Processo nº 5039136-42.2025.4.04.7000
ID: 333271282
Tribunal: TRF4
Órgão: 7ª Vara Federal de Curitiba
Classe: PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CíVEL
Nº Processo: 5039136-42.2025.4.04.7000
Data de Disponibilização:
24/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
VILMAR DE OLIVEIRA
OAB/PR XXXXXX
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PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL Nº 5039136-42.2025.4.04.7000/PR
AUTOR
: DIRCEU DE OLIVEIRA
ADVOGADO(A)
: VILMAR DE OLIVEIRA (OAB PR081517)
DESPACHO/DECISÃO
I - RELATÓRIO
Atuo no presente caso…
PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL Nº 5039136-42.2025.4.04.7000/PR
AUTOR
: DIRCEU DE OLIVEIRA
ADVOGADO(A)
: VILMAR DE OLIVEIRA (OAB PR081517)
DESPACHO/DECISÃO
I - RELATÓRIO
Atuo no presente caso em substituição aos insignes Juízes desta 7VF., eis que se encontram em férias/convocados.
Em 20 de julho de 2025,
DIRCEU DE OLIVEIRA
deflagrou a presente demanda, sob rito dos Juizados Especiais Federais, em face da UNIÃO FEDERAL, pretendendo a declaração do seu alegado direito adquirido "
à manutenção integral da validade de seu CR, nos exatos termos em que foi concedido, pelo prazo originalmente fixado de 10 (dez) anos
".
O autor insurgiu-se contra o decreto presidencial n. 11.615/2023, de 21/07/2023, e contra a Portaria Colog 166/2023 do Exército, que a teria regulamentado, alegando em síntese que o "
Certificado de Registro – CR nº 36.1843, concedido ao Autor com validade até 28/01/2030, configura ato jurídico perfeito
" e "
qualquer tentativa de aplicar retroativamente o novo Decreto ou a Portaria nº 166 COLOG/EX a situações jurídicas já consolidadas configura flagrante violação à segurança jurídica, à legalidade, ao direito adquirido e à vedação do comportamento contraditório por parte da Administração Pública
".
Segundo a peça inicial, a imposição dos novos prazos haveria de ensejar o cancelamento ou suspensão do seu certificado de registro, "
além da apreensão injusta de armas, munições e demais bens legalmente adquiridos
". Disse temer "
autuações administrativas e até responsabilização penal indevida do Autor
". Assim, postulou a antecipação de tutela.
Atribuiu à causa o valor de R$ 500,00 e anexou documentos.
II - FUNDAMENTAÇÃO
Promovo a prelibação da peça inicial, com
cognição não exaustiva
, registrando alguns vetores relevantes para a adequada impulsão deste processo. A presente decisão é razoavelmente extensa, dada a necessidade de bem apreciar o pleito de antecipação de tutela.
2.1. Competência da Justiça Federal:
O presente processo submete-se à alçada da Justiça Federal, dado que se cuida de demanda deflagrada em face da União Federal. Aplicam-se ao caso o
art. 109, I, Constituição Federal e o art. 10 da lei n. 5.010/66
.
2.2. Competência dos juizados - considerações gerais:
Como sabido, a competência dos Juizados Especiais Federais é absoluta, diante do previsto no art. 98, I, Constituição e art. 3º da lei n. 10.259, de 2001. Logo, em princípio, não pode ser ampliada ou reduzida, impondo-se sua apreciação de ofício pelo Poder Judiciário, conforme art. 64, CPC.
Não se submetem à
"
competência do Juizado Especial Cível as causas: (...) para a anulação ou cancelamento de ato administrativo federal, salvo o de natureza previdenciária e o de lançamento fiscal.
"
Convém ter em conta, todavia, que o processo é individualizado pela conjugação do trinômio partes, pedido e causa de pedir (art. 337, §2 CPC). Em decorrência do princípio da substanciação, a parte autora é obrigada a detalhar, na peça inicial, a sua pretensão, indicando o pedido e também a motivação do pedido. Note-se ainda que, como notório, apenas o dispositivo transita em julgado, conforme se infere do Art.. 504, I, CPC:
"Não fazem coisa julgada: I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença."
Assim, como têm entendido os tribunais, os Juizados Especiais são competentes para apreciação de pretensões nas quais a alegada nulidade do ato administrativo é invocada apenas como causa de pedir, e não como pedido:
"(....) Por outro lado, não é o caso de aplicação da exceção prevista no art. 3º , § 1º , III , da Lei 10.259 ,
uma vez que a parte autora invocou a alegada nulidade da revisão administrativa apenas como causa de pedir, dado que a sua pretensão é efetivamente condenatória
. Desse modo, firma-se a competência absoluta dos Juizados Especiais Federais para o julgamento do feito, nos termos do artigo 98, I, da Constituição Federal."
(TRF-4 - RECURSO CÍVEL: 50446614920184047000 PR 5044661-49.2018.4.04.7000, Relator: GERSON LUIZ ROCHA, Data de Julgamento: 02/04/2020).
Ainda segundo a Turma Recursal,
"O valor da causa atribuído pela parte autora é inferior a 60 salários, o qual não foi impugnado, logo, não há o que discutir quanto a esse aspecto.
Por outro lado, não é o caso de aplicação da exceção prevista no art. 3º, § 1º, III, da Lei 10.259, uma vez que "a parte autora invocou a alegada nulidade da revisão administrativa apenas como causa de pedir, dado que a sua pretensão é efetivamente condenatória
". Desse modo, firma-se a competência absoluta dos Juizados Especiais Federais para o julgamento do feito, nos termos do artigo 98, I, da Constituição Federal. "
(TRF-4 - RECURSO CÍVEL: 50029127820204047001 PR 5002912-78.2020.4.04.7001, Relator: GERSON LUIZ ROCHA, 22/10/2020, PRIMEIRA TURMA RECURSAL DO PR)
Atente-se para os julgados que transcrevo abaixo:
PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA INSTAURADO ENTRE JUÍZO FEDERAL E JUIZADO ESPECIAL FEDERAL CÍVEL. COMPETÊNCIA DESTA E. CORTE. SÚMULA 428 DO STJ. AÇÃO INDIVIDUAL DE DISPENSA DE PAGAMENTO DE PEDÁGIO. INEXISTÊNCIA DE PEDIDO DE ANULAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO. VALOR DA CAUSA INFERIOR A SESSENTA SALÁRIOS MÍNIMOS. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL CÍVEL. PRECEDENTES DESTA 2ª SEÇÃO. CONFLITO PROCEDENTE. 1 - Nos termos da Súmula 428 do Superior Tribunal de Justiça, compete a esta E. Corte dirimir o presente conflito negativo de competência entre Juízo Federal e Juizado Especial Federal Cível. 2 - Busca a autora tão somente o reconhecimento de seu direito individual à dispensa do pagamento de pedágio na praça de arrecadação instalada no entroncamento das rodovias BR 153 e BR 369, localizada no município de Jacarezinho/PR, com fundamento na Portaria do Ministério dos Transportes nº 155/2004 bem como na sentença proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 2006.70.13.002434-3. 3 -
A questão relativa à desconstituição de ato administrativo não faz parte do pedido do autor, que dela tratou apenas de forma incidental, como causa de pedir, de modo que, no caso dos autos, resta afastada a aplicação do art. 3º, § 1º, III, da Lei 10.259/01. Precedentes desta Segunda Seçã
o. 4 - Aplicável à hipótese em tela a regra geral prevista no caput do artigo 3º da Lei 10.259/2001, que estabelece a competência dos Juizados Especiais Federais em se tratando de causas com valor inferior a sessenta salários mínimos. 5 - Conflito procedente, para declarar a competência do Juizado Especial Federal Cível de Ourinhos/SP.Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Segunda Seção do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, julgar procedente o conflito, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
(CC - CONFLITO DE COMPETÊNCIA - 21150 0000310-88.2017.4.03.0000, DESEMBARGADORA FEDERAL MÔNICA NOBRE, TRF3 - SEGUNDA SEÇÃO, e-DJF3 Judicial 1 DATA:14/07/2017).
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO FEDERAL DE JUIZADO ESPECIAL E JUÍZO FEDERAL DE JUIZADO COMUM. AÇÃO ORDINÁRIA QUE VISA O RECONHECIMENTO DE DIREITO. MERA REVISÃO DO ATO ADMINISTRATIVO. INAPLICABILIDADE DO INCISO III DO §1º DO ARTIGO 3º DA LEI Nº 10.250/01. A
parte autora pleiteia a declaração de direito à percepção de determinada vantagem pecuniária, não havendo pedido imediato de anulação de qualquer ato administrativo, o qual só seria atingido via reflexa, razão pela qual não se aplica, na espécie, a regra que excepciona da competência dos Juizados Especiais Federais para causas valoradas até sessenta salários mínimos. Inaplicável ao caso a exceção prevista no inc. III do §1º do art. 3º da Lei nº 10.259/01
. (TRF4 5018358-17.2016.4.04.0000, SEGUNDA SEÇÃO, Relatora VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, juntado aos autos em 22/12/2016).
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO FEDERAL DE JUIZADO ESPECIAL E JUÍZO FEDERAL DE JUIZADO COMUM. COMPETÊNCIA DO STJ PARA APRECIAR O CONFLITO. JUIZADO ESPECIAL FEDERAL. COMPETÊNCIA. CRITÉRIOS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL EM FACE DO VALOR DA CAUSA. 1. A jurisprudência do STJ é no sentido de que juízo de juizado especial não está vinculado jurisdicionalmente ao tribunal com quem tem vínculo administrativo, razão pela qual o conflito entre ele e juízo comum caracteriza-se como conflito entre juízos não vinculados ao mesmo tribunal, o que determina a competência do STJ para dirimi-lo, nos termos do art. 105, I, d, da Constituição. Precedentes. 2. A Lei 10.259/01, que instituiu os Juizados Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, estabeleceu que a competência desses Juizados têm natureza absoluta e que, em matéria cível, obedece como regra geral a do valor da causa: são da sua competência as causas com valor de até sessenta salários mínimos (art. 3º). 3. A essa regra foram estabelecidas exceções ditadas (a) pela natureza da demanda ou do pedido (critério material), (b) pelo tipo de procedimento (critério processual) e (c) pelos figurantes da relação processual (critério subjetivo).
Entre as exceções fundadas no critério material está a das causas que dizem respeito a "anulação ou cancelamento de ato administrativo federal, salvo o de natureza previdenciária e o de lançamento fiscal". 4. No caso, a demanda tem valor da causa inferior a sessenta salários mínimos e visa a obter indenização por danos morais. A ilegitimidade dos atos administrativos constitui apenas fundamento do pedido, não seu objeto
. 5. Conflito conhecido, declarando-se a competência do Juízo Federal da 7ª Vara do Juizado Especial Cível da Subseção Judiciária de São Luís -MA, o suscitante. (STJ, CC 75314/MA, 1ª Seção, Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ 27/08/2007).
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. EXCEÇÃO DO ART. 3º, § 1º, INC. III, DA LEI Nº 10.259/01 AFASTADA. JUIZADO ESPECIAL CÍVEL.
A pretensão formulada nesta ação não se enquadra em nenhuma das hipóteses arroladas no § 1º do art. 3º da Lei nº 10.259, visto não tratar a ação de anulação ou cancelamento de ato administrativo típico.
O pedido envolve, apenas, reconhecimento de direito. Sendo o valor da causa inferior a 60 (sessenta) salários mínimos, cabe ao Juizado Especial Federal a competência para processar, conciliar e julgar as causas de competência da Justiça Federal
. (TRF4, conflito de competência (Seção) Nº 5008065-61.2011.404.0000, 2ª Seção, Des. Federal VILSON DARÓS, POR UNANIMIDADE, em 08/09/11).
Assim, e atribuído à causa o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), tem-se que competente para o processamento e julgamento da lide o Juizado Especial Federal
. Diante do exposto, nos termos do disposto no art. 120, § único, do CPC, conheço do presente conflito e declaro competente para o processamento e julgamento da lide o juízo suscitado (Juízo Substituto da 1ª Vara de Florianópolis). Publique-se. Comuniquem-se os juízos conflitantes e, com as formalidades de estilo, dê-se baixa na distribuição e arquivem-se os autos.
(TRF4 5013834-11.2015.404.0000, Segunda Seção, Relator Candido Alfredo Silva Leal Junior, 11/07/2015)
Eventual complexidade da demanda não implica incompetência dos Juizados:
"A Lei 10.259/2001 estabelece a competência absoluta dos Juizados Especiais Federais para causas de valor até 60 salários mínimos,
independentemente da complexidade
. 5. O critério de competência dos Juizados Especiais Federais é quantitativo, e o argumento da agravante quanto ao número de testemunhas não é capaz de afastar tal competência. 6. Agravo Interno não provido."
(STJ - AgInt no REsp: 2059305 AL 2023/0090671-3, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 16/10/2023, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/12/2023)
No caso em exame, o conteúdo econômico da demanda se revela inferior a 60 salários mínimos, definidos no decreto 12.342, de 30 de dezembro de 2024. O requerente postulou a declaração do alegado direito adquirido à manutenção dos prazos do seu certificado de registro, de modo que não se cuida de pretensão à declaração da nulidade de ato administrativo diferente de ato tributário e previdenciário. O processamento da causa sob rito dos juizados não esbarra, pois, na vedação do art. 3, §1, III, lei 10.259/2001.Revela-se cabível o processamento da demanda sob o rito dos Juizados Especiais.
2.3.
Competência desta Subseção Judiciária:
Com a publicação do Código de Processo Civil/1973 estipulou-se no seu art. 99, I, que
"O foro da Capital do Estado ou do Território é competente: I - para as causas em que a União for autora, ré ou interveniente."
Aludida solução foi ampliada com a promulgação da Constituição/88, cujo art. 109, §2º dispôs que
"
As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal
."
O autor reside em Papanduva da Serra, município de São José dos Pinhais/PR, conforme se infere dos documentos apresentados com a peça inicial, sendo distribuído a esta subseção judiciária devido à equalização de processos nas varas cíveis da Justiça Federal do Paraná. Eventual declinação de competência territorial depende de prévia exceção, conforme
art. 65, CPC/15 e súmula 33, STJ
.
2.4. Competência do presente Juízo:
Acrescento que o processo restou distribuído para o presente Juízo da 7.VF. mediante sorteio. Com isso, foi respeitada a garantia do
Juízo Natural
(art. 5, LIII, CF/88).
2.5. Eventual
conexão
processual:
O processualista Bruno Silveira Dantas enfatiza que
"com o início de vigência do CPC/2015, será considerado
prevento o juízo perante o qual houver ocorrido o registro ou a distribuição (conforme o caso) da primeira de uma série de demandas conexas, ainda que tal registro ou distribuição tenha ocorrido durante a vigência do CPC/1973
. Desde que a prevenção, ela própria, não se tenha consumado sob a égide do CPC/1973 (por um dos alternativos critérios previstos nos seus arts. 106 e 2019), incidirá de plano o disposto no art. 59 da codificação de 2015 definindo-se o juízo prevento para um conjunto de demandas conexas pela anterioridade dos registros ou das distribuições (conforme o caso) das mesmas. Os arts. 60 e 61 do CPC/2015, por sua vez, praticamente repetem os arts. 107 e 108 do CPC/1973, dispensando, por tal razão, maiores comentários a respeito nesta oportunidade."
(DANTAS, B. S.
in
WAMBIER, Teresa A. Alvim et al.
Breves comentários ao novo código de processo civil.
SP: RT, 2015, p. 229).
Convém ter em conta a lição de Araken de Assis, sobre o tema:
"(...)
O art. 55, caput, definiu a conexão como a identidade de pedido ou de causa inspirado no propósito de erradicar as tergiversações constatadas na vigência do CPC de 1939. A proposição legislativa, excepcional no direito estrangeiro, porque prepondera a tendência de encarregar o órgão judicial de indicar os casos do fenômeno, consonante controvérsia haurida do direito comum, e feita em sentido oposto à do CPC de 1939, em todo caso revela-se incompleta e insuficiente. Não abrange a totalidade das hipóteses de conexão
. O art. 55, § 3.º (“… mesmo sem conexão entre eles”) alude à conexão em sentido estrito do art. 55, caput. Ao nosso ver, os vínculos que geram o risco da prolação de “decisões conflitantes ou contraditórias”, a teor do art. 55, § 3.º, inserem-se na rubrica da conexão em sentido amplo. Não há outro sítio adequado para situar o liame entre os objetos litigiosos
O art. 113 do NCPC, arrolando os casos em que se admite a demanda conjunta, ou litisconsórcio, demonstra que existem outros laços, mais tênues e distantes, que autorizam o processo cumulativo. E a outro juízo não se chega ao avaliar o nexo exigido pelo art. 343 na reconvenção, como ocorria no direito anterior. Retira-se, daí, segura conclusão
. As duas hipóteses descritas no art. 55, caput – identidade de causa ou identidade de pedido – constituem “uma, entre as várias em que ocorre a conexão”. Por isso, antes do CPC de 1939, descreveu-se a conexão como “laço envolvente, que se insinua por entre as relações jurídicas, ora prendendo-as de um modo indissolúvel, por forma a exigir uma única decisão; ora criando entre elas pontos de contato mais ou menos íntimo, que aconselham a reunião em um só processo, ainda quando possam ser decididas separadamente, sem maior dano, a não ser a lentidão e o gravame de maiores despesas”.
Exemplos de causas conexas, segundo a literalidade do art. 55, caput: (a) A reivindica o imóvel x perante B, e, paralelamente, C também reivindica o imóvel x, do mesmo réu, hipótese em que a identidade recai sobre o pedido (objeto) mediato; (b) o locatário A propõe consignatória dos aluguéis perante o locador B, o qual, de seu turno, propõe ação de despejo, fundada no inadimplemento dos aluguéis, perante o inquilino.
Para os efeitos da modificação da competência, as hipóteses contempladas no art. 55, caput – identidade de causa de pedir ou identidade de pedido –, então, ainda consideram-se exemplificativas. Um laço menos intenso já serve para reunir os processos. O objetivo da regra reside em evitar decisões conflitantes, “por isso a indagação sobre o objeto ou a causa de pedir, que o artigo por primeiro quer que seja comum, deve ser entendida em termos, não se exigindo a perfeita identidade, senão que haja um liame que os faça passíveis de decisão unificada”. Em outra oportunidade, reiterou-se que “não é necessário que se cuide de causas idênticas (quanto aos fundamentos e ao objeto {rectius: pedido})”, bastando “que as ações sejam análogas, semelhantes”, insistiu no “escopo da junção das demandas para um único julgamento é a mera possibilidade da superveniência de julgamentos discrepantes
”.
