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Ivens Neris Silva x Fundação Cesgranrio

ID: 336733938

Tribunal: TRF1 Órgão: 14ª Vara Federal Cível da SJBA Classe: PROCEDIMENTO COMUM CíVEL Nº Processo: 1005979-75.2025.4.01.3300

Data de Disponibilização: 29/07/2025

Polo Ativo:

IVENS NERIS SILVA

Polo Passivo:

FUNDAÇÃO CESGRANRIO

Sentença Tipo B

Advogados:

GUILHERME RIBEIRO ROMANO NETO

OAB/RJ XXXXXX Desbloquear

ELVIS BRITO PAES

OAB/RJ XXXXXX Desbloquear

AILTON ABREU ROCHA FILHO

OAB/BA XXXXXX Desbloquear

Seção Judiciária do Estado da Bahia 14ª Vara Federal Cível da SJBA SENTENÇA TIPO "B" PROCESSO: 1005979-75.2025.4.01.3300 CLASSE: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7) AUTOR: IVENS NERIS SILVA REU: UNIÃO FEDER… Seção Judiciária do Estado da Bahia 14ª Vara Federal Cível da SJBA SENTENÇA TIPO "B" PROCESSO: 1005979-75.2025.4.01.3300 CLASSE: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7) AUTOR: IVENS NERIS SILVA REU: UNIÃO FEDERAL, FUNDAÇÃO CESGRANRIO SENTENÇA I – RELATÓRIO Trata-se de ação sob o rito do procedimento comum, com pedido de tutela de urgência, proposta por IVENS NERIS SILVA em face da UNIÃO FEDERAL e da FUNDAÇÃO CESGRANRIO, objetivando a procedência da ação para “que seja declarado nulo o ato administrativo que excluiu o candidato do certame, bem como que possa continuar nas fases subseqüentes como candidato pardo” (Id. 2169398862). A parte autora afirma que prestou Concurso Público Nacional Unificado, Edital 04/2024 de 10 de janeiro de 2024, na modalidade de cotas reservadas aos candidatos PPI (pretos, pardas e indígenas). Narra que, no ato de inscrição, enviou requerimento de sua inscrição para concorrer às vagas para candidatos negros, conforme o quesito cor ou raça utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sendo preliminarmente deferido para concorrer às vagas destinadas aos cotistas e convocado para a verificação da autodeclaração pela Banca. Conta que, após realizado o procedimento de heteroidentificação, a autodeclaração do autor não foi aceita pela Comissão examinadora, sem que fosse apresentada uma justificativa plausível. Diz que a comissão se ateve a indicar que o requerente estava na condição de “não enquadrado”. Relata ter interposto recurso administrativo com a finalidade de sanar o erro cometido pela comissão avaliadora, no entanto, a banca examinadora manteve o posicionamento anterior, indeferindo o enquadramento do requerente na condição de pardo e, por conseqüência, retirando do autor o direito de ter acesso a classificação e convocação no certame. Expõe que, mesmo após a apresentação do recurso administrativo, a requerida fundamentou o indeferimento de forma genérica, se limitando a negar o recurso da mesma forma, deixando o autor sem saber as razões de seu não enquadramento. A inicial veio acompanhada de procuração e documentos. Requereu o benefício da justiça gratuita. Decisão de Id. 2169820255 indeferindo o pedido de tutela de urgência ao mesmo tempo que deferiu os benefícios da justiça gratuita. A Fundação Cesgranrio contestou o feito ao Id. 2180881203 sustentando, em síntese o estrito cumprimento das regras previstas no edital do certame quanto ao procedimento para avaliação de autodeclaração. A União contestou o feito pugnando pela improcedência dos pleitos autorais (id. 2183547048). Sem mais provas, os autos vieram-me conclusos para sentença. II – FUNDAMENTAÇÃO Sem preliminares, examino o mérito. A liminar que indeferiu o pedido de tutela de urgência delineou o seguinte entendimento: (...) De imediato, recordo que o controle realizado pelo Poder Judiciário se limita à legalidade dos atos da administração pública, não lhe sendo dado revisar as escolhas de natureza técnica ou política realizadas pela autoridade competente, inclusive, quanto aos critérios adotados em seleções públicas, conforme reiterada e longeva jurisprudência dos tribunais superiores: "O controle do Poder Judiciário, em tema de concurso público, deve limitar-se à verificação da observância dos princípios da legalidade e da vinculação ao edital; em razão da discricionariedade da Administração Pública, que atua dentro do juízo de oportunidade e conveniência, na fixação dos critérios e normas editalícias, os quais deverão atender aos preceitos instituídos pela Constituição Federal de 1988, mormente o da vedação de adoção de critérios discriminatórios". (STJ, RMS 28751, DJe 19/12/2011). No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal firmou tese segundo a qual: “Não compete ao Poder Judiciário substituir