Processo nº 5001243-86.2019.4.03.6181
ID: 300801582
Tribunal: TRF3
Órgão: Gab. 44 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA
Classe: APELAçãO CRIMINAL
Nº Processo: 5001243-86.2019.4.03.6181
Data de Disponibilização:
17/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
YONG JUN CHOI
OAB/SP XXXXXX
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SAE KYUN LEE
OAB/SP XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO Tribunal Regional Federal da 3ª Região 11ª Turma APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 5001243-86.2019.4.03.6181 RELATOR: Gab. 44 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA APELANTE: ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA…
PODER JUDICIÁRIO Tribunal Regional Federal da 3ª Região 11ª Turma APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 5001243-86.2019.4.03.6181 RELATOR: Gab. 44 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA APELANTE: ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA, JIMMY PARK Advogados do(a) APELANTE: SAE KYUN LEE - SP129154-A, YONG JUN CHOI - SP142873-A APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP OUTROS PARTICIPANTES: ABSOLVIDO: NO JOON PARK, JUNG YUL PARK MOON, JI YAE PARK PODER JUDICIÁRIO Tribunal Regional Federal da 3ª Região 11ª Turma APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 5001243-86.2019.4.03.6181 RELATOR: Gab. 44 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA APELANTE: ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA, JIMMY PARK Advogados do(a) APELANTE: SAE KYUN LEE - SP129154-A, YONG JUN CHOI - SP142873-A APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O O JUIZ FEDERAL CONVOCADO ALEXANDRE SALIBA (Relator): O Ministério Público Federal ofereceu denúncia em face de ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA, NO JOON PARK, JUNG YUL PARK MOON, JI YA PARK e JIMMY PARK, pela prática, em tese, do delito previsto no artigo 149, caput, § 1º, inciso II e §2º, inciso I do Código Penal, bem como também denunciou ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA, em concurso material, com o crime previsto no artigo 149-A, incisos II e III do Código Penal, e pela prática, por duas vezes, do crime previsto no artigo 304, combinado com o artigo 297, ambos do Código Penal, pelos fatos assim narrados na exordial (ID 267291124): “I – FATOS DENUNCIADOS Restou comprovado nos autos em referência, na Ação Cautelar nº 5000851-49.2019.4.03.6181, bem como no Pedido de Quebra de Sigilo Bancário – Autos nº 5002038-92.4.03.6181, que, entre o período compreendido entre outubro de 2018 e junho de 2019, os denunciados ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA, NO JOON PARK, JUNG YUL PARK MOON, JI YA PARK e JIMMY PARK, no local situado na Rua Banbina Hares, nº 26, Jardim de Lourenço, São Paulo/SP, reduziram estrangeiros a condições análogas às de escravo, submetendo-os a jornadas exaustivas de trabalho, sujeitando-os a condições degradantes de vida e trabalho, bem como restringindo a locomoção das vítimas em razão da falta de pagamento de salários, servidão por dívidas e falta de documentação regular. Além disso, restou apurado que o denunciado ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA agenciou, aliciou e alojou pessoas estrangeiras, mediante fraude, com a finalidade de submetê-las a trabalho em condições análogas às de escravo, bem como à servidão, aproveitando-se da dependência econômica a que eram submetidas (artigo 149-A, incisos II e III do Código Penal). As condutas criminosas tiveram início em outubro de 2018, com o aliciamento, agenciamento e transporte das vítimas estrangeiras do país de origem para o Brasil, perdurando até junho de 2019, quando as vítimas PERCY JHOHAN ALIAGA YUCRA e ELIANA JASMINA VILASSANTE QUISPE deixaram a oficina de costura de ALDEMIR CAPAJANA. Por fim, restou apurado que, em outubro de 2018, ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA falsificou documentos públicos, com ou sem o auxílio de outras pessoas, bem como fez uso deles ao entregá-los às vítimas PERCY JHOHAN ALIAGA YUCRA (nascido em 11/09/2002, natural de Puno, província San Roman – fls. 25), e ELIANA JASMINA VILASSANTE QUISPE (nascida em 12/07/2003, natural de Puno, Província de Moho – fls. 24), para que ingressassem no Brasil no dia 18/10/2018 como se fossem maiores de idade. II – DAS APURAÇÕES Os fatos foram inicialmente informados perante a Polícia Nacional do Peru, por denúncia verbal apresentada por Nadia Bianca Coaquira Condena, que narrou que seu sobrinho menor de idade PERCY JHOTAN YUCRA ALIAGA (então com 17 anos) e sua namorada ELIANA JASMINA QUISPE VILASSANTE (então com 16 anos), desapareceram de sua cidade natal no Peru (Moho – Puno) no mês de outubro de 2018, sem deixar informações sobre seu paradeiro a seus familiares (fls. 18/24). Porém, em 07/07/2019, a família se comunicou com eles pelo aplicativo Messenger, da rede social Facebook, tomando conhecimento de que estavam no Brasil após terem recebido oferta de trabalho em uma confecção em São Paulo, em troca de dinheiro, alimentação, hospedagem e passagens pagas. Nesse período, o casal de jovens concebeu uma filha, nascida no dia 02/07/2019. Porém, foi narrado pelos jovens que o senhor para quem trabalhavam, de nome CAPAJANA, havia descontado do valor dos salários prometidos as passagens e comida, não pagou o salário combinado e ainda os abandonou à própria sorte, sem pagar pelo tempo de trabalho. Além disso, CAPAJANA teria falsificado os documentos para que saíssem do Peru como se fossem maiores de idade. Os jovens informaram terem conseguido deixar a oficina do denunciado, sendo acolhidos em outro local na cidade de São Paulo, de forma que o Consulado do Peru solicitou a apuração dos fatos e da situação dos menores. Os fatos foram, a seguir, noticiados à Polícia Federal, que, no dia 19/07/2019, realizou diligências na Rua Silvestre de Almeida Lopes, nº 306, São Paulo/SP, também uma oficina de costura, onde as vítimas PERCY e ELIANA estavam residindo naquele momento. Com o consentimento dos proprietários do imóvel, apreenderam documentos pertencentes a eles. Os jovens estiveram no Consulado do Peru, onde prestaram depoimentos e receberam auxílio para retornar ao país com a bebê recém-nascida. Com as informações obtidas naquela diligência (fls. 44), a Polícia Federal identificou que a oficina de costura onde os jovens trabalhavam anteriormente era sediada na Rua Balbina Hares, nº 26 e pertencia ao denunciado ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA, titular da pessoa jurídica de CNPJ nº 18.486.061/0001-76. Em diligência realizada no mesmo dia 19/07/2019, os policiais foram autorizados pelo denunciado a ingressar no local (fls. 78), onde constataram a presença de 12 (doze) estrangeiros adultos e 02 (duas) crianças, filhas de uma funcionária. Em entrevistas, os funcionários confirmaram que trabalhavam com costura de roupas. As vítimas foram ouvidas no Ministério do Trabalho e, posteriormente, prestaram depoimento perante este E. Juízo nos autos Medida Cautelar nº 5000851.49.2019.4.03.6181, sendo que seus depoimentos confirmam as práticas criminosas que serão a seguir detalhadas. III – DO TRÁFICO DE PESSOAS, FALSIFICAÇÃO E USO DE DOCUMENTOS FALSOS Restou demonstrado que PERCY JHOHAN ALIAGA e ELIANA JASMINA QUISPE VILASSANTE, ambos peruanos, foram aliciados, agenciados, transportados e alojados para trabalhar no Brasil por ALDEMIR HUACHALLA CAPAJANA, mediante fraude, diante de promessas não consolidadas e abuso de condição de vulnerabilidade das vítimas. ALDEMIR lhes ofereceu trabalho em uma oficina de costura na cidade de São Paulo, prometendo-lhes retribuição justa pelos serviços a serem prestados, bem como alimentação, hospedagem e passagens. Todavia, aqui chegando, as promessas não foram cumpridas e passaram a ser explorados, trabalhando em situações análogas às da escravidão. Além disso, ALDEMIR CAPAJANA entregou a PERCY e ELIANA documentos falsos para que os jovens ingressassem no Brasil, tendo ciência de que eram menores de idade. Tais fatos foram confirmados pelos jovens em depoimentos prestados ao Ministério do Trabalho, bem como ao prestarem depoimento em sede de produção antecipada de provas perante este E. Juízo. A vítima PERCY narrou que estava caminhando em sua cidade, no Peru, quando viu uma placa anunciando trabalho para costureiros, com ou sem experiência, com a indicação de um telefone. Ligou para o número e falou com o denunciado ALDEMIR, que lhe disse para ir em determinado endereço, o que foi feito. Ao se encontrarem, ALDEMIR prometeu pagar a PERCY e a ELIANA entre R$ 4,00 (quatro reais) e R$ 5,00 (cinco reais) por peça costurada, além de víveres para alimentação. Disse que também pagaria a passagem. PERCY lhe disse que eram menores de idade e que não tinham documentos, sendo que ALDEMIR disse que solucionaria tudo. Se encontraram na Calle Montero, em uma hospedagem, onde tiveram tal conversa. PERCY relatou ter concordado com a oferta, tendo vindo ao Brasil juntamente com ELIANA. Viajaram de ônibus com mais 04 (quatro) pessoas, acompanhados de ALDEMIR, que custeou as passagens e demais despesas. Ao chegarem no Brasil, os jovens foram diretamente para a Rua Balbina, local em que estava localizada a oficina de ALDEMIR, onde foram alojados para viver e trabalhar. O agenciamento, aliciamento e transporte de PERCY e ELIANA por parte de ALDEMIR foi, também, confirmado por ELIANA, que narrou perante este E. Juízo que estavam procurando trabalho quando viram um aviso do “Sr. ALDEMIR”, o qual dizia que estava procurando trabalhadores com ou sem experiência e com ou sem filhos para virem ao Brasil. Entraram em contato e se encontraram com ALDEMIR, que lhes disse que pagaria entre R$ 4,00 (quatro reais) e R$ 5,00 (cinco) reais por peça costurada, além dos gastos com alimentação. Os bilhetes de passagem identificados às fls. 40, 41 e 42 dos autos demostram que as vítimas deixaram Corumbá com destino a São Paulo, passando por Campo Grande no dia 18/10/2018. PERCY e ELIANA estavam acompanhados de ALDEMIR, conforme consta em registro migratório do denunciado, que também ingressou no Brasil no dia 18/10/2018 (fls. 56). Resta demonstrado que, visando impedir que autoridades migratórias soubessem que eram menores de idade, ALDEMIR falsificou e entregou à vítima PERCY a cédula de identidade nº 4569873, em tese emitida pelo Consulado da Bolívia, onde constava falsamente que PERCY era cidadão boliviano (fls. 36), por ele utilizada para ingressar no Brasil (Cartão de Entrada e Saída apresentado por PERCY ao controle de imigração no dia 18/10/2018 - fls. 41). PERCY nasceu no dia 11 de setembro de 2002 e tinha, portanto, 16 anos quando ingressou no Brasil (fls. 25), mas a cédula falsa de identidade boliviana dizia ser nascido no dia 15 de setembro de 2000 (fls. 36-37) Outrossim, ALDEMIR falsificou e entregou à vítima ELIANA documento consistente na cédula de identidade peruana nº 76428552-8, em nome de Ana Marilia Mayta Cahuya, com fotografia da vítima ELIANA, onde constava data de nascimento 26/07/1998 (fls. 36, 37, 42 e 227), que foi utilizada pela vítima no dia 18/10/2018 para ingressar no Brasil (fls. 39 e Cartão de Entrada e Saída às fls. 42). Todavia, ELIANA nasceu no dia 12 de julho de 2003 e tinha, portanto, 15 anos quando ingressou no Brasil (fls. 24). De fato, consoante certidão apresentada pelo Consulado da Bolívia, PERCY não é cidadão boliviano, sendo que, conforme certidões apresentadas pelo Consulado do Peru, PERCY JHOHAN ALIAGA e ELIANA JASMINA QUISPE VILASSANTE (dados da DNI de fls. 24/25 e do Controle de Entrada e Saída de fls. 30) são cidadãos peruanos. Os documentos falsos providenciados por ALDEMIR para que fossem apresentados pelas vítimas à imigração encontram-se apreendidos nos autos, conforme Termo de Apreensão juntado às fls. 227, com fotografias às fls. 36-37. Foram utilizados para o preenchimento dos bilhetes de passagem, compradas por ALDEMIR para os jovens aliciados (fls. 40 e 41) PERCY e ELIANA narraram que as promessas feitas por ALDEMIR não foram cumpridas, visto que foram obrigados a trabalhar por longas e exaustivas jornadas sem receber os valores prometidos por cada peça costurada, caracterizando a fraude, bem como o abuso da situação de vulnerabilidade das vítimas, jovens estrangeiros provenientes de local em difíceis condições econômicas, que viram no denunciado, seu compatriota, um benfeitor capaz de ajudá-los com melhores condições de vida no Brasil. Porém, aqui chegando, foram submetidos a trabalho em condições análogas às da escravidão, bem como a servidão por dívidas, conforme a seguir será exposto. IV – DA REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO Ao chegarem no Brasil, as vítimas foram alojadas na oficina de costura de ALDEMIR, situada na Rua Banbina Hares, nº26, Jardim de Lourenço, São Paulo/SP, onde passaram a trabalhar em jornadas exaustivas, condições degradantes e em restrição de locomoção mediante retenção de salários, servidão por dívidas e falta de documentação regular. O trabalho consistia em costurar peças de roupa das marcas Anchor e Tova, pertencentes a empresas dirigidas pelos demais denunciados. Na medida cautelar de produção de provas ofertada perante este E. Juízo, as jornadas excessivas de trabalho foram confirmadas pelas vítimas, bem como os valores irrisórios recebidos pelos jovens pelos trabalhos prestados entre outubro de 2018 e junho de 2019. Foi narrado, também, que quando PERCY e ELIANA pretenderam deixar a oficina, ALDEMIR CAPAJANA lhes cobrou uma dívida de R$ 1.400,00 (um mil e quatrocentos reais) referente às despesas de viagem. De fato, depondo em Juízo, PERCY narrou que ALDEMIR lhe havia prometido um quarto individual, o que não ocorreu, já que dormiam com outras pessoas e, no início, em uma única cama para uma pessoa. Trabalhavam das 07h00 hs da manhã até as 22h30 hs, com apenas 02 (duas) pausas curtas para o café e uma pausa para o almoço. Aos sábados, trabalhavam até 12h30 hs. A comida era de qualidade ruim, sendo que as vítimas reclamavam, mas nada adiantava. A promessa de pagamento entre R$ 4,00 (quatro reais) e R$ 5,00 (cinco) reais por peça não se concretizou, sendo que receberam R$ 6.000,00 (seis mil reais) no total, pelo trabalho realizado entre outubro de 2018 e junho de 2019. PERCY acrescentou que, aos finais de semana, não saíam do imóvel porque não tinham documentos regulares. Em certo momento, resolveram que queriam ir embora, diante do não pagamento prometido e condições ruins ofertadas, mas ALDEMIR chegou a trancar a residência para que não saíssem sem pagar uma suposta dívida de R$ 1.400,00 (um mil e quatrocentos reais), bem como, ainda, reteve os pertencentes dos jovens. Então, a vítima PERCY acabou pagando R$ 1.000,00 (mil reais) ao denunciado, sendo que este lhe disse que, enquanto não pagasse os R$ 400,00 (quatrocentos reais) restantes, não deixaria que retirassem suas coisas. PERCY pediu, então, ajuda a um amigo, o qual, por sua vez, pediu ajuda à sua patroa, que concordou em ajudá-los, mas por pouco tempo, pois eram menores de idade. PERCY retornou, então, à oficina de ALDEMIR em momento em que este estava em seu quarto, quando conseguiu retirar seus pertences. PERCY relatou que recebia por peça, mas em valor bem inferior ao prometido, entre R$ 1,00 (um real) a R$ 1,25 (um real e vinte e cinco centavos) por peça costurada. ELIANA, por sua vez, trabalhava mesmo estando grávida, sendo que o bebê nasceu quando já tinham deixado a oficina de ALDEMIR. Ressaltou ter dito a ALDEMIR que era menor de idade, mas este lhe disse que providenciaria documentos para que pudessem viajar. O depoimento da vítima ELIANA foi semelhante, relatando que dormia com PERCY em um quarto com ALDEMIR e seu filho, em 04 (quatro) pessoas. Disse que chegavam e já iniciavam o trabalho, o que se dava entre as 07h00min e as 22h00min. Relatou que tinham 15 (quinze) minutos para o café da manhã, 01 (uma) hora para almoço e depois o jantar. Afirmou que receberam por peça menos do que o combinado e que não parou de trabalhar quando ficou grávida, sendo que PERCY pedia a ALDEMIR para que ELIANA parasse um pouco o trabalho, mas que ALDEMIR não concordava. Disse que aos sábados trabalhava até as 12h00min e que ficaram na oficina até