Por conseguinte, a jurisprudência, atendendo às finalidades da modificação da competência, em que a derrogação das regras gerais se justifica pela economia de atividade e pela erradicação do risco de julgamentos conflitantes, rejeita a exigência de identidade absoluta de causa ou de pedido, aceitando simples analogia entre as ações
. Porém, preocupa-se com o risco de julgamentos contraditórios, evento apurado caso a caso, mas verificado em todas as hipóteses do art. 113, inclusive na afinidade de ponto comum de direito ou de fato (inc. III). Ora, parece difícil visualizar semelhante risco no cúmulo simples de pedidos, em que há total autonomia das pretensões deduzidas, no mesmo processo, contra o réu. Por isso, o intuito de erradicar pronunciamentos conflitantes não oferece a única e constante justificativa para o processo cumulativo e, muito menos, a prorrogação da competência. Ao menos na conexão subjetiva, no caso da cumulação simples de pedidos, impera o princípio da economia processual. E, de toda sorte, as finalidades visadas no processo cumulativo, e na reunião de causas inicialmente autônomas, mostram-se estranhas à verdadeira causa desses fenômenos, que residiria no vínculo entre partes, causa e pedido." (ASSIS, Araken.
Processo civil brasileiro.
Volume I. São Paulo: RT, 2015, tópico 302)
No presente caso, não há informações a respeito de eventual conexão processual, suscetível de ensejar eventual necessidade de declinação de competência para solução conjunta das demandas, observadas as regras da súmula 235, STJ e art. 55, §1,CPC/15
.
Sendo o caso, a questão há de ser apreciada no curso do processo.
2.6. Eventual violação à coisa julgada:
No que toca à singularidade da demanda
, convém ter em conta que a coisa julgada é uma garantia constitucional, nos termos do art. 5º, XXXVI, Constituição Federal/88:
"a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada."
"A sentença de mérito transitada em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de específica ação autônoma de impugnação (ação rescisória) que
haja sido proposta na fluência do prazo decadencial previsto em lei
, pois, com o exaurimento de referido lapso temporal,
estar-se-á diante da coisa soberanamente julgada, insuscetível de ulterior modificação, ainda que o ato sentencial encontre fundamento em legislação que, em momento posterior, tenha sido declarada inconstitucional pelo STF, quer em sede de controle abstrato, quer no âmbito de fiscalização incidental de constitucionalidade
. A superveniência de decisão do STF, declaratória de inconstitucionalidade de diploma normativo utilizado como fundamento do título judicial questionado, ainda que impregnada de eficácia ex tunc - como sucede, ordinariamente, com os julgamentos proferidos em sede de fiscalização concentrada (RTJ 87/758 - RTJ 164/506-509 - RTJ 201/765) -, não se revela apta, só por si, a desconstituir a autoridade da coisa julgada, que traduz, em nosso sistema jurídico, limite insuperável à força retroativa resultante dos pronunciamentos que emanam, in abstracto, da Suprema Corte." (RE 592.912-AgR, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 3-4-2012, Segunda Turma, DJE de 22-11-2012.)
Atente-se também para a lição de Humberto Theodoro Jr.:
"A coisa julgada é fenômeno próprio do processo de conhecimento, cuja sentença tende a fazer extinguir a incerteza provocada pela lide instalada entre as partes. Mas fazer cessar a incerteza jurídica não significa apenas fazer conhecer a solução cabível, mas impô-la, tornando-a obrigatória para todos os sujeitos do processo, inclusive o próprio juiz. Às vezes, o comando sentencial tem de ser executado por meio de realização coativa da prestação devida pelo vencido. Outras vezes, a declaração apenas é suficiente para eliminar o foco da desavença. Nem sempre, portanto, o processo civil está predisposto a providências executivas. Há acertamentos condenatórios, mas há também os não condenatórios, que se desenvolvem em torno de pretensões constitutivas ou apenas declaratórias.
Uma vez, porém, concluído o acertamento da controvérsia, seja por sentença de imposição de sanção, seja por sentença puramente declaratória, a coisa julgada se estabelece com a mesma função, ou seja, a certeza jurídica em torno da relação controvertida se implanta com plenitude, vinculando as partes e o juiz.
Essa situação jurídica cristalizada pela coisa julgada caracteriza-se por dois aspectos fundamentais: de um lado, vincula definitivamente as partes; de outro, impede, partes e juiz, de restabelecer a mesma controvérsia não só no processo encerrado, como em qualquer outro.
Admite-se, dessa maneira, uma
função negativa
e uma
função positiva
para a coisa julgada. Pela função negativa exaure ela a
ação exercida
, excluindo a possibilidade de sua
reproposição
. Pela função positiva, “impõe às partes obediência ao julgado como norma
indiscutível
de disciplina das relações extrajudiciais entre elas e obriga a autoridade judiciária a ajustar-se a ela, nos pronunciamento que a pressuponham e que a ela se devem coordenar
” (
apud
NEVES, Celso.
Coisa Julgada Civil.
São Paulo: RT, 1971, p. 383-383).
A coisa julgada, por sua força vinculativa e impeditiva, não permite que partes e juiz escapem da definitiva sujeição aos efeitos do acertamento consumado no processo de conhecimento. O resultado prático é caber a qualquer dos litigantes “a
exceptio rei iudicatae,
para excluir novo debate sobre a relação jurídica decidida” (
apud
NEVES, Celso. Op. Cit, p. 489), e ao juiz o poder de, até mesmo de ofício, extinguir o processo sem julgamento do mérito, sempre que encontrar configurada a ofensa à coisa julgada (ar. 267, V e § 3º).
Portanto, quando o art. 467 fala em
indiscutibilidade
e
imutabilidade
da sentença transitada em julgado refere-se a duas coisas distintas: a) pela
imutabilidade
, as partes estão proibidas de propor ação idêntica àquela em que se estabeleceu a coisa julgada; b) pela
indiscutibilidade
, o juiz é que em novo processo, no qual se tenha de tomar a situação jurídica definida anteriormente pela coisa julgada como razão de decidir, não poderá reexaminá-la ou rejulgá-la; terá de tomá-la simplesmente como
premissa
indiscutível. No primeiro caso atua a força
proibitiva
(ou negativa) da coisa julgada, e, no segundo, sua força
normativa
(ou positiva)
." (THEODORO JÚNIOR, Humberto.
Curso de Direito Processual Civil:
Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 587-588).
Nesse mesmo sentido, leiam-se também os seguintes julgados: RE 444.816, rel. min. Marco Aurélio, julgamento em 29-5-2012, Primeira Turma, DJE de 27-8-2012; RE 594.350, rel. min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 25-5-2010, DJE de 11-6-2010.
Segundo o conhecido art. 502, CPC/15,
"
Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso
.
" O art. 503, do mesmo código, preconiza que
"A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida."
Merece ênfase, ademais, o art. 508, CPC:
"Transitada em julgado a decisão de mérito, considerar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e as defesas que a parte poderia opor tanto ao acolhimento quanto à rejeição do pedido."
Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero são precisos quando enfatizam que
"
A coisa julgada pressuposto do discurso jurídico - constitui uma regra sobre o discurso. Não admite, nesse sentido, ponderação. Representa evidente agressão ao Estado Constitucional e ao próprio discurso jurídico a tentativa de relativizar a coisa julgada
."
(MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel.
Código de processo cvil.
6. ed. SP: RT, 2014, p. 449).
Desse modo, a sentença transitada em julgado não pode ser alterada ou desconsiderada pelo Juízo, conforme lógica do art. 508, CPC/15. Tal alteração apenas seria admissível em casos de negócio processual, avençado entre as partes, versando sobre pretensões disponíveis, conforme art. 190, CPC/15. Também seria cabível em hipótese de ação rescisória, interposta perante o Tribunal competente e com atenção ao prazo do art. 975, CPC/15; em caso de
querela nullitatis insanabilis
ou de declaração, pela Suprema Corte, da inconstitucionalidade de norma tomada como fundamento para prolação da sentença (art. 535, §4º, CPC).
No caso em exame, em princípio, não diviso sinais de haver coisa julgada a respeito da questão suscitada na peça inicial
. O tema poderá ser apreciado adiante, caso a questão seja suscitada pelas partes.
2.7. Eventual litispendência:
A vedação de
bis in idem
- decorrente da garantia do devido processo, sob aspecto formal e substancial - impede que haja duplicação de uma demanda já em trâmite, contanto que sejam idênticos os pedidos, causa de pedir e partes, conforme art. 337, §2º, CPC/15:
"
Uma ação é idêntica a outra quando possui as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido
."
Há alguns detalhes no que toca à identidade de demandas, quando se trate sobre processos coletivos, o que não se coloca no asdo em exame. Na situação em análise, não diviso - ao menos, não nesse primeiro e precário exame - algum contexto que caracterize litispendência entre essa demanda e alguma outra, para fins de aplicação do
art. 337, §2, Código de Processo Civil/2015
.
2.9. Pertinência subjetiva do demandante:
No caso em exame, o autor está legitimado para a causa, invocando em nome próprio o direito de manutenção do prazo de validade de seu Certificado de Registro - CR expedido antes da vigência do decreto presidencial n. 11.615/2023
. Assim, não esbarra no art. 18, CPC.
2.10. Legitimidade passiva da União:
O autor insurgiu-se contra possível exercício do poder de polícia por parte das
Forças Armadas - Exército Brasileiro
, submetidas ao Comando da Presidência da República -
art. 84, XIII, CF/88
. Por conta disso, a União Federal está legitimada para a presente demanda.
Ademais, ele postula a manutenção do prazo originário de vigência do certificado de registro, expedido pela União.
2.11. Litisconsórcio necessário:
Em primeiro e precário exame, não diviso situação que dê ensejo à constituição de litisconsórcio necessário na espécie
. A insurgência da autora coloca em causa o exercício do poder de polícia, por parte das Forças Armadas, no tocante à sua atividade de risco - emprego e disponibilização de armamento.
Não há necessidade de convocação de terceiros para a presente demanda, para os fins dos arts. 114, 115, 506, CPC.
2.12.
Interesse
processual
no caso em exame:
Na situação em julgamento, não há imposição de que a parte autora promova medidas no âmbito extrajudicial para, somente então, ingressar em Juízo, conforme
art. 5, XXXV, CF
.
Caso a pretensão venha a ser acolhida, em sentença transitada em julgado, a medida lhe será útil, assegurando a validade dos certificados emitidos em seu nome, sem necessidade de modificação. A via processual revela-se adequada, como anotei abaixo. Logo, os requisitos inerentes ao interesse processual foram atendidos - necessidade, utilidade e adequação.
2.13. Aptidão da peça inicial:
A peça inicial apresentada no movimento-1 atendeu - no essencial - ao disposto no
art. 319, Código de Processo Civil/15
. Apontou os pedidos e detalhou os argumentos invocados para tanto, encontrando-se instruídos com os documentos que a parte reputou serem suficientes para comprovação da alegada veracidade da narrativa dos fatos, veiculada na peça inicial (art. 320, CPC/15).
Isso permitirá à demandada o pleno conhecimento da pretensão contra si deduzida, podendo ofertar respostas. O pedido da parte autora há de ser interpretado com respeito à
boa-fé objetiva
, conforme art. 322, §2, CPC/15.
2.14. Valor atribuído à causa:
Como sabido, a toda causa deve ser atribuído algum valor econômico, por força do
art. 291, CPC/2015 - projeção do art. 258, CPC/73
-, pois se cuida da base de cálculo da taxa judiciária. Referido valor pode influenciar, em muitos casos, a determinação da competência das unidades judiciais ou o procedimento aplicável, também surtindo reflexos sobre a definição de encargos sucumbenciais.
No caso em exame, há certa dificuldade em atribuir um conteúdo econômico para a pretensão do autor, dado que versa sobre a manutenção do prazo originário de vigência dos certificados das armas aludidas na peça inicial. Acolho, por conta disso, o valor atribuído à demanda (R$ 500,00).
2.15.
Controle incidental de validade da norma:
Na peça inicial, o autor sustentou que o
Decreto Presidencial nº 11.615/2023
seria inconstitucional, no que tocaria à sua incidência em face das certificados já emitidos, ao tempo da sua publicação. Coloca-se em causa, portanto, o controle de validade de normas no âmbito da presente demanda, submetida ao rito dos juizados.
Ora, como explicita Luiz Guilherme Marinoni,
"Quando, no curso de uma causa comum, é arguida a inconstitucionalidade da lei que configura pressuposto à tutela jurisdicional do direito, o juiz brasileiro está autorizado a tratar da questão constitucional como
prejudicial à solução do litígio
. A questão constitucional é suscitada, introduzindo-se no processo e no raciocínio do julgador, mediante o modo incidental. O objeto do processo, nestes casos, é um litígio entre as partes, que não se confunde com a questão constitucional.
Trata-se, portanto, de questão de natureza constitucional, suscitada incidentalmente e ajustada com prejudicial à resolução do litígio entre as partes. Quando isso ocorre, fala-se que há, por parte do juiz, controle incidental de constitucionalidade
."
(MARINONI, Luiz Guilherme et al.
Curso de direito constitucional.
3. ed. rev. atual. São Paulo: RT. 2014. p. 918).
Convém enfatizar, porém, que,
"
no controle incidental, o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei não é objeto da causa, não é a providência postulada
.
O que a parte pede no processo é o reconhecimento do seu direito, que, todavia, é afetado pela norma cuja validade se questiona
. Para decidir acerca do direito em discussão, o órgão judicial precisará formar um juízo acerca da constitucionalidade ou não da norma. Por isso se diz que a questão constitucional é uma questão prejudicial: porque ela precisa ser decidida previamente, com pressuposto lógico e necessário da solução do problema principal."
(BARROSO, Luís Roberto.
O controle de constitucionalidade no direito brasileiro.
2. ed. SP: Saraiva. 2006, p. 81).
Não raro,
"para chegar a uma conclusão, resolvendo a lide, o juiz pode ter necessidade de aplicar determinada norma. Porém, o juiz também pode depender da constitucionalidade de uma norma para proferir decisão de natureza processual. Assim, por exemplo, ao se deparar com norma processual que trata do julgamento liminar de demanda repetitiva, o juiz pode considerar a norma inconstitucional e, assim, negar a possibilidade do julgamento imediato.
Portanto, a prejudicialidade da norma é relativa à decisão, seja ela de direito material ou processual, ou tenha caráter final ou incidente, e não apenas ao julgamento final do mérito
."
(MARINONI, L. et al.
Obra citada.
p. 957).
No âmbito do controle difuso, o exame da cogitada invalidade de uma norma não chega a produzir efeitos de coisa julgada, diante do disposto no art. 504, I, CPC:
"
Não fazem coisa julgada: I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença
."
Note-se que,
"na decisão de primeiro grau como no julgamento colegiado, o que importa é o dispositivo do julgado, isto é, a conclusão da razão de decidir do magistrado."
(TRF-4 - 2004.71.00.005742-1/RS, Relator: CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ, Data de Julgamento: 23/02/2010, 3. TURMA, D.E. 10/03/2010)
Assim, em princípio, revela-se cabível o exame da validade do decreto, para fins atrelados unicamente ao presente processo, e apenas como fundamento de decisão, jamais como possível dispositivo da sentença.
Pode-se cogitar do afastamento do decreto, impugnado nessa demanda, no que toca ao autor. Não é dado ao presente Juízo anular o decreto presidencial, por óbvio, até porque o autor não detém legitimidade para tal pleito
.
2.16. Tutela de urgência - considerações gerais:
É bem sabido que a cláusula do devido processo envolve alguma
aporia
. Por um lado, o processo há de ser
adequado
: ele deve assegurar defesa, contraditório, ampla produção probatória. E isso consome tempo. Todavia, o processo também deve ser
eficiente
, ele deve assegurar ao titular de um direito uma situação jurídica idêntica àquela que teria caso o devedor houvesse satisfeito sua obrigação na época e forma devidas.
A demora pode contribuir para um debate mais qualificado entre as partes; todavia, também leva ao grande risco de ineficácia da prestação jurisdicional, caso o demandante tenha realmente razão em seus argumentos.
Daí a relevância do
prudente
emprego
da
tutela
de
urgência
, prevista nos arts. 300 e seguintes do Código de Processo Civil/15. Contanto que a narrativa dos fatos, promovida pelo demandante seja verossímil, seus argumentos jurídicos sejam densos e a intervenção imediata do Poder Judiciário seja necessária - isto é, contanto que haja
fumus boni iuris
e
periculum in mora -,
a antecipação da tutela deverá ser deferida.
Sem dúvida, porém, que o
tema exige cautelas
, eis que tampouco soa compatível com a garantia do devido processo a conversão da antecipação em um expediente rotineiro, o que violentaria a cláusula do art. 5º, LIV e LV, CF/88. Ademais, o provimento de urgência não pode ser deferido quando ensejar prejuízos irreversíveis ao demandado (art. 300, §3º, CPC/15).
Note-se que esse mencionado art. 300, §3º, CPC/15 deve ser conjugado com o art. 520, do mesmo Código, que dispõe que o cumprimento provisório da sentença
"
corre por iniciativa e responsabilidade do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido
."
Conquanto esse dispositivo não se aplique, em sua literalidade, no âmbito da antecipação de tutela, evidencia os cuidados necessários a fim de se evitar que eventual provimento de urgência acarrete prejuízos irreversíveis ao(s) requerido(s).
Por conta disso, em determinados casos, o Juízo pode condicionar o deferimento da antecipação de tutela à apresentação de suficientes
contracautelas
por parte do requerente, conforme art. 300, §1º, CPC/15.
Daí o relevo da lição de Araken de Assis, como segue:
"A tutela de urgência e a tutela de evidência gravitam em torno de dois princípios fundamentais: (a) o princípio da necessidade; e (b) o princípio da menor ingerência.
