Processo nº 0004000-46.2025.4.05.8001
ID: 295629474
Tribunal: TRF5
Órgão: 10ª Vara Federal AL
Classe: PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CíVEL
Nº Processo: 0004000-46.2025.4.05.8001
Data de Disponibilização:
11/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
HENRIQUE LOPES DE LIMA MACHADO
OAB/AL XXXXXX
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10ª VARA FEDERAL AL PROCESSO: 0004000-46.2025.4.05.8001 - PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL (436) AUTOR: ADRIANA DA CONCEICAO SILVA REU: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS DESPACHO (PERF…
10ª VARA FEDERAL AL PROCESSO: 0004000-46.2025.4.05.8001 - PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL (436) AUTOR: ADRIANA DA CONCEICAO SILVA REU: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS DESPACHO (PERFIL RURAL MÍNIMO) Como forma de combate à litigância predatória (sham litigation) nas ações de salário-maternidade rural, antes da audiência, deve ser verificada a existência de perfil rural mínimo. A partir de abril de 2024, em atendimento aos estudos, grupos de trabalho e notas técnicas correlatas expedidas pelo CNJ, Corregedorias, Centros de Inteligência e diversos tribunais do país, este juízo iniciou a implementação da política judiciária de combate à litigância predatória nas ações previdenciárias, especialmente nas ações de salário-maternidade rural. O ponto merece reflexão diante do elevado número de ações ajuizadas por pessoas que não são agricultoras, mas que tentam se passar como tais para receber o benefício (fake farmers). Origem. No mundo ocidental, a litigância predatória (sham litigation) ganhou notoriedade no direito norte-americano (Common Law), ligada inicialmente a práticas anticoncorrenciais, como demandas abusivas com o objetivo de atingir o adversário e prejudicar a livre concorrência. Em 1972, no célebre caso California Motor Transport Co. v. Trucking Unlimited, 404, U.S. 508, a Suprema Corte americana consignou, pela primeira vez, que o surgimento de um padrão de processos infundados e repetitivos é um forte indicador de abuso de direito com aptidão para a produção de resultados ilegais. O conceito evoluiu para alcançar o abuso do direito de ação na esfera judicial, considerando-se predatória ou fraudulenta a litigância com efeito antijurídico, que seria o uso impróprio dos tribunais para alcançar objetivos ilegais. O fenômeno manifesta-se nos sistemas processuais de outros países, como França, Itália, Alemanha, Espanha, Portugal e Estados Unidos, sendo objeto de estudos recentes, inclusive no Brasil. Assim, é no direito anglo-saxão, a partir dos precedentes dos EUA, que se extrai a fundamentação para coibir o exercício abusivo do direito de ação, proibição que se convencionou chamar de sham litigation. [1] Conceito. Na definição do CNJ, litigância predatória “é a provocação do Poder Judiciário mediante o ajuizamento de demandas massificadas com elementos de abusividade e/ou fraude”[2]. Natureza jurídica. A natureza jurídica da litigância predatória é de ilícito processual, por abuso do direito fundamental de ação (art. 5º, XXXV da CF/88 c/c art. 187 do CC/2002). Enunciado 414, V Jornada de Direito Civil – CJF/STJ: “A cláusula geral do art. 187 do Código Civil tem fundamento constitucional nos princípios da solidariedade, devido processo legal e proteção da confiança, e aplica-se a todos os ramos do direito”. FPPC, Enunciado n.