a banca examinadora para reexaminar o conteúdo das questões e os critérios de correção utilizados, salvo ocorrência de ilegalidade ou de inconstitucionalidade” (RE 632853, DJe 26/03/2015 – Tema 485), entendimento que se aplica às conclusões das comissões de heteroidentificação, dada a natureza de suas deliberações. Dito isso, destaco não haver dúvidas quanto à constitucionalidade do procedimento de heteroidentificação, conforme delineado pelo STF quando do exame das ações afirmativas utilizadas como critério de seleção em concursos públicos: É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa (STF, ADC n. 41, DJe 17/08/2017). Pouco antes, o STF havia firmado tese a respeito da constitucionalidade do sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial no processo de seleção para ingresso em instituições superiores de ensino, ocasião na qual se ressaltou a legitimidade da avaliação realizada por banca examinadora de concurso público para a aferição da presença de características fenotípicas negras para a inclusão do candidato na relação de aprovados nas vagas reservadas às cotas para negros, como se vê em elucidativo trecho do voto do Ministro Luiz Fux: “A discriminação e o preconceito existentes na sociedade não têm origem em supostas diferenças no genótipo humano. Baseiam-se, ao revés, em elementos fenotípicos de indivíduos e grupos sociais. São esses traços objetivamente identificáveis que informam e alimentam as práticas insidiosas de hierarquização racial ainda existentes no Brasil. Nesse cenário, o critério adotado pela UnB busca simplesmente incluir aqueles que, pelo seu fenótipo, acabam marginalizados. Diante disso, não vislumbro qualquer inconstitucionalidade na utilização de caracteres físicos e visíveis para definição dos indivíduos afrodescendentes.” (STF, ADPF 186, DJe 20/10/2014) Como se vê, a Suprema Corte não apenas admite como defende a utilização de um modelo misto de avaliação para garantir a lisura do sistema de cotas raciais e evitar que a desvirtuação dos objetivos da política afirmativa. Com efeito, a Lei n. 12.990/04 reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos Concursos Públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da Administração Pública Federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas, e da sociedade de economia mista controladas pela União. O art. 2º da referida lei estabelece que poderão concorrer às vagas reservadas aos candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos, no ato da inscrição do Concurso Público, conforme o quesito de cor ou raça utilizado pela Fundação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Partindo desta premissa, não seria possível extrair da Lei n. 12.990/2014 que a autodeclaração seria o único critério exigível para aferição do direito dos candidatos interessados em concorrer às vagas destinadas às cotas raciais: Art. 2º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis. Com efeito, a referência ao “quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE” não significa que a lei adotou a mera declaração como critério exclusivo, mas a utilização da terminologia adotada nas estatísticas demográficas oficiais. Nestes termos, a autodeclaração constitui requisito para que o candidato dispute as vagas reservadas, porém, a veracidade e a adequação social da sua declaração estão sujeitas a confirmação por meio de procedimento administrativo específico. Entendimento contrário tornaria letra morta a política de cotas, pois entregaria ao puro arbítrio de cada candidato decidir se poderia ou não ter acesso às vagas reservadas, desvirtuando por completo a finalidade da Lei, em prejuízo justamente do segmento social que o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010) visa a proteger.. A utilização de mecanismo de controle misto pelos métodos da autodeclaração e da heteroidentificação teve sua compatibilidade com a Constituição atestada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 186/DF (Relator Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012), conforme se infere da seguinte passagem do voto do Ministro Relator: “[...] Em outras palavras, tratando-se da utilização do critério étnico-racial para o ingresso no ensino superior, é preciso analisar ainda se os mecanismos empregados na identificação do componente étnico-racial estão ou não em conformidade com a ordem constitucional. Como se sabe, nesse processo de seleção, as universidades têm utilizado duas formas distintas de identificação, quais sejam: a autoidentificação e a