Processo nº 5004797-24.2022.4.03.6181
ID: 283060299
Tribunal: TRF3
Órgão: 10ª Vara Criminal Federal de São Paulo
Classe: HABEAS CORPUS CRIMINAL
Nº Processo: 5004797-24.2022.4.03.6181
Data de Disponibilização:
29/05/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
ERIK TORQUATO PINTO
OAB/RJ XXXXXX
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HABEAS CORPUS CRIMINAL (307) Nº 5004797-24.2022.4.03.6181 / 10ª Vara Criminal Federal de São Paulo PACIENTE: T. R. A. J., F. G. M. Advogado do(a) PACIENTE: ERIK TORQUATO PINTO - RJ190405 IMPETRADO: P…
HABEAS CORPUS CRIMINAL (307) Nº 5004797-24.2022.4.03.6181 / 10ª Vara Criminal Federal de São Paulo PACIENTE: T. R. A. J., F. G. M. Advogado do(a) PACIENTE: ERIK TORQUATO PINTO - RJ190405 IMPETRADO: P. F. -. S., DELEGADO CHEFE DA POLÍCIA CIVIL DE SÃO PAULO, C. G. D. P. M. D. E. D. S. P., M. P. F. -. P. TERCEIRO INTERESSADO: M. P. F. -. P. D E C I S Ã O Vistos em inspeção. Trata-se de habeas corpus preventivo, com pedido de concessão de liminar, impetrado por ERIK TORQUATO PINTO em favor de FELIPE GUIMARÃES MARCO e TAMARA REGINA ALVEZ JUCA, indicando como autoridades coatoras o Superintendente Regional da Polícia Federal em São Paulo, o Delegado Geral do Departamento da Polícia Civil do Estado de São Paulo e o Comandante Geral da Polícia Militar de São Paulo. Foi proferida sentença de ID 260885946, sendo concedida parcialmente a ordem de Habeas Corpus, determinando a expedição de salvo-conduto aos pacientes para garantir: 1) que não sejam presos nem processados criminalmente: (i) em razão da importação anual de até 120 (cento e vinte) sementes de cannabis sativa, destinadas à produção de óleo integral da planta, exclusivamente para o tratamento da doença indicada no receituário médico (CID-10:F41), nem pelo (ii) cultivo de até 24 (sessenta) plantas, bem como por colher, extrair, produzir artesanalmente e usar, conforme prescrição médica, o óleo integral extraído da planta; 2) que não haja apreensão ou destruição dos materiais e insumos cultivados para fins de tratamento único e exclusivo dos pacientes, observadas as limitações impostas, com validade pelo prazo de 2 (dois) anos, após a sua expedição, cabendo aos pacientes renovar o pedido antes da expiração do prazo caso haja necessidade de continuidade do cultivo para o tratamento médico Houve pedido de desistência de TAMARA REGINA ALVEZ JUCA, cuja decisão homologatória de ID 272041973 tornou sem efeito o salvo-conduto expedido em seu favor. Petição apresentada em ID 363744288, pugnando pela renovação do salvo-conduto em favor do paciente FELIPE GUIMARÃES MARCO, desta vez sem prazo de validade, condicionando-se à atualização das receitas e da autorização da ANVISA para importação e aquisição de produtos derivados da cannabis, tendo em vista os princípios da economia processual e da prevenção, sendo juntado aos autos laudos médicos que atestam para a eficácia e necessidade de continuidade do tratamento. O MPF manifestou-se favoravelmente ao pedido de renovação do salvo-conduto em favor do paciente FELIPE GUIMARÃES MARCO, com nova validade não superior ao prazo de validade da autorização expedida pela Anvisa -17/09/2026 (ID 365355671) . É a síntese do necessário. Decido. Dispõe o art. 5º, inciso, LXVIII, da CF: “LXVIII – conceder-se-á ‘habeas corpus’ sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. O art. 647 do CPP dispõe: “Art. 647. Dar-se-á ‘habeas corpus’ sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar”. Dois são, portanto, os pressupostos constitucionais de impetração do habeas corpus: I) violência ou ameaça ao jus libertatis e II) que o ato seja praticado com ilegalidade ou abuso de poder. Tais pressupostos constitucionais, na lição de UADI LAMMÊGO BULOS, são diretrizes de observância obrigatória, sem os quais a ação não terá condições de prosperar (“Constituição Federal Anotada”, 5ª ed., Saraiva, 2003, p. 326). No caso dos autos, o impetrante pugna pela concessão de salvo-conduto alegando que o paciente possui diagnóstico de ansiedade com episódios de depessão. Com efeito, o artigo 2º, caput, e artigo 33, da Lei nº 11.343/2006 estabelecem o seguinte: Art. 2º - Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso. Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. § 1o - Nas mesmas penas incorre quem: I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas; II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas; III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas. § 2o - Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa. § 3o - Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28. § 4o - Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. Evidentemente, a não concessão de ordem de salvo conduto pode resultar em eventual autuação do paciente, tendo em vista os fatos retratados na inicial, considerando-se ainda a concreta possibilidade de vir a ser preso por importar sementes de maconha ou mesmo pelo cultivo dos vegetais e extração de seu óleo. Isto porque não está pacificada na jurisprudência a atipicidade da importação de sementes para uso pessoal, havendo decisões considerando-a como crime de contrabando ou mesmo de tráfico de drogas. Além disso, a conduta prevista no artigo 28, caput e §1º da Lei n. 