º 378: “A boa-fé processual orienta a interpretação da postulação e da sentença, permite a reprimenda do abuso de direito processual e das condutas dolosas de todos os sujeitos processuais e veda seus comportamentos contraditórios”. A expressão “litigância predatória” é utilizada para designar um padrão anômalo de litigância que gera efeitos deletérios e a afetação do sistema de justiça. Frequentemente, são identificadas demandas que fazem uso do sistema de justiça de forma desvirtuada e abusiva, para veicular pretensões sem fundamento na realidade fática, com elementos de abusividade ou fraude. Pessoas utilizam de forma predatória o acesso ao sistema de justiça com ações frívolas, artificiais, com baixíssima probabilidade de êxito, pela falta de base jurídica ou de mérito legal, tentando a sorte com aventuras irresponsáveis, havendo o uso lotérico do sistema de justiça. Sobre o abuso do direito de ação, há uma série de padrões anômalos de litigância: litigância predatória stricto sensu, litigância frívola, litigância de bagatela, litigância procrastinatória, litigância de má-fé, assédio processual etc., que revelam o uso predatório do sistema de justiça. Nas demandas inautênticas ou ilegítimas, em geral, a litigância predatória (sham litigation) é a provocação do Judiciário com o ajuizamento de ações artificiais ou massificadas com elementos de abusividade ou fraude. Há exercício inadmissível de situação jurídica processual e violação à boa-fé objetiva. Sua responsabilização é objetiva – sendo dispensável o elemento anímico – e independe da prova do dano concreto (in re ipsa). Litigância frívola (frivolous lawsuits) é aquela fundada em ação com falta de base jurídica ou mérito legal (improcedência manifesta). A litigância de bagatela é aquela que veicula pretensões fúteis ou insignificantes, que não justificam a movimentação da máquina judiciária. A litigância procrastinatória é voltada a postergar o resultado previsível de uma relação jurídica material, reduzindo sua eficácia. A litigância de má-fé (improbus litigator) é a má conduta processual animada pela má-fé. Sua responsabilização é subjetiva (má-fé; violação da boa-fé subjetiva) e dispensa prova do dano (in re ipsa). As hipóteses são previstas no art. 80 do CPC, em rol de taxatividade mitigada na dicção do STJ (RESP Repetitivo 1696396). O assédio processual ou judicial (procedural harassment), por sua vez, revela o exercício abusivo do direito de ação pela propositura de ações judiciais com o objetivo de intimidar ou prejudicar uma pessoa, o que pode causar danos à pessoa atingida[3]. Apesar das distinções técnicas, em geral, as diversas formas de abuso do direito de ação podem ser agrupadas sob a rubrica de “litigância predatória em sentido amplo” (admite superposição). Quanto à matéria, os focos do abuso do direito de ação por litigância predatória possuem espectro amplo, com ocorrências em diversos ramos do Direito: consumidores, instituições financeiras, ações previdenciárias, questões trabalhistas, contratos bancários, empréstimos consignados etc., conforme já identificado pelo Centro de Inteligência do Poder Judiciário[4]. É preciso combater a banalização e o uso predatório do sistema de justiça, diante do elevado volume de demandas inautênticas e ilegítimas, em manifesto abuso do direito de ação. O pós-positivismo, marco filosófico do neoconstitucionalismo, ensejou a reaproximação entre Direito e Ética, promovendo-se uma leitura moral do Direito[5] e a valorização da boa-fé. No direito material, o CC/2002 foi baseado em 3 princípios: operabilidade, eticidade e socialidade. A eticidade possui conexões importantes com a boa-fé objetiva, tanto no direito material quanto no direito processual. O CPC/2015, influenciado pelo neoprocessualismo, absorveu a perspectiva constitucional de modo expresso (CPC, art. 1º) e positivou expressamente o princípio da boa-fé processual objetiva como cláusula geral (CPC, art. 5º). A violação da boa-fé objetiva gera abuso de direito processual, que, na atualidade, tem como uma de suas expressões a litigância predatória. A boa-fé é norma fundamental do processo civil (CPC/2015, art. 5º). No atual estágio pós-positivista, a boa-fé objetiva, em sua terceira fase evolutiva, foi erigida a princípio constitucional. Na primeira fase, a boa-fé possuía caráter subjetivo e era limitada ao direito privado. Na segunda fase, a boa-fé passou a atuar como norma de conduta, assumindo contornos objetivos (objetivação da boa-fé), expandindo-se