junho, sendo que PERCY disse a ALDEMIR que iriam embora, mas ALDEMIR disse que tinham uma dívida de R$ 1.400,00 (um mil e quatrocentos reais). Afirmou que PERCY deu a ALDEMIR a quantia de R$ 1.000,00 (mil reais) e que, então, conseguiram sair. Disse, ainda, que além dos R$ 6.000,00 (seis mil reais) que foram pagos diretamente a PERCY, recebeu R$ 300,00 (trezentos reais) por ter ajudado na cozinha durante 02 (duas) semanas. Portanto, o casal recebeu pelo trabalho com costura apenas R$ 6.000,00 (seis mil reais), referentes a serviços prestados entre o final de outubro de 2018 e junho de 2019, quando deixaram a oficina. Assim sendo, ambos trabalharam no mínimo 07 (sete) meses em jornadas exaustivas e receberam o equivalente a R$ 857,14 (oitocentos e cinquenta e sete reais e quatorze centavos) por mês (o casal), portanto, cerca de R$ 430,00 (quatrocentos e trinta reais) em média para cada um por trabalho mensal, executado em jornadas exaustivas, caracterizando o crime de redução a condições análogas às de escravo diante dos rendimentos extremamente reduzidos para o trabalho realizado. Assim, os jovens viviam e trabalharam em condições insalubres e degradantes. Eram obrigados a trabalhar por muitas horas, acreditando que receberiam um valor relevante pelos serviços por eles executados. Ademais, as instalações do local eram precárias e perigosas, conforme fotografias presentes nos autos, com a presença de infiltrações, pessoas trabalhando e residindo juntas em um mesmo ambiente, com a presença de fiação exposta e improvisada para o trabalho de costura, sendo que todos eram ali submetidos a sérios riscos de acidentes, inclusive de incêndio (fotografias às fls. 63, fls. 315 e seguintes). As condições de higiene eram igualmente precárias, com banheiro contendo vaso sanitário sem tampa, não havendo lixeira nem papel higiênico no local (fls. 321) e, ainda, a presença de botijões de gás em ambiente fechado, com claro risco de explosão (fls. 324). O cerceamento da liberdade das vítimas resta caracterizado em razão da falta do pagamento prometido, expediente utilizado nitidamente para manter o domínio e a exploração sobre as vítimas, que obviamente não iriam querer retornar ao país de origem após tanto trabalhar e quase nada receber. Ademais, as vítimas estavam sendo cobradas por dívidas por despesas custeadas por ALDEMIR, que, inclusive, chegou a dificultar a saída dos jovens do local, trancafiando a porta e retendo seus pertences. Outrossim, a restrição à liberdade é caracterizada pelo fato de que as vítimas estavam indocumentadas, prática sabidamente utilizada pelos aliciadores para que os trabalhadores tenham medo de se reportar às autoridades, temendo deportações e outras sansões pelo trabalho ilegal. Vale frisar: não há liberdade para imigrantes que vivem e trabalham ilegalmente em um país distante, há milhares de quilômetros de suas origens, onde se fala um idioma diverso, não conhecem pessoas de confiança, estão sem dinheiro suficiente para subsistência e temendo por sua segurança e integridade. Assim, muito embora a exploração dos trabalhadores em casos de escravidão contemporânea seja diversa do contexto que tínhamos no país na época da colonização, em que trabalhadores eram oficialmente escravizados e acorrentados, é certo que a exploração da força de trabalho, a degradação, a afronta à dignidade da pessoa humana e o cerceamento da liberdade restam perfeitamente delineados em casos como o presente, merecendo rigorosa punição. V – DA AUTORIA DELITIVA Conforme apontado nos itens anteriores, restou devidamente caracterizada a responsabilidade de ALDEMIR pelo crime de tráfico internacional de pessoas para fins de exploração do trabalho em condições análogas às de escravidão, tendo o acusado aliciado, agenciado, transportado e alojado as vítimas com a finalidade de exploração ilícita de mão de obra de trabalho. Inclusive, às fls. 56 dos autos consta histórico de movimentos migratórios de ALDEMIR, que revelou constantes saídas e entradas em território nacional, possivelmente para recrutar trabalhadores ilegais. O documento de fls. 56 demonstra o ingresso de ALDEMIR no Brasil no dia 18/10/2018, mesma data em que as vítimas PERCY e ELIANA também ingressaram em território nacional, demonstrando que ALDEMIR falta com a verdade ao dizer, perante a Polícia Federal, que não teria sido responsável por trazer as vítimas do exterior (fls. 178). Além dos depoimentos prestados em Juízo, as vítimas PERCY e ELIANA prestaram depoimento perante o Consulado Geral do Peru, ocasião em que ambos trouxeram declarações similares às prestadas em Juízo. Nesses depoimentos, consta que as vítimas vieram ao Brasil pela rota Boliviana acompanhadas de ALDEMIR e de mais outros 04 (quatro) trabalhadores por ele recrutados (fls. 298). PERCY relatou que ALDEMIR retirava botões do fogão aos finais de semana para que não pudessem cozinhar, que o mesmo dizia que não podiam reclamar com ninguém devido ao fato de que não tinham documentos regulares e que não podiam sair porque apenas ele tinha as chaves da porta. No que tange aos denunciados JUNG YUL PARK MOON, NO JOON PARK, JI YA PARK e JIMMY PARK, não há provas de que tenham participado do aliciamento, agenciamento e transporte das vítimas, bem como da falsificação de documentos. Porém, resta demonstrado que agiram de forma dolosa e consciente no que tange à exploração das vítimas em circunstâncias análogas às da escravidão, aproveitando-se deliberadamente da mão de obra “barata” advinda da exploração de imigrantes ilegais e sabidamente em situação de exploração e precariedade. Os acusados agiram dolosamente para obter lucros indevidos, deixando de arcar com os custos trabalhistas devidos para os trabalhadores protegidos pela legislação brasileira, obtendo vantagens em seus preços mais baixos, em relação a outras empresas do mesmo setor. Na oficina de costura de ALDEMIR foram encontradas diversas peças em processo de costura, fardos de cores de peças, peças piloto, notas fiscais e outros insumos e documentos de propriedade das empresas Confecções ANCHOR LTDA (marca “ANCHOR”) e MNJ Confecções LTDA (marca “TOVA”), sendo que tais marcas foram confirmadas pela vítima PERCY como sendo referentes às etiquetas das roupas que costurava. Nesse sentido, os Autos de Infração lavrados pelo Ministério do Trabalho trazem a informação de que as roupas costuradas e comercializadas se destinavam às marcas de moda “ANCHOR” e “TOVA”. Durante os trabalhos, foram fiscalizadas a oficina de costura gerenciada por ALDEMIR CAPAJANA, na Rua Balbina Hares, nº 26, bem como os estabelecimentos das empresas Confecções ANCHOR LTDA, na Rua Silva Teles, nº 125, e MNJ Confecções, na Rua Aimorés, nº 255, Bom Retiro. O Ministério do Trabalho localizou os demais imigrantes que trabalhavam e residiam no local da oficina de ALDEMIR, inclusive ouvindo-os e obtendo indenização a favor deles. A fiscalização realizada pelo Ministério do Trabalho apurou que tais empresas atuavam como um único grupo econômico, sendo formada por membros de uma mesma família, ou seja, os denunciados JUNG YUL PARK MOON, NO JOON PARK e suas filhas JI YA PARK e JIMMY PARK, compartilhando os locais onde eram confeccionadas as peças e constituindo-se, em verdade, em uma única empresa de indústria e comércio de vestuário. Assim, referido grupo econômico, formado pelos denunciados citados, exercia as atividades de comando, direção e ingerência por todas as atividades da oficina de costura de ALDEMIR, buscando estratégias para obter resultados e adequar a produção e o preço das peças à sua clientela. A empresa Confecções ANCHOR LTDA, CNPJ nº 08.029.773/0001-02, tem como sócios responsáveis os acusados NO JOON PARK e JUNG YUL PARK MOON. Por sua vez, a empresa MNJ Confecções LTDA, CNPJ nº 21.758.005/0001-58, tem como sócias responsáveis as denunciadas JI YA PARK e JIMMY PARK, ambas filhas de NO JOON PARK e JUNG YUL MOON. Porém, na prática, os quatro membros da família participam de ambas as empresas e dela obtém proveitos indevidos, às custas da exploração de estrangeiros ilegais. Os Autos de Infração elaborados pela fiscalização elencam as circunstâncias apuradas e identificadoras da exploração dos trabalhadores imigrantes, submetidos a jornadas exaustivas, condições degradantes de trabalho e vivência, bem como ilegais em sua situação migratória. Além disso, há fotografias das “gambiarras” elétricas existentes na oficina de costura que causavam sobrecarga à rede elétrica, submetendo os trabalhadores a risco de vida em caso de incêndio. Os auditores relataram, ainda, que encontraram o imóvel trancado e com fechaduras e chaves, além de descreverem as condições de moradia e trabalho em comum, compartilhada entre diversos trabalhadores e seus familiares, inclusive com a presença de filhos pequenos (fls. 280 e seguintes e fls. 314 e seguintes). Visando trazer mais elementos aos autos, foi requerida a este E. Juízo a QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO de todos os envolvidos, cujos extratos e análises, trazidos pelo sistema SIMBA-PGR, juntados aos autos com a presente denúncia, confirmaram que a empresa de ALDEMIR trabalhava de forma praticamente exclusiva para os demais denunciados. De fato, o extrato consolidado da conta de ALDEMIR, mantida junto ao Itaú Unibanco, conta-corrente nº 165922, agência nº 5591, revelou que mais da metade de sua renda identificada é proveniente de depósitos realizados pela empresa Confecções Anchor LTDA. Assim, do total de R$ 505.356,00 (quinhentos e cinco mil, trezentos e cinquenta e seis reais) de renda identificada, a quantia de R$ 397.975,99 (trezentos e noventa e sete mil, novecentos e setenta e cinco reais e noventa e nove centavos) foi proveniente de depósitos da empresa Confecções Anchor LTDA. Nesse sentido, ALDEMIR disse às autoridades policiais que desde 2015 costurava apenas para a “ANCHOR”, fazendo sempre vestidos e sem contrato formal (fls. 179). Disse que tratava com a funcionária “Cida”, que mandava os cortes das peças para a oficina e depois determinava a retirada, o que era feito pelo motorista “Ney”. Disse, também, que recebia os valores devidos através de comparecimento pessoal na Rua Silvia Teles, tendo afirmado que os donos da confecção nunca estiveram em sua oficina, mas que “Cida” e o motorista “Ney” sim. Disse ter visto os donos da empresa de vista, citando “um senhor e sua filha”. Os extratos detalhados da conta acima citada demonstraram, inclusive, a presença de depósitos realizados pela “ANCHOR” a ALDEMIR a partir de outubro de 2018, data em que as vítimas foram aliciadas e alojada por ele, bem como passaram a trabalhar para a costura das marcas “ANCHOR” e “TOVAR”. Assim, em 26/10/2018, ALDEMIR recebeu R$ 17.130,00 (dezessete mil e cento e trinta reais) da “Confecções ANCHOR”. Os depósitos continuaram nas seguintes datas e valores, até o resgate das vítimas: R$ 27.335,00 (vinte e sete mil, trezentos e trinta e cinco reais) em 03/12/2018; R$ 12.176,50 (doze mil, cento e setenta e seis reais e cinquenta centavos) em 17/12/2018; R$ 15.400,00 (quinze mil e quatrocentos reais) em 01/02/2019; R$ 19.054,00 (dezenove mil e cinquenta e quatro reais) em 01/03/2019; R$ 27.271,50 (vinte e sete mil, duzentos e setenta e um reais e cinquenta centavos) em 12/04/2019; R$ 8.059,00 (oito mil e cinquenta e nove reais) em 03/05/2019; R$ 14.127,00 (quatorze mil, cento e vinte e sete reais) em 31/05/2019, R$ 9.600,00 (nove mil e seiscentos reais) em 18/06/2019; e R$ 10.930,00 (dez mil, novecentos e trinta reais) em 04/07/2019. Ressalte-se que o extrato detalhado em questão demonstra que grande parte dos recursos ingressados em referida conta veio diretamente da “Confecção ANCHOR”, sendo que as demais movimentações variavam entre saques, pagamentos, aplicações e resgates. Ouvida às fls. 258 dos autos, Maria Aparecida de Sousa declarou que trabalha para a “Confecção ANCHOR” há 13 (treze) anos, sendo responsável por selecionar as oficinas de costura, dentre as quais a de ALDEMIR, tendo afirmado que todas são pertencentes a bolivianos, confirmando, portanto, que as empresas ANCHOR e MNJ utilizam apenas serviços fornecidos por estrangeiros. Disse que os proprietários da empresa são NO JOO PARK e JUNG YUL PARK MOON. Às fls. 268, Odirlei Nogueira da Silva disse trabalhar para empresa “ANCHOR” desde 2006, na função de motorista, sendo responsável por entregar os cortes da empresa “ANCHOR” nas oficinas de costura. Disse ter sido contratado por JUNG UYL PARK MOON e confirmou que fazia o transporte de cortes para as oficinas de costura, bem como que buscava as peças costuradas pelas oficinas, dentre as quais as de ALDEMIR. Saliente-se que os denunciados JUNG YUL PARK MOON e NO JOON PARK não foram ouvidos durante as investigações policiais por não compreenderem o idioma português, mas ambos estavam presentes quando suas filhas, as rés JI YA PARK e JIMMY PARK, prestaram depoimento na Polícia Federal (fls. 188). Em síntese, ambas disseram que são sócias da empresa MNJ Confecções LTDA mas que não fazem parte do contrato social da “ANCHOR”. Porém, relataram que JIMMY é responsável pela administração da “MNJ” e também da “ANCHOR”, sendo que JI é a estilista das duas empresas. Afirmaram que os pais, JUNG e NO, não são sócios da “MNJ”, apenas da “ANCHOR”. Disseram que a contratação da oficina se deu pela funcionária “Cida”, dizendo não saberem de detalhes da oficina de ALDEMIR, buscando, assim, isentarem-se de responsabilidades (fls. 230/231). Todavia, há elementos nos autos que demonstram que os 04 (quatro) denunciados sócios das empresas envolvidas agiram de forma dolosa, consciente e premeditada, explorando a mão de obra de pessoas estrangeiras submetidas a condições de trabalho análogas às da escravidão, conforme Autos de Infração lavrados pelo Ministério do Trabalho e conforme extratos bancários que confirmaram que a oficina de ALDEMIR era custeada quase que integralmente pelas empresas “MNJ” e “ ANCHOR”. Vale frisar que, não obstante tenham sido identificados depósitos a favor de ALDEMIR apenas a partir de conta bancária da empresa “ANCHOR”, restou demonstrado que ambas eram, de fato, um mesmo grupo econômico, administrado por grupo familiar constituído pelos demais denunciados. Nesse sentido, o extrato consolidado depositantes-beneficiários das empresas investigadas revelara que a empresa “MNJ CONFECÇÕES LTDA”, que tinha como representantes JI YAE PARK e JIMMY PARK, remeteu para a “Confecção ANCHOR”, por conta mantida junto ao Banco Bradesco (conta-corrente nº 124958, agência nº 114), no período compreendido entre janeiro de 2017 a setembro de 2019, o valor de R$ 1.635.000,00 (um milhão, seiscentos e trinta e cinco mil reais). De tal forma, grande parte do valor pago à confecção de ALDEMIR por conta da empresa “ANCHOR” era proveniente também de contas da empresa “MNJ”, que detinha a marca TOVA, também empregada nas roupas costuradas na oficina em questão. Ressalte-se, ainda, que os extratos das empresas “ANCHOR” e “MNJ” revelaram grande movimentação financeira, demonstrando tratarem-se de empresas de grande poderio econômico, gerenciando e coordenando a produção de peças de vestuário sob padrões e preços por elas ditados e conduzidos, utilizando-se dolosamente da mão de obra de trabalhadores estrangeiros ilegais e vulneráveis, para, depois, distribuir as peças produzidas em lojas de vestuário, gozando de ilícita vantagem de preço em relação a outras empresas do setor. Vantagem essa, vale frisar, advinda da dolosa exploração de mão de obra estrangeira em condições análogas às da escravidão, conforme bem relatado no relatório apresentado pelo Ministério do Trabalho, presente às fls. 276 e seguintes dos autos. Outrossim, os proveitos pessoais obtidos pelos denunciados através das empresas das quais são sócios restaram igualmente demonstrados. Nesse sentido: – JI YAE PARK, por sua conta mantida junto ao Banco Bradesco, c/c nº 26824, recebeu o valo total de R$ 115.000,00 da Confecções ANCHOR, bem como R$ 368.874,20 da empresa MNJ Confecções, no período compreendido entre janeiro de 2017 a setembro de 2019. – JIMMY PARK, no mesmo período, por sua conta mantida junto ao Banco Bradesco, c/c nº 5061652, recebeu R$ 245.600,00 da Confecções ANCHOR e R$ 488.300,69 da MNJ Confecções. Em sua conta mantida