11343/2006, embora não seja mais considerada crime conforme recente decisão do STF (RE n. 635.659/SP), ainda permanece como infração administrativa. Eis a tese de repercussão geral fixada pelo Supremo Tribunal Federal: 1) Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (artigo 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (artigo 28, III); 2) As sanções estabelecidas nos incisos I e III do artigo 28 da Lei 11.343/2006 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta; 3) Em se tratando de posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em juízo, sendo vedada a lavratura de auto de prisão em flagrante ou de termo circunstanciado; 4) Nos termos do §2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário quem, para uso próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito; 5) A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos indicativos do intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes; 6) Nesses casos, caberá ao Delegado de Polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários; 7) Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4 deverá o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio; 8) A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir pela atipicidade da conduta, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário. (STF, RE n. 635.659/SP. Plenário. Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 26/6/2024) Vê-se, portanto, que a decisão do STF não trouxe mudança significativa na situação envolvendo a importação de sementes e no autocultivo de maconha para fins medicinais, pois tais condutas ainda podem, em tese, configurar crime de contrabando ou infração administrativa. Resta comprovada, assim, a possibilidade de violência ou ameaça ao jus libertatis. Quanto à demonstração da plausibilidade da medida postulada, a entendo também presente. Vejamos: Os benefícios do uso medicinal da Cannabis estão comprovados, tanto que cada vez mais países autorizam a sua utilização. Aqui mesmo, no Brasil, já se reconhece o uso medicinal da Cannabis, tanto que desde 2015 são emitidas autorizações para a importação de produtos, hoje regulamentadas por meio RDC 335/2020. Atualmente, também estão autorizadas a fabricação e comercialização de produtos derivados da Cannabis. O próprio paciente possui autorização para importação de medicamento de uso controlado derivado de Cannabis válida até 15/5/2026 (ID 327546882). Já venho decidindo (HC n° 0001081-16.2018.403.6181), pela atipicidade do crime de tráfico no que tange à importação de sementes de maconha até determinada quantidade, por entender atípica a conduta, nos seguintes termos: “Estabelece o artigo 33, §1º, da Lei 11.343/2006: §1º. Nas mesmas penas incorre quem: I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas; (...)” (grifo acrescido). Verifica-se que os frutos aquênios de Cannabis Sativa Linneu não podem ser considerados como droga, nem mesmo como matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas. O iter criminis não foi plenamente percorrido no caso em tela, uma vez que a conduta não ultrapassou os meros atos preparatórios. Conforme ensinamento de Anibal Bruno: “Como todo ato humano voluntário, no crime a idéia precede a ação. É no pensamento do homem que se inicia o movimento delituoso, e a sua primeira fase é a ideação e resolução criminosa. São os atos internos, durante os quais, no espírito do agente, surge a ideia do fato punível, toma forma, debate-se no meio de motivos favoráveis ou contrários, desenvolve-se até a deliberação e propósito final, isto é, até que se firma a vontade cuja realização objetiva vai constituir o crime (...) Dessa fase inteiramente subjetiva parte o movimento criminoso para os atos externos. O delinquente passa do pensamento à ação subjetiva. Arma-se dos instrumentos necessários à prática do crime, procura o local ou a hora mais favorável, ordena e encaminha, em suma, os fatos no sentido de preparar o momento em que há de desferir o golpe. Entramos com isso nos momentos externos da vida do crime, na sua primeira fase que é a preparação, e a que se devem seguir a execução e a consumação. Os atos preparatórios escapam, em regra, à aplicação da lei penal, salvo quando, por si mesmos, constituem figuras delituosas. É a hipótese, por exemplo, do art. 291 do Código – fabricar, adquirir, fornecer, possuir ou guardar petrechos para fabricação de moeda. Alguns raros Códigos declaram expressamente não puníveis. Assim o nosso Código de 1890, no seu art. 10. Outros igualmente raros os punem, em regras mais ou menos gerais (...) Em geral, porém, não se admite a punibilidade desses atos. E assim resolve o nosso Direito. Falta-lhes a tipicidade” (Direito Penal, Tomo 2º, Forense, RJ, págs. 229/231). No caso dos crimes previstos na Lei de Tóxicos, se pune o mero ato preparatório, nos estritos limites do § 1º, I, do art. 33, da Lei em questão, quando fala em “matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas”. Ainda que a leitura do tipo penal possa ser um tanto aberta, passível de incluir condutas de importação de componentes que, de per si, não configurem conduta criminosa, é necessário esclarecer, para maior segurança jurídica, os exatos limites da tipicidade penal na hipótese