heteroidentificação (identificação por terceiros). Essa questão foi estudada pela mencionada Daniela Ikawa, nos seguintes termos: “A identificação deve ocorrer primariamente pelo próprio indivíduo, no intuito de evitar identificações externas voltadas à discriminação negativa e de fortalecer o reconhecimento da diferença. Contudo, tendo em vista o grau mediano de mestiçagem (por fenótipo) e as incertezas por ela geradas – há (...) um grau de consistência entre autoidentificação e identificação por terceiros no patamar de 79% -, essa identificação não precisa ser feita exclusivamente pelo próprio indivíduo. Para se coibir possíveis fraudes na identificação no que se refere à obtenção de benefícios e no intuito de delinear o direito à redistribuição da forma mais estreita possível (...), alguns mecanismos adicionais podem ser utilizados como: (1) a elaboração de formulários com múltiplas questões sobre a raça (para se averiguar a coerência da autoclassificação); (2) o requerimento de declarações assinadas; (3) o uso de entrevistas (...); (4) a exigência de fotos; e (5) a formação de comitês posteriores à autoidentificação pelo candidato. A possibilidade de seleção por comitês é a alternativa mais controversa das apresentadas (...). Essa classificação pode ser aceita respeitadas as seguintes condições: (a) a classificação pelo comitê deve ser feita posteriormente à autoidentificação do candidato como negro (preto ou pardo), para se coibir a predominância de uma classificação por terceiros; (b) o julgamento deve ser realizado por fenótipo e não por ascendência; (c) o grupo de candidatos a concorrer por vagas separadas deve ser composto por todos os que se tiverem classificado por uma banca também (por foto ou entrevista) como pardos ou pretos, nas combinações: pardo-pardo, pardo-preto ou preto-preto; (d) o comitê deve ser composto tomando-se em consideração a diversidade de raça, de classe econômica, de orientação sexual e de gênero e deve ter mandatos curtos” Tanto a autoidentificação, quanto a heteroidentificação, ou ambos os sistemas de seleção combinados, desde que observem, o tanto quanto possível, os critérios acima explicitados e jamais deixem de respeitar a dignidade pessoal dos candidatos, são, a meu ver, plenamente aceitáveis do ponto de vista constitucional. A seguir, após analisar a constitucionalidade das ações afirmativa, dos critérios étnico-raciais e dos distintos métodos de identificação dos candidatos para o acesso diferenciado ao ensino superior público, passo ao exame das políticas de reserva de vagas ou estabelecimento de cotas. [...]” Por sua vez, a Orientação Normativa n. 3, de 1º de agosto de 2016, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão veio disciplinar a forma de verificação da autodeclaração dos candidatos declarados negros/pardos, determinando que os editais de Concurso Público prevejam a verificação da autodeclaração do candidato que se autodeclarar preto ou pardo para concorrer pelo sistema de cotas por meio de comissões de verificação, prevendo também a possibilidade de recurso para candidatos não considerados pretos ou pardos após a decisão da comissão. A Orientação Normativa ainda ressalva que as formas e verificação da veracidade da autodeclaração deverão considerar tão somente os aspectos fenotípicos do candidato, os quais serão verificados obrigatoriamente com a presença do candidato. Assim sendo, não cabe apenas o candidato se declarar preto/pardo, deverá, portanto, se submeter à verificação da autodeclaração por meio de comissões de verificação, conforme preceitua a Orientação Normativa do MPOG, ratificada pelo disposto na Portaria Normativa MPOG n. 4/2018. Seguindo esta linha, o Edital n. 04/2024 – Concurso Público Nacional Unificado, 10 de Janeiro de 2024, assim dispôs[1]: 3.4 - DO PROCEDIMENTO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO DOS CANDIDATOS NEGROS. 3.4.1 - Após a etapa de qualificação técnica e antes da homologação dos resultados finais os candidatos que se autodeclararam negros, aprovados na prova discursiva, serão convocados em Edital específico para aferição presencial da veracidade da autodeclaração prestada, em data, local e horário estabelecidos pela Fundação Cesgranrio, ao procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros conforme disposto no art. 17 da Instrução Normativa MGI nº 23, de 25 de julho de 2023. 3.4.1.1 - Considera-se procedimento de heteroidentificação a identificação por terceiros da condição autodeclarada. 