junto ao Banco Itaú, c/c nº 177733, recebeu R$ 95.000,00 da Confecções ANCHOR. – JUNG YUL PARK MOON, no mesmo período, por sua conta mantida junto ao Banco Bradesco, c/c nº 1373129, recebeu R$ 105.000,00 da Confecções ANCHOR. - NO JOON PARK, no mesmo período, por sua conta mantida junto ao Banco Bradesco, c/c nº 566, recebeu R$ 245.000,00 da Confecções ANCHOR e R$ 65.000,00 da MNJ Confecções LTDA. Importante ressaltar que o Termo de Ajustamento de Conduta celebrado pelo Ministério Público Federal contou com as participações de JIMMY PARK, representando a empresa MNJ Confecções, e de NO JOON PARK, representando a empresa Confecções ANCHOR LTDA (fls. 93). Assim, por todo o exposto resta demonstrado que os denunciados NO, JUNG, JIMMY e JI tratam-se de pais e filhas previamente organizados e ajustados para a contratação de oficinas de pessoas estrangeiras sabidamente em trabalho ilegal, em condições de vida e trabalho degradantes, com a liberdade cerceada, exploradas em jornadas exaustivas e pagamentos irrisórios, sem a garantia de quaisquer direitos trabalhistas assegurados pela legislação brasileira, sendo essa, justamente, a razão pela qual optaram por contratar a oficina de ALDEMIR, devendo, assim, responder como grandes beneficiários do crime de exploração de redução de pessoas a condições análogas às da escravidão, tendo agido, no mínimo, em dolo eventual. Por fim, eventual alegação de desconhecimento das ilicitudes referentes ao trabalho das vítimas não haverá como ser aceita, visto ser fato notório e bastante divulgado por toda a imprensa, já há muitos anos, que imigrantes estrangeiros ilegais trabalham em oficinas de costura clandestina em situação de risco e exploração criminosa, fato que não há como ser ignorado pelos denunciados, já há muitos anos atuando no mercado de vestuário. VI –DO PEDIDO Diante de todo o exposto, o Ministério Público Federal requer a CONDENAÇÃO de ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA, NO JOON PARK, JUNG YUL PARK MOON, JI YA PARK e JIMMY PARK pela prática do crime previsto no artigo 149, caput, § 1º, inciso II e §2º, inciso I do Código Penal. Além disso, requer a condenação de ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA pela prática, em cumulação material, do crime previsto no artigo 149-A, incisos II e III do Código Penal, bem como pela prática, por duas vezes, do crime previsto no artigo 304, combinado com o artigo 297, ambos do Código Penal.” A denúncia foi recebida 01/05/2020 (ID 267291125). Após regular instrução, sobreveio sentença, da lavra da MMa. Juíza Federal ANDREIA SILVA SARNEY COSTA MORUZZI e publicada em 10/02/2022 (Id. 267292149), que julgou PARCIALMENTE PROCEDENTE a pretensão punitiva estatal descrita na denúncia para: a) ABSOLVER os réus NO JOON PARK, JUNG YUL PARK MOON e JI YAE PARK das sanções do artigo 149, caput, §1º, inciso II e §2º, inciso I do Código Penal, com esteio no artigo 386, inciso V, do Código de Processo Penal, e ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA, das sanções do crime previsto no artigo 304, combinado com o artigo 297, ambos do Código Penal, com fundamento no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal; b) CONDENAR a ré JIMMY PARK nas sanções do artigo 149, caput e § 2º, inciso I, do Código Penal, à pena de 03 (três) anos de reclusão, em regime inicial aberto, e ao pagamento de 15 (quinze) dias-multa, cada um no valor de 1/30 do salário mínimo vigente à época do fato, substituída a pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária em montante equivalente a 20 (vinte) salários mínimos; c) CONDENAR o réu ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA nas sanções do artigo 149, caput e § 2º, inciso I, do Código Penal, à pena de 03 (três) anos de reclusão e ao pagamento de 15 (quinze) dias-multa, e nas sanções do artigo 149-A, incisos II e III, do Código Penal, à pena de 04 (quatro) anos de reclusão e ao pagamento de 10 (dez) dias-multa, totalizando a pena de 07 (sete) anos de reclusão, a ser cumprida em regime inicial semiaberto, e ao pagamento de 25 (vinte e cinco) dias-multa, cada um no valor de 1/30 do salário mínimo vigente à época do fato. A sentença transitou em julgado para a acusação em 22 de fevereiro de 2022, e para os corréus NO JOON PARK, JUNG YUL PARK MOON e JI YAE PARK, em 25 de fevereiro de 2022, conforme certificado no id 267292218. Apela o réu ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA, representado pela Defensoria Pública da União, em que pede a reforma da r. sentença, para que seja absolvido dos delitos previstos no art. 149, §2º, inciso I e no art. 149-A, II e III, todos do CP, pelos seguintes argumentos (ID 267292222): a) não há provas da materialidade em relação ao delito previsto no art. 149 do CP; b) é compreensível que os trabalhadores, visando produzir mais e receber uma maior remuneração, algumas vezes excediam a carga horária que a legislação trabalhista impõe; c) não há provas de que tenha havido jornadas exaustivas ou condições degradantes de trabalho ou moradia; d) não há provas da materialidade e autoria delitiva em relação ao delito previsto no art. 149-A do CP; e) ausência de prova do dolo específico na conduta prevista no art. 149-A do CP. Apela a ré JIMMY PARK, alegando em suas razões de apelação (ID 267717649) a) preliminarmente, inépcia da denúncia, ao argumento de que o MPF ofereceu denúncia baseada, exclusivamente, na notícia crime apresentada pelo Consulado do Peru e nas provas apuradas cautelarmente, bem como, que as vítimas do delito (ELIANA e PERCY) só identificaram como autor do delito ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA, nada mencionando em relação a JIMMY; b) a recorrente foi condenada por crimes que não cometeu; c) os atos praticados por ALDEMIR CAPAJANA não eram de conhecimento da apelante (JIMMY); d) nunca chegou ao conhecimento de JIMMY qualquer relato sobre anormalidades na oficina de costura; e) ALDEMIR CAPAJANA afirmava que todos os trabalhadores estavam em situação regular; f) o tomador de serviço da empresa terceirizada não pode ser responsabilizado por fatos e atos criminosos praticados por terceiros; g) não há provas de jornadas exaustivas ou restrições do direito de ir e vir; h) pede o reconhecimento da atenuante do art. 65, III, “b” do CP e afastamento da causa de aumento do § 2º, I, do art. 149 do CP. Contrarrazões do Ministério Público Federal pelo desprovimento do recurso da defesa (Id. 267292286). O Ministério Público Federal, em parecer da lavra da Procuradora Regional da República, Dra. Cristina Marelim Vianna, opinou pelo desprovimento dos recursos defensivos (Id. 271258645). É o relatório. Ao MM. Revisor. PODER JUDICIÁRIO Tribunal Regional Federal da 3ª Região 11ª Turma APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 5001243-86.2019.4.03.6181 RELATOR: Gab. 44 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA APELANTE: ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA, JIMMY PARK Advogados do(a) APELANTE: SAE KYUN LEE - SP129154-A, YONG JUN CHOI - SP142873-A APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP OUTROS PARTICIPANTES: V O T O O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL HÉLIO NOGUEIRA (Relator): Ratifico o relatório. ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLLA foi condenado pela prática do crime do art. 149, caput e §2º, inciso I, do Código Penal, porque, no período de outubro de 2018 a julho de 2019, em oficina de costura situada na Rua Balbina Hares, nº 26, Jardim de Lourenço, nesta Capital, reduziu os adolescentes de origem peruana, Percy Jhohan Aliaga e Eliana Jasmina Quispe Vilassante, a condições análogas à de escravo, submetendo-os a jornadas exaustivas de trabalho, sujeitando-os a condições degradantes de vida e trabalho, bem como restringindo a sua locomoção em razão da falta de pagamento de salários, servidão por dívidas e falta de documentação regular. ALDEMIR CAPAJANA também foi condenado nas penas do art. 149-A, incisos II e III, do Código Penal, porque agenciou, aliciou e alojou as vítimas estrangeiras acima referenciadas, mediante fraude, com a finalidade de submetê-las a trabalho em condições análogas às de escravo, bem como à servidão, aproveitando-se da dependência econômica a que eram submetidas. JIMMY PARK foi condenada pela prática do crime do art. 149, caput e §2º, inciso I, do Código Penal porque, na condição de responsável pela gerência financeira e administrativa das empresas Confecções ANCHOR LTDA (marca “ANCHOR”) e MNJ Confecções LTDA (marca “TOVA”), teria, de forma dolosa, consciente e premeditada, explorado a mão de obra de pessoas estrangeiras submetidas a condições de trabalho análogas às da escravidão, mediante a contratação de oficinas de pessoas estrangeiras sabidamente em trabalho ilegal, em condições de vida e trabalho degradantes, com a liberdade cerceada, exploradas em jornadas exaustivas e pagamentos irrisórios, sem a garantia de quaisquer direitos trabalhistas assegurados pela legislação brasileira, sendo essa, justamente, a razão pela qual optaram por contratar a oficina de ALDEMIR, gozando de ilícita vantagem de preço em relação a outras empresas do setor. Da inépcia da denúncia Sustenta e defesa de JIMMY a inépcia da denúncia, ao argumento de que o MPF ofereceu denúncia baseada, exclusivamente, na notícia crime apresentada pelo Consulado do Peru e nas provas apuradas cautelarmente, bem como, que as vítimas do delito (ELIANA e PERCY) só identificaram como autor do delito ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA, nada mencionando em relação a JIMMY. Rejeito a preliminar. A jurisprudência já pacificou entendimento no sentido do descabimento da alegação de inépcia da denúncia após a prolação da sentença condenatória, em razão da preclusão da matéria. Nesse sentido: PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS. NEGATIVA DE AUTORIA. PRETENSÃO QUE NÃO SE COADUNA COM A VIA ESTREITA DO HABEAS CORPUS. ROL DE TESTEMUNHAS. QUESTÃO DEVIDAMENTE EQUACIONADA NAS INSTÂNCIAS INFERIORES. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO NO MOMENTO OPORTUNO. SUPOSTA INÉPCIA DA INICIAL. PRECLUSÃO DA ARGUIÇÃO QUANDO SUSCITADA APÓS A PROLAÇÃO DE SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DE PLANO DE ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER PRIMA FACIE EVIDENTE QUANDO DO OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. MATÉRIA NÃO CONHECIDA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. "A arguição de inépcia da denúncia resta coberta pela preclusão quando aventada após a sentença penal condenatória, o que somente não ocorre quando a sentença vem a ser proferida na pendência de habeas corpus já em curso" (RHC 98.091/PB, Rel. Min. Cármen Lúcia). (...) (HC 111363, LUIZ FUX, STF.) EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA OS COSTUMES. ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA DENÚNCIA. PRECLUSÃO. SENTENÇA CONDENATÓRIA. INTIMAÇÃO POR EDITAL. VALIDADE. REEXAME DE PROVAS. INVIABILIDADE. ORDEM DENEGADA. (...) III - inépcia da denúncia alegada somente após a prolação da sentença condenatória. Preclusão. Precedentes. (...) V - Ordem denegada. (HC 95701, RICARDO LEWANDOWSKI, STF.) Complementando, ainda que se entendesse que a arguição de nulidade fosse da própria sentença condenatória, tenho que, nas circunstâncias dos autos, não mereceria acolhimento. Os fatos descritos na denúncia evidenciam a ocorrência de fato típico, qual seja, a prática do crime de redução a condição análoga à de escravo, e a acusação encontra suporte probatório nos elementos coligidos aos autos, especialmente no inquérito policial que instruiu a peça inicial. Destarte, a exordial descreveu a conduta imputada à apelante JIMMY, de ter explorado a mão de obra de pessoas estrangeiras submetidas a condições de trabalho análogas às da escravidão, mediante a contratação de oficinas de pessoas estrangeiras sabidamente em trabalho ilegal, em condições de vida e trabalho degradantes, com a liberdade cerceada, exploradas em jornadas exaustivas e pagamentos irrisórios, sem a garantia de quaisquer direitos trabalhistas assegurados pela legislação brasileira. Como se vê, a denúncia contém exposição clara e objetiva dos fatos ditos delituosos, com narração de todos os elementos essenciais e circunstanciais que lhes são inerentes, atendendo aos requisitos descritos no artigo 41 do Código de Processo Penal, bem como permitindo ao réu o exercício pleno do direito de defesa assegurado pela Constituição Federal. Caso contrário, a ação penal não teria transcorrido sem que, em algum momento, fossem aventadas pela Defesa dificuldades de identificação da conduta praticada pela acusada, eis que esta foi capaz de defender-se. Desta feita, não entrevejo inépcia da peça acusatória, que está apta a deflagrar ação penal em desfavor da increpada. Superada a preliminar suscitada, procedo ao exame do mérito. Do crime previsto no art. 149 do Código Penal O Brasil é signatário de diversos tratados internacionais que versam, especificamente, sobre o compromisso de adoção de medidas orientadas à abolição imediata e completa do trabalho forçado ou obrigatório, tais como a Convenção das Nações Unidas sobre Escravatura de 1926 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura de 1956; a Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); e a Convenção nº 105 da OIT (Convenção Relativa à Abolição do Trabalho Forçado), as quais impõem o dever de implantação de medidas eficazes visando à repressão e à prevenção do trabalho escravo e práticas similares. Ademais, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já se pronunciou no sentido de que o Estado brasileiro, ao não coibir adequadamente as formas de trabalho escravo contemporâneas e ao promover uma proteção deficiente dos direitos violados por tais práticas ilícitas, incorre em violação aos artigos 6.1 (proibição a escravidão ou a servidão e ao tráfico de pessoas), 8.1 (direito às garantias judiciais) e 25 (direito à proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conforme consignado no julgamento do “Caso dos Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde”, de forma que a promoção dos meios necessários à adequada proteção dos bens jurídicos tutelados pela norma do art. 149 do Código Penal constitui, também, medida de prevenção à responsabilidade internacional do Estado. Neste ponto, é relevante notar que o bem jurídico tutelado pela referida norma penal transcende a liberdade individual, abrangendo também a dignidade da pessoa humana, o direito de autodeterminação e o sistema de organização do trabalho. No caso, consta dos autos que o réu ALDEMIR CAPAJANA, na condição de proprietário de oficina de costura, situada na Rua Balbina Hares, nº 26, Jardim de Lourenço, São Paulo/SP, e a ré JIMMY PARK, representante financeira e administrativa das empresas CONFECÇÕES ANCHOR LTDA. (“ANCHOR”) e MNJ CONFECÇÕES LTDA. (“MNJ”), entre o período de outubro de 2018 a julho de 2019, previamente ajustados e agindo em comunhão de esforços e unidade de desígnios, reduziram dois trabalhadores adolescentes de origem peruana a condição análoga à de escravos, mediante submissão a jornadas de trabalho exaustivas e sujeição a condições degradantes de trabalho e de moradia, e restringindo a sua liberdade em razão da falta de pagamento de salários, servidão por dívidas e falta de documentação regular. Em 19/07/2019, foi realizada missão policial pela Polícia Federal na oficina de costura de ALDEMIR, na Rua Balbina Hares, 26, Sao Paulo/SP, sendo constatado que os funcionários estrangeiros trabalhavam e moravam no local. O registro fotográfico realizado durante a diligência policial mostra as instalações precárias, com fios espalhados na sala em que os costureiros trabalhavam e lixo espalhado pelo chão (ID 267291087, p. 17/39). Após, no período de 18 a 29 de agosto de 2019, os auditores-fiscais do trabalho apuraram que as vítimas foram alojadas na oficina de costura de ALDEMIR, situada na Rua Balbina Hares, nº 26, Jardim de Lourenço, São Paulo/SP, onde passaram a trabalhar em jornadas exaustivas, condições degradantes e em restrição de locomoção mediante retenção de salários, servidão por dívidas e falta de documentação regular. O trabalho consistia em costurar peças de roupa das marcas