de “sementes de maconha”. Em relação à definição do que seja “matéria-prima” e a inclusão de “sementes de maconha” em tal definição, já se manifestou Guilherme de Souza Nucci, em sua obra Leis Penais e Processuais Penais Comentadas (Ed. Revista dos Tribunais, 2006, p.777): “(...) O objeto, neste caso, diversamente de droga é a matéria-prima (substância bruta da qual se extrai qualquer produto), insumo (elemento participante do processo de formação de determinado produto) ou produto químico (substância química qualquer, pura ou composta, utilizada em laboratório) voltada à preparação (composição de elementos) de drogas.” A semente não pode ser considerada matéria-prima, pois dela não se extrai diretamente qualquer produto voltado à preparação de maconha. É necessária a ocorrência de uma transformação natural (feita pela natureza) para que o fruto se torne planta e desta possa ser extraída a droga. Neste sentido: “APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE ENTORPECENTES. SEMENTES DE CANNABIS SATIVA (ART; 12, § 1º, INCISO I, DA LEI 6.368/76). AS SEMENTES DE MACONHA NÃO CONSTITUEM MATÉRIA- PRIMA - OBJETO MATERIAL DO DELITO -. CONDUTA ATÍPICA. APELAÇÃO PROVIDA PARA ABSOLVER O RÉU. I - A importação de semente de maconha não configura o delito do artigo 12 - § 1º - I, da lei nº 6.368/76 que se refere à matéria prima destinada à preparação de substância entorpecente. II- A semente de maconha não é a matéria-prima, porquanto não possui nela própria as condições e qualidades químicas necessárias para, mediante transformação, adição etc., produzir o entorpecente proibido. Não se obtém a maconha da semente em si, mas só da planta que resultar da semente, se esta sofrer transformação por obra da natureza e produzir as folhas necessárias para tanto. III - A semente é pressuposto lógico e antecedente para a configuração do tipo penal descrito no inciso II, do mesmo artigo 12, da Lei n.º 6.368/76, em que o legislador tipificou como sendo crime a conduta de semear, cultivar ou colher plantas destinadas à preparação da droga. No caso dos autos, o apelante não iniciou os atos executórios consistentes em semear, cultivar ou colher plantas destinadas à preparação de droga, pois sequer chegou a ter as sementes apreendidas em sua posse. IV - Recurso provido para absolver o réu.” (TRF3, ACR 48270, 1ªT, Rel.Des.Fed.José Lunardelli, p.15/06/2012). Além disso, as sementes de maconha não apresentam o princípio ativo THC em sua composição, e não possuem qualidades químicas que mediante adição, mistura, preparação ou transformação química possam resultar na droga maconha. Da mesma forma, não se pode entender o fruto como insumo, uma vez que o elemento utilizado no preparo da droga, qual seja, Tetrahidrocanabinol -THC, só existe em potencial, pois somente após o florescimento da Cannabis sativa Linneu é que passa a existir o insumo necessário para a preparação da maconha. Também não há de se falar em frutos de Cannabis sativa Linneu como produto químico, vez que têm natureza vegetal, de fruto. Ademais, verifica-se a existência de caráter de mero ato preparatório impunível da conduta de exportar semente de maconha. No sentido também da atipicidade, vê-se o magistério de Gustavo Octaviano Diniz Junqueira e Paulo Henrique Aranda Fuller: “Porte de sementes de maconha: a tipicidade depende da presença do princípio ativo, o que alocaria a adequação típica no caput, e não no presente inciso, eis que seria mero ato preparatório impunível quanto ao 'semear' ". (Legislação Penal Especial, Volume I, Saraiva, SP, 2010, pág. 302)". Evidente, pois, a ausência de tipicidade e/ou potencialidade lesiva na importação de sementes de maconha, bem como na importação para fins medicinais, ou mesmo plantio para esse fim.[...]”. Além disso, vale ressaltar que, a autorização aqui pretendida não é a de autorização genérica do cultivo de Cannabis - até porque tal conduta não pode ser permitida por nenhuma das autoridades impetradas -, mas sim a análise concreta da conduta do paciente, formalmente típica, em face dos vários elementos trazidos pelos impetrantes acerca da alegada imprescindibilidade de seu comportamento. E, nesse sentido, a Sexta Turma do STJ, no RHC nº 147169/SP (2021/0141522-6) concedeu a ordem de habeas corpus para impedir que qualquer órgão de persecução penal, como polícias civil, militar e federal, Ministério Público estadual ou Ministério Público Federal, turbe ou embarace o cultivo de mudas de Cannabis para fins medicinais, nos seguintes termos: "RECURSO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. SALVO-CONDUTO. CULTIVO ARTESANAL DE CANNABIS SATIVA PARA FINS MEDICINAIS. PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA, FRAGMENTARIEDADE E SUBSIDIARIEDADE. AUSÊNCIA DE OFENSA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. OMISSÃO REGULAMENTAR. DIREITO À SAÚDE. 1. O Direito Penal é conformado pelo princípio da intervenção mínima e seus consectários, a fragmentariedade e a subsidiariedade. Passando pelo legislador e chegando ao aplicador, o Direito Penal, por ser o ramo do direito de mais gravosa sanção pelo descumprimento de suas normas, deve ser ultima ratio. Somente em caso de ineficiência de outros ramos do direito em tutelar os bens jurídicos é que o legislador deve lançar mão do aparato penal. Não é qualquer lesão a um determinado bem jurídico que deve ser objeto de criminalização, mas apenas as lesões relevantes, gravosas, de impacto para a sociedade. 