para o direito público, por intermediação do legislador (natureza legal). Na terceira fase evolutiva, a boa-fé objetiva recebeu status constitucional, sendo aplicável a todos os ramos do Direito (Administrativo, Processo Civil, Processo Penal etc.), independentemente de intermediação do legislador, como corolário do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). Essa é a posição do STF (RE 464963). A boa-fé objetiva processual é norma da qual se extrai o comando de que os atores processuais devem ter um modelo de conduta pautado na ética, lealdade e honestidade processuais (norma de conduta). Da boa-fé objetiva (treu und glauben) decorrem conceitos parcelares (supressio, surrectio, tu quoque, duty to mitigate the loss, exceptio doli, venire contra factum proprium) e deveres anexos (deveres de cooperação, respeito, de agir conforme a confiança depositada, lealdade, ética, honestidade etc.). Difere da boa-fé subjetiva (guten glauben), que é o elemento anímico. FPPC, Enunciado n.º 374: “O art. 5º prevê a boa-fé objetiva”. FPPC, Enunciado n.º 378: “A boa-fé processual orienta a interpretação da postulação e da sentença, permite a reprimenda do abuso de direito processual e das condutas dolosas de todos os sujeitos processuais e veda seus comportamentos contraditórios”. Enunciado n.º 01, Jornada de Processo Civil: “A verificação da violação à boa-fé objetiva dispensa a comprovação do animus do sujeito processual”. Enunciado n.º 412, V Jornada de Direito Civil - CJF/STJ: “As diversas hipóteses de exercício inadmissível de uma situação jurídica subjetiva, tais como supressio, tu quoque, surrectio e venire contra factum proprium, são concreções da boa-fé objetiva”. Enunciado n.º 169, III Jornada de Direito Civil - CJF/STJ: “O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. FPPC, Enunciado n.º 373: “As partes devem cooperar entre si; devem atuar com ética e lealdade, agindo de modo a evitar a ocorrência de vícios que extingam o processo sem resolução do mérito e cumprindo com deveres mútuos de esclarecimento e transparência”. No processo, sobrepairam exigências éticas e sociais inerentes à significação do processo como ferramenta de função essencial do Estado e satisfação do valor justiça[6]. Há influência de deves éticos no processo. O juiz deve velar pela eticidade na condução do processo. Conforme destacou Ada Pellegrini Grinover, “Mais do que nunca, o processo deve ser informado por princípios éticos [...] o processo deixou de ser visto como instrumento meramente técnico para assumir a dimensão de instrumento ético voltado a pacificar com justiça”. [7] Apesar da ausência de sistematização legal ou acadêmica, a litigância predatória é incompatível com o sistema jurídico brasileiro. A repressão à litigância predatória possui fundamentos constitucionais e legais. Fundamentos constitucionais: proibição do abuso do direito de ação (CF, art. 5º, XXXV; art. 187 do CC/2002); princípios da moralidade e da eficiência (CF, art. 37); princípio republicano (CF, art. 1º); devido processo legal substancial (CF, art. 5º, LIV) boa-fé objetiva (CF, art. 5º, LIV); cooperação etc. Como fundamentos legais, temos as disposições legais que permitem o juiz agir de ofício com poderes diretivos, fiscalizatórios e de cautela. A litigância predatória é a provocação do Poder Judiciário com o ajuizamento de ações artificiais ou demandas massificadas com elementos de abusividade ou fraude. Sua natureza é de ilícito processual e deve ser combatida, por ser contrária ao sistema processual objetivo. Nos EUA, sobre a litigância predatória (sham litigation), no célebre caso Professional Real Estate Investors, Inc. v. Columbia Pictures Industries, Inc. et. Al. – 508 U.S. 49 (1993), coube à Suprema Corte americana definir os pressupostos da sham litigation. A Suprema Corte americana entendeu que a litigância fraudulenta não poderia estar imune à caracterização de ato ilícito. Na ocasião, a Corte fixou os pressupostos