3.4.2 - Para o procedimento de heteroidentificação, o candidato que se autodeclarou negro deverá se apresentar à Comissão de heteroidentificação. 3.4.2.1 - A Comissão de Heteroidentificação será composta por cinco integrantes e seus suplentes, que não terão seus nomes divulgados, e deverá garantir a diversidade das pessoas que a integram quanto ao gênero, à cor e, sempre que possível, à origem regional. 3.4.2.2 - Os currículos dos membros da Comissão de Heteroidentificação serão divulgados na página referente a este Concurso Público Nacional Unificado, no endereço eletrônico do Concurso Público Nacional Unificado (https://www.gov.br/gestao/pt-br/concursonacional/), no dia de divulgação do Edital de convocação para essa fase. 3.4.2.3 - O procedimento de heteroidentificação será filmado pela Fundação Cesgranrio para fins de registro de avaliação para uso da Comissão de Heteroidentificação. 3.4.2.3.1 - O candidato que se recusar a realizar a filmagem do procedimento de heteroidentificação será eliminado do Concurso Público Nacional Unificado, dispensada a convocação suplementar de candidatos não habilitados 3.4.2.4 - A Comissão de Heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato. 3.4.2.4.1 - Serão consideradas as características fenotípicas do candidato ao tempo de realização do procedimento de heteroidentificação. 3.4.2.4.2 - Não serão considerados, para fins do disposto no subitem 3.4.2.4.1 deste Edital, quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados, inclusive imagem e certidões referentes a confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em Concursos Públicos federais, estaduais, distritais e municipais. 3.4.2.4.3 - Não será admitida, em nenhuma hipótese, para aferição da condição declarada pelo candidato no certame, prova baseada em ancestralidade. 3.4.2.5 - A Comissão de Heteroidentificação deliberará pela maioria de seus membros, em parecer motivado. 3.4.2.5.1 - As deliberações da Comissão de Heteroidentificação terão validade apenas para este Concurso Público Nacional Unificado. 3.4.2.5.2 - É vedado à Comissão de Heteroidentificação deliberar na presença dos candidatos. 3.4.2.5.3 - O teor do parecer motivado será de acesso restrito, nos termos do art. 31 da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. 3.4.3 - Será eliminado do Concurso Público Nacional Unificado o candidato que: a) não comparecer ao procedimento de heteroidentificação; ou b) recusar-se a ser filmado. 3.4.4 - O candidato cuja autodeclaração não for confirmada em procedimento de heteroidentificação concorrerá às vagas destinadas à ampla concorrência, desde que possua, em cada fase anterior do certame, nota ou pontuação suficiente para prosseguir nas demais fases. 3.4.5 - O candidato que prestar declarações falsas será excluído do processo, em qualquer fase deste Concurso Público Nacional Unificado, e responderá legalmente pelas consequências decorrentes do seu ato. De fato, a principal finalidade da norma contida no item 3.4 do Edital e seus subitens é a de, num primeiro momento, desestimular autodeclarações falsas, e, ao final, a de impedir a destinação indevida das cotas com base em declarações incapazes de serem sustentadas por pessoas que, de acordo com a opinião uniforme de uma junta de especialistas, são socialmente “lidas” como brancas, não se enquadrando nesse conceito de pessoas negras (pretas e pardas). Decerto, o modelo objetivo de avaliação adotado no âmbito dos concursos públicos não retira a margem de subjetividade que permeia toda a discussão acerca da identificação racial, o que torna possível, por exemplo, resultados distintos para um mesmo candidato em seleções diversas. Embora não se defenda que o critério de avaliação seja pura e simplesmente a opinião dos membros da banca examinadora, é certo que a classificação étnico-racial não se baseia num parâmetro matemático que, numa última análise, admitiria a existência de uma subdivisão da espécie humana. Ou seja, por mais que os aspectos fenotípicos constituam critério seguro e sindicável, não estão totalmente imunes a uma interferência subjetiva. Por isso, não se perde de vista a relevância da autodeclaração, pois, nos termos do art. 1º, parágrafo único, da Portaria Normativa MPOG n. 4/2018, o respeito à subjetividade e a dignidade das pessoas que se encontram nas margens de ambas as categorias raciais mais marcantes, em posição ambígua, pois apresentam traços fenotípicos de ambas as raças. A autodeclaração permite considerar a raça na qual cada pessoa se compreende, observando o lugar social que entende ter-lhe sido atribuído por conta de sua cor