2. A previsão legal acerca da possibilidade de regulamentação do plantio para fins medicinais, art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006, permite concluir tratamento legal díspar acerca do tema: enquanto o uso recreativo estabelece relação de tipicidade com a norma penal incriminadora, o uso medicinal, científico ou mesmo ritualístico-religioso não desafia persecução penal dentro dos limites regulamentares. 3. A omissão legislativa em não regulamentar o plantio para fins medicinais não representa "mera opção do Poder Legislativo" (ou órgão estatal competente) em não regulamentar a matéria, que passa ao largo de consequências jurídicas. O Estado possui o dever de observar as prescrições constitucionais e legais, sendo exigível atuações concretas na sociedade. 4. O cultivo de planta psicotrópica para extração de princípio ativo é conduta típica apenas se desconsiderada a motivação e a finalidade. A norma penal incriminadora mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que, nesse caso, coloca-se em risco a saúde pública. A relação de tipicidade não vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de canabidiol para uso próprio, visto que a finalidade, aqui, é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina. 5. Vislumbro flagrante ilegalidade na instauração de persecução penal de quem, possuindo prescrição médica devidamente circunstanciada, autorização de importação da ANVISA e expertise para produção, comprovada por certificado de curso ministrado por associação, cultiva cannabis sativa para extração de canabidiol para uso próprio. 6. Recurso em habeas corpus provido para conceder salvo-conduto a Guilherme Martins Panayotou, para impedir que qualquer órgão de persecução penal, como polícias civil, militar e federal, Ministério Público estadual ou Ministério Público Federal, turbe ou embarace o cultivo de 15 mudas de cannabis sativa a cada 3 meses, totalizando 60 por ano, para uso exclusivo próprio, enquanto durar o tratamento, nos termos de autorização médica, a ser atualizada anualmente, que integra a presente ordem, até a regulamentação do art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006." (RHC n. 147.169/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 14/6/2022, DJe de 20/6/2022.) Ademais, embora se verifique precedente anterior da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual a questão haveria de ser dirimida na jurisdição cível competente (RHC n. 123.402/RS), tal entendimento foi recentemente alterado. Desse modo, pacificou-se a jurisprudência entre as Turmas Criminais do STJ. Nesse sentido, paradigmático acórdão da 5ª Turma, a conceder o writ: "PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS PREVENTIVO. 1. UTILIZAÇÃO DO MANDAMUS COMO SUBSTITUTO RECURSAL. NÃO CABIMENTO. AFERIÇÃO DE EVENTUAL FLAGRANTE ILEGALIDADE. 2. PEDIDO DE EXPEDIÇÃO DE SALVO-CONDUTO. PLANTIO DE MACONHA PARA FINS MEDICINAIS. NECESSIDADE DE EXAME NA SEARA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE DE OBTENÇÃO DO MEDICAMENTO NA SEARA CÍVEL. AUTO-CONTENÇÃO JUDICIAL NA SEARA PENAL. 3. SUPERAÇÃO DE ENTENDIMENTO. AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO ADMINISTRATIVA. CONTROVÉRSIA A RESPEITO DO ÓRGÃO COMPETENTE. ESFERA CÍVEL. SOLUÇÃO MAIS ONEROSA E BUROCRÁTICA. NECESSIDADE DE SE PRIVILEGIAR O ACESSO À SAÚDE. 4. DIREITO CONSTITUCIONAL À SAÚDE (ART. 196 DA CF). REPRESSÃO AO TRÁFICO (ART. 5º, XLIII, DA CF). NECESSIDADE DE COMPATIBILIZAÇÃO. LEI 11.343/2006 QUE PROÍBE APENAS O USO IDEVIDO E NÃO AUTORIZADO. ART. 2º, P. ÚNICO, DA LEI DE DROGAS. POSSIBILIDADE DE A UNIÃO AUTORIZAR O PLANTIO. TIPOS PENAIS QUE TRAZEM ELEMENTOS NORMATIVOS. 5. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. DIREITO À SAÚDE. BENEFÍCIOS DA TERAPIA CANÁBICA. USO MEDICINAL AUTORIZADO PELA ANVISA. 6. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO. SAÚDE PÚBLICA NÃO PREJUDICADA PELO USO MEDICINAL DA MACONHA. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL E CONGLOBANTE. IMPOSSIBILIDADE DE SE CRIMINALIZAR QUEM BUSCA ACESSO AO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE. 7. IMPORTAÇÃO DE SEMENTES. AUSÊNCIA DO PRINCÍPIO ATIVO. ATIPICIDADE NA LEI DE DROGAS. POSSIBILIDADE DE TIPIFICAR O CRIME DE CONTRABANDO. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. SALVO-CONDUTO QUE DEVE ABARCAR TAMBÉM REFERIDA CONDUTA. 8. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. PARECER MINISTERIAL PELA CONCESSÃO DO WRIT. PRECEDENTES. 1. Diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça passou a acompanhar a orientação do Supremo Tribunal Federal, no sentido de ser inadmissível o emprego do writ como sucedâneo de recurso ou revisão criminal, a fim de que não se desvirtue a finalidade dessa garantia constitucional, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade. 2. No julgamento do Recurso em Habeas Corpus n. 123.402/RS, concluí que a autorização para plantio de maconha com fins medicinais depende de critérios técnicos cujo estudo refoge à competência do juízo criminal, que não pode se imiscuir em temas cuja análise incumbe aos órgãos de vigilância sanitária. - De igual sorte, considerando que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária autoriza a importação de fármacos à base de cannabis sativa, considerei que o direito à saúde estaria preservado, principalmente em razão da existência de precedentes desta Corte Superior, favoráveis ao custeio de medicamentos à base de canabidiol pelo plano de saúde (REsp n. 1.923.107/SP), bem como do Supremo Tribunal Federal (RE 1.165.959/SP), que, em repercussão geral, fixou a tese de que "cabe ao Estado fornecer, em termos excepcionais, medicamento que, embora não possua registro na ANVISA, tem a sua importação autorizada". - Dessa forma, vinha determinando que o pedido fosse analisado administrativamente, com possibilidade de, em caso de demora ou de negativa, apresentar o tema ao Poder Judiciário, porém à jurisdição cível competente, privilegiando a auto-contenção judicial na seara penal. 3. Contudo, ao me deparar novamente com a matéria na presente oportunidade, passados quase dois anos do julgamento do recurso acima indicado, verifico que o cenário não se alterou administrativamente. De fato, a ausência de regulamentação administrativa persiste e não tem previsão para solução breve, uma vez que a Anvisa considera que a competência para regular o cultivo de plantas sujeitas a controle especial seria do Ministério da Saúde e este considera que a competência seria da Anvisa. - Ademais, apesar de a matéria também poder ser resolvida na seara cível, conforme anteriormente mencionado, observo que a solução se revela mais onerosa e burocrática, com riscos, inclusive, à continuidade do tratamento. Dessa forma, é inevitável evoluir na análise do tema na seara penal, com o objetivo de superar eventuais óbices indicados por mim, anteriormente, privilegiando-se, dessa forma, o acesso à saúde, por todos os meios possíveis, ainda que pela concessão de salvo-conduto. 4. A matéria trazida no presente mandamus diz respeito ao direito fundamental à saúde, constante do art. 196 da Carta Magna, que, na hipótese, toca o direito penal, uma vez que o art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, determina a repressão ao tráfico e ao consumo de substâncias entorpecentes e psicotrópicas, determinando que essas condutas sejam tipificadas como crime inafiançável e insuscetível de graça e de anistia. - Diante da determinação constitucional, foi editada mais recentemente a Lei 11.343/2006. Pela simples leitura da epígrafe da referida lei, constata-se que, a contrario sensu, ela não proíbe o uso devido e a produção autorizada. Dessa forma, consta do art. 2º, parágrafo único, que "pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas". - Nesse contexto, os dispositivos de Lei de Drogas que tipificam os crimes, trazem um elemento normativo do tipo redigido nos seguintes termos: "sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar". Portanto, havendo autorização ou determinação legal ou regulamentar, não há se falar em crime, porquanto não estaria preenchido o elemento normativo do tipo. No entanto, conforme destacado, até o presente momento, não há qualquer regulamentação da matéria, o que tem ensejado inúmeros pedidos perante Poder Judiciário. 5. Como é de conhecimento, um dos pilares da dignidade da pessoa humana é a prevalência dos direitos fundamentais, dentre os quais se inclui o direito à saúde, garantido, de acordo com a Constituição Federal, mediante ações que visam à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. - Contudo, diante da omissão estatal em regulamentar o plantio para uso medicinal da maconha, não é coerente que o mesmo Estado, que preza pela saúde da população e já reconhece os benefícios medicinais da cannabis sativa, condicione o uso da terapia canábica àqueles que possuem dinheiro para aquisição do medicamento, em regra importado, ou à burocracia de se buscar judicialmente seu custeio pela União. - Desde 2015 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária vem autorizando o uso medicinal de produtos à base de Cannabis sativa, havendo, atualmente, autorização sanitária para o uso de 18 fármacos. De fato, a ANVISA classificou a maconha como planta medicinal (RDC 130/2016) e incluiu medicamentos à base de canabidiol e THC que contenham até 30mg/ml de cada uma dessas substâncias na lista A3 da Portaria n. 344/1998, de modo que a prescrição passou a ser autorizada por meio de Notificação de Receita A e de Termo de Consentimento Informado do Paciente. 6. Trazendo o exame da matéria mais especificamente para o direito penal, tem-se que o bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas é a saúde pública, a qual não é prejudicada pelo uso medicinal da cannabis sativa. Dessa forma, ainda que eventualmente presente a tipicidade formal, não se revelaria presente a tipicidade material ou mesmo a tipicidade conglobante, haja vista ser do interesse do Estado, conforme anteriormente destacado, o cuidado com a saúde da população. - Dessa forma, apesar da ausência de regulamentação pela via administrativa, o que tornaria a conduta atípica formalmente - por ausência de elemento normativo do tipo -, tem-se que a conduta de plantar para fins medicinais não preenche a tipicidade material, motivo pelo qual se faz mister a expedição de salvo-conduto, desde que comprovada a necessidade médica do tratamento, evitando-se, assim, criminalizar pessoas que estão em busca do seu direito fundamental à saúde. 