-
Princípio da necessidade - Segundo o art. 301, in fine, a par do arresto, sequestro, arrolamento de bens, e protesto contra a alienação de bens, o órgão judiciário poderá determinar qualquer outra medida idônea para asseguração do direito. Essa abertura aplica-se às medidas de urgência satisfativas (art. 303, caput): a composição do conflito entre os direitos fundamentais somente se mostrará legítima quando houver conflito real, hipótese em quase patenteia a necessidade de o juiz alterar o esquema ordinário de equilíbrio das partes perante o fator temporal do processo
. A necessidade de o juiz conceder medida de urgência apura-se através da comparação dos interesses contrastantes dos litigantes. Dessa necessidade resulta a medida adequada à asseguração ou à satisfação antecipada em benefício do interesse mais provável de acolhimento em detrimento do interesse menos provável.
-
Princípio do meno gravame - O princípio do menor gravame ou da adequação é intrínseco à necessidade. É preciso que a medida de urgência seja congruente e proporcional aos seus fins, respectivamente a asseguração ou a realização antecipada do suposto direito do autor. Por esse motivo, a medida de urgência cautelar prefere à medida de urgência satisfativa, sempre que adequada para evitar o perigo de dano iminente e irreparável, e, na órbita das medidas de urgência satisfativas, o órgão judiciário se cingirá ao estritamente necessário para a mesma finalidade
." (ASSIS, Araken de.
Processo civil brasileiro.
volume II. Tomo II. Parte Geral: institutos fundamentais. São Paulo: RT, 2015, p. 370-371)
Cuidando-se, ademais, de pedido em
desfavor da Fazenda Pública
, a lei 8.437/1992
veda a antecipação de tutela
que implique
compensação de créditos
tributários ou previdenciários (art. 1º, §5º). A lei do mandado de segurança veda a concessão de liminares com o fim de se promover a entrega de mercadorias, a reclassificação de servidores públicos e o aumento ou extensão de vantagens de qualquer natureza (art. 7º, §2º, lei 12.016).
Registre-se que o STF já se manifestou sobre a constitucionalidade de algumas dessas limitações (lei 9.494/97), conforme se infere da conhecida
ADC 04-6/DF
, rel. Min. Sydnei Sanches (DJU de 21.05.1999), com os temperamentos reconhecidos no
informativo 248, STF
. No âmbito do Direito Administrativo militar, há restrições ao emprego do
writ
, por exemplo, diante do que preconiza o art. 51, §3º, lei n. 6.880/1980, ao exigir o exaurimento da via administrativa.
O juízo não pode antecipar a
eficácia meramente declaratória de uma cogitada sentença de procedência
. Afinal de contas, a contingência é inerente aos provimentos liminares; de modo que a certeza apenas advém do trânsito em julgado (aliás, em muitos casos, sequer depois disso, dadas as recentes discussões sobre a relativização da
res iudicata
): "
É impossível a antecipação da eficácia meramente declaratória
, ou mesmo conferir antecipadamente ao autor o bem certeza jurídica, o qual somente é capaz de lhe ser atribuído pela sentença declaratória. A cognição inerente ao juízo antecipatório é por sua natureza complemente inidônea para atribuir ao autor a declaração - ou a certeza jurídica por ele objetivada."
(MARINONI, Luiz Guilherme.
A antecipação da tutela.
7. ed. SP: Malheiros. p. 55)
2.17. Hipóteses de contraditório postergado:
Em regra, a antecipação de tutela apenas pode ser promovida quando assegurado prévio contraditório ao demandado, conforme art. 5º, LIV e LV, CF e art. 7º, parte final, CPC.
Isso não impede, todavia, que, em situações excepcionais, o contraditório seja postergado, em face da urgência documentada nos autos
.
PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR PARA DETERMINAR O PROCESSAMENTO DE RECURSO ESPECIAL. POSSIBILIDADE. EXISTÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS DO FUMUS BONI JURIS E DO PERICULUM IN MORA. 1. O Superior Tribunal de Justiça tem entendido que a regra de obstar o recurso especial retido deve ser obtemperada para que não esvazie a utilidade daquele apelo extremo. 2.
O poder geral de cautela há que ser entendido com uma amplitude compatível com a sua finalidade primeira, que é a de assegurar a perfeita eficácia da função jurisdicional. Insere-se aí a garantia da efetividade da decisão a ser proferida. A adoção de medidas cautelares (inclusive as liminares inaudita altera parte) é fundamental para o próprio exercício da função jurisdicional, que não deve encontrar obstáculos, salvo no ordenamento jurídico
. 3. O provimento cautelar tem pressupostos específicos para sua concessão. São eles: o risco de ineficácia do provimento principal e a plausibilidade do direito alegado (periculum in mora e fumus boni iuris), que, presentes, determinam a necessidade da tutela cautelar e a inexorabilidade de sua concessão, para que se protejam aqueles bens ou direitos de modo a se garantir a produção de efeitos concretos do provimento jurisdicional principal. 4. Em tais casos, pode ocorrer dano grave à parte, no período de tempo que mediar o julgamento no tribunal a quo e a decisão do recurso especial, dano de tal ordem que o eventual resultado favorável, ao final do processo, quando da decisão do recurso especial, tenha pouca ou nenhuma relevância. 5. Existência, em favor da requerente, da fumaça do bom direito e do perito da demora, em face da patente contrariedade ao art. 2º, da Lei nº 8.437/92, visto que, na hipótese dos autos, não há necessidade da prévia audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, vez que o ente Municipal sequer figura na relação processual. 6. Medida Cautelar procedente, para determinar o processamento do recurso especial. ..EMEN: (MC 200100113001, JOSÉ DELGADO, STJ - PRIMEIRA TURMA, DJ DATA:13/05/2002 PG:00150 ..DTPB:.)
Com efeito, cito novamente Araken de Assis, quando enfatiza o que transcrevo abaixo:
"
O processo constitucionalmente justo e equilibrado (faires Verfahren) exige a oportunidade de as partes influírem na atividade do órgão judiciário. O princípio do contraditório, na sua dimensão horizontal, assegura à parte a possibilidade de manifestação acerca das (a) razões de fato, (b) os meios de prova tendentes a demonstrar-lhes a veracidade, e (c) as razões de direito da contraparte
.
O processo criará inexoravelmente uma comunidade de trabalho, sem prejuízo da parcialidade das partes, e o contraditório assume dimensão vertical. Limitará a atuação do órgão judiciário no que concerne à matéria de direito, domínio que lhe toca na qualidade maître du droit -,79 impondo a manifestação prévia das partes sobre (a) a qualificação jurídica dos fatos afirmados, ou dos fatos não alegados, mas constantes dos autos, que o juiz possa considerar relevantes; (b) as normas legais que o juiz entenda aplicáveis à resolução da causa; e (c) as questões que se mostra lícito ao juiz conhecer sem alegação das partes (v.g., as “condições” da ação – legitimidade e interesse processual –, a teor do art. 485, § 3.º). O art. 357, IV, exige a delimitação das questões de direito na decisão de saneamento e de organização do processo para essas finalidades.
A urgência autoriza, entretanto, a postergação do contraditório em certas condições. É o que se infere do art. 300, § 2.º, segundo o qual “a tutela de urgência pode ser concedida liminarmente”. O art. 12, caput, da Lei 7.347/1985 determina o seguinte na ação civil pública: “Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo”. E o art. 7.º, III, da Lei 12.016/2009 estipula que o juiz, no mandado de segurança, ordenará a suspensão incontinenti do ato de autoridade “quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida
." (ASSIS, Araken de.
Processo civil brasileiro.
volume II. Tomo II. Parge Geral. São Paulo: RT, 2015, tópico 1.425).
Outrossim,
"Duas situações autorizam o juiz à concessão de liminar sem a audiência do réu (inaudita altera parte): (a) sempre que o réu, tomando prévio conhecimento da medida, encontre-se em posição que lhe permita frustrar a medida de urgência; (b) sempre que a urgência em impedir a lesão revele-se incompatível com o tempo necessário à integração do réu à relação processual. Essa última hipótese é objeto do seguinte precedente do STJ: “Justifica-se a concessão de liminar inaudita altera parte, ainda que ausente a possibilidade de o promovido frustrar a sua eficácia, desde que a demora de sua concessão possa importar em prejuízo, mesmo que parcial, para o promovente."
(ASSIS, Araken.
Obra citada.
tópico 1.426).
Com efeito,
"
É constitucional a decisão antecipatória de tutela que, liminarmente e adiando a observância do contraditório para momento posterior, concede a antecipação dos efeitos da tutela para homenagear outro direito em voga, cuja preterição se revelar mais danosa
. 2. O perigo de irreversibilidade da medida, não obstante existente no presente caso, não subsiste quando encarado frente ao perigo da demora, o qual milita em favor da parte agravada."
(TJ-PE - AI: 2784312 PE, Relator: Roberto da Silva Maia, Data de Julgamento: 21/05/2013, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 29/05/2013).
Note-se, por exemplo, que a compreensão e aplicação do art. 2, da lei n. 8.437, de 1992, não podem implicar inexorável vedação à antecipação de tutela
inaudita altera parte
, sobremodo quando em causa perigo de danos ambientais, dado o alcance do art. 225, da Constituição e legislação correlata. Assim, "
O Superior Tribunal de Justiça tem flexibilizado o disposto no art. 2º da Lei n.º 8.437/92 a fim de impedir que a aparente rigidez de seu enunciado normativo obste a eficiência do poder geral de cautela do Judiciário
."
(REsp 1130031/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, 2.T. julgado em 22/06/2010, DJe 03/08/2010)
Por sinal, "
Excepcionalmente, é possível conceder liminar sem prévia oitiva da pessoa jurídica de direito público, desde que não ocorra prejuízo a seus bens e interesses ou quando presentes os requisitos legais para a concessão de medida liminar em ação civil pública. Hipótese que não configura ofensa ao art. 2º da Lei n. 8.437/1992
."
(AgRg no REsp 1.372.950/PB, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/6/2013, DJe 19/6/2013.)
Sabe-se, pois, que
"
a jurisprudência do STJ tem mitigado, em hipóteses excepcionais, a regra que exige a oitiva prévia da pessoa jurídica de direito público nos casos em que presentes os requisitos legais para a concessão de medida liminar em ação civil pública
(art. 2º da Lei 8.437/92). Precedentes do STJ."
(REsp 1.018.614/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/6/2008, DJe 6/8/2008).
2.18. Prazos prescricionais:
No mais das vezes, as pretensões deduzidas em face da Administração Pública estão submetidas ao prazo prescricional de
05 anos
, na forma do art. 1º do decreto 20.910/32, com a interrupção na forma da súmula 383, Supremo Tribunal Federal. Trata-se de norma de conteúdo especial quando confrontada com o
art. 206, §3º, V, Código Civil
:
ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. PRESCRIÇÃO. PRAZO QUINQUENAL. DECRETO 20.910/32. REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA RESP 1.251.993/PR. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1.
A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp. 1.251.993/PR, submetido ao rito do art. 543-C do CPC, assentou que o prazo de prescrição quinquenal, previsto no Decreto nº 20.910/32, aplica-se às ações indenizatórias ajuizadas contra a Fazenda Pública, em detrimento do prazo trienal contido do Código Civil de 2002
. a4. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. ..EMEN: (AGARESP 201302893979, MARGA TESSLER (JUÍZA FEDERAL CONVOCADA DO TRF 4ª REGIÃO), STJ - PRIMEIRA TURMA, DJE DATA:12/03/2015 ..DTPB:.)
No curso de eventual processo administrativo, em que discutida aludida pretensão, o cômputo da prescrição é suspenso - art. 4º do decreto 20.910/32. Na situação em exame, a pretensão do autor é prospectiva, inibitória, de modo que a pretensão não se consumou.
Ela disse temer uma autuação futura, antecipando-se a isso
.
2.19. Eventual decadência:
A caducidade por vezes se dá nos casos de alegados direitos potestativos (direitos formativos geradores), cujo exercício não depende da aquiescência da pessoa atingida
. É o que se dá com o direito de postular a anulação de casamento, direito do consumidor desistir de uma compra, direito do empregador demitir um funcionário sem justa causa etc. A decadência se dá nos casos em que a legislação tenha fixado prazo para exercício de tais direitos.
No caso, portanto, isso não se aplica.
2.20. Controle jurisdicional da administração pública:
Com cognição
NÃO EXAUSTIVA
, sublinho que vivemos o tempo da superação do modelo de Estado meramente Legislativo em prol de um efetivo Estado Constitucional, conforme conhecida expressão de Peter Häberle.
Durante muitos anos, a teoria do Estado gravitou em torno do estudo das competências e dos órgãos administrativos. Atualmente, contudo, o eixo tem sido deslocado em direção à busca de efetividade dos direitos fundamentais. E isso é incompatível com a ideia de
legibus solutus
, própria ao Estado oitocentista, em que o governante deliberava sozinho, sem ter que prestar contas dos seus atos.
Como explica Gustavo Binembojm,
"
A palavra discricionariedade tem sua origem no antigo Estado europeu dos séculos XVI a XVIII, quando expressava a soberania decisória do monarca absoluto (
voluntas regis suprema lex
)
. Naquela época, do chamado Estado de polícia, em que o governo confundia-se integralmente com a Administração Pública, a sinonímia entre discricionariedade e arbitrariedade era total. Com efeito, se a vontade do soberano era a lei suprema, não fazia sentido cogitar de qualquer limite externo a ela.
Por atavismo histórico, ainda nos dias de hoje encontra-se o adjetivo 'discricionário' empregado como sinônimo de arbitrário ou caprichoso, ou para significar uma decisão de cunho puramente subjetivo ou político, liberta de parâmetros jurídicos de controle
."
(BINENBOJM, Gustavo.
Uma teoria do direito administrativo:
direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. RJ: Renovar, 2008, p. 195-196).
Posteriormente, essa noção de
discricionariedade
- até então compreendida como sinônimo de arbítrio, capricho, voluntariedade - evoluiu em prol do reconhecimento da existência, em muitos casos, de distintas opções deliberativas, desde que sejam observados os limites estipulados pela própria lei.
Em muitos casos, a lei impõe a finalidade, mas não detalha os meios a serem escolhidos
, pelos administradores, para a sua obtenção. Sob essa perspectiva, a discricionariedade estaria fundada no emprego de juízos de
conveniência
e de
oportunidade
, quanto aos
meios
a serem empregados, a fim de se atingir os objetivos estipulados pela lei.
Sob o
Estado
Constitucional
, d'outro tanto, reconhece-se que o administrador público não pode decidir de qualquer forma, ao seu alvedrio.
"
Em consequência, como assinala Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a discricionariedade deixa de ser compreendida como um campo externo ao direito - verdadeiro atavismo monárquico - passando a ser vista como um poder jurídico
. É dizer: um espaço decisório peculiar à Administração, não de escolhas puramente subjetivas, mas definida pela prioridade das autoridades administrativas na fundamentação e legitimação dos atos e políticas públicas adotados, dentro de parâmetros jurídicos estabelecidos pela Constituição, pelas leis ou por atos normativos editados pelas próprias entidades da Administração."
(BINENBOJM, G.
Obra cit.
p. 199-200).
Ora, há muito é sabido que o Poder Judiciário pode promover o controle de atos administrativos discricionários, quando menos para aferir eventual
desvio
de
finalidade
. O grande debate diz respeito, isso sim, à
intensidade
e aos
critérios
envolvidos no prefalado controle judicial, como bem explicita a obra JORDÃO, Eduardo.
Controle judicial de uma Administração Pública complexa:
a experiência estrangeira na adaptação da intensidade do controle. São Paulo: Malheiros: SBDP. 2016. Nesse mesmo sentido, leia-se GALLIGAN, Denis J.
La discrezionalità amministrativa.
Tradução do inglês para o italiano por Francesca Innamorati. Milão: Giuffè Editore. 1999, capítulo 4. p. 186 e ss. ZVEIBIL, Daniel Guimarães.
Conflitos de atribuições entre Poderes do Estado.
São Paulo: Dialética. 2021.
Bandeira de Mello explica que
"
Em despeito da discrição presumida na regra de direito, se o administrador houver praticado ato discrepante do único cabível, ou se tiver algum fim seguramente impróprio ante o confronto com a finalidade da norma, o Judiciário deverá prestar a adequada revisão jurisdicional, porquanto, em rigor, a Administração terá desbordado da esfera discricionária
."
(MELLO, Celso Antônio Bandeira de.
Discricionariedade e controle jurisdicional.
SP: Malheiros, 2001. p. 36).
Concordo, pois, com Gustavo Binenbojm quando enfatiza que
"A emergência da noção de juridicidade administrativa, com a vinculação direta da Administração à Constituição, não mais permite falar, tecnicamente, numa autêntica dicotomia entre atos vinculados e atos discricionários, mas, isto sim, em diferentes graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade.
A discricionariedade não é, destarte, nem uma liberdade decisória externa ao direito, nem um campo imune ao controle jurisdicional. Ao maior ou menor grau de vinculação do administrador à juridicidade corresponderá, via de regra, maior ou menor grau de controlabilidade judicial dos seus atos
."
(BINENBOJM, G.
Obra citada.
p. 208).
Diante do reconhecimento de efetividade aos princípios constitucionais da boa gestão pública (art. 37, CF/88), não há como imaginar que o Poder Executivo possa deliberar de qualquer modo, sem justificar suas escolhas e sem ter que prestar contas.
"
O mérito - núcleo do ato -, antes intocável, passa a sofrer a incidência direta dos princípios constitucionais. Deste modo, ao invés de uma dicotomia tradicional (ato vinculado versus ato discricionário), já superada, passa-se a uma classificação em graus de vinculação à juridicidade, em uma escala decrescente de densidade normativa vinculativa
."
(BINENBOJM, Gustavo.
Obra citada.
p. 209).
Convém atentar para a precisa síntese de Binenbojm:
"É interessante registrar que a aplicação da teoria do desvio de poder para o controle da finalidade dos atos administrativos discricionários não importa controle do mérito propriamente dito, mas como que um estreitamento do seu âmbito.
Ou seja: não se trata de controlar o núcleo da apreciação ou da escolha, mas de diminuir o espaço em que o administrador faz escolhas de acordo com a própria conveniência e oportunidade.