e fenótipo, pois, partindo-se do pressuposto de que as compreensões de raça, identidade racial e racismo são sociológicas e não meramente biológicas, a opinião a respeito de si pode conter, para além de uma escolha racional, um traço revelador de identidade. Entretanto, considerando que o racismo integra uma estrutura social que depende da leitura que as pessoas fazem da raça e da cor, não se pode pensar apenas neste aspecto subjetivo, sendo necessário averiguar se o indivíduo que se autodeclarou negro (preto ou pardo) efetivamente seria lido como negro pela sociedade e, por consequência, vitimado pelo racismo. As comissões de heteroidentificação tem por objetivo, portanto, além de garantir a lisura do processo seletivo (leia-se, evitar fraudes), verificar se a leitura social da raça condiz com a autodeclaração, pois, sob esse prisma, o negro no Brasil costuma ser alvo de racismo em razão de seus traços fenotípicos. É o que nos ensina Roger Raupp Rios[2]: “Quando a regulamentação da política pública fala de “aferir”, “verificar” a “veracidade”, não se se trata de uma pretensa “verdade sobre a raça”, no sentido de um realismo ontológico, apelando para dados biológicos, essências irredutíveis, fixas e cristalizadas, ou porta-vozes indiscutíveis e “donos da verdade”. [...] Verificar a veracidade, portanto, encerra dupla tarefa: desvendar a que identidade racial (documental, privada, pública, social) referiu-se o autodeclarante, além de aferir se a vivência declarada atende, de modo concreto, à centralidade que os objetivos da política pública dão à raça social”. A esse respeito, Roger Raupp Rios explica que “no exercício de sua tarefa heteroidentificatória, a comissão deve corrigir eventual autoatribuição identitária equivocada, à luz dos fins da política pública, iniciativa que não se confunde com lugar para a confirmação de percepções subjetivas ou satisfação de sentimentos pessoais, cuja legitimidade não se discute nem menospreza, mas que não vinculam, nem podem dirigir, a política pública”[3]. Não por outra razão, "os resultados de heteroidentificação emitidos por comissões de concursos anteriores não geram direito adquirido ao candidato nem o eximem de submeter-se novamente ao exame das características fenotípicas em concursos futuros, sem influência de um resultado sobre outro" (TRF-1, Des. Federal Daniel Paes Ribeiro, TutAntAnt 10022952720204010000, PJe 12/03/2020), como também se extrai da Resolução CNJ n. 203/2015: Art. 5º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos, no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). § 1º A autodeclaração terá validade somente para o concurso público aberto, não podendo ser estendida a outros certames. § 2º Presumir-se-ão verdadeiras as informações prestadas pelo candidato no ato da inscrição do certame, sem prejuízo da apuração das responsabilidades administrativa, civil e penal na hipótese de constatação de declaração falsa. § 3º Comprovando-se falsa a declaração, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua nomeação, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis. Neste cenário, a leitura preconizada pela ação afirmativa não poderia ser realizada por meio de um essencialismo cartorário, que procura identificar a pessoa como preta ou branca, através de uma escala inflexível e imutável dos traços fenotípicos associados a este tipo de leitura racial. Posta assim a questão, é de se dizer que deverão ser consideradas as características fenotípicas do candidato à época da realização do exame de heteroidentificação, considerando a performatividade racial que permite a modificação de traços fenotípicos para garantir maior passabilidade social, considerando que as alterações fenotípicas transitórias (alisamento do cabelo) ou definitivas (cirurgias estéticas) são capazes de alterar a leitura racial. Esta é a razão pela qual o art. 9º, §1º da Portaria Normativa n. 04/2018 do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão prevê que serão consideradas as características fenotípicas do candidato ao tempo da realização do procedimento de heteroidentificação, impedindo, ainda, que resultados de certames anteriores sejam considerados. Neste mesmo sentido, o item 3.4.2.4.2 do Edital transcrito alhures assevera que não serão considerados “quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados, inclusive imagem e certidões referentes a confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em concursos públicos federais, estaduais, distritais e municipais”. De se ter em conta que, no Brasil, o