Anchor e Tova, que eram administradas pela acusada JIMMY. Restou apurado que, quando Percy e Eliana pretenderam deixar a oficina, ALDEMIR CAPAJANA lhes cobrou uma dívida de R$ 1.400,00 (um mil e quatrocentos reais) referente às despesas de viagem. A autoria e a materialidade de tais práticas delitivas descritas na exordial acusatória restaram devidamente reconhecidas pela sentença recorrida, estando comprovadas nos autos pelo Relatório de Fiscalização e Erradicação do Trabalho Escravo, elaborado pelos Auditores-Fiscais do Trabalho da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (id 267291099 a 267291113), pelos depoimentos prestados em Juízo pelas vítimas ELIANA e PERCY (mídia id 267291407 e267291408) e pelos depoimentos das testemunhas Luís Alexandre Faria e Carlos Ortiz. Consoante relatório de auditoria de condições análogas às de escravo, tráfico internacional de pessoas e frustração de direito assegurado em lei trabalhista, realizada na oficina de costura improvisada na residência de ALDEMIR, situada à R. Balbina Hares, 26 - Jardim São Lorenzo - São Paulo- SP – CEP 03715-090 pela equipe de Auditores-Fiscais do Trabalho do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo, da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo, foram constatadas diversas e graves violações de direitos fundamentais no trabalho dos onze trabalhadores ali encontrados, todos imigrantes das nacionalidades boliviana e peruana, que trabalhavam como costureiros, produzindo com exclusividade e dependência econômica peças de vestuário das marcas Anchor e Tova, de propriedade de CONFECÇÕES ANCHOR LTDA. e MNJ CONFECÇÕES LTDA., em ambientes degradantes de trabalho e alojamento. Os auditores do trabalho apuraram que “Dos 11 (onze) trabalhadores encontrados no local, nenhum era registrado em Livro de Registro de Empregados; além da ausência do referido registro, não lhes eram garantidos nem mesmo os direitos trabalhistas mínimos correspondentes ao contrato de trabalho, como o piso salarial da categoria, o respeito ao limite legal das jornadas de trabalho, o recolhimento de FGTS e INSS, além de condições seguras e saudáveis de trabalho e alojamento, dentre outras questões que serão adiante detalhados. (...) Também no local de trabalho, foram apreendidos cadernos informais de anotação de produção, elaborados pelo Sr. Aldemir, confirmando o trabalho do adolescente Percy Jhohan Yucra Aliaga, durante o período declarado” (id 267291100, p. 9 e 12). O Relatório de Fiscalização do Ministério do Trabalho, elaborado pela Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, apresentou as seguintes conclusões acerca das condições verificadas no local de trabalho e no alojamento dos empregados contratados pelos réus (ID 267291108, p. 16/18): “XII. CONCLUSÕES 1 – A situação constatada in loco na oficina de costura inspecionada localizada na R. Balbina Hares, 26 - Jardim São Lorenzo - São Paulo- SP - CEP 03715-090, configura trabalho análogo ao de escravo, conforme preceituado no artigo 149 do Código Penal Brasileiro e da Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho – OIT ratificada pelo Decreto Legislativo nº 41.721/1957, indicando os procedimentos prescritos no art. 2-C, da Lei 7.998, de 11 de Janeiro de 1990 e na Instrução Normativa SIT/MTE n. 139 de 22/01/2018, em virtude das condições degradantes do meio ambiente de trabalho e de moradia, além da jornada de trabalho exaustiva e servidão por dívida, além da frustração de direito trabalhista previsto em lei, nos termos do art. 203, do Código Penal Brasileiro; 2 - A oficina inspecionada é apenas uma das várias oficinas inidôneas contratadas pela CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. para executar integralmente a atividade de costura – essencial ao desenvolvimento do seu negócio - das peças de roupas produzidas com sua marca. Constatou-se que a oficina de costura efetivamente prestou serviços de costura para a CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. Importante ressaltar a falta de idoneidade econômico-financeira da oficina de costura, que não possui capacidade econômica que possam justificar a viabilidade empresarial da mesma; 3 - A terceirização das atividades de costura contratadas pela CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA., principalmente de trabalhadores de nacionalidade boliviana e peruana, ocorreu mediante a utilização fraudulenta de operações de “fornecimento” “industrialização por conta de terceiros”, visando a ocultar a subordinação estrutural-reticular ensejadora do vínculo empregatício com os costureiros que assim têm seus direitos trabalhistas frustrados, acarretando ainda a sonegação do FGTS e do INSS; 4 - Conforme demonstrado, os 13 (treze) trabalhadores prejudicados, vinculados à oficina de costura inspecionada, são empregados da empresa CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. De acordo com o relatado, a autuada utilizou-se de intermediação ilícita de mão-de-obra, para alocar trabalhadores em atividades permanentes e essenciais ao seu funcionamento, de forma contínua, com pessoalidade e subordinação. Afastada a licitude da "terceirização", por aplicação dos artigos 2°.,3° e 9° da CLT; 5 - O baixo valor pago pela CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA ., que é repassado à oficina de costura do Sr. ALDEMIR CAPAJAÑA, que por sua vez repassa para os costureiros, após os descontos a que entende fazerem jus, é causa direta para a perpetuação das condições degradantes e análogas às de escravo a que estão submetidos os trabalhadores ocupados nessas oficinas, notadamente os de nacionalidade boliviana e peruana; 6. Por restar caracterizado que, no local inspecionado (oficina), existia o alojamento e acolhimento de trabalhadores, e que, recorrendo-se à sua condição de vulnerabilidade, explorava-se a sua força de trabalho em condições que são similares à escravatura, conclui-se pela ocorrência de tráfico de pessoas para fins de exploração de trabalho em condição análoga à de escravo, conforme definido no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, promulgado por meio do Decreto nº 5.017, de 12 de Março de 2004, no artigo 149-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e nos termos do Parágrafo Único do art. 5º. da Instrução Normativa Nº 139, de 22 de Janeiro de 2018 da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego. Concluímos o presente relatório constatando a ocorrência de trabalho análogo ao de escravo, sob responsabilidade e em benefício das empresas CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA., nos termos exatos do presente relatório.” Da análise do exposto, é possível verificar que as constatações assinaladas pelos agentes responsáveis pelas diligências fiscalizatórias realizadas no local dos fatos evidenciam a existência de condições atentatórias à dignidade humana dos trabalhadores contratados pelos réus. Sustenta a defesa a ausência de comprovação das jornadas exaustivas. Alega que os depoimentos produzidos sob o crivo do contraditório das testemunhas que trabalharam na oficina de costura, Maria Elizabeth Miranda Choque e Noé Sales Cerezo Peralta, do informante Robotnin Huanca Chambi, bem como conforme o interrogatório de ALDEMIR, a jornada de trabalho se dava das 7h às 18h, com intervalo para o café da manhã que durava cerca de 15 (quinze) minutos e 01 (uma) hora para o almoço, além da jornada de trabalho aos sábados ir até as 12h. Destaca que a vítima Eliana não informou em seu depoimento qual o horário encerrava seu trabalho, mas apenas quando iniciava e que tinha pausa para o café e horário de almoço, e que as respostas de Eliana e de Percy acerca do horário em que encerravam a jornada de trabalho e também do tempo destinado para o almoço são divergentes. Sustenta que não houve a imposição por ALDEMIR de trabalho em jornadas exaustivas por parte das vítimas, e que os próprios trabalhadores, visando produzir mais e receber uma maior remuneração, algumas vezes excediam a carga horária que a legislação trabalhista impõe. Não assiste razão à defesa. A jornada de trabalho excessiva restou devidamente comprovada nos autos. De início, destaco o Relatório de Fiscalização do Ministério do Trabalho, em que os auditores fiscais do trabalho constataram a prática da jornada de trabalho excessiva por parte dos estrangeiros na oficina de costura de Aldemir, bem como a mudança da narrativa dos trabalhadores após a fiscalização, apresentando temor (id 267291105, p. 2/3): “Verificamos, por meio de entrevistas tomadas espontaneamente, no exato momento da inspeção, que eles trabalhavam, de segunda a sexta-feira, das 7h00h às 12h00, com uma hora de almoço, e das 13h00 às 22h00. Aos sábados, trabalhavam das 7h00h às 12h00, eventualmente, também no período da tarde. As anotações de produção corroboram com o declarado, pelo volume e intensidade produtiva. De se salientar que a jornada acima declarada foi expressa em uníssono na primeira abordagem da inspeção, realizada em 19/07/2019. Num segundo contato dos trabalhadores com os Auditores, por ocasião de sua ida à sede da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo para a realização dos procedimentos atinentes ao resgate, aparentavam bastante temor, já não mais mantiveram a mesma desenvoltura em narrar os fatos, descrevendo de forma sintética, distinta e em uníssono que as condições de trabalho eram conforme a legislação nacional. Esta situação foi sopesada pela equipe de Auditores-Fiscais do Trabalho para formar a convicção de que, a despeito dos relatos tomados nesse segundo momento, a jornada real a que eram submetidos era aquela mais elastecida, afirmada na primeira abordagem. Conjugada aos depoimentos e entrevistas feitas com os trabalhadores, que apontam fadiga, estresse, exaustão, dores nas costas, coluna, olhos e juntas, ao final da jornada, dificuldade para dormir e despertar, e sono intranquilo, conclui-se pela ocorrência de jornada exaustiva. Por privar o ser humano do exercício de direitos fundamentais, como o de exercer o lazer, o convívio social e familiar, o de acompanhamento do crescimento e educação dos filhos, do descanso suficiente e adequado, entre outros, é de se reconhecer que jornadas habituais e constantes que extrapolem o máximo extraordinariamente permitido por lei, de 10 horas diárias (no caso vertente, cerca de 14 horas de jornada) ofendem e degradam a condição humana. A jornada exaustiva imposta a estes trabalhadores imigrantes de origem peruana e boliviana está diretamente relacionada ao baixo valor pago pela CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. para cada peça costurada, valor esse repassado para a oficina de costura gerenciada pelo Sr. ALDEMIR CAPAJAÑA HUACHALLA, e que, por sua vez, é repassada aos trabalhadores, após ser efetuada retenção de cerca de 66% (sessenta e seis por cento) do valor pago por cada peça, a título de aluguel, alimentação, água, luz e demais despesas, além do lucro do oficinista, todas cobradas dos trabalhadores, segundo declarações tanto do oficinista quanto dos trabalhadores, prestadas espontaneamente no momento da inspeção no local de trabalho. Apenas com muitas horas de trabalho os trabalhadores imigrantes conseguiriam gerar renda suficiente para garantir as despesas com alimentação e moradia providas pelo gerente da oficina, além da almejada sobra que, remetida à Bolívia e ao Perú e convertida em moeda local, poderia minimamente prover à subsistência de uma família inteira. Esta jornada, agravada pelo ritmo intenso e concentração exigidos no trabalho de confecção de peças de vestuário, e tendo ainda em vista a remuneração por produção, leva os trabalhadores ao esgotamento físico e mental. A par disso, a remuneração era paga aos trabalhadores de maneira irregular, sendo quitada pelo oficinista apenas quando este recebia pelos cortes entregues, o que podia demorar até um mês após a entrega da produção. Enquanto isso, de acordo com suas necessidades, os trabalhadores recorriam a “vales” feitos com o oficinista, meticulosamente anotados e descontados de seus ganhos. Os depoimentos prestados inicialmente pelos trabalhadores aos auditores fiscais coincidem com o depoimento de PERCY na fase judicial, no sentido de que trabalhava das 7h da manhã até as 22h30 da noite (mídia id 267291408, 08:50 e 09:30), que faziam duas pausas de 15 minutos para o café (uma as 8h30 e outra as 17h00), uma pausa de 1 hora para o almoço, sendo o jantar após as 22h30. Disse ainda que aos sábados trabalhava até meio-dia, as vezes até a uma ou duas horas da tarde (mídia id 267291408, 22h45). No mesmo sentido, foi o depoimento da vítima ELIANA, de que trabalhava desde às 7 da manhã, que tinha 15 (quinze) minutos para o café da manhã, 01 (uma) hora para almoço e quando terminava o jantar (mídia id 267291407, 05:30), e que aos sábados trabalhava até ao meio-dia (mídia id 267291407, 09:30). Sustenta ainda a defesa a inexistência de condições degradantes de trabalho. Argumenta que, apesar das condições de trabalho não serem ideais, extrai-se dos autos que elas tampouco eram degradantes, a ponto de justificar a manutenção de um decreto condenatório; que a oficina de costura funcionava dentro da residência de ALDEMIR (que era também a residência de outros estrangeiros), que retrata a maioria das casas do Brasil que têm, por vezes, instalações elétricas improvisadas, vasos sanitários sem tampa, botijão de gás dentro da cozinha; que nenhuma das testemunhas ouvidas em Juízo reclamou das condições do trabalho na oficina. Aduz que até mesmo Percy e Eliana somente reclamaram da alimentação fornecida, admitindo que a qualidade da comida caiu devido à mudança da cozinheira e, mesmo insatisfeitos, reconheceram que havia alguém para cuidar do seu preparo e era fornecida diariamente sem custo adicional. Consoante Relatório de Fiscalização do Ministério do Trabalho, elaborado pela Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, a oficina de costura de ALDEMIR apresentava condições degradantes de trabalho, em desrespeito às normas de saúde e segurança do trabalho (id 267291100 p. 21, id 267291101): “A) CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO – DESRESPEITO GENERALIZADO ÀS NORMAS DE SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO NA OFICINA UTILIZADA PELA CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. A oficina de costura utilizada pelas empresas CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA para confecção de seus produtos, encontra-se na R. Balbina Hares, 26 - Jardim São Lorenzo - São Paulo- SP - CEP 03715-090. Nesta oficina de costura inspecionada, é possível afirmar que as condições de segurança e saúde são inexistentes, tanto nos locais de trabalho, como nos locais de moradia. Importante ressaltar que ambos, moradia e local de trabalho, encontram-se no mesmo endereço e na mesma construção, e se confundem. Os trabalhadores laboravam em total desrespeito às normas trabalhistas e de saúde e segurança do trabalho. Estavam submetidos a uma jornada de cerca de 14 (catorze) horas de trabalho diários, o que traz reflexos prejudiciais à sua segurança e à sua saúde. O excesso de trabalho diário faz com que, inclusive, os trabalhadores fiquem mais suscetíveis a acidentes de trabalho, em razão do cansaço físico e da completa exaustão a que são submetidos, configurando uma jornada exaustiva, nos termos da vedação contida no ordenamento jurídico; além disso, expõem os mesmos trabalhadores a risco de doenças ocupacionais, em razão da jornada extenuante. Agrava-se a situação o fato de que os trabalhadores sequer foram submetidos a exame médico ocupacional, que se trata de um recurso fundamental para a preservação e promoção da saúde do trabalhador. Ademais, na inspeção, foram encontradas várias irregularidades no tocante à segurança e medicina do trabalho. As instalações elétricas não se encontravam em condições seguras de funcionamento, pois eram precárias e improvisadas. Além disso, o portão de entrada era mantido trancado e não havia rotas de saída ou de fuga, para casos de incêndio, muito comuns nessa atividade econômica. Também não havia Auto de Vistoria emitido pelo Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Soma-se, ainda, que todos os trabalhadores residiam no mesmo local onde