da Sham Litigation: (1) a demanda deve ser objetivamente desprovida de base, no sentido de que qualquer litigante razoável possa realisticamente esperar sucesso no seu mérito e (2) utilização da demanda como uma ferramenta para conseguir objetivo antijurídico[8]. Assim, são dois os pressupostos mínimos da sham litigation: (a) elemento objetivo – ausência de razoabilidade e verossimilhança nos fundamentos da demanda; (b) elemento finalístico – uso do processo com o intuito de conseguir objetivo antijurídico. Ex: intento de obtenção de benefício previdenciário rural por “falso agricultor” (fake farmer) contra o INSS. Fredie Didier Jr. aborda a questão da litigância predatória: “conceito de ‘sham litigation’, conceito próprio do sistema jurídico dos Estados Unidos da América. Naquele sistema, ‘sham litigation’ (que significa, em termos literais, litigância fraudulenta) tornou-se o termo utilizado para o ato de deflagrar processo judicial ou outros procedimentos governamentais com o objetivo de atingir medida anticoncorrenciais [...] O conceito evoluiu para que fosse considerado como ‘predatória’ ou fraudulenta litigância com efeito antijurídico, que seria o uso impróprio dos tribunais para alcançar objetivos ilegais”. [9] “cabe ao Poder Judiciário reconhecer abuso do direito de ação que, eventualmente, tenha sido exercido pelo jurisdicionado”. [10] O CNJ assim definiu a litigância predatória no âmbito da rede de combate: “Consiste, normalmente, a litigância predatória na provocação do Poder Judiciário mediante o ajuizamento de demandas massificadas com elementos de abusividade e/ou fraude”[11]. A litigância predatória tem sido objeto de estudos, levantamentos e notas técnicas pelos tribunais, inclusive em relação às ações previdenciárias. O CNJ, o STJ e os demais tribunais do país têm integrado uma rede nacional de informações e combate à litigância predatória. O CNJ, ao tratar da rede de informações sobre litigância predatória, enfatizou publicamente: “O fenômeno da litigância predatória tem sido objeto de inúmeros estudos, levantamentos e notas técnicas pelos Tribunais do país. Consiste, normalmente, a litigância predatória na provocação do Poder Judiciário mediante o ajuizamento de demandas massificadas com elementos de abusividade e/ou fraude [...] Com o objetivo de combater esse tipo de prática abusiva de efeitos deletérios para o Poder Judiciário ao sobrecarregar varas e tribunais com demandas artificiais, foi concebida, para o ano de 2023, a Diretriz Estratégica n. 7 para as Corregedorias, a fim de que envidem esforços no sentido de regulamentar e promover práticas e protocolos para o combate à litigância predatória, preferencialmente com a criação de meios eletrônicos para o monitoramento de processos e alimentação de um painel único pela Corregedoria Nacional de Justiça”. [12] Sobre a litigância predatória, a Corte Especial do STJ previu a possibilidade de multa: “a litigância frívola, predatória, desenfreada, impensada, irresponsável e inconsequente, que se pretende combater com a fixação rígida (e, por vezes, exorbitante) de honorários advocatícios, pode ser eficazmente sancionada, por exemplo, pela imposição de multa” (STJ, REsp n. 1.906.623/SP, Corte Especial, Rel. Min. Og Fernandes, DJe de 31/5/2022). Em levantamento feito no Sistema BI, a partir de dados objetivos, constatou-se uma alta taxa de improcedência nas ações de salário-maternidade rural: aproximadamente 80% das novas ações de salário-maternidade rural distribuídas na subseção não são acolhidas. Conforme a estatística, a grande maioria dos casos de improcedência é motivada pela falta da qualidade de segurado especial, com inspeção judicial negativa e ausência de perfil rural. Na subseção, foi identificado um volume considerável de ações promovidas por pessoas que não são agricultoras, mas que tentam se passar como tais para obter o benefício em juízo – falsos agricultores (fake farmers). Há um extenso quadro de