7. Quanto à importação das sementes para o plantio, tem-se que tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça sedimentaram o entendimento de que a conduta não tipifica os crimes da Lei de Drogas, porque tais sementes não contêm o princípio ativo inerente à cannabis sativa. Ficou assentado, outrossim, que a conduta não se ajustaria igualmente ao tipo penal de contrabando, em razão do princípio da insignificância. - Entretanto, considerado o potencial para tipificar o crime de contrabando, importante deixar consignado que, cuidando-se de importação de sementes para plantio com objetivo de uso medicinal, o salvo-conduto deve abarcar referida conduta, para que não haja restrição, por via transversa do direito à saúde. - Aliás, essa particular forma de parametrar a interpretação das normas jurídicas (internas ou internacionais) é a que mais se aproxima da Constituição Federal, que faz da cidadania e da dignidade da pessoa humana dois de seus fundamentos, bem como tem por objetivos fundamentais erradicar a marginalização e construir uma sociedade livre, justa e solidária (incisos I, II e III do art. 3º). Tudo na perspectiva da construção do tipo ideal de sociedade que o preâmbulo da respectiva Carta Magna caracteriza como "fraterna" (HC n. 94163, Relator Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma do STF, julgado em 2/12/2008, DJe-200 DIVULG 22/10/2009 PUBLIC 23/10/2009 EMENT VOL-02379-04 PP-00851). Doutrina: BRITTO, Carlos Ayres. O Humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Forum, 2007; MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. A Fraternidade como Categoria Jurídica: fundamentos e alcance (expressão do constitucionalismo fraternal). Curitiba: Appris, 2017; MACHADO, Clara. O Princípio Jurídico da Fraternidade - um instrumento para proteção de direitos fundamentais transindividuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017; VERONESE, Josiane Rose Petry; OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de; Direito, Justiça e Fraternidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. 8. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, para expedir salvo-conduto em benefício do paciente, para que as autoridades responsáveis pelo combate ao tráfico de drogas, inclusive da forma transnacional, abstenham-se de promover qualquer medida de restrição de liberdade, bem como de apreensão e/ou destruição dos materiais destinados ao tratamento da saúde do paciente, dentro dos limites da prescrição médica, incluindo a possibilidade de transporte das plantas, partes ou preparados dela, em embalagens lacradas, ao Laboratório de Toxicologia da Universidade de Brasília, ou a qualquer outra instituição dedicada à pesquisa, para análise do material. Parecer ministerial pela concessão da ordem. Precedentes." (HC n. 779.289/DF, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 22/11/2022, DJe de 28/11/2022.) Não se desconhece que a questão poderia ser dirimida no âmbito cível, seara na qual eventualmente poderia ser o Estado obrigado a custear o medicamento, a exemplo do que já foi decidido pelo E. TRF3: "DIREITO ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO PELO PODER PÚBLICO. CANABIDIOL – HEMP OIL (RSHO). PACIENTE PORTADORA DE EPILEPSIA. TRATAMENTO FORNECIDO PELO SUS: INEFICÁCIA. APLICAÇÃO DO TEMA 106 DO STJ. RECURSO JULGADO SOB A SISTEMÁTICA DOS REPETITIVOS. RESP 1.657.156/STJ. REQUISITOS NÃO CUMULATIVOS. MODULAÇÃO DOS EFEITOS E PROPOSITURA DA PRESENTE AÇÃO ANTERIORMENTE À CONCLUSÃO DO PARADIGMA. APELOS E REMESSA OFICIAL IMPROVIDOS. 01. O cerne da controvérsia diz respeito à aferição da possibilidade de fornecimento, pelo ente público federal, do medicamento Hemp Oil (RSHO) – cannabidiol (CDB) à tutelada Isabela Ramos Spósito, pelo tempo necessário ao seu tratamento, mesmo diante a ausência de registro nacional na ANVISA. 02. No presente caso, restou configurada a tutela de direitos individuais indisponíveis, ensejando a legitimidade ativa ministerial. Vale ressaltar que a jurisprudência dos Tribunais Superiores se alinhou no sentido de que a responsabilidade dos entes federativos na execução das ações e no dever fundamental de prestação de serviço públicos de saúde, se afigura solidária, nos moldes previstos no art. 198 da CF/88 e na Lei nº 8.080/90. Preliminar de ausência de legitimidades ativa do MPF e passiva da União e do Estado de São Paulo não configuradas. 03. Preliminar de ausência de interesse de agir afastada, em razão da omissão estatal na execução de políticas públicas. 04. Cumpre mencionar que a presente demanda foi distribuída em 01/03/2016, anteriormente à conclusão do julgamento do REsp 1.657.156/RJ, em 25/04/2018, que analisou, em sede de repercussão geral, a questão da concessão de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS. Considerando a modulação dos efeitos da decisão supra referida, os critérios e requisitos cumulativos estipulados no paradigma somente serão exigidos para os processos que forem distribuídos após 25 de abril de 2018. 