trabalhavam. Considerando todos esses fatores, em seu conjunto, elevam exponencionalmente a possibilidade de ocorrência de acidente que ocasione um incêndio de grandes e gravíssimas proporções, fatos preponderante na determinação da interdição dos alojamentos. Em relação aos aspectos ergonômicos e de conforto, salientemos que os assentos utilizados pelos trabalhadores não atendiam aos requisitos mínimos de ergonomia estabelecidos na NR-17. As instalações sanitárias não dispunham de material para limpeza e enxugo das mãos. Também não era disponibilizado papel higiênico. Não havia local adequado para que os trabalhadores fizesssem suas refeições com conforto e higiene. Os botijões de gás encontravam-se estocados dentro do ambiente de moradia e trabalho, implicando risco de explosão e incêndio para as famílias que ali habitavam. As polias das máquinas de costura estavam desprotegidas, implicando risco de escalpelamento, principalmente para as diversas crianças que circulavam pelo ambiente de trabalho. O registro fotográfico realizado durante as diligências, tanto pela autoridade policial quanto pelos auditores do trabalho, deixa claro a insalubridade e insegurança das condições de trabalho a que sujeitava os trabalhadores na oficina de ALDEMIR, com a presença de infiltrações, pessoas trabalhando e residindo juntas em um mesmo ambiente, com a presença de fiação exposta e improvisada para o trabalho de costura, sendo que todos eram ali submetidos a sérios riscos de acidentes, inclusive de incêndio (id 267291087, p. 21/29, id 267291102, 267291103, 267291104). As condições de higiene eram precárias, com banheiro contendo vaso sanitário sem tampa, não havendo lixeira nem papel higiênico no local (id 267291104, p. 2) e, ainda, a presença de botijões de gás em ambiente fechado, com claro risco de explosão (id 267291105). Como explicitado na sentença: “(...) as instalações sanitárias não dispunham de material para limpeza, enxugo das mãos e papel higiênico; não havia local adequado para que os trabalhadores fizessem suas refeições com conforto e higiene, sendo que os botijões de gás se encontravam estocados dentro do ambiente fechado de moradia e trabalho, implicando risco de explosão e incêndio para todos; as polias das máquinas de costura estavam desprotegidas, implicando risco de escalpelamento, principalmente para as crianças que circulavam pelo ambiente de trabalho; as instalações elétricas eram precárias e improvisadas e não se encontravam em condições seguras de funcionamento; o portão de entrada era mantido trancado e não havia rotas de saída ou de fuga para casos de incêndio, muito comuns nessa atividade econômica. Registre-se ainda o valor irrisório que PERCY e ELIANA receberam pelo trabalho prestado. Em juízo, em Juízo, PERCY narrou que ALDEMIR lhe havia prometido um quarto individual, o que não ocorreu, já que dormiam com outras pessoas e, no início, em uma única cama para uma pessoa. Trabalhavam das 07h00min da manhã até as 22h30min, com apenas 02 (duas) pausas curtas para o café e uma pausa para o almoço. Aos sábados, trabalhavam até 12h30min. Disse que a comida era de qualidade ruim, sendo que as vítimas reclamavam, mas nada adiantava. A promessa de pagamento entre R$ 4,00 (quatro reais) e R$ 5,00 (cinco reais) por peça não se concretizou, sendo que receberam R$ 6.000,00 (seis mil reais) no total pelo trabalho realizado entre outubro de 2018 e junho de 2019. PERCY acrescentou que, aos finais de semana, não saíam do imóvel porque não tinham documentos regulares. Em certo momento, resolveram que queriam ir embora, diante do não pagamento prometido e condições ruins ofertadas, mas ALDEMIR chegou a trancar a residência para que não saíssem sem pagar uma suposta dívida de R$ 1.400,00 (um mil e quatrocentos reais), bem como, ainda, reteve os pertencentes dos jovens. Então, a vítima PERCY acabou pagando R$ 1.000,00 (mil reais) ao ALEDMIR, sendo que este lhe disse que, enquanto não pagasse os R$ 400,00 (quatrocentos reais) restantes, não deixaria que retirassem suas coisas. PERCY pediu, então, ajuda a um amigo, o qual, por sua vez, pediu ajuda à sua patroa, que concordou em ajudá-los, mas por pouco tempo, pois eram menores de idade. PERCY retornou, então, à oficina de ALDEMIR em momento em que este estava em seu quarto, quando conseguiu retirar seus pertences. PERCY relatou que recebia por peça, mas em valor bem inferior ao prometido, entre R$ 1,00 (um real) a R$ 1,25 (um real e vinte e cinco centavos) por peça costurada. ELIANA, por sua vez, trabalhava mesmo estando grávida, sendo que o bebê nasceu quando já tinham deixado a oficina de ALDEMIR. Ressaltou ter dito a ALDEMIR que era menor de idade, mas este lhe disse que providenciaria documentos para que pudessem viajar. Em juízo, a ELIANA relatou que dormia com PERCY em um quarto com ALDEMIR e seu filho, em 04 (quatro) pessoas. Disse que chegavam e já iniciavam o trabalho, o que se dava entre as 07h00min e as 22h00min. Relatou que tinham 15 (quinze) minutos para o café da manhã, 01 (uma) hora para almoço e depois o jantar. Afirmou que receberam por peça menos do que o combinado e que não parou de trabalhar quando ficou grávida, sendo que PERCY pedia a ALDEMIR para que ELIANA parasse um pouco o trabalho, mas que ALDEMIR não concordava. Disse que aos sábados trabalhava até as 12h00min e que ficaram na oficina até junho, sendo que PERCY disse a ALDEMIR que iriam embora, mas ALDEMIR disse que tinham uma dívida de R$ 1.400,00 (um mil e quatrocentos reais). Afirmou que PERCY deu a ALDEMIR a quantia de R$ 1.000,00 (mil reais) e que, então, conseguiram sair. Disse, ainda, que além dos R$ 6.000,00 (seis mil reais) que foram pagos diretamente a PERCY, recebeu R$ 300,00 (trezentos reais) por ter ajudado na cozinha durante 02 (duas) semanas. Como mencionado no parecer da Procuradoria Regional da República, “Infere-se, portanto, que ambos trabalharam no mínimo 07 (sete) meses em jornadas exaustivas e receberam o equivalente a R$ 857,14 (oitocentos e cinquenta e sete reais e quatorze centavos) por mês (o casal), ou seja, cerca de R$ 430,00 (quatrocentos e trinta reais) em média para cada um por trabalho mensal, executado em jornadas exaustivas, caracterizando o crime de redução a condições análogas às de escravo diante dos rendimentos extremamente reduzidos para o trabalho realizado.” No caso, o cerceamento da liberdade das vítimas restou caracterizado em razão da falta do pagamento do valor prometido, expediente utilizado nitidamente para manter o domínio e a exploração sobre as vítimas, que obviamente não iriam querer retornar ao país de origem após tanto trabalhar e quase nada receber. Ademais, as vítimas estavam sendo cobradas por dívidas por despesas custeadas por ALDEMIR, que, inclusive, chegou a dificultar a saída dos jovens do local, trancafiando a porta e retendo seus pertences. As condições caracterizadoras de trabalho em condições análogas às de escravo restaram confirmadas pelos depoimentos da testemunha Luiz Alexandre Faria, Fiscal do Ministério do Trabalho que participou das diligências. Ao ser ouvido como testemunha, Luiz Alexandre Faria relatou que, integrou a equipe de erradicação do trabalho escravo e participou das diligências apuratórias, diante da notícia, advinda do Consulado do Peru, de desaparecimento e provável tráfico de dois trabalhadores adolescentes, que desapareceram do local de moradia no Peru, e que vieram ao Brasil para trabalhar com uma pessoa de nome CAPAJANA. Parte da equipe do Ministério do Trabalho esteve no Consulado do Peru acompanhando o depoimento dos menores. A testemunha participou de diligências que possibilitaram a identificação da oficina do réu CAPAJANA, onde os menores haviam trabalhado. Foi apurada situação de precariedade e informalidade laboral, havendo trabalhadores bolivianos e peruanos irregulares em situação laboral e migratória. Entre os onze trabalhadores que estavam lá, havia uma outra adolescente desacompanhada, sendo que as instalações elétricas eram precárias e os banheiros sem limpeza. Era um local onde trabalhavam e moravam, inclusive, alguns filhos. Viviam em aparente confinamento, havia apenas uma rota de entrada e saída, estava trancado, oferecia risco grave de incêndio ou explosão, principalmente por fiações elétricas e muito material inflamável de costura. Os trabalhadores estavam sendo submetidos a jornadas exaustivas e não tinham período de repouso suficiente. O local estava trancado, sendo que foi tocada a campainha, havia uma câmara na área externa, acreditando que tal fato levou a demora de abrir as portas. Afirmou que CAPAJANA era o único que tinha a chave, sendo que foi dito à testemunha que os trabalhadores não tinham cópias de chaves. Foi solicitado o apoio do Consulado do Peru, sendo realizado o acolhimento emergencial das vítimas. Ressaltou a testemunha que, inicialmente, os trabalhadores relataram as jornadas exaustivas na diligência inicial dos auditores. Porém, logo após, nitidamente mudaram o depoimento para sustentar uma jornada inferior. Assim, o Ministério do Trabalho fez a análise entre o número de peças produzidas e jornada de trabalho, o que confirmou que efetivamente a jornada era exaustiva. Ressaltou que houve uma conversa com todos os trabalhadores na primeira abordagem, sendo que, logo em seguida, houve a alteração de maneira uníssona do relato. Os depoimentos das testemunhas de defesa devem ser observados com cautela. Os trabalhadores estrangeiros que permaneceram no Brasil tenderam a proteger o acusado ALDEMIR, afirmando que trabalhavam das 8h às 18h, que o acusado fornecia alimentação e hospedagem sem descontar do salário, e que tinha livre acesso à casa. Conforme mencionado pela acusação, é medida recorrente em casos similares, em que as vítimas contam a verdade apenas durante a diligência e depois, temerosas de perderem o emprego e serem obrigadas a retornar aos países de origem, onde vivem em condições ainda piores, mudam os depoimentos para proteger os aliciadores, corroborando a explicação da testemunha Luiz Alexandre. Todavia, os relatos das vítimas PERCY e ELIANE foram sempre coerentes, desde quando foram ouvidos perante o Consulado do Peru, até quando foram ouvidos em produção antecipada de provas em juízo. De todo o exposto, restou demonstrado nos autos que as vítimas viviam e trabalhavam em condições insalubres e degradantes, e estavam submetidos a uma jornada de trabalho de aproximadamente quatorze horas diárias (de segunda a sexta-feira, das 7h00h às 12h00, com uma hora de almoço, e das 13h00 às 22h30, com duas pausas de 15 minutos; aos sábados, das 7h00h às 12h00), acreditando que receberiam um valor relevante pelos serviços por eles executados. Infere-se, assim, que as provas documentais e testemunhais coligidas ao feito constituem um arcabouço robusto de elementos probatórios hábeis a conformar uma comprovação segura e infensa às teses defensivas, no sentido de que os trabalhadores contratados se encontravam, indubitavelmente, sujeitados a condições de trabalho e de moradia severamente atentatórias à dignidade humana, sendo submetidos a graves riscos à sua saúde e segurança. No que tange à configuração do delito do art. 149 do CP, consoante sedimentado entendimento jurisprudencial, não é necessária a restrição à liberdade de locomoção dos trabalhadores, podendo o crime se consumar “por meio de outras condutas como no caso em que os trabalhadores são sujeitados a condições degradantes, subumanas” (STJ. 3ª Seção. CC 127937-GO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 28/5/2014). No mesmo sentido é o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “(...) Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais”. (STF. Plenário. Inq 3412, Rel. p/ Acórdão Min. Rosa Weber, julgado em 29/03/2012) – g.n. O delito em tela consubstancia-se no ato de reduzir alguém a estado similar ao de escravo, impingindo à vítima condições de trabalho que a submetam à violação da sua liberdade e da dignidade humana. Trata-se de delito de forma vinculada, cuja configuração depende da caracterização de uma das condutas previstas no tipo penal. Com efeito, dispõe o art. 149 do Código Penal: "Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Pena: reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência." Conforme se infere do dispositivo, a norma penal prevê as condutas de submeter a vítima a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, sujeitá-la a condições degradantes de trabalho, ou ainda, restringir-lhe a liberdade de locomoção, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Trata-se de tipo misto alternativo, em que a lei estabelece diversos núcleos para o delito, sendo que a prática de apenas um deles é suficiente para a sua consumação. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que o crime em tela se consuma com a prática de qualquer das ações típicas descritas no art. 149 do CP, sendo desnecessária a presença concomitante de todas as condutas previstas no tipo para que este se aperfeiçoe (HC 239.850/PA, Rel. Min. Gilson Dipp, Quinta Turma, DJ 20/08/2012). Ademais, para que se configure o crime de submissão de trabalhador a condição análoga à de escravo, deve-se verificar uma violação intensa e persistente a direitos trabalhistas e a outros direitos fundamentais, consubstanciada na sujeição da vítima a trabalhos forçados, jornadas excessivas ou a condições degradantes de labor. Para tal fim, deve-se entender como condições degradantes de trabalho aquelas que, tratando-se de grave descumprimento de direitos fundamentais do trabalhador, configurem atentado à dignidade da pessoa humana, caracterizando-se por meio da transgressão profunda de direitos diversos, como aqueles referentes a condições mínimas de saúde, higiene, repouso, segurança e alimentação do trabalhador, não se fazendo necessária a ocorrência de violência física para a caracterização do delito. No caso dos autos, restou comprovada jornada excessiva de trabalho, a submissão das vítimas a estado degradante de trabalho e moradia, face à privação de condições mínimas de higiene, alimentação e habitação, além da promoção de meios indiretos de cerceamento da sua liberdade, manifestados na deliberada omissão no pagamento das verbas salariais devidas, compelindo os trabalhadores à condição de escassez de recursos e ao inevitável endividamento, o que denota inequívoca intenção de comprometimento da capacidade de autodeterminação dos ofendidos e evidente menoscabo pelos direitos trabalhistas e pela própria dignidade humana. Todas as circunstâncias mencionadas na denúncia foram confirmadas, para além da prova documental, pela prova testemunhal produzida em juízo, sob o crivo do contraditório, e acima referida. Ante os elementos probatórios coligidos nos autos, não comporta acolhimento a tese defensiva no sentido de que não estaria caracterizada a sujeição das vítimas a condição análoga à de escravos, sob a alegação de que a sua permanência no local de trabalho e a realização dos serviços por elas prestados teriam sido voluntárias e desprovidas de coação, inexistindo privação à sua liberdade. É sabido que as formas de escravidão contemporânea se diferenciam, pelos seus métodos, recursos e propósitos, da escravatura historicamente empregada nos períodos colonial e imperial brasileiros, utilizando-se de meios de subjugação e vilipêndio à dignidade das vítimas que não encontram correspondência com os instrumentos de agrilhoamento que conformaram a estereotipia da escravatura histórica. A verificação dos elementos que hodiernamente caracterizam o trabalho em condições análogas à escravidão deve ser feita de forma contextualizada, não se podendo incorrer em uma análise reducionista, que restrinja a constatação da configuração típica do crime do art. 149 do Código Penal apenas às hipóteses de concreta eliminação da liberdade das vítimas, desconsiderando-se que o contexto econômico-social contemporâneo conduz à utilização de expedientes de exploração de mão-de-obra em condições subumanas que prescindem da estrita supressão da capacidade de locomoção dos ofendidos. Nesse sentido já se manifestou esta Corte Regional: DIREITO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CÓDIGO PENAL. ARTIGO 149 e 149-A, II, AMBOS DO CP. AUTORIA E MATERIALIDADE. COMPROVAÇÃO. DOLO ATESTADO. DOSIMETRIA. PENA PARCIALMENTE REDIMENSIONADA. PENA-BASE DO ART. 149-A DO CP MAJORADA. QUANTIDADE DE DIAS-MULTA REDIMENSIONADA. PROPORCIONALIDADE COM A PENA CORPORAL. RECONHECIMENTO DO CONCURSO FORMAL (ART. 70 DO CP) AFASTADO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. PARCELAMENTO DA PENA DE MULTA. JUÍZO DA EXECUÇÃO. APELAÇÕES DA ACUSAÇÃO E DA DEFESA PARCIALMENTE PROVIDAS. 