O mesmo pode ser afirmado com relação às outras formas, ditas, de controle do mérito do ato administrativo, como o controle da proporcionalidade, da moralidade e da eficiência. Neste sentido, por exemplo, não se controla o mérito do ato administrativo em descompasso com a proporcionalidade, mas apenas se reconhece que o conteúdo desproporcional do ato simplesmente não é mérito
.
Em outras palavras, não há conveniência e oportunidade possível fora dos limites estabelecidos pela proporcionalidade." (BINENBOJM, Gustavo.
Obra cit.
p. 210)
Ademais,
"O que se quer ressaltar é que o mérito administrativo constitui um aspecto da discricionariedade administrativa, ou do poder discricionário, no âmbito do qual o administrador tem certa margem de liberdade quanto à decisão a tomar.
Entretanto, os atos decorrentes do poder discricionário – e esse é o equívoco cometido por certos intérpretes – não são imunes ao controle de legalidade. Ao contrário, devem ser praticados consoante os parâmetros legais
. Mas é imperioso reconhecer que, dentro da discricionariedade, há aspectos que não vinculam diretamente o administrador e que, por isso mesmo, permitem que faça escolhas entre as várias que se lhe possam apresentar."
(CARVALHO FILHO, José Santos; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de.
Tratado de Direito Administrativo.
Vol. 7. Controle da Administração Pública e Responsabilidade do Estado. São Paulo: RT. 2015. capítulo3).
Sei bem que, no mais das vezes, as questões alusivas à
eficiência
de determinadas soluções administrativas escapam do controle judicial, sob pena de se instituir um
governo de magistrados(as)
, inviabilizando-se a própria administração pública e comprometendo o sistema de pesos e contrapesos,
checks and balances,
que está na base do exercício democrático do poder político.
Reafirmo esse detalhe
:
os juízos de mera conveniência e de mera oportunidade escapam, em regra, do controle jurisdicional
, salvo quando se tratarem de escolhas
manifestamente desastrosas
, inequivocamente desproporcionais, que comprometam a própria moralidade pública ou mesmo uma noção mínima de eficiência. No mais das vezes, as decisões judiciais devem ser
analítico
-
conceituais
, confrontando provas com as prescrições decorrentes da exegese da legislação.
Colho a lição de Hans Wolff, Otto Bachof e Rolf Stober:
"Enquanto a Administração está orientada para a multiplicidade e tem responsabilidade metajurídica, a jurisprudência é de tipo
monodisciplinar-jurídico
(...).
Por isso, o controlo jurisdicional circunscreve-se apenas ao controlo jurídico. Este controlo não se confunde com a vigilância completa (Rundum-Beaufsichtigung) da Administração
. Por isso, o controle jurisdicional termina onde deixam de existir padrões jurídicos de controlo (...). Aqui a autonomia da Administração manifesta-se de forma particularmente clara. Em primeiro plano, está a auto-responsabilidade, que terá de ser respeitada pela jurisprudência, bem como a oportunidade, mas não a legalidade da actuação (...). A ideia nuclear é a de que o controlo jurisdicional não conduz a uma subalternização da Administração e os tribunais não devem substituir as apreciações (valorações) da Administração pelas suas próprias valorações.
Nesse contexto, devemos distinguir duas questões fundamentais. Por um lado, suscita-se a questão de saber se num Estado de direito que pratica a divisão de poderes haverá decisões 'livres do direito' para a Administração, no sentido de determinadas medidas estarem totalmente excluídas do controlo jurisdicional (os chamados actos de autoridade sem justiça). Esta questão suscitou-se quanto aos actos de governo e quanto aos actos de graça, mas que deve ser recusada na vigência da lei fundamental
(...). Diferente é a questão de saber até que ponto o legislador exclui do controlo jurisdicional decisões administrativas por questões de celeridade e de eficiência administrativas, através da criação de normas de sanação e de preclusão (
Heilungs- und Präklusionsvorschriften
) (...)
Por outro lado, trata-se do problema de saber se e em que medida a Administração goza, quanto às decisões a tomar, de margens de conformação que apenas limitem a intensidade do controlo jurisdicional (a chamada
densidade
do
controlo
). Sejam aqui lembradas apenas as margens de discricionariedade, cujo exercício está subordinado a determinados limites jurídicos." (WOLFF, Hans J.; BACHOF, Otto; STOBER, Rolf.
Direito administrativo. volume I.
Tradução do alemão por António F. de Souza. Calouste Gulbenkian, 2006, p. 247-248)
Como sinalizam Hans Wolff, Otto Bachof e R. Stober, a atividade jurisdicional se dá,
em regra
, com o emprego do
método subsuntivo
. Ou seja, confronta-se o
recorte
dos
fatos
relevantes
- reconstruídos a partir da conjugação dos meios probatórios apresentados -, com o
recorte
das
normas
aplicáveis
, obtidas a partir da hermenêutica dos meios normativos pertinentes. Já a atividade administrativa é promovida mediante a
identificação
dos
fins
políticos
impostos pela Constitução, e pelas escolhas sazonais da população, mediante o sufrágio periódico. Identificados os fins, os administradores devem eleger os meios adequados à sua obtenção, com preferência para os instrumentos mais eficazes.
Em muitos casos, todavia, deve-se ter em conta a teoria dos motivos determinantes, bem explicitada por Hely Lopes Meireles:
"
A teoria dos motivos determinantes funda-se na consideração de que os atos administrativos, quando tiverem sua prática motivada, ficam vinculados aos motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos. Tais motivos é que determinam e justificam a realização do ato, e, por isso mesmo, deve haver perfeita correspondência entre eles e a realidade
. Mesmo os atos discricionários, se forem motivados, ficam vinculados a esses motivos como causa determinante de seu cometimento e sujeitam-se ao confronto da existência e legitimidade dos motivos indicados. Havendo desconformidade entre os motivos determinantes e a realidade, o ato é
inválido
."
(MEIRELLES, Hely Lopes.
Direito Administrativo Brasileiro.
14ª Edição, Editora RT, p. 175)
É fato que, na contemporaneidade, alguns autores têm criticado referida teoria, como bem ilustra a seguinte lição de Marçal Justen Filho:
"A teoria dos motivos determinantes estabelece que o
agente administrativo se vincula à motivação adotada
, de modo que se presume que o motivo indicado foi o único a justificar a decisão adotada. Essa teoria deve ser reputada como
ultrapassada
, não se prestando mais ao controle de validade dos atos administrativos. Foi desenvolvida nos primórdios do direito administrativo, quando ainda não se delineara de modo perfeito a distinção entre autonomia de vontade privada e vontade funcionalizada própria do direito administrativo. Mais ainda, era um instrumento de controle construído em vista de certa concepção de discricionariedade.
A afirmação pelo agente de que atuou fundado em determinados motivos não produz efeitos vinculantes para fins de controle. Pode evidenciar-se a existência de motivos ocultos ou disfarçados. Mas não há impedimento a que a Administração Pública evidencie, posteriormente, que o ato se fundou em outros motivos, que justificavam adequadamente a decisão adotada
. A equivocada indicação do motivo é uma falha, mas o grave reside na ausência de atuação orientada a satisfazer as necessidades coletivas, com a observância de um procedimento democrático." (JUSTEN FILHO, Marçal.
Curso de direito administrativo.
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 264)
Em que pese a densidade da crítica de Marçal Justen Filho, essa teoria ainda exerce salutar função democrática, ao estimular, por vias oblíquas, o dever de fundamentação do ato administrativo. Compartilho, pois, da lição de José dos Santos Carvalho Filho quando argumenta:
"
A teoria dos motivos determinantes baseia-se no princípio de que o motivo do ato administrativo deve sempre guardar compatibilidade com a situação de fato que gerou a manifestação da vontade
. E não se afigura estranho que se chegue a essa conclusão: se o motivo se conceitua como a própria situação de fato que impele a vontade do administrador, a inexistência dessa situação provoca a invalidação do ato."
(CARVALHO F, José dos Santos.
Manual de direito administrativo.
24. ed. RJ: Lumen Juris, 2011, p. 109).
Afinal de contas, conquanto o Poder Judiciário não possa invadir a esfera decisória que é própria do Poder Executivo - o que não se discute -, também é fato que se deve
"
fortalecer o postulado da inafastabilidade de toda e qualquer fiscalização judicial. A progressiva redução e eliminação dos círculos de imunidade do poder há de gerar, como expressivo efeito consequencial, a interdição do seu exercício abusivo
."
(FAGUNDES, Seabra.
O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário.
Atualizado por Gustavo Binenbojm. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 191).
Conjugando-se todos esses elementos, vê-se que o Direito Administrativo contemporâneo
não
mais
acolhe
a premissa de que o mérito dos atos administrativos seria sempre insuscetível de controle judicial. Isso não ocorre em um Estado Constitucional, dado que administrar é exercer função; é
atuar
em
nome próprio
, mas no interesse alheio. Também é possível o controle de decisões fundadas em fontes normativas que veiculam conceitos porosos, imprecisos, indeterminados (leia-se CARRIÓ, Genaro R.
Notas sobre Derecho y lenguaje.
6. ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2011).
Isso significa que, diante da efetividade dos princípios constitucionais, o administrador público não pode decidir ao seu arbítrio, já que - mesmo em tais casos - há zonas de certeza positiva e negativa, suscetíveis de aferição judicial.
(...) 1.
De acordo com a doutrina mais autorizada, os conceitos jurídicos indeterminados, como, no caso, procedimento irrepreensível e idoneidade moral inatacável, sujeitam-se a controle judicial de sua configuração concreta.
2. Não é omissão de aplicação do disposto no art. 37, I, da Constituição e no art. 8o., I, do Dec.-Lei n. 2.320/87 a afirmação de que os fatos alegados - acontecidos há mais de dez anos e em razão dos quais, processado, o apelado restou absolvido - não justificam exclusão do Curso de Agente de Polícia Federal. (EDAC 964030319994010000, DESEMBARGADOR FEDERAL JOAO BATISTA MOREIRA, TRF1 - QUINTA TURMA, DJ DATA:14/11/2002 PAGINA:207.)
No que toca à fiscalização dos atos discricionários, menciono os precedentes abaixo, colhidos junto ao STF e STJ:
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DE PROFESSORES. EXISTÊNCIA DE CANDIDADOS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO DE PROVIMENTO EFETIVO. ILEGALIDADE. LEI ESTADUAL 6.915/2007. EXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 279 DESTA CORTE. ANÁLISE DE LEGISLAÇÃO LOCAL. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 280 DO STF. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO. POSSIBILIDADE DE CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS ADMINISTRATIVOS DISCRICIONÁRIOS ABUSIVOS E ILEGAIS. AGRAVO IMPROVIDO. I - Inviável o recurso extraordinário quando sua apreciação demanda o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, bem como da legislação infraconstitucional local aplicável à espécie. Incidência das Súmulas 279 e 280 do STF. Precedentes. II -
Esta Corte possui entendimento no sentido de que o exame pelo Poder Judiciário do ato administrativo tido por ilegal ou abusivo não viola o princípio da separação dos poderes
. Precedentes. III - Agravo regimental improvido. (RE-AgR 654170, RICARDO LEWANDOWSKI, STF.)
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. DEMISSÃO. PODER DISCIPLINAR. LIMITES DE ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. ATO DE IMPROBIDADE. 1. Servidor do DNER demitido por ato de improbidade administrativa e por se valer do cargo para obter proveito pessoal de outrem, em detrimento da dignidade da função pública, com base no art. 11, caput, e inciso I, da Lei n. 8.429/92 e art. 117, IX, da Lei n. 8.112/90. 2.
A autoridade administrativa está autorizada a praticar atos discricionários apenas quando norma jurídica válida expressamente a ela atribuir essa livre atuação. Os atos administrativos que envolvem a aplicação de "conceitos indeterminados" estão sujeitos ao exame e controle do Poder Judiciário. O controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato, à luz dos princípios que regem a atuação da Administração.
3. Processo disciplinar, no qual se discutiu a ocorrência de desídia --- art. 117, inciso XV da Lei n. 8.112/90. Aplicação da penalidade, com fundamento em preceito diverso do indicado pela comissão de inquérito. A capitulação do ilícito administrativo não pode ser aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa. De outra parte, o motivo apresentado afigurou-se inválido em face das provas coligidas aos autos. 4. Ato de improbidade: a aplicação das penalidades previstas na Lei n. 8.429/92 não incumbe à Administração, eis que privativa do Poder Judiciário. Verificada a prática de atos de improbidade no âmbito administrativo, caberia representação ao Ministério Público para ajuizamento da competente ação, não a aplicação da pena de demissão. Recurso ordinário provido. (RMS 24699, EROS GRAU, STF.)
ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL - MILITAR - SARGENTO DO QUADRO COMPLEMENTAR DA AERONÁUTICA - INGRESSO E PROMOÇÃO NO QUADRO REGULAR DO CORPO DE PESSOAL GRADUADO - ESTÁGIO PROBATÓRIO NÃO CONVOCADO - CONDIÇÃO "SINE QUA NON" - APLICAÇÃO DO ART. 49 DO DECRETO Nº 68.951/71 - RECURSO ESPECIAL - LIMITAÇÃO DA DISCRICIONARIEDADE - MORALIDADE PÚBLICA, RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. 1. A discricionariedade atribuída ao Administrador deve ser usada com parcimônia e de acordo com os princípios da moralidade pública, da razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de desvirtuamento. 2. As razões para a não convocação de estágio probatório, que é condição indispensável ao acesso dos terceiros sargentos do quadro complementar da Aeronáutica ao quadro regular, devem ser aptas a demonstrar o interesse público. 3.
Decisões desse quilate não podem ser imotivadas. Mesmo o ato decorrente do exercício do poder discricionário do administrador deve ser fundamentado, sob pena de invalidade. 4. A diferença entre atos oriundos do poder vinculado e do poder discricionário está na possibilidade de escolha, inobstante, ambos tenham de ser fundamentados. O que é discricionário é o poder do administrador. O ato administrativo é sempre vinculado, sob pena de invalidade. 5. Recurso conhecido e provido
. ..EMEN: (RESP 199500599678, ANSELMO SANTIAGO, STJ - SEXTA TURMA, DJ DATA:09/06/1997 PG:25574 RSTJ VOL.:00097 PG:00404 ..DTPB:.)
Concluo, pois, ser plenamente cabível o controle judicial dos atos administrativos, mesmo quando discricionários. Deve-se atuar com circunspeção, todavia, a fim de que o Poder Judiciário não se substitua ao Poder Executivo, no juízo de conveniência e oportunidade de determinadas políticas públicas, salvo quando manifestamente ineficientes, inadequadas ou abusivas
.
2.21. Controle da proporcionalidade:
Ademais, sabe-se bem, a atuação das entidades estatais deve respeitar ao postulado da proporcionalidade, questão verbalizada expressamente pelo art. 18 da Constituição de Portugal de 1976 e que remanesce implícita, na Lei Maior brasileira (art. 5, LIV) - enquanto projeção material da cláusula do devido processo.
Art. 18 - Constituição de Portugal. 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2.
A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos
. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
Reporto-me, tanto por isso, à lição de Bernal Pulido:
"1. Segundo o
subprincípio da idoneidade
, toda intervenção nos direitos fundamentais deve ser adequada para contribuir para a obtenção de um fim constitucionalmente legítimo. 2. Conforme o
subprincípio de necessidade
, toda medida de intervenção nos direitos fundamentais deve se a mais benigna com o direito no qual se interveio, dentre todas aquelas que revistam da mesma idoneidade para contribuir para alcançar o fim proposto. 3. Nos termos do
princípio da proporcionalidade em sentido estrito
, a importância dos objetivos perseguidos por toda intervenção nos direitos fundamentais deve guardar uma adequada relação com o significado do direito intervindo.
Em outros termos, as vantagens que se obtém mediante a intervenção no direito devem compensar os sacrifícios que esta implica para seus titulares e para a sociedade em geral
."
(PULIDO, Carlos Bernal.
El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales:
el principio de proporcionalidad como criterio para determinar el contenido de los derechos fundamentales vinculantes para el legislador. 3. ed. Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. 2007. p. 42)
Ou seja, as opções estatais não podem ser promovidas com excesso, eis que devem se ater ao mínimo indispensável para a salvaguarda dos interesses públicos que as justificam. Deve-se atentar para o conhecido postulado
odiosa sunt restringenda
(
Übermamaßverbot
).
A respeito do tema, menciono também a obra de BARROS, Suzana de Toledo.
O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais.
2. ed. Brasília: Brasília jurídica. p. 69/82. Transcrevo, ademais, a análise de Canotilho e Vital Moreira:
"O terceiro pressuposto material para a restrição legítima de direitos, liberdades e garantias consiste naquilo que genericamente se designa por princípio da proporcionalidade.
Foi a LC 01/82 que deu expressa guarida constitucional a tal princípio (art. 18-2, 2ª parte), embora já antes, não obstante a ausência de texto expresso, ele fosse considerado um
princípio
material
inerente ao regime dos direitos, liberdades e garantias.
O princípio da proporcionalidade (também chamado de princípio da proibição de excesso) desdobra-se em três subprincípios
: (a) princípio da adequação (também designado como princípio da idoneidade), isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade (também chamado de princípio de necessidade, ou da indispensabilidade), ou seja, as medidas restritivas previstas na Lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela Lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (c)
princípio da proporcionalidade em sentido estrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa justa medida, impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos
.
Em qualquer caso, há um limite absoluto para a restrição de direitos, liberdades e garantias, que consiste no respeito ao conteúdo essencial dos respectivos preceitos
."(CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital.
Constituição da República Portuguesa anotada.
Volume 1: arts. 1º a 107. 1. ed. brasileira. 4. edição portuguesa. São Paulo: RT, Coimbra: Coimbra Editora. p. 394-395)
Vale dizer: a restrição a direitos fundamentais deve ser graduada pelo critério da
indispensabilidade
; ela somente pode ser imposta quando - e no limite em que - se revelar indispensável. Do contrário, o chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais (
Wesengehalt
) restaria atingido, como reconhecem expressamente o art. 18 da Constituição de Portugal/1976 e implicitamente a nossa Lei Maior.
Acrescento que o Poder Judiciário pode controlar a proporcionalidade dos atos administrativos, a fim de aferir se não implicam um comprometimento injustificado das expectativas jurídicas legítimas dos sujeitos, em prol de um retorno social que se revele reduzido ou inadequado. Como registrei antes, o mérito do ato administrativo não se furta ao controle jurisdicional, conquanto isso deva ser empregado com redobradas cautelas.