05. Com efeito, a reiterada jurisprudência desta Terceira Turma Julgadora já se posicionou no sentido de que o interesse público não pode se reduzir ao aspecto financeiro sustentado pelo recorrente, tampouco prevalece sobre o direito à saúde. Precedente: ApCiv 5000417-31.2018.4.03.6105, Rel. Des. Federal NELTON DOS SANTOS, TERCEIRA TURMA, j. 19/11/2019, DJe 21/11/2019. Efeito suspensivo indeferido. 06. No mérito, as razões recursais não se sustentam. No plano fático, o compulsar dos autos revela que os relatórios médicos demonstram, à saciedade, a gravidade do quadro clínico de saúde da tutelada Isabela Ramos Spósito, portadora de Epilepsia (CID G 40.8), com várias crises epilépticas diárias, tratando-se de paciente refratária e resistente ao tratamento padronizado pelo SUS, não sendo esta medida o suficiente para controlar a doença. 07. Reforça este entendimento a conclusão da perícia médica, realizada no juízo de origem, por especialista em epilepsia, pela necessidade do tratamento medicamentoso, à base de canabidiol, a título de controle da doença. 08. Verifica-se, ainda, a juntada do relatório, firmado pelo médico assistente, que informa sobre o controle e a estabilização do quadro de saúde da paciente Isabela Ramos Spósito, com a introdução do medicamento “HEMP OIL (RSHO) – cannabidiol (CBD)”, prescrevendo, inclusive, a sua manutenção. 09. Depreende-se das circunstâncias do caso e do projeto social envolvido, com escopo eminentemente assistencial, que a paciente, tutelada nestes autos pelo órgão ministerial, se afigura hipossuficiente. Logo, não seria crível exigir que seus representantes legais arquem com o custo do medicamento prescrito, sem o amparo do Poder Público. 10. No que tange à ausência de registro na ANVISA, cumpre mencionar que a canabidiol não é mais considerada substância proibida no Brasil, na medida em que o órgão sanitário a reclassificou como substância controlada e enquadrada na lista C1 da Portaria nº 344/98, retirando-a do rol da lista de vedações no país, desde de janeiro de 2015. Dessa feita, as insurgências apresentadas pelos recorrentes contra o fornecimento do fármaco para fins terapêuticos, no presente caso, já se encontram superadas no âmbito da própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que incluiu, desde 2016, o canabidiol na lista de substâncias permitidas no território brasileiro, mediante controle. 11. Vale ressaltar que a ANVISA, através da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 17/2015 -, autorizou, em caráter excepcional, a importação de medicamentos à base de canabidiol e tetrahidrocannabinol (THC) em sua formação, por pessoa física, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para uso próprio e tratamento de saúde. 12. À luz do ordenamento jurídico constitucional, é atribuição do Poder Público a adoção de políticas públicas voltadas à promoção da saúde e a redução de agravos provocados por doenças. Desse modo, a obrigação de fazer imposta ao Estado na origem, para o caso dos autos, se afigura excepcional, na medida em que se revelam preenchidos os critérios norteadores do recurso repetitivo, ora analisado, em sua maior parte, sendo certo que as demandas dessa natureza objetivam a preservação da vida e/ou da saúde garantidas constitucionalmente, bens cujo valor é inestimável. 13. Remessa oficial e apelações improvidas." (TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApelRemNec - APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA - 0000948-58.2016.4.03.6111, Rel. Desembargador Federal NERY DA COSTA JUNIOR, julgado em 08/11/2021, Intimação via sistema DATA: 24/11/2021) Ocorre que eventual ação cível para a obtenção do medicamento poderia perdurar por lapso temporal capaz de interromper o uso do óleo da Cannabis pela paciente, o que seria capaz de comprometer o tratamento médico, e, por consequência, configuraria afronta ao seu direito à saúde constitucionalmente garantido, o que lhe seria prejudicial. Sabe-se que a Resolução nº 2113/2014 do Conselho Federal de Medicina aprovou o uso compassivo do canabidiol para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias aos tratamentos convencionais. Em que pese o fato de a regulamentação fazer referência à doença e a grupo etário diversos, verifica-se que há nos autos declaração e prescrição médicas que comprovam a efetividade dos tratamentos à base de óleo extraído da Cannabis em relação às doenças da paciente, bem como informação de que os tratamentos tradicionais não foram suficientes para a melhora significativa do quadro clínico, o que demonstra a necessidade do uso do óleo da Cannabis sp. para resguardar o seu direito à saúde. Como já citado, em recente decisão, a Sexta Turma do STJ, no RHC nº 147169/SP (2021/0141522-6) concedeu a ordem de habeas corpus para impedir que qualquer órgão de persecução penal, como polícias civil, militar e federal, Ministério Público Estadual ou Ministério Público Federal, turbe ou embarace o cultivo de mudas de Cannabis para fins medicinais. Por todos os elementos aqui colacionados, verifico que a interrupção do tratamento por eventual falta do medicamento poderia ocasionar prejuízos à paciente, o que