litigância predatória sistêmica e difusa instalado na localidade, pulverizado em centenas de demandas artificiais ajuizadas por diversos advogados e escritórios de advocacia, especificamente em relação às ações de salário-maternidade rural promovidas contra instituição pública (INSS), envolvendo pessoas que, à evidência, não são agricultoras. Fredie Didier Junior explica sobre a litigância predatória sistêmica: “É possível que a ‘sham litigation’ configure-se não por uma demanda isolada da parte, mas por uma série de demandas que, conjuntamente, formam uma rede sistêmica [...] considera-se que, nesse caso, eventual sucesso em uma ou algumas demandas, não descaracterizariam, por si sós, a presença do elemento objetivo [...] deve-se demonstrar que a pluralidade de demandas com conteúdo razoavelmente desprovido de verossimilhança significa, como uma rede, uma unidade de comportamento”[13]. A variabilidade decisória e a ausência de filtros para a admissibilidade de demandas predatórias têm se revelado potencial fonte de estímulo ao uso lotérico do sistema de justiça. Sobre essa questão, Pignaneli enfatizou: “o fenômeno da judicialização abusiva que acomete o Poder Judiciário brasileiro talvez tenha nos Juizados Especiais Cíveis (JECs) a sua maior demonstração [...] a simples ideia de inexistência de qualquer filtro de controle aos litigantes, trazida e comercializada pelos Juizados Especiais, materializada, principalmente, na ausência de custas e honorários no primeiro grau, no jus postulandi, no alargamento do conceito aberto de ‘baixa complexidade’, bem como sua ampliação para as Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, trouxe consigo uma enxurrada de pretensões, legítimas e ilegítimas, a esse sistema de justiça”. [14] No sistema de justiça, é preciso efetuar o “controle dessas demandas ilegítimas, desnecessárias, frívolas, com mecanismos processuais para filtrar as demandas abusivas”[15]. Marcellino Junior sustenta haver a necessidade e dever do Poder Judiciário de impedir o abuso do direito de ação, a partir de critérios objetivos: “A necessidade de se estabelecer um critério objetivo que permita ao magistrado ‘filtrar’ o excesso de litigância é premente. O direito de ação e o amplo acesso à justiça não podem ser utilizados como escudos para obstruir o funcionamento pleno do Poder Judiciário. A abusividade precisa ser combatida [...] Esta ação judicante passa pela hermenêutica jurídica. Por isso, o papel do magistrado nesse jogo processual também precisa ser revisto, de modo a reconhecer que o modelo tradicional hermenêutico se apresenta como insuficiente e precário para uma empreitada desse porte. A função do magistrado no acolhimento de demandas judiciais precisa ser reanalisada”[16]. Diante desse cenário, é preciso estabelecer um critério objetivo de filtragem e combate à litigância predatória: a exigência de perfil rural mínimo nas ações de salário-maternidade rural como forma de aferir a razoabilidade e verossimilhança nos fundamentos da demanda. Perfil rural mínimo. Como se sabe, o labor rural é bastante sofrido, desgastante e deixa marcas visíveis pelo corpo: mãos grossas e calejadas; pele queimada do sol; envelhecimento precoce pela exposição solar etc. É de conhecimento público e notório que, nos primeiros dias de trabalho no campo com a utilização de enxada e outros utensílios, as mãos do agricultor apresentam calosidade expressiva e chegam a estourar, além da pele queimada do sol. Não obstante, em centenas de ações que têm por objeto o benefício de salário-maternidade rural, o que se vê, nesta subseção, é que muitas pessoas que se dizem agricultoras sequer demonstram perfil rural mínimo, apresentando mãos lisas, finas e sem calos; pele preservada do sol etc. São centenas de ações ajuizadas todos os meses e milhares de ações protocoladas nos últimos anos no local. E a taxa de improcedência é altíssima, o que denota a existência de um extenso quadro de litigância predatória