racismo se lastreia nos traços fenotípicos dos indivíduos, sendo irrelevante a sua ancestralidade (diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo) e pouco considerada a sua condição social (a qual pode ser utilizada para minimizar e não para afastar as discriminações decorrentes do racismo). Por isso, uma das maiores dificuldades, nestes casos, envolve a avaliação dos candidatos que se autodeclaram como pardos, já que sua análise fenotípica poderá estar situada numa zona limítrofe cuja complexidade se afasta da dicotomia radical entre pretos e brancos. A grande variedade de tons de pele e traços fenotípicos decorrentes do processo de miscigenação impõe uma interpretação mais coerente com essa realidade intermediária, na qual parte dos indivíduos (pardos) está sujeito a consequências menos graves do racismo estrutural, enquanto outras são constantemente vítimas deste cenário de segregação baseada na aparência (pretos). Assim, uma flexibilização exagerada da noção de que qualquer traço típico de fenótipos negros justificaria o enquadramento nas cotas raciais terminaria por inviabilizar um dos principais objetivos da política de cotas nos concursos públicos, que é a de reparar a sub-representação de pessoas negras nos cargos públicos. Como já exposto alhures, a intensa miscigenação racial que formou a população brasileira deu origem a diversas possibilidades de negritude, sendo previsível que quantidade considerável de pessoas possuem aparência com aspectos limítrofes entre os fenótipos. Aliás, é justamente a existência desta área cinzenta que justifica a existência da comissão de heteroidentificação. Dizendo de outro modo, diante de critérios de heteroidentificação cuja objetividade é restrita, adotar apenas padrões mais próximos de uma escala medial terminaria por aprofundar ainda mais a distância estatística entre as pessoas situadas nos extremos das tonalidades claras e escuras, pois teríamos como principais beneficiários das cotas pessoas com maior capacidade de serem socialmente aceitas como não pretas. Para melhor compreensão do tema, importa registrar que o racismo no Brasil se estrutura através de traços fenotípicos, “racializando” pessoas pretas ou não brancas de acordo com traços biológicos que são lidos a partir de uma compreensão sociológica da raça e das identidades étnico-raciais. Assim, neste processo de discriminação, confere-se maior peso para fenotípicos mais marcados para a raça negra, e não para o conceito mais amplo de pele parda. Como exemplo, é evidente que pretos retintos sofrem maior discriminação do que as pessoas negras de pele mais clara. Nesta ordem de ideias, é pertinente recordar que a reprovação no exame de heteroidentificação não produz efeitos jurídicos para além daquela seleção pública específica, quer em relação ao Poder Público em todas as esferas de governo, quer para acesso ao ensino superior, quer em relação ao candidato em suas relações pessoais. Assim, sem desconhecer o possível impacto psicológico de um resultado negativo na consciência subjetiva de alguns candidatos quanto à sua autopercepção racial e sentimento de pertencimento ao grupo destinatário da política pública, esta circunstância acidental não denota uma falha no modelo da ação afirmativa, mas, ao contrário, reafirma a natureza heterogênea de sua análise (caráter intrínseco de uma ciência social e não estritamente biológica), bem como seu impacto positivo no controle de eventuais fraudes. Dito isto, ressalte-se que a possibilidade de um mesmo candidato ser ou não aprovado por comissões de heteroidentificação não implica em negar o direito fundamental à autoidentificação ou supor que esta identidade seja algo inevitavelmente invariável, mas tão somente que, diante dos critérios existentes (e previstos na legislação), o componente sociocultural inerente à sua avaliação confirma a inexistência de direito adquirido a concorrer em concurso público como candidata ou candidato cotista, sendo necessária a heteroidentificação em todos os casos, principalmente considerando as possibilidades de alterações fenotípicas e de interpretações destas alterações de acordo com o momento histórico e o local. Considerando esta premissa, a disciplina da disputa por vagas no sistema de cotas raciais deve levar em conta a leitura fenotípica socialmente atribuída para as pessoas consideradas pardas e, em especial, os impactos do que Alice Walker denominou “Colorismo”. Este conceito permite refletir sobre como os diversos tons de pele e demais traços fenotípicos influenciam