1. Recursos de apelação interpostos pela acusação e pela defesa contra sentença em que foi o réu condenado pela prática dos delitos tipificados nos arts. 149, caput, e 149-A, II, ambos do Código Penal. 2. Autoria e materialidade. Comprovação para ambos os delitos. Tese de meras irregularidades trabalhistas rejeitada. Prova testemunhal e documental. Documentos juntados aos autos e depoimentos das vítimas e testemunhas ouvidas em sede policial e em juízo, dão conta de um quadro de vida e trabalho degradantes envolvendo as vítimas. Práticas do réu que as trouxe da China prometendo condições de trabalho que nunca existiram e, aproveitando-se da vulnerabilidade concreta das vítimas, a elas impingia jornadas exaustivas de trabalho em condições degradantes. Trabalhadores eram submetidos a constrangimentos de variadas ordens, como jornada de trabalho exaustiva, salários retidos pelo réu e condições de trabalho degradantes, em clara ofensa ao direito à dignidade humana. Dolo patente na execução da conduta. 3. Não se trata apenas da escravidão antiga, em seu sentido de redução estrita de outro ser humano à condição inadmissível de propriedade de alguém. É criminalizada nos arts. 149 e 149-A, II, do Código Penal qualquer prática que reduza substancialmente a dignidade humana em relações de controle laboral, seja por meio da redução de locomoção, seja por meio da imposição prática de jornadas exaustivas e condições degradantes de vida e trabalho. É evidente, pela própria natureza disjuntiva das condutas descritas, que nesses últimos casos não se exige qualquer restrição da liberdade física. O que há, em tais circunstâncias, é a especial exploração da vulnerabilidade econômica, física e/ou cultural das vítimas, de maneira a subjugá-las e retirar-lhes o patamar de dignidade estabelecido como piso civilizatório pelo ordenamento pátrio. Condenações mantidas (...) (TRF-3 - ApCrim 00014472120194036181/SP, Rel. Des. Fed. José Marcos Lunardelli, 11ª Turma, j. 03/09/2021, DJe 14/09/2021) – g.n. Assim, consoante o entendimento jurisprudencial, o crime de submissão à condição análoga à de escravo se configura independentemente da efetiva restrição à liberdade de locomoção dos trabalhadores ou da sua retenção no local de trabalho por vigilância ou apossamento de seus documentos, sendo suficiente para a caracterização do delito, enquanto crime de ação múltipla e conteúdo variado, a demonstração da submissão das vítimas a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas ou a condições degradantes. Confira-se: RECURSO ESPECIAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. CONDENAÇÃO EM 1º GRAU. AFASTAMENTO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM PORQUE NÃO CONFIGURADA RESTRIÇÃO À LIBERDADE DOS TRABALHADORES OU RETENÇÃO POR VIGILÂNCIA OU MEDIANTE APOSSAMENTO DE DOCUMENTOS PESSOAIS. CRIME DE AÇÃO MÚLTIPLA E CONTEÚDO VARIADO. SUBMISSÃO A CONDIÇÕES DE TRABALHO DEGRADANTES. DELITO CONFIGURADO. CONDENAÇÃO RESTABELECIDA. RECURSO PROVIDO. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, o delito de submissão à condição análoga à de escravo se configura independentemente de restrição à liberdade dos trabalhadores ou retenção no local de trabalho por vigilância ou apossamento de seus documentos, como crime de ação múltipla e conteúdo variado, bastando, a teor do art. 149 do CP, a demonstração de submissão a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas ou a condições degradantes. Precedentes. 2. Devidamente fundamentada a condenação pela prática do referido delito em razão das condições degradantes de trabalho e de habitação a que as vítimas eram submetidas, consubstanciadas no não fornecimento de água potável, no não oferecimento, aos trabalhadores, de serviços de privada por meio de fossas adequadas ou outro processo similar, de habitação adequada, sendo-lhes fornecido alojamento em barracos cobertos de palha e lona, sustentados por frágeis caibros de madeira branca, no meio da mata, sem qualquer proteção lateral, com exposição a riscos, não há falar em absolvição. 3. Recurso especial provido para restabelecer a sentença condenatória, determinando que o Tribunal de origem prossiga no exame do recurso de apelação defensivo. (REsp 1.843.150, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, j. 26/05/2020) – g.n. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME DO ART. 149 DO CÓDIGO PENAL. RESTRIÇÃO À LIBERDADE DO TRABALHADOR NÃO É CONDIÇÃO ÚNICA DE SUBSUNÇÃO TÍPICA.TRATAMENTO SUBUMANO AO TRABALHADOR. CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO. FATO TÍPICO. SÚMULA N. 568/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. O artigo 149 do Código Penal dispõe que configura crime a conduta de "reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto". 2. O crime de redução a condição análoga à de escravo pode ocorrer independentemente da restrição à liberdade de locomoção do trabalhador, uma vez que esta é apenas uma das formas de cometimento do delito, mas não é a única. O referido tipo penal prevê outras condutas que podem ofender o bem juridicamente tutelado, isto é, a liberdade de o indivíduo ir, vir e se autodeterminar, dentre elas submeter o sujeito passivo do delito a condições degradantes de trabalho. Precedentes do STJ e STF. (...) 4. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp 1467766/PR, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, j. 27/08/2019, DJe 10/09/2019) – g.n. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. REITERAÇÃO DE RECURSO JÁ ANALISADO POR ESTA CORTE. PEDIDO DE EXTENSÃO DE ORDEM CONCEDIDA A CORRÉU PELO COLEGIADO DE ORIGEM. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA-PROCESSUAL ENTRE OS DENUNCIADOS. REQUISITOS DO ART. 580 DO CPP NÃO ATENDIDOS. AGRAVO DESPROVIDO. (...) 3. No art. 149 do Código Penal são previstas condutas alternativas que, isoladamente, subsumem-se ao crime de redução a condição análoga à de escravo, tratando-se, portanto, de crime plurissubsistente. Assim, tendo sido atribuído ao réu o verbo "sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho", o simples fato de não ter sido descrito cerceamento do direito de locomoção dos trabalhares explorados não denota a ausência de tipicidade das condutas descritas na peça acusatória. 4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no RHC 85.875/PI, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, j. 24/04/2018, DJe 02/05/2018) Adicionalmente, consigna-se que, ainda que se tivesse por caracterizado qualquer modo de anuência dos trabalhadores para com as condições de trabalho a que foram submetidos, tal consentimento, mesmo que comprovado nos autos – o que não se verifica no caso em tela –, mostrar-se-ia irrelevante, na medida em que a ação típica não é desconstituída por nenhuma forma de aquiescência do sujeito passivo para com a supressão de seus direitos fundamentais, os quais são, por sua natureza, indisponíveis. Veja-se, a respeito, o entendimento deste Tribunal Federal: PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO, ART. 149, CP. MATERIALIDADE. AUTORIA. PENA. 1. Materialidade, autoria, referentes às condutas tipificadas nos artigos 149 do Código Penal, comprovados. 2. Degradantes condições de alojamento que demonstram o total descaso dos réus com a saúde, conforto e segurança dos trabalhadores, o que lesionou gravemente sua dignidade e os pôs em deletéria relação de submissão perante os acusados, em situação análoga à de escravidão. 3. Em relação à anuência dos trabalhadores quanto às condições em que trabalhavam, é irrelevante, na hipótese, investigar o consentimento do ofendido (ou a ausência dele), na medida em que o delito não é excluído mesmo quando o sujeito passivo concorda com a supressão de seus direitos fundamentais, cuja característica é justamente a indisponibilidade. 4. Culpabilidade e consequências dos crimes que se sobressaem e justificam a exasperação das penas. 5. Recurso de defesa não provido. (TRF-3, ApCrim 0000448-40.2012.4.03.6108/SP, Rel. Des. Fed. Mauricio Kato, Quinta Turma, DJ 27/08/2019) A conduta perpetrada pelos réus, portanto, amolda-se aos núcleos do delito previsto pelo art. 149 do Código Penal, notadamente no que tange à sujeição a jornadas exaustivas e a condições degradantes de trabalho, o que se mostra suficiente à caracterização do crime em tela, consoante entendimento desta Corte: PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO (CP, ART. 149). AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVAS. TIPICIDADE. CRIME DE AÇÃO MÚLTIPLA. CONDENAÇÃO MANTIDA. PENA-BASE REDUZIDA. ALTERADO O REGIME INICIAL PARA O ABERTO. DEFERIDA A SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITOS. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. 1. Comprovadas a materialidade e autoria delitivas. 2. Dado tratar-se de crime de ação múltipla, não é necessário que o agente esgote todas as figuras previstas no tipo, bastando qualquer delas para configurar o crime de redução a condição análoga à de escravo (STF, Inq. n. 3412, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Rosa Weber, j. 29.03.12; STJ, HC n. 239850, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 14.08.12 e TRF da 4ª Região, ACr n. 0006251-27.2006.404.7000, Rel. Des. Fed. José Paulo Baltazar Júnior, j. 06.08.13). 3. Na espécie, restou comprovado que o acusado cerceou a liberdade dos trabalhadores bolivianos, além de proporcionar condições aviltantes de trabalho e jornadas exaustivas. 4. Conquanto censurável a culpabilidade do réu, o aumento que o Juízo a quo fez incidir a pena-base por esse motivo, ½ (metade), afigura-se desproporcional. Assim, reduz-se a fração de aumento da pena-base para 1/6 (um sexto), fixando-a em 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de reclusão. 5. Ante a redução da pena privativa de liberdade e a primariedade do acusado, cabível a fixação do regime inicial aberto, tal como decorre do art. 33, §2º, c, do Código penal. 6. Presentes os requisitos do art. 44 do Código Penal, a pena privativa de liberdade resta substituída por 2 (duas) restritivas de direitos. 7. Apelo do réu parcialmente provido. (TRF-3, ApCrim nº 0001164-18.2014.403.6134/SP, Rel. Des. Fed. André Nekatschalow, Quinta Turma, DJ 27/03/2018) No mais, muito embora o réu ALDEMIR, em seu interrogatório, haja negado a situação degradante a que eram submetidos os trabalhadores e tenha tentado atribuir aos próprios ofendidos a confecção de um cenário forjado com o propósito de incriminar o apelante, a versão por ele sustentada apresenta-se isolada no conjunto probatório e totalmente desprovida de credibilidade quando confrontada com as provas colacionadas – notadamente o Relatório de Fiscalização do Ministério do Trabalho e os Autos de Infrações lavrados pela Secretaria de Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho em Emprego que se mostram convergentes em indicar, de forma segura, as condições precárias, perigosas e insalubres de trabalho e habitação a que as vítimas eram submetidas, assim como a insuficiência do suporte material e de alimentação que lhes era fornecido, a imposição de jornadas exaustivas e a irregularidade no pagamento da remuneração pelos serviços prestados. Restou comprovado, portanto, que o apelante submeteu os trabalhadores a condições análogas às de escravos, materializadas, notadamente, pelas degradantes condições de trabalho e moradia a que foram sujeitados, além da parcial privação do direito ao recebimento das verbas salariais devidas. A autoria do delito também restou demonstrada em relação à acusada JIMMY pela prova documental e testemunhal. Como mencionado acima, restou amplamente comprovado no decorrer da instrução que ao chegarem ao Brasil, as vítimas PERCY e ELIANA foram alojadas na oficina de costura de ALDEMIR, situada na Rua Balbina Hares, nº 26, Jardim de Lourenço, São Paulo/SP, onde passaram a trabalhar em jornadas exaustivas, condições degradantes e em restrição de locomoção mediante retenção de salários, servidão por dívidas e falta de documentação regular, bem como restou comprovado que a oficina de costura de ALDEMIR prestava serviços às empresas “ANCHOR” e “MNJ”, de responsabilidade de JIMMY PARK. O relatório de auditoria explicita a responsabilidade das empresas administradas por JIMMY PARK (Id 267291106, p. 5/18 e id 267291107, p. 14/15): "X. DA RESPONSABILIDADE JURÍDICA DA CONFECCÕS ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA . PELA SITUAÇÃO TRABALHISTA ENCONTRADA As empresas CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. são inteiramente responsáveis pela situação encontrada. Referidas empresas são, na verdade, empresas de indústria e comércio de vestuário, que comandam e exercem seu poder de direção e ingerência de diversas formas sempre no sentido de adequar a produção de peças de vestuário à sua demanda, a seu preço e à sua clientela. Investem em marcas consolidadas nos tradicionais bairros do Bom Retiro e do Brás, principais pólos têxteis da América Latina, de grande valor comercial, indicando um fundo de comércio baseado na marca e no estilo que vendem. Impõem esse estilo à oficina responsável pela costura, que é, na verdade, mera intermediadora de mão de obra barata e precarizada. (...) A oficina sweatshops funciona, na realidade, como verdadeira célula de produção das empresas CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA., todas interligadas em rede, simulando relação de fornecimento, mas que, na realidade, encobertam nítida relação de emprego entre todos os obreiros das oficinas e a empresa autuada. O nível de dependência da CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. para com as oficinas que costuram suas peças de roupas é tão elevado que exige forte gestão de fornecedores (definição de peças, qualidade, preço, logística, etc.). As empresas CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. controlam toda a definição estilística, e toda a costura é “terceirizada” para oficinas de costura, algumas delas, como a flagrada pela Fiscalização, empregando imigrantes sem carteira de trabalho, em situação vulnerável e mantidos em condições degradantes. As investigações levadas a efeito na oficina apontaram um total dirigismo da CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. sobre todos os aspectos relevantes da produção das peças de vestuário que recebe as marcas ANCHOR E TOVA, e que serão, ao final, “compradas” por elas para "revenda" nas diversas lojas de suas grifes. Trata-se de distorção do contrato de fornecimento, que, conforme identificado em inúmeros casos pela Inspeção do Trabalho, por si só vem representando a retirada de direitos sociais (precarização trabalhista) e fraudes a direitos econômicos (concorrência desleal), ajustando-se ao processo de produção da cadeia de vestuário no qual redes varejistas e atacadistas de roupas seccionam e fracionam o processo de costura por várias plantas, com objetivo de flexibilizar e agilizar seu processo produtivo, bem como o de reduzir custos. No caso em tela, as conclusões desta Auditoria apontaram a ocorrência de um padrão de conduta produtiva, controlado pelas próprias empresas CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA, quanto ao abastecimento das peças de vestuário que virão a comercializar, que consiste na manutenção de oficinas de costura que não disponham de lastro trabalhista e idoneidade econômica. Restou clara a responsabilidade das empresas CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. na adoção desse padrão produtivo, com evidente obtenção de vantagem competitiva indevida perante seus concorrentes, em virtude da supressão dos custos trabalhistas inerentes à sua atividade, incorrendo em prática de dumping social. A CONFECCOES ANCHOR LTDA. E A MNJ CONFECCOES LTDA comandam a produção de peças de vestuário, exercendo sobre as pessoas jurídicas contratadas para "entregar" a produção, como a