ATO ADMINISTRATIVO. CONTROLE JUDICIAL. PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. 1.
Ao controle judicial submete-se não apenas a legalidade do ato administrativo, como também a observância aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e, uma vez verificada a desproporção entre a multa aplicada e a infração cometida, cabe ao Judiciário adequá-la a parâmetros razoáveis
. 2. Apelação não provida. 3. Peças liberadas pelo Relator, em 03/02/2009, para publicação do acórdão. (TRF-1 - AC: 20899 DF 1997.34.00.020899-0, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL LUCIANO TOLENTINO AMARAL, Data de Julgamento: 03/02/2009, 7. TURMA, Publicação: 20/02/2009 e-DJF1 p.370)
2.22. Autoexecutoriedade administrativa:
Note-se, ademais, que administrar é aplicar a lei de ofício, como dizia o jurista Cirne Lima
. Assim, por óbvio, o Poder Executivo não carece de prévia franquia judicial para gerir a coisa pública, exceção feita aos casos pontuais em que a jurisdição de primeira palavra é imposta pela Constituição (por exemplo, prévia franquia judicial para a interceptação telefônica e telemática, prévia autorização judicial para a realização de busca e apreensão domiciliar, com as ressalvas promovidas no art. 5, XI, Constituição/88 etc).
Ora, sabe-se que
"
A presunção de veracidade inverte o ônus da prova
; é errado afirmar que a presunção de legitimidade produz esse feito, uma vez que, quando se trata de confronto entre o ato e a lei, não há matéria de fato a ser produzida; nesse caso, o efeito é apenas o anterior, ou seja, o juiz só apreciará a nulidade se arguida pela parte."
(PIETRO, Maria Sylvia Z.
Direito administrativo.
18. ed. SP: Atlas, 2005, p. 192).
Com efeito, em regra, os atestados, certidões e afirmações de servidores públicos possuem, em seu favor, a presunção de autenticidade do que se encontra declarado
. Do contrário, a atividade administrativa se tornaria praticamente inviável. Não houvesse tal presunção, dever-se-ia juntar, a cada certidão, um vídeo, uma fotografia acompanhada de duas testemunhas etc. Deve-se atentar, porém, para as importantes ressalvas promovidas por Lúcia Vale Figueiredo, no que toca à transposição desses vetores para o âmbito do processo administrativo sancionador:
"
Se os atos administrativos desde logo são imperativos e podem ser exigíveis (i.e., tornam-se obrigatórios e executáveis), há de militar em seu favor a presunção iuris tantum de legalidade
.
Todavia, como bem assinala Celso Antônio, a presunção se
inverte
quando os atos forem
contestados em juízo
ou, diríamos nós, também fora dele, quando contestados administrativamente.
Caberá à Administração provar a estrita conformidade do ato à lei, porque ela (Administração) é quem detém a comprovação de todos os atos e fatos que culminaram com a emanação do provimento administrativo contestado
.
Determinada, p.ex., a demolição de imóvel por ameaça à incolumidade pública, se houver contestação em juízo, deverá a administração provar (por meio de estudos técnicos ou pareceres, de profissionais competentes) que o imóvel ameaçava ruir e que desse fato resultava a periclitação da incolumidade pública.
De outra parte, se a regra de que a prova é de quem alega não fosse invertida, teríamos, muitas vezes, a determinação feita ao administrado de prova impossível, por exemplo, da inocorrência da situação de fato. A prerrogativa de tal importância - presunção de legalidade - deve necessariamente corresponder, se houver confronto, a inversão do onus probandi. Isso, é claro, em princípio.
Trazemos agora a contexto a aplicação de sanções. Muita vez torna-se difícil - ou quase impossível - provar que o sancionado não incorreu nos pressupostos da sanção (a prova seria negativa). Caberá, destarte, à Administração provar cabalmente os fatos que a teriam conduzido à sanção, até mesmo porque, em face da atuação sancionatória, vige, em sua plenitude, o inciso LIV, art. 5º do texto constitucional
.
Na verdade, quando os atos emanados forem decorrentes de infrações administrativas ou disciplinares não há como não se exigir da Administração a prova contundente da existência dos pressupostos fáticos para o ato emanado. Para isso, a
motivação do ato
é de capital importância." (FIGUEIREDO, Lúcia Valle.
Curso de direito administrativo.
5. ed. SP: Malheiros, 2001, p. 171-172)
Reporto-me também à seguinte lição de Justen Filho:
"
A autoexecutoriedade indica a possibilidade de a Administração Pública obter a satisfação de um direito ou de dirimir um litígio de que participa sem a intervenção imediata do Poder Judiciário, produzindo atos materiais necessários a obter o bem da vida buscado. A auto-executoriedade pode conduzir obviamente ao impedimento da prática de certos atos pelos particulares
. (...)
Não há vedação radical ao uso da força pela Administração Pública, na medida em que tal seja a solução adequada para a realização do Direito. Mas o uso da força deverá refletir um devido processo legal, sendo acompanhado da observância de todas as formalidades comprobatórias necessárias e das garantias inerentes ao processo
. Mais ainda, não se admite o uso da força mediante mera invocação de fórmulas genéricas determinadas, tais como interesse público, bem comum, segurança, etc. Deve-se identificar, de modo concreto, o bem jurídico tutelado e expor o motivo pelo qual se reputa que a força deva ser utilizada. É evidente que existem situações concretas emergenciais em que o cumprimento destas formalidades é impossível." (JUSTEN FILHO, Marçal.
Curso de direito administrativo.
São Paulo: Saraivap. 207)
Enfim, desde que realmente se trate de uma imposição/atuação abusiva, excessiva - ou manifestamente ineficiente e inadequada -, o Poder Judiciário deve reconhecer a sua invalidade, com o fim de assegurar os direitos fundamentais.
PROCESSO CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA TUTELA DO MEIO AMBIENTE. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. DEMOLIÇÃO DE EDIFÍCIO IRREGULAR. RECUPERAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA. AUTO-EXECUTORIEDADE DA MEDIDA. ART. 72, INC. VIII, DA LEI N. 9.605/98 (DEMOLIÇÃO DE OBRA). 1.
A demolição de obras é sanção administrativa dotada de auto-executoriedade, razão pela qual despicienda a ação judicial que busque sua incidência
. 2. Mesmo que a Lei n. 9.605/98 autorize a demolição de obra como sanção às infrações administrativas de cunho ambiental, a verdade é que existe forte controvérsia acerca de sua auto-executoriedade (da demolição de obra). 3. No caso concreto, não se trata propriamente de demolição de obra, pois o objeto da medida é edifício já concluído - o que intensifica a problemática acerca da incidência do art. 72, inc. VIII, da Lei n. 9.605/98.4. A presente ação civil pública tem como objetivo, mais do que a demolição do edifício, também a recuperação da área degradada. (TRF-4 - AC: 3084 SC 2009.72.00.003084-1, Relator: NICOLAU KONKEL JÚNIOR, Data de Julgamento: 08/02/2011, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: D.E. 16/02/2011)
2.23. Dever de motivação:
A Administração Pública está obrigada a motivar os atos administrativos concretos, consectário direto do postulado da legalidade.
"A motivação é elemento essencial para o controle, sobretudo para o controle judicial. Não haverá possibilidade de aferir se o ato se conteve dentro da competência administrativa, dentro da razoabilidade, que deve nortear toda competência, caso não sejam explicitadas as razões condutoras do provimento emanado."
(FIGUEIREDO, Lúcia Valle.
Curso de direito administrativo.
5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 174).
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da motivação
"implica para a Administração o dever de justificar seus atos, apontando-lhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes e a providência tomada, nos casos em que este último aclaramento seja necessário para aferir-se a consonância da conduta administrativa com a lei que lhe serviu de arrimo."
(BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.
Curso de Direito administrativo.
19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 100).
O art. 2º,
caput,
lei 9784/1999 dispõe expressamente que
"A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade,
motivação
, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência."
O art. 38, §1º da mesma lei preconiza que os elementos probatórios colhidos no curso da instrução devem ser considerados na motivação do relatório e da decisão. A motivação também é invocada, por exemplo, nos arts. 45 e 49 da mesma lei.
O seu art. 50, §1º dispõe que
"
A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato
."
Registre-se, todavia, que os tribunais têm reconhecido a validade da fundamentação
per
relationem
,
inclusive quanto a deliberações judiciais. Reporto-me aos julgados abaixo:
"
A decisão administrativa do Corregedor-Geral de Justiça empregou a chamada motivação
per relationem
- isto é, valeu-se integralmente das razões lançadas no parecer da Juíza-Corregedora para não conhecer do recurso
-, técnica essa que não é vedada, tampouco importa ausência de fundamentação desde que o decisum se reporte a manifestações ou peças processuais que contenham os motivos, de fato e de direito, a amparar a conclusão judicial esposada, como na espécie." (ROMS 200601698350, CASTRO MEIRA, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:10/02/2011 ..DTPB:. omiti o restante da ementa)
2.24. Livre iniciativa e controle estatais:
De outro tanto, como notório, a História tem conhecido distintas
formas de produção
. As comunidades políticas há conviveram com o vergonhoso modo escravista, com o regime de vassalagem, com propostas socialistas e também com o regime capitalista, com todas as suas muitas variáveis.
Grosso modo, há modelos que advogam uma
economia planificada
, em que um órgão central detém o controle absoluto do que é produzido e consumido, ditando a forma como devem ser distribuídos e redistribuídos. De certo modo, essa foi a ambição do regime da extinta URSS. A crítica é que, por
aniquilar o estímulo individual pelo incremento da própria riqueza
(egoísmo individual, teorizado por Aadm Smith na obra '
riqueza das nações
', e por Bernard Mandeville, na sua '
fábula das abelhas
'), esse modelo acaba por asfixiar o crescimento econômico.
Já a concepção contrária, de
conteúdo liberal
, atribui a cada sujeito a decisão a respeito do que fazer com os seus
próprios talentos e também com o seu patrimônio
. Ao invés de se advogar uma propriedade coletiva do excedente econômico, esse ideário funda-se nos institutos da
propriedade privada
e do
contrato
. De certo modo, a República Federativa do Brasil adotou um liberalismo mitigado, a exemplo daquele propugnado por
John Maynard Keynes
, para quem o sistema político deveria
assegurar o mínimo existencial
, a fim de se garantir a própria
subsistência do sistema econômico
. Daí a necessidade de aposentadoria, salário mínimo, auxílios, cláusulas de impenhorabilidade, até mesmo para se garantir um mercado consumidor efetivo, distribuído entre distintas camadas sociais.
A Lei Maior reconheceu o
direito de propriedade
, mas também
impôs limites ao seu exercício
, tornando-o funcional (art. 5º, XXIII, CF). Reconheceu que a República brasileira está assentada no reconhecimento do valor social do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, e art. 170,
caput,
CF), mas também assegurou inúmeros mecanismos de intervenção estatal na economia, como cediço. Convém ter em conta a antiga lição de José Afonso da Silva, ainda bastante atual:
"
Assim, a liberdade de iniciativa econômica privada, num contexto de uma Constituição preocupada com a realização da justiça social
(o fim condiciona os meios),
não pode significar mais do que 'liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público, e, portanto, possibilidade de gozar das facilidades e necessidades de submeter-se às limitações postas pelo mesmo
.' É legítima, enquanto exercida no interesse da Justiça Social. Será ilegítima, quando exercida com o objeto de puro lucro e realização pessoal do empresário. Daí por que a iniciativa econômica pública, embora sujeita a outros tantos condicionamentos constitucionais, se torna legítima, por mais ampla que seja, quando destinada a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Cumpre, então, observar que
a liberdade de iniciativa econômica não sofre compressão só do Poder Público
. Este efetivamente o faz legitimamente nos termos da lei, quer regulando a liberdade de indústria e comércio, em alguns casos impondo a necessidade de autorização ou de permissão para determinado tipo de atividade econômica, quer regulando a liberdade de contratar, especialmente no que tange às relações de trabalho, mas também quanto à fixação de preços, além da intervenção direta na produção e comercialização de certos bens.
Acontece que o desenvolvimento do poder econômico privado, fundado especialmente na concentração de empresas, é fator de limitação à própria iniciativa privada, na medida em que a concentração capitalista impede ou estorva a expansão de pequenas iniciativas econômicas." (SILVA, José Afonso da.
Curso de direito constitucional positivo.
13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 726)
Daí o igual relevo do art. 1.228, §1º, do Código Civil/2002:"
O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. §1º
O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas
."
Reporto-me também aos seguintes julgados prolatados pelo STF:
"American Virginia Indústria e Comércio Importação Exportação Ltda. pretende obter efeito suspensivo para recurso extraordinário admitido na origem, no qual se opõe a interdição de estabelecimentos seus, decorrente do cancelamento do registro especial para industrialização de cigarros, por descumprimento de obrigações tributárias. (...)
Cumpre sublinhar não apenas a legitimidade deste outro propósito normativo, como seu prestígio constitucional
. A defesa da livre concorrência é imperativo de ordem constitucional (art. 170, IV) que deve harmonizar-se com o princípio da livre iniciativa (art. 170, caput). Lembro que 'livre iniciativa e livre concorrência, esta como base do chamado livre mercado, não coincidem necessariamente. Ou seja, livre concorrência nem sempre conduz à livre iniciativa e vice-versa (cf. Farina, Azevedo, Saes: Competitividade: Mercado, Estado e Organizações, São Paulo, 1997, cap. IV). Daí a necessária presença do Estado regulador e fiscalizador, capaz de disciplinar a competitividade enquanto fator relevante na formação de preços ...' Calixto Salomão Filho, referindo-se à doutrina do eminente Min. Eros Grau, adverte que
'livre iniciativa não é sinônimo de liberdade econômica absoluta
(...).
O que ocorre é que o princípio da livre iniciativa, inserido no caput do art. 170 da CF, nada mais é do que uma cláusula geral cujo conteúdo é preenchido pelos incisos do mesmo artigo
. Esses princípios claramente definem a liberdade de iniciativa não como uma liberdade anárquica, porém social, e que pode, consequentemente, ser limitada.' A incomum circunstância de entidade que congrega diversas empresas idôneas (ETCO) associar-se, na causa, à Fazenda Nacional, para defender interesses que reconhece comuns a ambas e à própria sociedade, não é coisa de desprezar. Não se trata aqui de reduzir a defesa da liberdade de concorrência à defesa do concorrente, retrocedendo aos tempos da 'concepção privatística de concorrência', da qual é exemplo a 'famosa discussão sobre liberdade de restabelecimento travada por Rui Barbosa e Carvalho de Mendonça no caso da Cia. de Juta (Revista do STF (III), 2/187, 1914)', mas apenas de reconhecer que o fundamento para a coibição de práticas anticoncorrenciais reside na proteção a 'ambos os objetos da tutela: a lealdade e a existência de concorrência (...). Em primeiro lugar, é preciso garantir que a concorrência se desenvolva de forma leal, isto é, que sejam respeitadas as regras mínimas de comportamento entre os agentes econômicos. Dois são os objetivos dessas regras mínimas. Primeiro, garantir que o sucesso relativo das empresas no mercado dependa exclusivamente de sua eficiência, e não de sua 'esperteza negocial' - isto é, de sua capacidade de desviar consumidores de seus concorrentes sem que isso decorra de comparações baseadas exclusivamente em dados do mercado.' Ademais, o caso é do que a doutrina chama de tributo extrafiscal proibitivo, ou simplesmente proibitivo, cujo alcance, a toda a evidência, não exclui objetivo simultâneo de inibir ou refrear a fabricação e o consumo de certo produto. A elevada alíquota do IPI caracteriza-o, no setor da indústria do tabaco, como tributo dessa categoria, com a nítida função de desestímulo por indução na economia. E isso não pode deixar de interferir na decisão estratégica de cada empresa de produzir ou não produzir cigarros. É que, determinada a produzi-lo, deve a indústria submeter-se, é óbvio, às exigências normativas oponíveis a todos os participantes do setor, entre as quais a regularidade fiscal constitui requisito necessário, menos à concessão do que à preservação do registro especial, sem o qual a produção de cigarros é vedada e ilícita." (AC 1.657-MC, voto do Rel. p/ o ac. Min. Cezar Peluso, julgamento em 27-6-2007, Plenário, DJ de 31-8-2007.)
"
É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais
. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade.
Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus arts. 1º, 3º e 170. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho
. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da 'iniciativa do Estado'; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa. Se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto (arts. 23, V, 205, 208, 215 e 217, § 3º, da Constituição). Na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. O direito ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer são meios de complementar a formação dos estudantes." (ADI 1.950, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 3-11-2005, Plenário, DJ de 2-6-2006.)
"
A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro
. Razões de Estado - que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente,
ex parte principis,
a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo - não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição. As normas de ordem pública - que também se sujeitam à cláusula inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta Política (RTJ 143/724) - não podem frustrar a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade." (RE 205.193, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25-2-1997, Primeira Turma, DJ de 6-6-1997.)
Percebe-se, tanto por isso, que - em que pese deva ser assegurada a liberdade de empresa (art. 170,
caput,
Constituição) -, cabe ao
Estado
fiscalizar
o exercício de
atividades de risco
, sobremodo quando possam comprometer a saúde da população e os interesses de gerações presentes e futuras.
Sem dúvida que
"
A empresa é a célula essencial da economia de mercado e cumpre relevante função social, na medida em que, ao explorar a atividade prevista em seu objeto e ao perseguir seu objetivo - o lucro -, promove interações econômicas (produção ou circulação de bens ou serviços) com outros agentes do mercado, consumindo, vendendo, gerando empregos, pagando tributos, movimentando a economia
, desenvolvendo a comunidade em que está inserida, enfim, criando riqueza e ajudando no desenvolvimento do país, não porque esse seja seu objetivo final - de fato, não o é -, mas simplesmente em razão de um efeito colateral benéfico (que os economistas chamam de externalidade positiva) do exercício da sua atividade."
(SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo.
Recuperação de empresas e falência:
teoria e prática na lei n. 11.101/2005. Coimbra: Almedina. 2016. p. 73).