na maior inclusão ou exclusão da vida social, fazendo com que a pessoa de pele mais escura sinta de forma mais proeminente os efeitos do racismo, sem desconsiderar que os negros de pele clara obviamente não desfrutam dos mesmos privilégios que os brancos. A ideia de Colorismo permite, ainda, entender como as mudanças de determinados traços fenotípicos, como o alisamento de cabelo, alteram a leitura racial que a sociedade faz do indivíduo, garantindo-lhe maior passabilidade do que teria com o seu cabeloem seu aspecto natural. Ou seja, quanto menos evidentes os traços fenotípicos negroides, menor será o racismo cotidiano que vitimará o indivíduo. Não se trata, pois, de uma forma de obter uma espécie de imunidade ao racismo, mas de reduzir a intensidade de seus efeitos, razão pela qual se atribui a este fenômeno o nome de pigmentocracia. É igualmente importante registrar que esta leitura da aparência não é sequer idêntica em todos os lugares, porquanto uma pessoa considerada branca na Região Nordeste pode ser considerada negra no Sul do país. Assim, as bancas de heteroidentificação possuem a tarefa de realizar a leitura fenotípica socialmente atribuída às pessoas pardas. Compulsando-se, os autos, não se verifica ilegalidade ou irregularidade manifesta na desclassificação do autor como candidato cotista, razão pela qual não é dado ao Poder Judiciário intervir no aspecto técnico do ato administrativo ou substituir a banca examinadora na avaliação concreta do candidato. Da mesma forma, não verifico defeitos no procedimento de heteroidentificação, realizado com observância das formalidades previstas no edital e na legislação, não havendo nenhuma suspeita de perseguição ou desvio de finalidade. No que pertine à ausência de motivação, de se ter em conta que o edital prevê, no seu item 3.4.2.5.3, que o teor do parecer motivado será restrito, não tendo o autor comprovado que, tendo requerido acesso à fundamentação, esta lhe foi negada. Dessa forma, já na fase de sentença, não vejo razão para alterar o raciocínio exposto na decisão acima transcrita, uma vez que inexistem elementos hábeis a alterar o quadro fático delineado à época da análise do pleito de urgência, de sorte que a tese ali esposada deve ser mantida. Assim, inalterada a situação fática e jurídica, adoto como razões de decidir, na presente sentença, os mesmos fundamentos lançados na decisão. Quanto ao pedido de danos morais, esclareço que para a necessária caracterização do dano indenizável afigura-se imprescindível a existência dos seguintes requisitos: fato lesivo causado pelo agente, a ocorrência de dano moral e/ou patrimonial, nexo de causalidade entre o dano e o comportamento do agente e ausência de causas excludentes de responsabilidade, a exemplo de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima. Compulsando os autos, verifico que o autor não se desincumbiu do ônus que lhe competia em provar os danos resultados do suposto ato ilícito perpetrados pela ré que agiram no exercício regular de seu direito. Não bastasse o exposto, tem-se que o dano moral é aquele atinente à lesão à esfera de direitos extrapatrimoniais da parte autora. Assim, não havendo prova nos autos, de que a atuação da ré gerou dor, humilhação, sofrimento suficientes a justificar a indenização pretendida, o não acolhimento da pretensão indenizatória é medida que se impõe. III - DISPOSITIVO Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE, e resolvo o mérito nos termos do art. 487, I do CPC. Condeno a parte autora, ao pagamento de custas e honorários de sucumbência que fixo em 10% sobre o valor atualizado da causa, restando, todavia, suspensa a execução, em razão da concessão da assistência judiciária gratuita. Sentença não sujeita à remessa necessária (art. 496, § 3º, I do CPC). Interposta apelação, tendo em vista as modificações no sistema de apreciação da admissibilidade e dos efeitos recursais (art. 1.010, §3º, CPC), intime-se a parte contrária para contrarrazoar. Havendo nas contrarrazões as preliminares de que trata o art. 1009, §1º, do CPC, intime-se o apelante para, querendo, no prazo de 15 (quinze) dias, manifestar-se a respeito, conforme §2º do mesmo dispositivo. Após, encaminhem-se os autos ao TRF da 1ª Região. Não havendo interposição de recurso, certifique-se o trânsito em julgado. Sentença registrada eletronicamente. Publique-se. Intimem-se. Arquivem-se, oportunamente. Salvador (BA), na data da assinatura eletrônica. CYNTHIA ARAÚJO LIMA Juíza Federal da 14ª Vara

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