oficina gerenciada por Aldemir, o poder de direção e ingerência; quanto aos trabalhadores da costura, esse exercício se dá de maneira remota e indireta, vez que não mantém seus prepostos exercendo diretamente o poder gerencial e disciplinar, mas o fazendo de diversas formas e com efetividade, sempre no sentido de adequar a produção de peças de vestuário à sua demanda, a seu preço, à sua qualidade, a seus prazos e à sua clientela. A dependência econômica dos profissionais costureiros para com a CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA é total. Apenas peças das marcas ANCHOR e TOVA são costuradas na oficina gerenciada por Aldemir. No período auditado, maio/2017 a julho/2019, apenas produtos dessas marcas foram costurados naquele local. Sob o manto de uma alegada “terceirização”, as empresas MNJ e ANCHOR simulam o seccionamento da etapa mais intensiva em termos de utilização de mão-de-obra do processo produtivo da cadeia de vestuário (COSTURA). Investem em duas marcas consolidadas nos tradicionais bairros do Bom Retiro e Brás, principais pólos têxteis da América Latina, de grande valor comercial, indicando um fundo de comércio baseado na marca e no estilo que vende. Impõem esse estilo, bem como prazos, preços e demais condições, às oficinas responsáveis pela costura, que são, na verdade, meros intermediadores de mão de obra barata e precarizada, conforme se pode apurar in loco na oficina gerenciada por ALDEMIR. (...) A subordinação jurídica, da oficina de costura e dos trabalhadores ali alocados, para com a CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA, também exsurge através de várias manifestações, de regras e ordens diretas e indiretas, emanadas remotamente, ressaltando o exercício do poder diretivo e do poder disciplinar, pela empresa principal. (...) Restou portanto demonstrado pela auditoria, que as empresas CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. vinham sendo abastecidas por peças de vestuário confeccionadas naquela oficina de costura, por trabalhadores submetidos a condições degradantes, servidão por dívida e jornadas exaustivas. Além disso, constatou-se que as empresas CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. ditavam todas as diretrizes de desenvolvimento e produção, de modo que deverá ser considerada, neste caso, a real empregadora e, por consequência, responsabilizadas pelos ilícitos trabalhistas constatados. Restou clara a responsabilidade da empresa MNJ/ANCHOR na adoção desse padrão produtivo, com evidente obtenção de vantagem competitiva indevida perante seus concorrentes, em virtude da supressão dos custos trabalhistas inerentes à sua atividade, incorrendo em prática de dumping social. (...) A oficina gerenciada por Aldemir Capajaña recebe e costura mensalmente entre quatro e cinco lotes de 300 (trezentas) peças cada para a ANCHOR/MNJ (marcas Anchor/Tova), em caráter de exclusividade, conforme declaração do próprio Sr. Aldemir, prestada ao auditor fiscal do trabalho Luís Alexandre de Faria. Os valores recebidos por peça variam entre R$ 7,00 (sete reais) e R$ 11,50 (onze reais e cinquenta centavos). As empresas auditadas CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. são inteiramente responsáveis pela situação encontrada. A empresa autuada, na verdade, comanda esse emaranhado, exercendo sobre essas pessoas físicas e jurídicas seu poder de direção e ingerência, de maneira direta, mas principalmente indireta, de diversas formas, sempre no sentido de adequar a produção de peças de vestuário à sua demanda, a seu preço e à sua clientela. Investe em duas marcas fortes, de grande valor comercial, indicando um fundo de comércio baseado na marca e no estilo que vende. Impõe esse estilo a suas oficinas, que são totalmente dependentes economicamente dela, constituindo-se, na verdade, em meros intermediadores de mão de obra barata e precarizada. (...) Observamos, ainda, que a CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. são as detentoras do poder econômico relevante em sua cadeia de fornecimento; são as empresas que têm condições de ditar as regras de sua cadeia, sendo cediço que o setor é marcado, no Estado de São Paulo, por elevada incidência de exploração de trabalhadores imigrantes. Logo, as CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. são plenamente conscientes da realidade de seu setor. Ao encomendar peças a uma oficina externa, ditando os preços, o número de peças, os prazos, etc, as CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. coordenam a dinâmica da cadeia produtiva. Após toda a análise dos locais de trabalho, das entrevistas realizadas e dos documentos auditados, concluímos que a oficina fiscalizada presta serviços de costura, com mão-de-obra submetida a condições semelhantes às de escravos, para as empresas CONFECCOES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA, simulando-se contratos de fornecimento, sendo que estes, na verdade, servem para encobrir a ingerência empresarial das autuadas em sua cadeia produtiva. Além disso, não há qualquer preocupação das empresas CONFECÇÕES ANCHOR LTDA. E MNJ CONFECCOES LTDA. em monitorar sua cadeia produtiva, verificando a capacidade produtiva das oficinas de costura que fornecem o serviço de mão de obra de costura para a elaboração dos produtos de suas marcas. Fica comprovada, assim, a completa culpa in eligendo e culpa in vigilando das empresas CONFECCOES ANCHOR LTDA E MNJ CONFECCOES LTDA . ao contratar a oficina de costura dos Sr. ALDEMIR CAPAJAÑA”. No sentido da subordinação da oficina de ALDEMIR às empresas CONFECCOES ANCHOR LTDA E MNJ CONFECCOES LTDA, administradas por JIMMY, registro as ponderações do Ministério Público Federal em seus memoriais (id 267292136, p. 16/17): “Visando trazer mais elementos aos autos, foi requerida a este E. Juízo a QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO de todos os envolvidos, cujos extratos e análises, trazidos pelo sistema SIMBA-PGR, juntados aos autos com a denúncia, confirmaram que a empresa de ALDEMIR trabalhava de forma praticamente exclusiva para os demais denunciados. De fato, o extrato consolidado da conta de ALDEMIR, mantida junto ao Itaú Unibanco, conta-corrente nº 165922, agência nº 5591, revelou que mais da metade de sua renda identificada é proveniente de depósitos realizados pela empresa Confecções Anchor LTDA. Assim, do total de R$ 505.356,00 (quinhentos e cinco mil, trezentos e cinquenta e seis reais) de renda identificada, a quantia de R$ 397.975,99 (trezentos e noventa e sete mil, novecentos e setenta e cinco reais e noventa e nove centavos) foi proveniente de depósitos da empresa Confecções Anchor LTDA. ALDEMIR confirmou às autoridades policiais que desde 2015 costurava apenas para a “ANCHOR”, fazendo sempre vestidos e sem contrato formal (fls. 179). Disse que tratava com a funcionária “Cida”, que mandava os cortes das peças para a oficina e depois determinava a retirada, o que era feito pelo motorista “Ney”. Disse, também, que recebia os valores devidos através de comparecimento pessoal na Rua Silvia Teles, tendo afirmado que os donos da confecção nunca estiveram em sua oficina, mas que “Cida” e o motorista “Ney” estiveram. Tais alegações foram repetidas em seu depoimento em Juízo. Os extratos detalhados da conta acima citada demonstraram, inclusive, a presença de depósitos realizados pela “ANCHOR” a ALDEMIR a partir de outubro de 2018, data em que as vítimas foram aliciadas e alojadas por ele, bem como passaram a trabalhar para a costura das marcas “ANCHOR” e “TOVAR”. Assim, em 26/10/2018, ALDEMIR recebeu R$ 17.130,00 (dezessete mil e cento e trinta reais) da “Confecções ANCHOR”. Os depósitos continuaram nas seguintes datas e valores, até o resgate das vítimas: R$ 27.335,00 (vinte e sete mil, trezentos e trinta e cinco reais) em 03/12/2018; R$ 12.176,50 (doze mil, cento e setenta e seis reais e cinquenta centavos) em 17/12/2018; R$ 15.400,00 (quinze mil e quatrocentos reais) em 01/02/2019; R$ 19.054,00 (dezenove mil e cinquenta e quatro reais) em 01/03/2019; R$ 27.271,50 (vinte e sete mil, duzentos e setenta e um reais e cinquenta centavos) em 12/04/2019; R$ 8.059,00 (oito mil e cinquenta e nove reais) em 03/05/2019; R$ 14.127,00 (quatorze mil, cento e vinte e sete reais) em 31/05/2019; R$ 9.600,00 (nove mil e seiscentos reais) em 18/06/2019; e R$ 10.930,00 (dez mil, novecentos e trinta reais) em 04/07/2019. Ressalte-se que o extrato detalhado em questão demonstra que grande parte dos recursos ingressados em referida conta veio diretamente da “Confecção ANCHOR”, sendo que as demais movimentações variavam entre saques, pagamentos, aplicações e resgates. Não há dúvidas, portanto, de que os responsáveis pelas empresas ACHOR e MNJ mantinham a oficina terceirizada gerida por CAPAJANA, que trabalhou praticamente de forma exclusiva para eles por vários anos, o que se deu inclusive no período referente aos fatos denunciados. As vítimas PERCY e ELIANA recordaram que as roupas que costuravam tinham as etiquetas das empresas ANCHOR e TOVA. A comprovação de que JIMMY PARK era quem de fato administrava as empresas ANCHOR e MNJ, pode ser extraída dos depoimentos das testemunhas Maria Aparecida de Sousa e Odirlei Nogueira Da Silva. A testemunha Maria Aparecida de Souza afirmou que trabalha na empresa ANCHOR há 13 anos, que se reporta a JIMMY PARK, que a ANCHOR e MMJ são da mesma família e são geridas por JIMMY e JI, mas JI é apenas a estilista. Acrescentou que as peças vão para terceirização, voltam para a empresa para fazer acabamento e depois seguem para as lojas. As roupas das duas marcas são terceirizadas. Os “tags” com as marcas são inseridos pelas oficinas terceirizadas. Disse que do total mensal de 10 a 11 mil peças montadas, entre e 3 a 4 mil eram fabricadas na oficina de CAPAJANA e o restante provinha de oficinas variadas, que também são oficinas de pessoas estrangeiras, bolivianos, em torno de 7 a 8 oficinas mais ou menos. Disse que “sempre foi assim”, referindo-se à contratação de oficinas de estrangeiros. Afirmou que JIMMY e a testemunha faziam os pagamentos, sendo JIMMY responsável pelas movimentações bancárias envolvendo contas. Disse que os donos conheciam ADEMIR, pois ele vinha na loja receber pagamento. A testemunha Odirlei Nogueira da Silva, narrou que trabalha para a Anchor e MMJ como motorista há 13 anos e que leva as roupas para as oficinas de costura, mencionando que são em torno de oito a nove oficinas. Disse que, no começo, havia alguns brasileiros, mas há cerca de 5 ou 6 anos, os oficineiros são apenas estrangeiros, sendo bolivianos e alguns peruanos. Afirmou que conheceu ADEMIR pois levava serviço para ele, sendo que ia na oficina dele em geral 2 ou 3 vezes na semana. Levava na porta de entrada e saía e que eram sempre ADEMIR, sua esposa ou sobrinho que recebiam. Disse que, pelo que sabia, ADEMIR tinha em torno de 6 ou 7 trabalhadores. A apelante JIMMY, por ser responsável pelas tomadoras de serviço, tinha o dever de fiscalizar e saber como se dava a prestação de serviço nas oficinas de trabalho. Como ponderado pela acusação em seus memoriais “basta uma busca simples na rede mundial de computadores para localizar vasto material, como notícias de libertação de vítimas e providências adotadas por autoridades públicas em relação às oficinas de costura na cidade de São Paulo, problema que já é bastante antigo e que não haveria como ser desconhecido de todos os réus, que trabalhavam nessa área também há muitos anos”. A defesa alega que a apelante JIMMY que não tomou conhecimento dos fatos pois, em boa-fé, confiou no relatório e informações relatadas e passadas pelos seus subordinados. No entanto, a testemunha Maria Aparecida disse que não recebia ordens para verificar as condições de trabalho das oficinas e o motorista Odirlei disse que apenas levava as peças para costura na porta de entrada da oficina, que era sempre ADEMIR, sua esposa ou sobrinho que recebiam. A responsabilidade de JIMMY PARK decorre do fato de ter se aproveitado deliberadamente da mão de obra “barata” advinda da exploração de imigrantes ilegais e sabidamente em situação de exploração e precariedade. Comprovado o elemento subjetivo, consubstanciado no dolo, cuja aferição se extrai do exame de todas as circunstâncias do caso concreto. Conforme esclarece a doutrina, “na investigação do elemento subjetivo, o juiz baseia-se em fatos objetivos, dados exteriores do delito que indicam a intenção do agente. São os fatos e, principalmente, a forma pela qual o autor cometeu o delito que indicam o elemento subjetivo do agente. O elemento subjetivo do delito é inferido dos fatos materiais, dos dados fáticos relacionados ao delito” (BADARÓ, Gustavo. Ônus da Prova no Processo Penal, Ed. RT, 2003, p. 306/307). Na situação analisada, os fatos materiais do delito permitem inferir, para além da dúvida razoável, que a ré JIMMY atuou com plena consciência e voluntariedade na realização do fato típico, consistente na submissão dos trabalhadores a condições análogas à escravidão. Ademais, do cotejo das declarações acima referidas e dos demais elementos de prova constantes dos autos, verifica-se que a versão dos fatos apresentada pela ré em seu interrogatório, no sentido de que as condições de trabalho oferecidas aos empregados eram adequadas e que não correspondem à realidade os relatos apresentados pelas vítimas e testemunhas, não possui verossimilhança e restou isolada no conjunto probatório. Como bem consignou o magistrado de primeira instância, “verdade é que JIMMY, apesar de ter todas as condições para fiscalizar e inclusive fazer ingerências na oficina de ALDEMIR, além de ter pleno conhecimento de que há casos de trabalhos análogos aos de escravos no setor têxtil/de moda, não teve interesse em saber o que se passava na oficina contratada e tampouco como eram as condições de emprego daqueles que lhe prestavam serviços, mas visava apenas a obter lucros com a mão de obra extremamente barata que contratava. Isso demonstra, no mínimo, uma “cegueira deliberada”, similar àquela verificada na “teoria do avestruz”, da referida denunciada em relação aos fatos objetos desta demanda. (...) Tem-se que JIMMY preferiu não se inteirar do que acontecia na oficina contratada para deliberadamente desconhecer as condições precárias de trabalho e à margem da legislação brasileira ao longo da cadeia produtiva de suas empresas, o que não afasta o fato de ter concorrido dolosamente na redução de seus “fornecedores” à condição análoga à de escravos, em evidente prática, em conjunto com ALDEMIR, do crime previsto no artigo 149, caput e §2º, inciso I, do Código Penal.” Como se observa, o conjunto probatório é sólido em relação à materialidade e à autoria delitivas, sendo as provas suficientes para a condenação. Verificou-se, ainda, que os ofendidos eram adolescentes de dezessete e dezesseis quando foram contratados. Tal fato, que restou comprovado pela prova documental (id 267291086, p. 24 e 23), constitui circunstância ensejadora de maior grau de reprovabilidade da conduta, apta a autorizar a incidência da causa de aumento prevista no inc. I do § 2º do art. 149 do CP. Nesse ponto, observa-se que não há dúvida de que o acusado Aldemir atuou com plena ciência da menoridade das vítimas Percy e Eliana, tendo afirmado em seu interrogatório na fase policial judicial que sabia que eram menores de idade. Por outro lado, em relação à corré Jimmy, inexistem nos autos elementos suficientes a demonstrar o seu conhecimento acerca da menoridade dos trabalhadores, de modo adequado a amparar a imputação da aludida causa de aumento. Consoante exposto, restou apurado que a corré, diversamente do acusado ALDEMIR, não compareceu à oficina de costura dos trabalhadores, sendo a sua atuação, enquanto sócia da empresa, restrita à gestão administrativa dos negócios. Do crime previsto no art. 149-A, caput e § 2º, do Código Penal A defesa do réu ALDEMIR alega que as provas produzidas não comprovam a efetiva prática da conduta prevista no artigo 149-A, do Código Penal, que não houve comprovação da materialidade delitiva da autoria, tendo em vista que ALDEMIR não realizou nenhuma das condutas descritas no tipo penal. Sustenta ainda a ausência de dolo específico em relação ao delito previsto no art. 149-A do CP. Aduz que PERCY JHOHAN