Todavia, convém também ter em conta
"Nem toda empresa merece ser preservada. Não existe, no direito brasileiro ou em qualquer outro dos que temos notícia, um princípio da preservação da empresa a todo custo. Na verdade, a LREF consagra, no sentido exatamente oposto, um princípio complementar ao da preservação da empresa que é o da retirada do mercado da empresa inviável.
Ora, não é possível - nem razoável - exigir que se mantenha uma empresa a qualquer custo; quando os agetes econômicos que exploram a atividade não estão aptos a criar riqueza e podem prejudicar a oferta de crédito, a segurança e a confiabilidade do mercado, é sistematicamente lógico que eles sejam retirados do mercado, o mais rápido possível, para o bem da economia como um todo, sempre com a finalidade de se evitar a criação de maiores problemas
."
(SCALZILLI.
Obra citada.
p. 77).
Essas limitações à livre iniciativa devem ser tomadas em devida conta quando em causa empreendimentos potencialmente lesivos ao ambiente.
2.25. Limitações administrativas:
José dos Santos Carvalho Filho explicita que as
"
Limitações administrativas são determinações de caráter geral
, através das quais o Poder Público impõe a proprietários determinadas obrigações positivas, negativas ou permissivas, para o fim de condicionar as propriedades ao atendimento da função social".
(CARVALHO FILHO, José dos Santos.
Manual de direito administrativo.
24. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2011, p. 730).
Ainda segundo José Carvalho Filho:
"
É exemplo de obrigação positiva aos proprietários a que impõe a limpeza de terrenos ou a que impõe o parcelamento ou a edificação compulsória. Podem ser impostas também obrigações negativas: é o caso da obrigação de construir além de determinado número de pavimentos, limitação conhecida como gabarito de prédios. Limita-se ainda a propriedade por meio de obrigações permissivas, ou seja, aqueles em que o proprietário tem que tolerar a ação administrativa. Exemplos: permissão de vistoria em elevadores de edifícios e ingresso de agentes para fins de vigilância sanitária
.
No caso de limitações administrativas, o Poder Público não pretende levar a cabo qualquer obra ou serviço público. Pretende, ao contrário, condicionar as propriedades à verdadeira função social que delas é exigida, ainda que em detrimento dos interesses individuais dos proprietários. Decorrem elas do
ius imperii
do Estado que, como bem observa Hely Lopes Meirelles, tem o domínio eminente e potencial sobre todos os bens de seu território, de forma que, mesmo sem extinguir o direito do particular, tem o poder de adequá-lo coercitivamente." (CARVALHO FILHO, José dos Santos.
Manual de direito administrativo.
24. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2011, p. 731)
Vê-se que essa
categoria
admite uma
concepção
ampla
e também uma leitura
restrita
; quanto ao
conceito amplo
, qualquer restrição legislativa - por exemplo, a imposição de que o exercício do direito de propriedade cumpra sua função social (art. 1.228, CC/02) - poderia ser entendida como projeção do poder de polícia (i.e., como uma limitação imposta pela Administração Pública). Em sentido
restrito
, porém, as limitações administrativas possuem as seguintes características, segundo o juiz Luis Manuel Fonseca Pires:
"
Enfim, segundo toda a doutrina que declinamos podemos indicar, em geral, as seguintes características das limitações administrativas à liberdade e propriedade: a) trata-se de uma manifestação da função administrativa; b) fundamenta-se na supremacia geral; c) absolutamente subordinada à ordem jurídica; d) caracteriza-se pela prática de atos de império, o que significa dizer que decorrem da manifestação de um poder de autoridade
; e) tratam da conformação de direitos e da manutenção da ordem jurídica; f) podem fundar-se numa competência discricionária ou vinculada, mas em qualquer caso se trata de um
dever
da
Administração
, e não simples faculdade; g) pela ótica da finalidade última que se quer alcançar caracteriza-s, para parcela significativa da doutrina, por ser um não-fazer, pois se deseja que o administrado não se comporte de forma a prejudicara si ou a terceiros; h) em alguns casos há a autoexecutoriedade." (PIRES, Luis Manuel Fonseca.
Limitações administrativas à liberdade e propriedade.
São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 204-205)
No dizer de José dos Santos Carvalho Filho, por seu turno, as limitações administrativas
"
serão sempre gerais, porque, contrariamente ao que ocorre com a formas interventivas anteriores, as limitações não se destinam a imóveis específicos, mas a um grupamento de propriedade em que é dispensável a identificação. Há, pois, indeterminabilidade acerca do universo de destinatários e de propriedades atingidas pelas limitações
."
(CARVALHO FILHO, José dos Santos.
Manual de direito administrativo,
p. 732).
Há também quem dissocie limitação administrativa, de um lado, e restrição a direitos, de outro
. A limitação administrativa trataria de atribuir os contornos, próprios ao exercício do direito (p.ex., a obrigação de que o proprietário do imóvel reserve espaço do imóvel para a calçada). A restrição ao direito envolveria
uma limitação ao exercício de um direito
, cujos contornos já teriam sido previamente delimitados pelo ordenamento.
Dado o caráter geral, no mais das vezes, ditas limitações administrativas
não ensejarão o dever de reparação de danos por parte da Administração Pública
, cumprindo atentar para a lição de Carvalho Filho:
"
Sendo imposições de ordem geral, as limitações administrativas não rendem ensejo à indenização em favor dos proprietário
s. As normas genéricas, obviamente, não visam a uma determinada restrição nesta ou naquela propriedade, abrangem quantidade indeterminada de propriedades. Desse modo, podem contrariar interesses dos proprietários, mas nunca direitos subjetivos. Por outro lado, não á prejuízos individualizados, mas sacrifícios gerais a que se devem obrigar os membros da coletividade.
É mister salientar, por fim, que inexiste causa jurídica para qualquer tipo de indenização a ser paga pelo Poder Público. Não incide, por conseguinte, a responsabilidade civil do Estado geradora do dever indenizatório, a não ser que, a pretexto de impor limitações gerais, o EStado cause prejuízo a determinados proprietários em virtude de conduta administrativa. Aí sim, haverá vício na conduta e ao Estado será imputada a devida responsabilidade, na forma do que dispõe o art. 37, §6º, Constituição."
(CARVALHO FILHO, José dos Santos.
Manual de direito administrativo.
24. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2011, p. 733).
Semelhante é a análise do juiz Fonseca Pires:
"
Identificada a natureza jurídica das restrições administrativas - trata-se de espécie de sacrifício de direito - é preciso então traçar os limites dos danos indenizáveis. (...) Outra consequência lógica da natureza jurídica das restrições administrativas é que se o esvaziamento total ou parcial de um direito ocorre por uma autorização do ordenamento jurídico, como ocorre com as desapropriações, servidões e tombamentos, é preciso aplicar, por analogia, o mecanismo da expropriação de direitos, o que significa, em última análise, a exigência de prévia e justa indenização em dinheiro, nos termos do art. 5º, inc. XXIV, Constituição
."
(PIRES, Luis Manuel Fonseca.
Limitações administrativas à liberdade e propriedade.
SP: Quartier Latin, 2006, p. 323).
Atente-se para os seguintes julgados, emanados do STF:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA. INDENIZAÇÃO. I -
Se a restrição ao direito de construir advinda da limitação administrativa causa aniquilamento da propriedade privada, resulta, em favor do proprietário, o direito à indenização
. Todavia, o direito de edificar é relativo, dado que condicionado à função social da propriedade. Se as restrições decorrentes da limitação administrativa preexistiam à aquisição do terreno, assim já do conhecimento dos adquirentes, não podem estes, com base em tais restrições, pedir indenização ao poder público. II. - R.E. não conhecido. (RE 140436, CARLOS VELLOSO, STF.)
O Superior Tribunal de Justiça tem enfatizado, em diapasão contrário, que limitações administrativas decorrentes de imposições gerais
não
seriam suscetíveis de indenização:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DECRETO ESTADUAL 10.251/77. CRIAÇÃO DO PARQUE ESTADUAL DA SERRA DO MAR. ESVAZIAMENTO DO CONTEÚDO ECONÔMICO DA PROPRIEDADE. INDENIZAÇÃO INDEVIDA. LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS DE CARÁTER GERAL. MATÉRIA PACIFICADA NO ÂMBITO DA PRIMEIRA SEÇÃO. DISSÍDIO NÃO CONFIGURADO. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL SOBRE O QUAL RECAI A DIVERGÊNCIA.
1.
O acórdão de origem seguiu a jurisprudência consolidada nesta corte no sentido de que, para que fique caracterizada a desapropriação indireta, exige-se que o estado assuma a posse efetiva de determinando bem, destinando-o à utilização pública, o que não ocorreu na hipótese dos autos, visto que a posse dos autores permaneceu íntegra, mesmo após a edição do decreto estadual 10.251/77, que criou o parque estadual da serra do mar
. 2. Não é possível conhecer do recurso especial no tocante à alegada divergência jurisprudencial. Isso porque mesmo nas hipóteses em que se alega divergência jurisprudencial no apelo excepcional, é necessária a indicação do dispositivo da legislação infraconstitucional federal sobre o qual recai a divergência, sob pena de atração da Súmula 284/STF: "É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia". 3. Agravo regimental não provido. ..EMEN: (AGA 201001551917, MAURO CAMPBELL MARQUES, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:09/03/2012 ..DTPB:.)
ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DECRETO ESTADUAL 9.914/77. CRIAÇÃO DO PARQUE ESTADUAL DE ILHABELA. ESVAZIAMENTO DO CONTEÚDO ECONÔMICO DA PROPRIEDADE. INDENIZAÇÃO INDEVIDA. LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS DE CARÁTER GERAL. 1.
O ato administrativo que criou o Parque Estadual de Ilhabela não impôs aos proprietários outras restrições que não aquelas decorrentes da legislação constitucional e infraconstitucional, sendo certo que essas limitações administrativas, de caráter geral, não constituem direito que ampare qualquer indenização
. 2. Cumpre ressaltar, outrossim, que o recorrido, ao adquirir o imóvel em foco, o fez com pleno e prévio conhecimento das restrições já existentes sobre o mesmo, advindas da legislação federal, fato que não se coaduna com a afirmação de aniquilamento da propriedade em virtude de apossamento que não ocorreu. 3. Recurso especial provido. ..EMEN: (RESP 200601772531, MAURO CAMPBELL MARQUES, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:05/11/2010 ..DTPB:.)
Aquela Corte Superior tem promovido, todavia, a seguinte diferenciação:
"(...) 3.
A limitação administrativa distingue-se da desapropriação; nesta há transferência da propriedade individual para o domínio do expropriante, com integral indenização; naquela há, apenas, restrição ao uso da propriedade imposta genericamente a todos os proprietários, sem qualquer indenização. Limitações administrativas são, p. ex., a proibição de desmatamento de parte da área florestada em cada propriedade rural. Mas, se o impedimento de desmatamento de área florestada atingir a maior parte da propriedade ou sua totalidade, deixará de ser limitação para ser interdição de uso da propriedade, e, neste caso, o Poder Público ficará obrigado a indenizar a restrição que aniquilou o direito dominial e suprimiu o valor econômico do bem
. (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2009. 35º ed., págs. 645/646). 4. Não há desapropriação indireta sem que haja o efetivo apossamento da propriedade pelo Poder Público. Desse modo,
as restrições ao direito de propriedade, impostas por normas ambientais, ainda que esvaziem o conteúdo econômico, não se constituem desapropriação indireta
. (...) (AGRESP 201100196250, HUMBERTO MARTINS, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:13/04/2011 ..DTPB:, omiti parte da ementa)
"(...) 1. Esta Corte Superior entende que é indevida qualquer indenização em favor dos proprietários dos terrenos em área de preservação permanente,
salvo se comprovada limitação administrativa mais extensa que as já existentes
., 2. In casu, o Tribunal a quo fixou expressamente que foram os decretos municipais
os atos que realmente esvaziaram o conteúdo econômico da propriedade. Portanto, comprovada limitação administrativa mais extensa que as já existentes, cabe a indenização em favor dos proprietários dos terrenos em área de preservação permanente
. 3. A decisão monocrática ora agravada baseou-se em jurisprudência do STJ, razão pela qual não merece reforma. 4. Agravo regimental não provido. ..EMEN:" (AGA 200901145954, MAURO CAMPBELL MARQUES, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:20/09/2010 ..DTPB:.)
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. MATA ATLÂNTICA. DECRETO 750/1993. LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. REVOGAÇÃO DO DECRETO. PERDA DO OBJETO. TAMANHO DO IMÓVEL. IRRELEVÂNCIA. SÚMULA 7/STJ. INAPLICABILIDADE. 1. Hipótese em que o aresto recorrido afastou a prescrição quinquenal e determinou a realização de perícia para aferir se as restrições ao aproveitamento da vegetação da Mata Atlântica trazidas pelo Decreto 750/1993 caracterizam desapropriação indireta ou mera limitação administrativa. 2. A matéria recursal restringe-se a interpretar os efeitos do Decreto 750/1993 e a consequente incidência da norma prescricional quinquenal, prevista no Decreto 20.910/1932, o que é cabível em Recurso Especial. Inaplicabilidade da Súmula 7/STJ. PERDA DO OBJETO 3. Após o julgamento da Apelação, o Decreto 750/1993 foi expressamente revogado pelo art. 51 do Decreto 6.660/2008, que regulamenta a Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006). 4. Com a revogação do ato especificamente apontado pelos recorridos como ensejador da desapropriação indireta, configura-se a perda do objeto da ação a ensejar sua extinção sem resolução de mérito.
DECRETO 750/93 - LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA 5. O STJ pacificou o entendimento de que o Decreto 750/1993 estabeleceu mera limitação administrativa, e não desapropriação indireta, pois não exclui o domínio particular sobre a terra, mas apenas condiciona o exercícios dos direitos inerentes à propriedade. PRECEDENTES DO STJ
6. Cito precedentes nesse sentido: EDcl nos EDcl no REsp 1099169/PR , Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, j. 11.6.2013; REsp 1.120.304/SC, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 29.5.2013; REsp 752.232/PR, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 19.6.2012; AgRg no Ag 1.337.762/SC, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 12.6.2012; AgRg nos EDcl no REsp 1.116.304/SC, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 13.12.2011; REsp 1.275.680/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 1.12.2011; AgRg no REsp 1.204.607/SC, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Segunda Turma, DJe 17.5.2011; AgRg no REsp 404.791/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 26.4.2011; AgRg no REsp 934.932/SC, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 26.5.2011; AgRg nos EREsp 752.813/SC, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, DJe 9.5.2011; AgRg no Ag 1.221.113/SC, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 17.2.2011; REsp 1.126.157/SC, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 5.11.2010; REsp 1.180.239/SC, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 20.9.2010; REsp 1.172.862/SC, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 26.3.2010; EREsp 922.786/SC, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, DJe 15.9.2009; REsp 1.171.557/SC, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 24.2.2010. 7. Na origem, o presente caso foi julgado conjuntamente com sete outros, sendo idêntico ao dos Recursos Especiais 1.098.162/SC (Rel. Min. Eliana Calmon), e 1.098.163/SC e 1.099.428/SC (Rel. Min. Humberto Martins), em que, mesmo em se tratando de minifúndios, reconheceu-se que o Decreto 750/93 fixou limitação administrativa e que se aplicou a prescrição quinquenal. AUSÊNCIA DE REDUÇÃO DA ÁREA CULTIVADA 8. Cabe observar que, no caso dos autos, o Decreto 750/1993 não diminuiu a área então cultivada pelos recorridos, até porque não há Mata Atlântica na lavoura. Apenas impediu nova supressão da cobertura florística, especificamente a vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração. O efeito possível do Decreto é restringir a ampliação do aproveitamento econômico do imóvel, mas não reduzir a exploração já existente. MINIFÚNDIOS 9. Caso os minifúndios sejam excluídos da jurisprudência relativa à limitação administrativa, o STJ estará afastando a aplicação da lei em relação à maioria absoluta dos imóveis rurais na região Sul do Brasil. Registre-se que só em Santa Catarina, segundo dados oficiais, existem 167.335 pequenas propriedades rurais. O que seria exceção à jurisprudência deste Tribunal tornar-se-ia a regra para o local, contribuindo-se para a desproteção dos 5% de Mata Atlântica que restam no País. CONCLUSÃO 10. Agravo Regimental provido. ..EMEN: (AGRESP 200802230436, CASTRO MEIRA, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:04/10/2013 RSTJ VOL.:00233 PG:00156 ..DTPB:.)
Junto ao eg. Tribunal Regional da 4ª Região, colho o que segue:
UNIÃO. IBAMA. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. PRESCRIÇÃO. INDENIZAÇÃO. Jurisprudência vem se manifestando pela configuração de desapropriação indireta nas hipóteses de restrições ao uso da propriedade decorrentes da instituição de área de reserva ambiental, tendo em conta, principalmente, a limitação imposta na exploração do bem, vaziado em seu conteúdo econômico.
A questão da indenizabilidade ou não das limitações administrativas transfere-se para o âmbito da jurisprudência, ora deferindo-a, ora afastando-a. Isso se dá, principalmente, pelo fato de que o conceito doutrinário não pode ser adotado de forma imutável. Para tanto, o julgador deve levar em consideração a extensão da restrição imposta ao direito de propriedade e as condições pessoais do proprietário
. (AG 200704000025830, VÂNIA HACK DE ALMEIDA, TRF4 - TERCEIRA TURMA, D.E. 18/04/2007.)
DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. ÁREA DE PRESERVAÇÃO OU ÁREA DE LOTEAMENTO. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS SUFICIENTES PARA DEFINIÇÃO DA ÁREA DE PRESERVAÇÃO E SOBRE A RESTRIÇÃO E DESAPOSSAMENTO. - Existente dúvida sobre as terras objeto da desapropriação, qual seja, se pertencem à área de preservação ou se serviram de loteamento implantado e aprovado por órgão público. - É necessário aferir se realmente a área é de preservação permanente. -
A determinação de que a área é de preservação permanente não retira a propriedade dos autores e o dever de indenizar pelo seu desapossamento. A indenização certamente será diferenciada em face da restrição ao direito de propriedade, mas não será excluída. - A circunstância de haver restrições ao uso não afasta o direito à indenização, sendo certo que limitações administrativas não podem chegar ao ponto de aniquilar o direito de propriedade
. - Resultou duvidoso, também, o fato do desapossamento. - Não há elementos suficientes neste autos a permitir um juízo definitivo sobre, em primeiro lugar, se a área realmente é de preservação e, segundo, se houve restrição ou desapossamento da área. - Em conseqüência, a sentença é de ser anulada para que a prova seja complementada e esclarecida. (AC 200404010159969, VÂNIA HACK DE ALMEIDA, TRF4 - TERCEIRA TURMA, DJ 08/06/2005 PÁGINA: 1404.)