deve ser evitado pelo Estado, em observância ao direito à saúde constitucionalmente assegurado. Diante de todo o exposto, é o caso de renovar a ordem de Habeas Corpus em favor do paciente FELIPE GUIMARÃES MARCO. I) Quantidade de sementes Como dito, já venho decidindo pela atipicidade do crime de tráfico no que tange à importação de sementes de maconha até determinada quantidade, por entender atípica a conduta. No entanto, há de se ter um parâmetro para limitar o plantio, sob pena de se autorizar uma verdadeira plantação sem o devido controle. Assim, utilizo como parâmetro o limite autorizado no Uruguai, como sendo de 20 (vinte) sementes mensais, limitadas a 67 (sessenta e sete) sementes por ano, considerando-se, inclusive, que nem todas as sementes frutificam. Assim, fica autorizada a importação de sementes de Cannabis sp. com concentração de THC e CBD para atendimento da necessidade médica do paciente nos limites aqui fixados. II) Quantidade de plantas cultivadas Em relação à quantidade de plantas, adotando-se como parâmetro o utilizado em outras decisões proferidas por este juízo em casos análogos, que leva em consideração a necessidade mínima aproximada de 40 (quarenta) plantas fêmeas em período de floração para a obtenção do produto necessário para consumo de cinco meses, autorizo o cultivo mensal de até 12 (doze) plantas, limitadas a 61 (sessenta e uma) plantas por ano. III) Finalidade, local e prazo Considerando que o artigo 2º, parágrafo único, da Lei 11.343/2006, ao ressalvar a possibilidade de autorização pela União do plantio, cultura e colheita dos vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, consignou expressamente que esta se dará "exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados", consigno que a autorização ora concedida fica restrita ao domicílio do paciente e desde que destinada unicamente para tratamento de sua saúde, pelo prazo determinado de 2 anos. A fim de possibilitar o acompanhamento do tratamento médico, autorizo o porte, transporte/remessa de plantas e flores, em quantidade de no máximo 2g de flores ou 5ml de óleo, estritamente para a realização de teste de quantificação e análise de canabinoides por meio de guia de remessa lacrada confeccionada pelo próprio paciente a órgãos e entidades de pesquisa, públicos ou privados, ainda que em outra unidade da federação, para que seja possível a feitura da parametrização laboratorial. Não está autorizado o cultivo, porte ou transporte dos vegetais e produtos dele derivados, além das condições expressamente previstas nesta ordem. A fim de viabilizar o controle da medida ora concedida, tendo em vista que não há fiscalização administrativa do plantio e cultivo da cannabis e tampouco é viável eventual monitoramento exclusivamente pelos órgãos de polícia, o salvo conduto ora concedido terá validade pelo prazo determinado de 2 anos, período que reputo razoável para possibilitar eventual reavaliação da necessidade e eficácia do tratamento. Caso haja necessidade de continuidade do cultivo para o tratamento médico, caberá ao paciente renovar o pedido antes da expiração do prazo, de forma fundamentada e instruída com a documentação médica pertinente, não havendo que se cogitar a concessão de salvo conduto por prazo indeterminado, como pretendem os impetrantes. Finalmente, por força dos rigores administrativos para a concessão de licença até para pessoa jurídica (cf. RDC 16/2014), o salvo conduto não impede eventual instauração de investigação policial até para averiguar as circunstâncias de eventual plantação, se o caso, mas proíbe qualquer medida de restrição da liberdade do paciente, bem com a apreensão das sementes, plantas e insumos utilizados para a produção terapêutica do aludido óleo de cânhamo. Dessa forma estabelece-se a proporcionalidade entre o direito de obtenção dos produtos para fins terapêuticos e, por outro laudo, a eventual fiscalização da atividade. Aqui o que se busca resguardar, tendo em vista a presença dos requisitos para a concessão do Habeas Corpus, em decorrência de violência ou coação ilegal, é a finalidade terapêutica, e esta fica resguardada nos limites desta decisão. Fica expressamente vedada qualquer forma de comercialização da matéria prima ou de compostos, que devem ser utilizados exclusivamente pela paciente. Além disso, o presente salvo-conduto se restringe ao cultivo de plantas de Cannabis Sativa nos limites acima indicados estritamente para fins medicinais, especificamente para a extração do óleo necessário para o tratamento médico da paciente, ficando ressalvada à autoridade policial eventual prisão em flagrante, se inobservadas as determinações contidas na presente Sentença. Sentença sujeita a Reexame Necessário (artigo 574, inciso I, do CPP). Após as intimações, encaminhem-se os autos ao E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, observadas as formalidades pertinentes. Sem custas (artigos 5º da Lei 9289/96 e 5º, LXXVII, da CF). Comuniquem-se às autoridades coatoras. Publique-se. Registre-se. Intimem-se e Comuniquem-se, servindo cópia desta como ofício ou mandado. São Paulo, na data da assinatura eletrônica. (assinado eletronicamente) SILVIO GEMAQUE Juiz Federal
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