8.429/92. REDAÇÃO DADA PELA LEI 14.230/2021. PRELIMINARES REJEITADAS. PRESCRIÇÃO AFASTADA. EXIGÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO E PREJUÍZO EFETIVO AO ERÁRIO PARA CONFIGURAÇÃO DE ATO ÍMPROBO. AUSÊNCIA DE PROVAS ROBUSTAS. INSUFICIÊNCIA DE ELEMENTOS PARA COMPROVAÇÃO DE MÁ-FÉ. ART. 11, CAPUT, REVOGADO. MERAS IRREGULARIDADES. APELAÇÃO PROVIDA. 1. Trata-se de recurso de apelação interposto por ex-prefeito do Município de Quixabeira/BA, no período de 2001 a 2004, contra sentença que, proferida em ação civil pública por ato de improbidade administrativa, ajuizada pelo Ministério Público Federal, julgou parcialmente procedentes os pedidos, condenando o ex-gestor pela prática de atos previstos nos artigos 10, inciso XI, e 11, caput, da Lei nº 8.429/1992. 2. A Suprema Corte, no julgamento do ARE 843.989/PR, estabeleceu que o novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 não possui caráter retroativo. Dessa forma, os novos marcos temporais aplicáveis devem ser considerados a partir da publicação da referida lei. (ARE 843.989/PR, Relator: Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, Julgamento em 18/08/2022 e Publicação em 12/12/2022). 3. Aplica-se ao presente caso a norma prevista pelo art. 23, I, da LIA, em sua redação original, que prevê a prescrição em 5 (cinco) anos dos atos de improbidade administrativa praticados por ex-agente público. O mesmo prazo também é aplicado aos particulares que concorreram para a prática do ato ímprobo. Precedente do STJ: AgInt no AREsp n. 1.865.853/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 11/6/2024, DJe de 24/6/2024. 4. O mandato do ex-prefeito encerrou-se em 31/12/2004, conforme informado pelo próprio réu na apelação, e a presente ação foi proposta em 11/12/2009, antes, portanto, do transcurso do prazo prescricional de 5 (cinco) anos. 5. A distribuição da ação de improbidade administrativa interrompe a fluência do prazo prescricional, segundo dicção do art. 312 do CPC, e não o despacho que determina a citação dos réus. Ademais, a regra insculpida no parágrafo 1º do art. 240 do CPC prevê que a prescrição retroagirá à data da propositura da ação (STJ, REsp 1.374.355/RJ, Rel. Des. Federal Olindo Menezes (Convocado TRF/1ª Região), Primeira Turma, DJe de 28/10/2015). 6. O Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública por ato de improbidade administrativa em face de R. A. R., ex-Prefeito do Município de Quixabeira/BA, cuja gestão compreendeu o período de 2001 a 2004. Na inicial, imputam-se ao réu condutas tipificadas nos artigos 10, inciso XI, e 11, caput, da Lei nº 8.429/1992, consistentes na má gestão e na aplicação irregular de recursos públicos federais vinculados à execução dos Convênios nº 6.21.2001.027-00 e nº 6.21.2001.023-00, celebrados com o Ministério da Integração Nacional, por intermédio da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba – CODEVASF (construção de barragem de terra em zona rural). 7. Com a vigência da Lei 14.230/2021, que alterou profundamente a Lei 8.429/92, passou-se a exigir, para a configuração do ato ímprobo, a demonstração do dolo específico e do efetivo prejuízo ao erário, para aqueles previstos pelo art. 10 da LIA. Logo, para que a conduta seja considerada ato de improbidade administrativa não basta a omissão ou negligência do agente, fazendo-se necessário demonstrar sua má-fé, ou seja, a intenção de causar dano ao patrimônio público ou de se beneficiar de forma indevida. 8. Da análise dos autos, não se verifica a existência de provas robustas e consistentes capazes de comprovar o dolo específico nas condutas atribuídas ao réu, relativamente aos supostos processos licitatórios fraudulentos. As imputações dirigidas ao requerido mostram-se genéricas e indiretas, fundamentadas em depoimentos frágeis ou de terceiros, os quais, além de apresentarem contradições, não confirmam a participação ativa do agente público na elaboração ou manipulação das propostas. O depoimento de L. P., por exemplo, embora revele desconhecimento quanto aos trâmites legais das licitações, não demonstra que requerido tenha, pessoalmente, conduzido qualquer ato fraudulento. 9. Para a responsabilização do requerido seria necessária a demonstração inequívoca da intenção deliberada de causar dano ao patrimônio público ou de obter vantagem indevida, conforme exigido pela nova redação da LIA. Nesse sentido: (AC 0000737-61.2017.4.01.3906, DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ALVES DE SOUZA, TRF1 - TERCEIRA TURMA, PJe 13/12/2024.) e (AC 1000321-05.2018.4.01.3304, DESEMBARGADOR FEDERAL CESAR CINTRA JATAHY FONSECA, TRF1 - QUARTA TURMA, PJe 13/11/2024.). 10. No que se refere à imputação de ato de improbidade administrativa por violação aos princípios que regem a Administração Pública, com base no art. 11, caput, da Lei 8.429/92, cumpre destacar que, a partir da vigência da Lei 14.230/21, o dispositivo passou a exigir, para a configuração do ato de improbidade administrativa, além da presença do dolo, a prática de alguma das condutas taxativamente estabelecidas nos seus incisos. 11. O Superior Tribunal de Justiça tem adotado entendimento no sentido de que a conduta antes enquadrada no caput de forma genérica, deve persistir se houver enquadramento em alguns dos incisos da nova redação do art. 11, da Lei 8.429/92, de acordo com o princípio da continuidade típico-normativa, não ocorrente na espécie (EDcl no AgInt no AREsp 2.150.580/MG, Rel. Ministro Paulo Sérgio Domingos, Primeira Turma, DJe 17/06/2024.) e (AgInt no AREsp 1.611.566/SC, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 29/05/2024.). 12. No caso dos autos, revogada a conduta prevista no art. 11, caput, deveria a conduta ser tipificada no art. 11, inciso V da Lei 8.429/92, que prevê como ato ímprobo frustrar o caráter concorrencial de procedimento licitatório, na hipótese de constatada a ação dolosa. 13. Contudo, a alegação de que o réu teria atuado de forma consciente para fraudar as licitações, com base em suposto vínculo com os sócios da empresa vencedora, sem provas concretas, não é suficiente para comprovar o dolo específico necessário à caracterização do ato de improbidade 14. Conclui-se, pois, que não ficou configurada a prática de ato de improbidade administrativa por parte do recorrido, mas meras irregularidades ou inabilidade do agente público que não podem ser acoimadas como condutas ímprobas, tendo em vista que o ato ímprobo, além de ilegal, é pautado pela desonestidade, deslealdade funcional e má-fé. Confira-se: (AC 1000332-34.2018.4.01.3304, Rel. Desembargador Federal Ney Bello, Terceira Turma, PJe 17/05/2023) e (AC 0003738-87.2008.4.01.3900, Rel. Desembargadora Daniele Maranhão Costa, Décima Turma, PJe 06/05/2024). 15. Apelação do réu a que se dá provimento para, reformando a integralmente a sentença, julgar improcedentes os pedidos formulados na inicial. A C Ó R D Ã O Decide a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação do réu, nos termos do voto do relator. Brasília/DF, 01 de julho de 2025. Desembargador Federal NÉVITON GUEDES Relator
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