Vê-se que a questão gravita em torno do
alcance da limitação administrativa
;
caso ela tenha esvaziado a destinação econômica de determinado bem, comprometendo uma atividade mercantil, p.ex., a reparação será devida
. Isso deve ser demonstrado, todavia, no processo pelo interessados, observadas a formas e ritos adequados para tanto.
2.26. Licenciamento de atividades de risco:
Note-se que permissão é
"o ato administrativo negocial, discricionário e
precário
, pelo qual o Poder Público faculta ao particular a execução de serviços de interesse coletivo, ou o uso especial de bens públicos, a título gratuito ou remunerado, nas condições estabelecidas pela Administração."
(MEIRELLES, Hely Lopes.
Direito administrativo brasileiro.
24. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 170-171).
Já a licença é
"o
ato administrativo vinculado e definitivo
pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas as exigências legais,
faculta-lhe o desempenho de atividades
ou a realização de fatos materiais antes vedados ao particular, como, p. ex., o exercício de uma profissão, a construção de um edifício em terreno próprio."
(MEIRELLES, Hely Lopes.
Obra cit.
p. 172).
Note-se que, como regra, a licença administrativa é
"
ato vinculado
por meio do qual a Administração confere ao interessado o
consentimento
para o desempenho de certa atividade. Não são todas as atividades que reclamam licença do Poder Público. Há, no entanto, algumas que o indivíduo só pode exercer de forma legítima se obtiver o necessário ato administrativo de licença. Através da licença, o Poder Público exerce seu poder de polícia fiscalizatório, verificando, em cada caso, se existem, ou não, óbices legais ou administrativos para o desempenho da atividade reivindicada."
(CARVALHO F. José dos Santos.
Manual de direito administrativo.
24. ed., p. 130).
Note-se que a autorização é o ato administrativo discricionário e
precário
pelo qual o Poder Público franqueia ao interessado a realização de certa atividade, serviço, ou a utilização de determinados bens particulares ou públicos, de seu exclusivo ou predominante interesse, que a lei condiciona à aquiescência prévia da Administração, a exemplo do uso especial de bem público, o porte de arma, o trânsito por determinados locais etc.
Sylvia di Pietro assevera que a licença é
“
ato administrativo unilateral e vinculado pelo qual a Administração faculta àquele que preencha os requisitos legais o exercício de uma atividade
."
(DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.
Direito administrativo.
18. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 218-220).
Em
sentido estrito
, portanto, licença é o ato administrativo condicionado ao cumprimento, pelo interessado, de determinados requisitos fixados em lei. Cuida-se de ato vinculado; e, quando deferida, eventual
revogação no prazo de sua vigência assegura ao seu beneficiário o direito à reparação de danos
. Ela é peremptória, só podendo ser revogada por conta do interesse público, em caso de violação de normas legais pelo interessado ou quando haja indenização dos prejuízo decorrentes do seu cancelamento.
Note-se que, não raras vezes, o
nome atribuído
ao documento não é suficiente para aferir sua natureza jurídica, exigindo-se o exame do regime a que está submetido por força da legislação pertinente.
2.27. Licenciamento e boa-fé objetiva:
A lei da liberdade econômica (lei n. 13.874, de 20.09.2019) dispôs que os particulares devem ver respeitada a boa-fé, em confronto com a Administração Pública:
"
São princípios que norteiam o disposto nesta Lei: (...) a boa-fé do particular perante o poder público
."
Ademais, deve-se preservar os contratos, investimentos e propriedade (art. 1º), dentre outros vetores. Ainda assim, é certo que a tutela da
boa
-
fé
objetiva é um vetor fundamental para o próprio sistema jurídico, como evidenciam os arts. 113, 187, CC/02; art. 5º, CPC/15, dentre outros.
Deve-se ter em conta o postulado da boa-fé objetiva, enquanto preceito que deve regular a relação entre os sujeitos, entre estes e o Poder Público, mesmo entre distintas unidades da Administração Pública.
Com efeito, "
ao impor sobre todos um dever de não se comportar de forma lesiva aos interesses e expectativas legítimas despertadas no outro, a tutela da confiança revela-se, em um plano axiológico-normativo, não apenas como principal integrante do conteúdo da boa-fé objetiva,
mas também como forte expressão da solidariedade social, e importante instrumento de reação ao voluntarismo e ao liberalismo ainda amalgamados no direito privado como um todo
."
(SCHREIBER, Anderson.
A proibição de comportamento contraditório:
tutela da confiança e
venire contra factum proprium.
Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 91).
Ademais,
"
Os princípios da segurança jurídica e da boa-fé objetiva, bem como a vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium), impedem que a parte, após praticar ato em determinado sentido, venha a adotar comportamento posterior e contraditório
."
(AGRESP 200802418505, ARNALDO ESTEVES LIMA, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA:29/03/2010).
Acrescento que
"
O Poder Público não é um poder irresponsável e arbitrário, ele se vincula e se limita pelos seus próprios atos
. Não se pode reservar o privilégio, que se resume na mais cínica das prerrogativas que se arrogava o poder absoluto, de surpreender a boa-fé dos que confiam na sua palavra ou nas suas promessas, violando aquela ou anulando essas, depois de haver conseguido, por causa de uma ou de outras, as prestações cuja execução havia sido feita na boa-fé, fundamental não só ao seu comércio jurídico, como à convivência moral, de que a ninguém é dado retirar a palavra empenhada ou desfazer a promessa mediante a qual obteve vantagem de outrem ou lhe causou ou infligiu sacrifício."
(CAMPOS, Francisco.
Direito administrativo.
vol. I. Livraria Freitas Bastos, 1958, p. 70-71)
O respeito à boa-fé objetiva corresponde a "
uma norma de conduta que impõe aos participantes de uma relação obrigacional um agir pautado pela lealdade, pela consideração dos interesses da contraparte. Indica, outrossim, um critério de interpretação dos negócios jurídicos e uma norma balizamento ao exercício de direitos subjetivos e poderes formativos."
(MARTINS-COSTA, Judith.
Comentários ao novo Código Civil.
RJ: Forense, 2005, p. 42).
Com as devidas adequações, essas regras também são oponíveis ao Estado. Não se pode reconhecer à Administração Pública a prerrogativa de surpreender os sujeitos, cobrando valores sem que lhes tenha comunicado anteriormente a causa dessa obrigação, ou modificando de inopino cláusulas contratuais.
"
Este Tribunal já decidiu que a frustração de expectativas legítimas criadas pelo poder público configura verdadeira afronta ao princípio da boa-fé objetiva, em seu postulado da proibição ao `venire contra factum proprium, que também deve ser respeitada pela Administração Pública
. Através da referida cláusula, vedam-se os comportamentos contraditórios que aviltam direitos e deveres previamente fixados entre as partes e quebram a relação de confiança que deveria prevalecer"
(TRF-1 - REOMS: 10056493420184013200, Relator: Desembargador Federal João Batista Moreira, Data de Julgamento: 06/07/2020, Sexta Turma, Data de Publicação: 07/07/2020).
É o que se infere, por sinal, da parte final súmula 473, Supremo Tribunal Federal: "
A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade,
respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial
."
A tanto converge, com algumas ressalvas, o art. 53, da lei n. 9.784/1999.
2.28. Relevo do postulado da legalidade:
Sabe-se que, no âmbito federal, em princípio, cabe ao Congresso Nacional a elaboração de projetos que - sancionados pela Presidência da República ou afastado o veto presidencial pelo Parlamento - devem ser convertidos em lei, em sentido estrito, com as suas variações (lei ordinária, lei complementar), dentre outros ritos normativos (emenda constitucional, lei delegadas, medidas provisórias, decretos-legislativos etc).
A lei se traduz em um compromisso em prol da busca por
legitimidade
- por ser elaborada por representantes eleitos, na forma do art. 1, parágrafo único, da Constituição - e em prol da
segurança jurídica
, na medida em que limita o que Estado pode validamente exigir diante dos sujeitos.
John Rawls sustentou o seguinte:
"
O vínculo entre o império da lei e a liberdade é bem claro. A liberdade, como já afirmei, é um complexo de direitos e deveres definidos por instituições. As diversas liberdades especificam coisas que podemos optar por fazer, se assim o desejarmos, e nas quais, quando a natureza da liberdade as torna apropriadas, todos têm um dever de não interferir. Mas se for violado o princípio de que não há crime sem uma lei, por exemplo, em virtude de os estatutos serem vagos e imprecisos, o que temos liberdade de fazer fica igualmente vago e impreciso
. Os limites de nossa liberdade se tornam incertos. E na medida em que isso acontece, a liberdade é restringida por um temor razoável de exercê-la."
(RAWLS, John.
Uma teoria da justiça.
Trad. Jussara Simões. SP: Martins Fontes, 2008. p. 296-297),
Reporto-me também à lição do juiz federal Heraldo Garcia Vitta:
"
Pouco valeria o princípio da legalidade se o administrador pudesse impor penalidades administrativas sem que houvessem sido definidos, com antecedência e de maneira exaustiva, os comportamentos que são pressupostos de sanções
. Do mesmo modo, o referido princípio seria inócuo se, acaso, o administrador pudesse determinar as infrações por atos subalternos da lei, ficando ao Legislativo apenas a enumeração das respectivas penalidades."
(GARCIA VITTA
apud
ANTUNES, Paulo.
Direito ambiental.
15. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p.
275).
Junto à Suprema Corte, destaco o que segue: "
Normas por meio das quais a autarquia, sem lei que o autorizasse, instituiu taxa para registro de pessoas físicas e jurídicas no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de recursos ambientais, e estabeleceu sanções para hipótese de inobservância de requisitos impostos aos contribuintes, com ofensa ao princípio da legalidade estrita que disciplina, não apenas o direito de exigir tributo, mas também o direito de punir. Plausibilidade dos fundamentos do pedido, aliada à conveniência de pronta suspensão da eficácia dos dispositivos impugnados. Cautelar deferida."
(STF, Tribunal Pleno, ADIMC nº 1.823-1/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 16.10.98).
Ora, "
Portaria não pode servir de suporte para a definição de infração. Pela análise da Lei nº 5.966/73 e da mencionada Portaria nº 2/82, é de se concluir que, segundo as normas baixadas pelo CONMETRO, existe delegação legislativa em desacordo com o sistema constitucional."
(TRF 4ª Região, AC nº 2000.04.01.134014-9/PR, 4ª Turma, Rel. Juiz Valdemar Capeletti, DJU 04.04.2001)
Logo, é de extremo relevo o postulado da legalidade, em suas distintas projeções: legalidade penal, tributária, administrativa, legalidade autorizativa (art. 37,
caput,
CF/88), legalidade permissiva (art. 5, II, CF) etc.
2.29.
Poder normativo
do Poder Executivo:
Um tema que ganha parentesco com o debate travado nesse processo, diz respeito ao poder normativo das agências reguladoras. Sem dúvida que o Poder Executivo
não
se enquadra nesse conceito.
De todo modo, o exame se impõe apenas para evidenciar as mitigações havidas no âmbito do postulado da legalidade, na contemporaneidade
.
Atualmente, tem havido uma profusão de normas veiculadas em portarias, circulares e quejandos. Isso se explica pela necessidade de frequentes adaptações da estrutura estatal às perturbações conjunturais. Exige-se um quadro flexível o suficiente, que permita adequações de rota, frente a eventuais crises internacionais, por exemplo.
Não raras vezes, isso suscita debates a respeito da legitimidade de tais dispositivos. Afinal de contas, como sabido, ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei (art. 5º, II, CF). O poder emana do povo por meio dos seus representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único, CF) e a Administração Pública apenas pode fazer aquilo que lhe tenha sido expressa e detalhadamente franqueado em lei.
Paulo Affonso Leme Machado sustenta, por exemplo, não haver grandes embaraços a que a Administração Pública regulamente e explicite quais seriam as condutas rotuladas como infração administrativa:
"Infração administrativa ambiental é toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente (art. 70, caput). As regras jurídicas deve estar expressas em algum texto, devidamente publicado. O autor de infração ambiental deverá apontar a regra jurídica violada. '
Ao contrário do Direito Penal, em que a tipicidade é um dos princípios fundamentais, decorrente do postulado segundo o qual não há crime sem lei que o preveja, no Direito Administrativo prevalece a atipicidade
; são muito poucas as infrações descritas na lei, como ocorre com o abandono do cargo' - ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro."
(MACHADO, Paulo Affonso Leme.
Direito ambiental brasileiro.
21. ed. SP: Malheiros, 2013, p. 372)
Essa observação deve ser examinada com temperamentos, eis que o postulado da legalidade autorizativa, previsto no art. 37 da Lei Fundamental/88, também vigora nesse âmbito, repiso. A Administração Pública pode fazer o que está autorizada em lei.
Paulo de Bessa Antunes argumenta, de sua parte, que
"existe uma clara natureza bifronte no que diz respeito às infrações administrativas de índole ambiental: (i) expressão previsão legal e (ii) remissão às normas administrativas, em fórmula geral, como é o caso do art. 70 da lei 9605/1998. A matéria será tratada mais adiante, especialmente no que diz respeito ao duplo sistema, o qual, em meu modo de ver, carece de sustentação constitucional."
(ANTUNES, Paulo.
Direito ambiental.
15. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 268).
Ainda segundo aquele autor,
"A
s normas que estabelecem os ilícitos administrativos praticados contra o meio ambiente são, a toda evidência, normas restritivas da ação privada, haja vista que definem condutas puníveis, cerceando a liberdade de terceiros. Não se discute da necessidade de estabelecer limites à atividade particular com vistas a garantir a salubridade ambiental
. O ponto de discussão está no método utilizado para a definição das restrições. O decreto n. 6514/2008, a partir de uma suposta autorização genérica contida no art. 70 e ss. da lei 9605/1998 simplesmente repetiu, em grande parte, os tipos penais existentes na lei e atribuiu-lhes a condição de tipos administrativos."
(ANTUNES, Paulo de Bessa.
Obra citada,
p. 272).
Ainda que tais obras versem sobre a temática ambiental, a lógica é em tudo aplicável no âmbito da intervenção econômica como um todo. Vê-se que o tema envolve alguma polêmica. Convém atentar também para a lição de Eduardo Salomão Neto e de Marçal Justen Filho a respeito desse tema:
"Qualquer disposição que autorizasse o exercício de competência regulamentar pelo CMN ou pelo BC, principalmente se tal exercício envolvesse a atribuição de direitos e obrigações a particulares, implicaria portanto delegação vedada de competência constitucional para legislar.
Devemos, no entanto, reagir a esse entendimento, como faz Eros Roberto Grau, argumentando, em resumo, que a função legislativa do Estado deve ser separada de sua função normativa. Norma jurídica seria, para ele, o preceito abstrato, genérico e inovador - tendente a regulamentar o comportamento social de sujeitos associados - que se integra no ordenamento jurídico.
A função normativa está distribuída pelo Estado como um todo, sendo necessário apenas que a Lei, em obediência ao preceito contido no art. 5º, II, da Constituição Federal, dê a autorização necessária para que essa função se exerça. Sendo a função normativa uma das funções originárias do poder Executivo, a autorização legislativa para exercê-la não implicaria delegação, mas mera condição para esse exercício.
De fato, embora o sentido do artigo 5º, II, da Constituição Federal não seja que todas e quaisquer obrigações devam estar em normas legais, implica esse dispositivo, todavia, que toda e qualquer obrigação tenha um fundamento legal. Em outras palavras: para que seja válida, toda e qualquer obrigação deve poder encontrar numa norma legal (e não regulamentar) o seu fundamento de validade. Assim nos parece deva ser entendida a expressão em virtude de lei contida no dispositivo constitucional em questão". (SALOMÃO NETO, Eduardo.
Direito Bancário.
São Paulo: Atlas, p. 104-105).
"Em síntese, o exercício da competência legislativa pode traduzir-se em duas modalidades de disciplina normativa, relativamente à margem de autonomia reconhecida à autoridade pública encarregada da atividade de aplicação da norma.
A Lei poderá optar por disciplinar completa e exaustiva, em que todos os pressupostos de incidência e todos os ângulos do comando normativo estão previamente determinados, de modo abstrato, através de lei. Quando assim se formaliza a disciplina legislativa, alude-se à configuração de uma competência vinculada do aplicador à lei
.
Mas também se admite que a Lei adote disciplina que deixa margem para maior autonomia do seu aplicador. Nesses casos, um ou mais dos pressupostos de incidência da norma ou uma ou mais das determinações mandamentais não estão disciplinadas de modo exaustivo através da Lei
. Atribui-se ao aplicador a competência para identificar os pressupostos ou determinar os comandos normativos para o caso concreto. Nesse caso, surge para o aplicador da Lei uma competência discricionária. A delegação normativa secundária, a que ora se refere, identifica-se com a atribuição de competência discricionária." (JUSTEN FILHO, Marçal.
O direito das agências reguladoras independentes.
São Paulo: Dialética, p. 513)
Transcrevo, ademais, a conclusão da obra de Fabrício Motta, por mais que o excerto seja extenso:
"a)
Existem bases para o reconhecimento da função normativa da Administração Pública no ordenamento jurídico brasileiro
?
O ordenamento jurídico brasileiro admite o exercício de função normativa pelos órgãos e entidades que compõem a Administração Pública. Deve-se relembrar que a função normativa pode ser compreendida como gênero que abrange as espécies função legislativa e função normativa em sentido estrito.
Nesse sentido, o ordenamento contempla a possibilidade de edição de normas distintas da lei editada pelo Poder Legislativo. Essa possibilidade não afronta o princípio constitucional da legalidade, desde que considerado na acepção ampliada, adequada ao estágio do Estado Constitucional. Na acepção proposta, o princípio deve ser encarado em sintonia com os demais princípios constitucionais, de forma a reconhecer-lhes normatividade. A consideração da legalidade em acepções restritas a transformaria em mero sinônimo de reserva legal, a qual é apenas uma das suas dimensões.