sistêmica e difusa instalado na localidade. À evidência, não se revela crível que uma pessoa, ao postular benefício salário-maternidade rural afirmando ser agricultora, não carregue consigo nenhuma marca ou desgaste no corpo decorrente do labor rural, apresentando mãos lisas, finas e sem calos; pele preservada do sol; cabelos bem cuidados etc. E as “justificativas” são de toda ordem. Algumas pessoas alegam “usar luvas”, outras dizem que “suas mãos não aparecem calos”, que usam “chapéus e casacos”, que o “esposo faz o trabalho pesado” etc., havendo até quem diga passar “creme nas mãos” para evitar os calos. Some-se a isso a circunstância de a pessoa não apresentar características rurais. Isso acontece em centenas de ações de salário-maternidade rural. Esses são exemplos de elementos de evidência objetiva de falso agricultor (fake farmer). No procedimento anterior, o exame do perfil rural somente era feito em audiência. Agora, na nova sistemática, trabalharemos com um exame preliminar de perfil rural, através de fotografias das mãos, do rosto e do corpo com o escopo de verificar se a parte autora apresenta perfil rural mínimo, antes mesmo da realização da audiência. Essa medida é uma providência de combate à litigância predatória, pois são muitas ações de salário-maternidade rural ajuizadas por pessoas que não são agricultoras. E isso tem gerado centenas de audiências em demandas artificiais e predatórias de falsos agricultores (ações abusivas e ilegítimas), consumindo tempo e energia que poderiam ser dedicados a processos sérios e reais. O CPC/2015 fornece base legal expressa para essas providências. Confira: “Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: [...] VI - dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito”. “Art. 481. O juiz, de ofício ou a requerimento da parte, pode, em qualquer fase do processo, inspecionar pessoas ou coisas, a fim de se esclarecer sobre fato que interesse à decisão da causa”. “Art. 421. O juiz pode, de ofício, ordenar à parte a exibição parcial dos livros e dos documentos, extraindo-se deles a suma que interessar ao litígio, bem como reproduções autenticadas”. Em resumo, temos as seguintes situações: (a) perfil rural mínimo positivo: o processo segue normalmente; (b) perfil rural mínimo negativo: serão adotadas as providências legais de combate à litigância predatória, nos termos da lei e das diretrizes do CNJ, STJ e demais tribunais. Alerte-se que qualquer tentativa de fraude na “confecção artificiosa do perfil rural mínimo” poderá apresentar repercussões na esfera criminal, a teor do disposto no art. 347 do CP. Dos Crimes Contra a Administração da Justiça Fraude processual “Art. 347 - Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito: Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa”. Por fim, devo dizer que o benefício de salário-maternidade não pode ser desnaturado e degenerado para legitimar centenas de demandas artificiais e aventuras irresponsáveis de pessoas que não são agricultoras e que tentam se passar por segurados especiais, em grave agressão e vulneração ao sistema judiciário do país, que já está bastante sobrecarregado. No Brasil, o salário-maternidade rural é um benefício previdenciário; não tem natureza assistencial, não se prestando à “redistribuição de renda”. Não pode ser tratado como se fosse um benefício análogo ao “bolsa família” para pessoas de baixa renda que não são agricultoras, o que dependeria de alteração legislativa. O Judiciário não é loteria para arriscar e tentar a sorte. As ações judiciais não podem se transformar em aventuras irresponsáveis e inconsequentes. São milhares de ações que assoberbam o Judiciário em todo o país com prejuízo para todos. Há uma regra de experiência popular: “quem não deve, não teme”. Os reais agricultores não precisam se preocupar com avaliação da exigência de perfil rural mínimo, pois são agricultores. Mas aqueles que não são agricultores e tentam se passar como tais - fake