ALIAGA e ELIANA JASMINA QUISPE VILASSANTE admitiram em seus depoimentos que procuraram ALDEMIR porque queriam vir para o Brasil trabalhar como costureiros, pois queriam sair do Peru para se casarem e terem melhores condições de vida e que eles aceitaram e tinham conhecimento de como seria o trabalho de costureiro, a alimentação e a moradia no Brasil, quanto receberiam por peça. Não assiste razão à defesa. Interrogado em Juízo, o apelante ALDEMIR negou ser responsável pelo tráfico de pessoas. Afirmou que conheceu o casal de menores no terminal da Barra Funda e os trouxe para a sua casa, tendo lhes fornecido um quarto com colchão e cama para dormir. Como não sabiam costurar, afirmou que os ensinou, sendo que Percy trabalhava pouco, enquanto que Eliana não trabalhava, pois parecia sempre estar doente. Alega que descobriu por outros funcionários que ela estava grávida, quando solicitou que eles entrassem em contato com os pais, mas estes negaram. No entanto, as provas produzidas nos autos demonstram que ALDEMIR aliciou os menores PERCY e ELIANA no estrangeiro, providenciando a vinda dos mesmos ao país com o ingresso pelas fronteiras com documentos falsos para trabalhar no Brasil por ALDEMIR, mediante fraude, diante de promessas não consolidadas e abuso de condição de vulnerabilidade das vítimas. ALDEMIR lhes ofereceu trabalho em sua oficina de costura na cidade de São Paulo, prometendo-lhes retribuição justa pelos serviços a serem prestados, bem como alimentação, hospedagem e passagens. Ocorre que, as promessas não foram cumpridas e as vítimas passaram a ser exploradas, trabalhando em situações análogas às da escravidão, conforme relatado pelas vítimas em depoimentos prestados ao Ministério do Trabalho, bem como ao prestarem depoimento em sede de produção antecipada de provas em juízo. Acrescente-se o depoimento de Carlos Ortiz, Cônsul Adjunto da República do Peru, que relatou em juízo recordar-se dos fatos. Contou ter tomado conhecimento da situação dos jovens após receber uma comunicação da promotoria e Puno no Peru, no dia 14 ou 15 de julho de 2019. A denúncia falava do desparecimento dos jovens, sendo que uma tia disse que tinha tido contato com eles. As autoridades, então, entraram em contato com a Secretaria que cuida dos resgates, sendo que o resgate dos jovens foi feito no dia 18 de julho. Porém, nesse mesmo dia, um pouco mais cedo, os jovens tinham vindo ao Consulado para fazer um requerimento, sendo que foi verificado que se tratava das mesmas pessoas da denúncia. Disse que, pelo que se recordava, vieram por própria conta. Participou da oitiva dos jovens no Consulado do Peru e acompanhou os jovens no dia 23 de julho, quando houve o reconhecimento de ALDEMIR. Relendo o depoimento no Ministério Público, confirmou o relato, sendo que os jovens disseram que estavam em Juliaca no Peru e que tiveram contato com o Sr. ADEMIR, que lhes ofereceu trabalho, vindo então a São Paulo. Relataram a situação que estavam vivendo. Chegaram a sair da casa do Sr. ALDEMIR e foram para a casa de uma boliviana. Disse lembrar que quando vieram ao consulado, estavam com a criança que tinha dias de recém-nascida. Reiterou todos os termos do depoimento dos jovens no Consulado no Peru, sendo que havia um intérprete e também a testemunha acompanhou a tradução. Portanto, a oitiva do Consul confirmou os depoimentos prestado pelas vítimas, narrando o aliciamento por parte de ALDEMIR, a vinda ao Brasil com documentos falsos e a submissão a trabalho em condições degradantes e análogas às da escravidão. Ademais, os bilhetes de passagem identificados no id 267291086, p. 39/40 demostram que as vítimas deixaram Corumbá com destino a São Paulo, passando por Campo Grande no dia 18/10/2018, mesmo dia em que ALDEMIR ingressou no Brasil (id 267291087, p. 15), o que reforça que PERCY e ELIANA estavam acompanhados de ALDEMIR. Passo à análise da dosimetria da pena. Da dosimetria da pena de JIMMY PARK Quanto à fixação da pena-base, na primeira fase da dosimetria, a Magistrada a quo fixou a pena-base do crime do art. 149 do Código Penal no mínimo legal, em 02 (dois) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa, considerada a ausência de circunstancias judiciais negativas. Na segunda fase, ausentes agravantes e atenuantes. Não assiste razão à defesa ao postular o reconhecimento da atenuante do art. 65, III, “b” do CP. Sobre o tema leciona Cezar Roberto Bitencourt: “Nesta alínea (b) há duas figuras — o arrependimento posterior e a reparação do dano, nos seguintes termos: “procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou ter, antes do julgamento, repara-do o dano”. Para configurar o arrependimento, mera atenuante, é suficiente que o agente, logo após o crime, tenha procurado, espontaneamente e com eficiência, evitar ou minorar as consequências; enfim, são necessários os seguintes elementos: a) logo após o crime; b) com espontaneidade; c) com eficiência; d) e a finalidade de evitar as consequências. No entanto, na nossa concepção, a “eficiência” exigida pela atenuante não se confunde com eficácia, e limita-se ao esforço desprendido pelo agente para evitar ou minorar as consequências do crime, e não ao resultado efetivamente conseguido. Já a reparação do dano não precisa ser logo após o crime, bastando que seja antes do julgamento” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 267) No caso, não houve reparação do dano por espontânea vontade da acusada, mas apenas após fiscalização pelo Ministério do Trabalho e determinação de pagamento dos encargos trabalhistas após firmar o Termo de Ajustamento de Conduta. Ademais, inviável a minoração da pena aquém do mínimo, nos termos do entendimento sumulado nº 231 do E. Superior Tribunal de Justiça que aduz que "a incidência da circunstância atenuante não pode coincidir à redução da pena abaixo do mínimo legal", cujo entendimento foi mantido pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento de três recursos especiais (REsps 2.057.181, 2.052.085 e 1.869.764, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 14/08/2024). Assim, a pena intermediária resta mantida em 02 (dois) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa. Na terceira fase, ausentes causas de diminuição da pena. Assiste razão à defesa ao postular o afastamento da causa de aumento de pena prevista no inciso I, do §2º, do artigo 149, do Código Penal. Como mencionado acima, não há elementos os autos que apontem que a acusada JIMMY tinha ciência que, dentre os empregados da oficina de Aldemir, haviam dois adolescentes. Assim, a pena resulta definitiva em 02 (dois) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa. O valor de cada dia-multa foi fixado no mínimo legal, em 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente ao tempo dos fatos, corrigido monetariamente, que resta mantida, considerada a ausência de informações sobre a atual situação financeira do réu. Mantenho o regime aberto para o início cumprimento da pena privativa de liberdade, nos termos do artigo 33, §2º, alínea "c" do Código Penal. A pena privativa de liberdade foi substituída por uma pena restritiva de direito, consistente em prestação de serviços à comunidade ou a entidade pública e prestação pecuniária de 20 (vinte) salário mínimo, que resta mantida, considerada a ausência de insurgência das partes. Da dosimetria da pena de ALDEMIR CAPAJANA HUACHALLA Não houve insurgência das partes em relação à dosimetria da pena de ALDEMIR. Não obstante, verifico que, quanto ao crime do art. 149 do Código Penal, a pena-base foi fixada no mínimo legal, em 02 anos de reclusão e 10 dias-multa. Na segunda fase, não foram reconhecidas agravantes e atenuantes. Na terceira fase, foi reconhecida a causa de aumento prevista no inciso I, do §2º, do artigo 149, do Código Penal, tendo em vista que as vítimas ELIANA e PERCY eram menores de idade, sendo a pena aumentada de metade, resultando na pena de 03 (três) anos de reclusão, além do pagamento de 15 (quinze) dias-multa. Quanto ao crime do art. 149-A do Código Penal, a pena-base foi fixada no mínimo legal, em 04 anos de reclusão e 10 dias-multa. Na segunda fase, não foram reconhecidas agravantes e atenuantes. Na terceira fase, o juiz sentenciante ponderou que “deve incidir a causa de aumento prevista nos incisos II e III, do §1º, do artigo 149-A, do Código Penal, tendo em vista que as vítimas ELIANA e PERCY eram menores de idade e ALDEMIR se prevaleceu de relações de dependência econômica a que eles estavam submetidos. Porém, a causa de aumento é compensada com a causa de diminuição prevista no §2º do referido tipo penal, já que ALDEMIR é primário e não há provas de que integre uma organização criminosa.” Assim, a pena foi fixada em 04 (quatro) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa, que resta mantida, dada a ausência de insurgência das partes quanto ao ponto. Considerado o concurso material entre os crimes praticados, por se tratar de delitos autônomos, que pressupõem dolos e condutas distintas, podendo um se consumar independente do outro, as penas privativas de liberdade foram aplicadas cumulativamente, nos termos do artigo 69 do Código Penal, de modo que a pena definitiva imposta ao réu totaliza em 07 (sete) anos de reclusão, além do pagamento de 25 (vinte e cinco) dias-multa. Mantenho o valor de cada dia-multa no mínimo legal, em 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente ao tempo dos fatos, corrigido monetariamente, considerada a ausência de informações sobre a atual situação financeira do réu. Mantenho o regime semiaberto para o início cumprimento da pena privativa de liberdade, nos termos do artigo 33, §2º, alínea "b" do Código Penal. Incabível a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direito, por não preenchimento do requisito objetivo do artigo 44, I, do Código Penal. Dispositivo Ante o exposto, nego provimento ao recurso de Aldemir Capajana Huachalla e dou parcial provimento ao recurso de apelação de Jimmy Park, para afastar a incidência da causa de aumento de pena do art. 149, §2º, I, do Código Penal, condenando a ré à pena final de 02 (dois) anos de reclusão, em regime inicial aberto, ao pagamento de 10 (dez) dias-multa, mantido o valor de cada dia-multa 1/30 do salário mínimo vigente à época do fato. É o voto. E M E N T A PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. PROLAÇÃO DE SENTENÇA. PRECLUSÃO. CRIME DE REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ART. 149 DO CÓDIGO PENAL. AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVA COMPROVADAS. DOLO DA TOMADORA DE SERVIÇOS. DOSIMETRIA. SUMULA 231 DO STJ. 1. Réus condenados como incursos no art. 149, caput, §2º, I, do Código Penal, e art. 149-A, II e III, do Código Penal, por terem submetido trabalhadores a condições análogas às de escravos, materializadas por condições degradantes condições de trabalho e moradia, bem como pela parcial privação do direito ao recebimento das verbas salariais devidas. 2. Inépcia da denúncia. Questão superada tanto pelo recebimento da denúncia quanto pela prolação da sentença, devendo eventual insurgência voltar-se, especificamente, aos fundamentos do provimento jurisdicional e não mais à peça inaugural, nos termos da jurisprudência pacificada no E. Supremo Tribunal Federal e C. Superior Tribunal de Justiça, bem como nesta Corte Regional. 3. De outro lado, a denúncia contém exposição clara e objetiva dos fatos ditos delituosos, com narração de todos os elementos essenciais e circunstanciais que lhes são inerentes, atendendo aos requisitos descritos no artigo 41 do Código de Processo Penal, bem como permitindo aos réus o exercício pleno do direito de defesa assegurado pela Constituição Federal. 4. O crime previsto no art. 149 do Código Penal consubstancia-se no ato de reduzir alguém a estado similar ao de escravo, impingindo à vítima condições de trabalho que a submetam à violação da sua liberdade e da dignidade humana. 5. Trata-se de delito de forma vinculada, cuja configuração depende da caracterização de uma das condutas previstas no tipo penal, não sendo necessária, porém, a restrição à liberdade de locomoção dos trabalhadores, podendo o crime se consumar “por meio de outras condutas como no caso em que os trabalhadores são sujeitados a condições degradantes, subumanas” (STJ. 3ª Seção. CC 127937-GO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 28/5/2014). 6. Tipo misto alternativo, em que a lei estabelece diversos núcleos para o delito, sendo que a prática de apenas um deles é suficiente para a sua consumação. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que o crime se consuma com a prática de qualquer das ações típicas descritas no art. 149 do Código Penal, sendo desnecessária a presença concomitante de todas as condutas previstas do tipo para que este se aperfeiçoe (HC 239.850/PA, Rel. Min. Gilson Dipp, Quinta Turma, DJ 20/08/2012). 7. É sabido que as formas de escravidão contemporânea se diferenciam, pelos seus métodos, recursos e propósitos, da escravatura historicamente empregada nos períodos colonial e imperial brasileiros, utilizando-se de meios de subjugação e vilipêndio à dignidade das vítimas que não encontram correspondência com os instrumentos de agrilhoamento que conformaram a estereotipia da escravatura histórica. A verificação dos elementos que hodiernamente caracterizam o trabalho em condições análogas à escravidão deve ser feita de forma contextualizada, não se podendo incorrer em uma análise reducionista, que restrinja a constatação da configuração típica do crime do art. 149 do Código Penal apenas às hipóteses de concreta eliminação da liberdade das vítimas, desconsiderando-se que o contexto econômico-social contemporâneo conduz à utilização de expedientes de exploração de mão-de-obra em condições subumanas que prescindem da estrita supressão da capacidade de locomoção dos ofendidos. 8. No caso dos autos, restou comprovada a submissão das vítimas a estado degradante de trabalho e moradia, face à privação de condições mínimas de higiene, alimentação e habitação, além da promoção de meios indiretos de cerceamento da sua liberdade, manifestados na deliberada omissão no pagamento das verbas salariais devidas, compelindo os trabalhadores à condição de escassez de recursos e ao inevitável endividamento, o que denota inequívoca intenção de comprometimento da capacidade de autodeterminação dos ofendidos e evidente menoscabo pelos direitos trabalhistas e pela própria dignidade humana. 9. Todas as circunstâncias mencionadas na denúncia foram confirmadas, para além da prova documental, pela prova testemunhal produzida em juízo, sob o crivo do contraditório. 10. Verificou-se que duas vítimas eram adolescentes, quando foram contratados. Tal fato, que restou comprovado pela prova documental, constitui circunstância ensejadora de maior grau de reprovabilidade da conduta, apta a autorizar a incidência da causa de aumento prevista no inc. I do § 2º do art. 149 do CP. 11. Inviável a minoração da pena aquém do mínimo, nos termos do entendimento sumulado nº 231 do Superior Tribunal de Justiça. Também não se verifica afronta ao princípio constitucional da individualização da pena, posto que essa se dá dentro dos limites mínimo e máximo estabelecidos pelo legislador ordinário. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. entendimento mantido pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça no julgamento de três recursos especiais (REsps 2.057.181, 2.052.085 e 1.869.764, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 14/08/2024). 12. Apelação de Aldemir desprovida. Apelação defensiva de Jimmy parcialmente provida. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Décima Primeira Turma, por unanimidade, decidiu negar provimento ao recurso de Aldemir Capajana Huachalla e dar parcial provimento ao recurso de apelação de Jimmy Park, para afastar a incidência da causa de aumento de pena do art. 149, §2º, I, do Código Penal, condenando a ré à pena final de 02 (dois) anos de reclusão, em regime inicial aberto, ao pagamento de 10 (dez) dias-multa, mantido o valor de cada dia-multa 1/30 do salário mínimo vigente à época do fato, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. HÉLIO NOGUEIRA Desembargador Federal
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