farmers (falsos agricultores), deverão refletir bem antes de ingressarem com demandas artificiais e predatórias, pois a política judiciária de combate à litigância predatória já começou. Dura lex, sed lex. Diante do exposto, determino a intimação da parte autora para que, no prazo de 10 dias, apresente fotos e/ou vídeos que mostrem as mãos, corpo e rosto, para fins de exame preliminar do perfil rural mínimo para a aferição da admissibilidade da instrução oral em audiência. Essa é uma etapa que integra o procedimento probatório (propositura, admissão, produção e valoração), como providência de prevenção, combate e dissuasão da litigância predatória (CPC, arts. 370, 139, VI, 481 e 421). Advirto que a inércia da parte implicará preclusão e julgamento conforme o estado do processo (CPC, arts. 354 a 357). Após, voltem os autos conclusos. Providências necessárias. Arapiraca-AL, data da assinatura eletrônica. PAULO HENRIQUE DA SILVA AGUIAR Juiz Federal Substituto [1] O abuso de direito foi conhecido e estudado inicialmente na perspectiva do direito material. A origem da ideia de abuso de direito é remota e deita raízes no direito romano (aemulatio; temeritas processual). Há referências na jurisprudência francesa, conforme apontam os irmãos Mazeaud. Na Inglaterra, em matéria de lide temerária, a teoria do abuso do direito recebeu consagração legal a partir do Vexation Actions Act (1896) para coibir aqueles que intentassem processos sem motivos legítimos. [2] CNJ. Rede de Informações sobre a Litigância Predatória. Disponível em:
. Acesso em: 12/03/2024. [3] STJ, REsp 1.817.845-MS, 3ª Turma, Rel. p/ ac. Min. Nancy Andrighi, DJe 17/10/2019, Informativo n.º 658, nov-2019. [4] “Qualquer que seja a matéria sobre a qual incidam as práticas predatórias – relações consumeristas, relações entre Estado e servidores públicos, atuação estatal em geral, relações previdenciárias, questões trabalhistas - para mencionar apenas algumas daquelas no tocante às quais os dados jurimétricos até aqui colhidos têm evidenciado mais frequentes focos de abuso do direito de ação, o Poder Judiciário tem o poder-dever – imposto, repita-se, pela Constituição e pela lei – de adequado enfrentamento (prevenção e combate), quer os abusos advenham de ocupantes do polo ativo, quer do polo passivo da relação processual” (Centro de Inteligência do Poder Judiciário, Nota Técnica no Tema Repetitivo nº 1198 STJ, pág. 10). [5] Barroso, L. R. (2005). Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista De Direito Administrativo, 240, 1–42. [6] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual. Primeira Série. 2ª Ed. São Paulo: 1988, p. 16 [7] GRINOVER, Ada Pellegrini. Ética, abuso do processo e resistência às ordens judiciárias: o contempt of court in Revista de Processo: RePro, vol. 26, n.º 102, São Paulo: Revista dos Tribunais, abr./jun., 2001, p. 219). [8] BONFIM, Daniela Santos; JUNIOR, Fredie Didier. Pareceres. Vol. II. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 38. [9] BONFIM, Daniela Santos; JUNIOR, Fredie Didier, Op. Cit., p. 37-38. [10] BONFIM, Daniela Santos; JUNIOR, Fredie Didier, Op. Cit., p. 35. [11] CNJ. Rede de Informações sobre a Litigância Predatória. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/litigancia-predatoria. Acesso em: 12/03/2024. [12] CNJ. Rede de Informações sobre a Litigância Predatória. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/litigancia-predatoria. Acesso em: 12/03/2024. [13] BONFIM, Daniela Santos; JUNIOR, Fredie Didier. Op. Cit., p. 39. [14] PIGNANELI, Guilherme. Análise Econômica da Litigância. Uma Busca pelo Efetivo Acesso à Justiça. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023, p. 177-178. [15] PIGNANELI, Guilherme. Op. Cit., p. 179. [16] JUNIOR, Julio Cesar Marcellino. A Análise Econômica do Acesso à Justiça: Dilemas da Litigância Predatória e Inautêntica. 2ª Ed. Florianópolis: Emais, 2019, p. 210-211.
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