Desta maneira, a Administração encontra-se vinculada a todo o ordenamento, sobretudo à Constituição da República, em diferentes intensidades e formas. O fundamento imediato de qualquer ato ou ação da Administração nesse sentido pode se encontrar na própria Constituição, não só na lei.
Os atos normativos editados pela Administração Pública possuem generalidade e abstração em variadas intensidades, não sendo possível identificar à moda tudo ou nada. Da mesma maneira, a integração destes atos ao ordenamento e a extensão e aplicabilidade de seus efeitos são variáveis, muito embora seja sempre possível e necessário aferr a incorporação da fonte responsável pela sua edição.
b)
Como a resposta foi afirmativa: b.1.) qual seu fundamento, sua relevância, suas possibilidades e seus limites
?
O fundamento da função normativa da Administração não é unívoco. Com efeito, existem competências normativas previstas explicitamente pela Constituição: regulamento, decreto autônomo, competência derivada a autonomia, competência atribuída a órgãos despidos de autonomia, mas com função normativa, atos normativos derivados de segundo grau. Outras competências são previstas explicitamente pela lei, que incumbe a Administração de elaborar ato normativo secundário, subordinado à mesma lei, para tratar de determinado assunto. Nesta situação, esses atos deverão obedecer aos parâmetros legalmente estabelecidos. A obediência aos princípios constitucionais também é imperativa, inclusive na ausência de parâmetros legais claros.
Em outras situações, o ordenamento admite o exercício implícito da função normativa. A existência de competências implícitas é creditada, sobretudo, à força normativa da Constituição e à vinculação direta da Administração aos seus preceitos, acenando, inclusive, para a possibilidade de aplicação direta da mesma, sem intermediação legislativa, em algumas hipóteses.
Em determinadas situações específicas, é possível reconhecer com maior nitidez a irrupção da competência normativa implícita
:
a) o princípio da segurança jurídica exige que seja previamente fixada, quando possível - e levada ao conhecimento do público - a acepção conferida pela Administração a um conceito de menor densidade, a priori indeterminado. Esta fixação deve ser feita por meio de atos normativos, que não somente terão a função informativa para o particular como, sobretudo, direcionarão e vincularão a atividade dos órgãos e agentes subordinados, evitando aplicações diferenciadas do ordenamento;
b) como a Administração pode estar obrigada a agir em razão de imposições extraídas diretamente dos princípios constitucionais, a edição de ato normativo pode ser necessária para que o cidadão tenha, antecipadamente, ciência das posições da Administração e possa, com isso, programar suas condutas.
c) o procedimento, gênero que compreende a espécie processo, funciona como garantia constitucional, assegurando a regularidade e a racionalidade do poder estatal. É interessante, em particular, a função do procedimento de sistematizar as atuações administrativas, mediante o estabelecimento de diretrizes-padrão para a condução das atividades. Em diversos casos, pode ser necessária a edição de ato normativo para disciplinar o procedimento. ESsa necessidade pode ou não ser observada em virtude do risco de normatização excessiva, que afrontaria os princípios da segurança jurídica e da eficiência administrativa. O exercício da função normativa será obrigatório, conduto, quando existir risco de afronta ao princípio constitucional de isonomia, e quando for necessário à eficácia de algum direito fundamental.
d)
no exercício os poderes conferidos em razão de relações hierárquicas, existe a possibilidade jurídica de emanar comandos vinculados a todos os órgãos subordinados, específicos para uma situação concreta ou de aplicação generalizada e abstrata, mediante a expedição de atos normativos. A existência de relação hierárquica deve ser verificada em cada caso, mediante observação do ordenamento. A necessidade de organização, conduto, não se restringe às hipóteses em que existe relação de hierarquia. Em outras situações, é possível identificar a necessidade de organizar as atividades administrativas, mediante a edição de atos normativos, para que seja possível alcançar as finalidades estabelecidas pelo ordenamento
.
Os limites impostos aos atos normativos existem, sobretudo, em razão da organização escalonada do ordenamento. Com efeito, deve-se verificar em qual degrau hierárquico se posiciona o ato editado, para, então, observar quais atos lhe serão superiores. Na maioria das situações, com exceção das situações em que o ato fundar-se explicitamente na Constituição, será aplicada a preferência da lei. Em qualquer caso, por imposição do conteúdo material do princípio da legalidade, não se admite que o teor da norma afronte regras e princípios constitucionais." (MOTA, Fabrício.
Função normativa da Administração Pública.
Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007, p. 256-260)
O Poder Executivo possui, portanto, certa atribuição normativa, como bem explicita Fabrício Mota
. Todavia, igualmente certo que, segundo a Constituição, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei (art. 5º, II, CF), de modo que aludidos decretos não podem ganhar foros inovadores (decretos autônomos), sob pena de deturpação do art. 37, CF.
2.30. Ato jurídico perfeito:
O ato jurídico perfeito encontra-se definido no art. 6º da lei de introdução às normas do direito civil - decreto-lei 4.657/1942 com a redação veiculada pela lei 3.238/1957:
"Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou."
Ora,
"
A fim de espancar divagações e polêmicas, optou a LINDB, no § 1º do art. 6º, por conceituar ato jurídico perfeito reputando nessa forma aquele já consumado segundo a lei vigente na época da celebração
. A doutrina prestigia ato jurídico perfeito como figura exercida e consolidada mediante o preenchimento de todos os requisitos legais para sua validade e concluído na forma da lei . Para ganhar a proteção contra a lei nova, compete ao ato jurídico estar plenamente consolidado e concluído (fundamento temporal), e de acordo com os requisitos de validade exigidos pelo sistema quando da celebração – fundamento de validade formal e material. Não sendo válido sob a égide da lei que o sustentava, não se há falar na concretização do direito adquirido a ele inerente . Nas relações de trato sucessivo, em que haja a substituição de lei de regência do contrato, os efeitos vindouros da contratação anterior ficarão sob o jugo da novel norma (facta pendentia), mantendo-se as demais disposições e efeitos contratuais prévios à lei revogadora."
(NANNI, Giovanni.
Comentários ao Código Civil.
SP: RT. 2023. comentários ao art. 6 do decreto-lei 4.657).
Convém ter em conta, porém, que aludido conceito não interdita a modificação de atos administrativos, a exemplo da possibilidade de revogação e revisão, na forma da
súmula 473, STJ, e art. 53, lei n. 9.784/1999
.
2.31. Direito adquirido -
considerações
gerais:
Sabe-se também que o Estado deve assegurar expectativas validamente criadas na vida de relação. Ou seja, ele
deve tutelar vínculos passados
, mediante mecanismos de preclusão que tornem determinados temas insuscetíveis de modificações. É o que ocorre com os institutos da coisa julgada, do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Ou seja, em determinados âmbitos há uma interdição para que o Estado modifique relações jurídicas já consolidadas, conforme dispõe o art. 5º, XXXVI, CF.
Ao apreciar a
ADIn 493-0/DF
, a Suprema Corte enfatizou que, no Brasil, sequer normas de ordem pública podem ser aplicadas com caráter retroativo, ao contrário do que ocorre em outros ordenamentos. Assim, não se pode aplicar o Código de Defesa do Consumidor -
lei n. 8.078/1990
, por exemplo, a contratos celebrados antes da sua vigência. Vários outros casos foram julgados, vedando-se a aplicação retroativa de determinadas regras, mesmo quando impregnadas de relevo público.
Apenas os
contratos de direito administrativo
- suscetíveis de modificação unilateral (por conta das chamadas "cláusulas extravagantes"), desde que seja garantido o equilíbrio econômico-financeiro - admitiriam alterações por força de legislação subsequente. De outro tanto, ao que releva, a garantia do direito adquirido é, sem dúvida, fundamental para a democracia. Destina-se a viabilizar o planejamento da vida e a tomada de posição por parte dos sujeitos a respeito dos seus interesses.
Ora, como sabido, nem mesmo o Poder Constituinte derivado pode atingir direitos constituídos sob a égide dos preceitos anteriores da Lei Maior, conforme se infere do art. 6º da lei de introdução ao Código Civil: "
Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem
."
A respeito, menciono os seguintes julgados do STF:
CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. ART. 2º E EXPRESSÃO '8º' DO ART. 10, AMBOS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 41/2003. APOSENTADORIA. TEMPUS REGIT ACTUM. REGIME JURÍDICO. DIREITO ADQUIRIDO: NÃO-OCORRÊNCIA. 1. A aposentadoria é direito constitucional que se adquire e se introduz no patrimônio jurídico do interessado no momento de sua formalização pela entidade competente. 2. Em questões previdenciárias, aplicam-se as normas vigentes ao tempo da reunião dos requisitos de passagem para a inatividade. 3.
Somente os servidores públicos que preenchiam os requisitos estabelecidos na Emenda Constitucional 20/1998, durante a vigência das normas por ela fixadas, poderiam reclamar a aplicação das normas nela contida, com fundamento no art. 3º da Emenda Constitucional 41/2003
. 4. Os servidores públicos, que não tinham completado os requisitos para a aposentadoria quando do advento das novas normas constitucionais, passaram a ser regidos pelo regime previdenciário estatuído na Emenda Constitucional n. 41/2003, posteriormente alterada pela Emenda Constitucional n. 47/2005. 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente. (ADI 3104, CÁRMEN LÚCIA, STF.)
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MINAS GERAIS. PENSÃO. VIÚVA DE DEPUTADO ESTADUAL. ART. 5º, XXXVI DA CONSTITUIÇÃO. DIREITO ADQUIRIDO. Viúva de deputado estadual que vinha percebendo pensão, com base na lei estadual 8.393/1983, correspondente a 2/3 do valor do subsídio pago a deputado estadual.
Não pode a lei posterior (lei estadual 9.886/1989) reduzir o quantum da pensão deferida sob a égide de legislação anterior, para o montante de 35% do atual subsídio pago a deputado estadual
. Ofensa ao direito adquirido configurada. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 460737, CARLOS VELLOSO, STF.)
Destaco também o seguinte precedente da Suprema Corte, quando enfatiza que a preservação do direito adquirido demanda o respeito às condições impostas pela lei sob a qual foi gerado:
"A garantia de preservação do direito adquirido, prevista no art. 5º, XXXVI, da CF assegura ao seu titular também a faculdade de exercê-lo.
Mas de exercê-lo sob a configuração com que o direito foi formado e adquirido e no regime jurídico no âmbito do qual se desenvolveu a relação jurídica correspondente, com seus sujeitos ativo e passivo, com as mútuas obrigações e prestações devidas
.
As vantagens remuneratórias adquiridas no exercício de determinado cargo público não autorizam o seu titular, quando extinta a correspondente relação funcional, a transportá-las para o âmbito de outro cargo, pertencente a carreira e regime jurídico distintos, criando, assim, um direito
de tertium genus,
composto das vantagens de dois regimes diferentes
. Por outro lado, considerando a vedação constitucional de acumulação remunerada de cargos públicos, não será legítimo transferir, para um deles, vantagem somente devida pelo exercício do outro. A vedação de acumular certamente se estende tanto aos deveres do cargo (= de prestar seus serviços) como aos direitos (de obter as vantagens remuneratórias). Assim, não encontra amparo constitucional a pretensão de acumular, no cargo de magistrado ou em qualquer outro, a vantagem correspondente a 'quintos', a que o titular fazia jus quando no exercício de cargo diverso." (RE 587.371, rel. min. Teori Zavascki, julgamento em 14-11-2013, Plenário, DJE de 24-6-2014, com repercussão geral.)
2.32. Direito adquirido
e regime jurídico:
Acrescento que não há direito adquirido à preservação de um específico regime jurídico
. O fato de alguém ter sido aprovado em um concurso não lhe assegura a expectativa de que todas as normas que tratavam da realização da atividade sejam mantidas dali por diante. Tampouco há como reconhecer direito á preservação do regime jurídico de quem tenha ingressado nas fileiras das Forças Armadas etc.
A vingar lógica contrária, cada sujeito se converteria em uma espécie de 'ordenamento' jurídico ambulante, como se fosse titular de regras específicas, singulares, sem paralelo com outros sujeitos. Por ter passado no concurso, todas as alterações subsequentes lhe seriam inoponíveis
.
É manifesto que isso levaria à derrocada do próprio sistema jurídico. Daí que não se pode confundir direito adquirido (por exemplo, o direito adquirido à fruição de quintos/décimos etc.), com a pretensão de manter determinado regime jurídico (pretensão de continuar a adquirir novos quintos, novos décimos, mantendo-se as regras que vigoravam ao tempo do ingresso nos quadros do serviço público).
Repiso: não há direito adquirido a regime jurídico, como já ressalvou o Min. Moreira Alves ao julgar o
RE 226.855 - STF
:
"
O que o art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil faz, com relação ao direito adquirido, é conceituá-lo com base na doutrina relativa a esse conceito, ou seja, a de que o direito adquirido é o que se adquire em virtude da incidência da norma existente no tempo em que ocorreu o fato que, por esta, lhe dá nascimento em favor de alguém, conceito esse que, para o efeito do disposto no art. 5º, XXXVI, da Constituição, só tem relevo em se tratando de aplicá-lo na relação jurídica em que se discute questão de direito intertemporal, para se impedir, se for o caso, que a lei nova prejudique direito que se adquiriu com base na lei anterior
. O mesmo se dá com o direito adquirido sob condição ou o termo é inalterável ao arbítrio de outrem, requisito este indispensável para tê-lo como direito adquirido.
Por isso, mesmo em se tratando de direito público com referência a regime jurídico estatutário, não há direito adquirido a esse regime jurídico, como sempre sustentou esta Corte, e isso porque pode ele ser alterado ao arbítrio do legislador
. Não fora isso, e todos os que ingressarem no serviço público sob a égide de lei que estabeleça que, se vierem a completar trinta e cinco anos, terão direito à aposentadoria, esse direito para eles será um direito adquirido sob a condição de completarem esses 35 anos de serviço público, o que jamais alguém sustentou." (STF, RE 226.855, rel. Min. Moreira Alves, RTJ 174, p. 916 e ss.)
Menciono ainda o
RE 94.020
, também relatado por Moreira Alves:
"
Com efeito, em matéria de direito adquirido, vigora o princípio - que este Tribunal tem assentado inúmeras vezes - de que não há direito adquirido a regime jurídico de um instituto de direito
. Quer isso dizer que, se a lei nova modificar o regime jurídico de determinado instituto de direito (como o é a propriedade, seja ela de coisa móvel ou imóvel, ou de marca), essa modificação se aplica de imediato."
(STF, RE 94.020, rel. Min. Moreira Alves, DJU 04.11.1981)
Em sentido semelhante, atente-se para as ADIns 3.128 e 2.087:
'
No ordenamento jurídico vigente, não há norma, expressa nem sistemática, que atribua à condição jurídico-subjetiva da aposentadoria de servidor público o efeito de lhe gerar direito subjetivo como poder de subtrair ad aeternum a percepção dos respectivos proventos e pensões à incidência de lei tributária que, anterior ou ulterior, os submeta à incidência de contribuição previdencial. Noutras palavras, não há, em nosso ordenamento, nenhuma norma jurídica válida que, como efeito específico do fato jurídico da aposentadoria, lhe imunize os proventos e as pensões, de modo absoluto, à tributação de ordem constitucional, qualquer que seja a modalidade do tributo eleito, donde não haver, a respeito, direito adquirido com o aposentamento
. (...) Não é inconstitucional o art. 4º, caput, da EC 41, de 19-12-2003, que instituiu contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentadoria e as pensões dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações. (...) São inconstitucionais as expressões 'cinquenta por cento do' e 'sessenta por cento do', constantes do parágrafo único, incisos I e II, do art. 4º da EC 41, de 19-12-2003, e tal pronúncia restabelece o caráter geral da regra do art. 40, § 18, da CR, com a redação dada por essa mesma emenda.' (ADI 3.128 e ADI 3.105, Rel. p/ ac. Min. Cezar Peluso, julgamento em 18-8-2004, Plenário, DJ de 18-2-2005.)
I. Contribuição previdenciária: incidência sobre proventos da inatividade e pensões de servidores públicos (C. est. AM, arts. 142, IV, cf. EC est. 35/98): densa plausibilidade da argüição da sua inconstitucionalidade, sob a EC 20/98, já afirmada pelo Tribunal (ADnMC 1.010, 29.9.99). 1. O
direito adquirido, quando seja o caso, pode ser oposto com êxito à incidência e à aplicação da norma superveniente à situações subjetivas já constituídas, mas nunca à alteração em abstrato do próprio regime anterior
: por isso, sedimentada no STF a inadmissibilidade da ação direta para aferir da validade da lei posta em confronto com a garantia constitucional do direito adquirido, salvo quando a lei nova, ela mesma prescreva, sua aplicação a situações individuais anteriormente constituídas. 2. Reservado para outra oportunidade o exame mais detido de outros argumentos, é inequívoca, ao menos, a plausibilidade da argüição de inconstitucionalidade da norma local questionada, derivada da combinação, na redação da EC 20/98, do novo art. 40, § 12, com o art. 195, II, da Constituição Federal, e reforçada pela análise do processo legislativo da recente reforma previdenciária, no qual reiteradamente derrotada, na Câmara dos Deputados, a proposta de sujeição de aposentados e pensionistas do setor público à contribuição previdenciária. 3. O art. 195, § 4º, parece não legitimar a instituição de contribuições sociais sobre fontes que a Constituição mesma tornara imunes à incidência delas; de qualquer sorte, se o autorizasse, no mínimo, sua criação só se poderia fazer por lei complementar. 4. Aplica-se aos Estados e Municípios a afirmação da plausibilidade da argüição questionada: análise e evolução do problema. II. Tributos de efeito confiscatório: considerações não conclusivas acerca do alcance da vedação do art. 150, IV, da Constituição. III. Subsídios e vencimentos: teto nacional e subtetos. 1. Ainda que se parta, conforme o entendimento majoritário no STF, de que o novo art. 37, XI e seus corolários, conforme a EC 19/98, tem sua aplicabilidade condicionada à definição legal do subsídio dos seus Ministros, o certo é que, malgrado ainda ineficazes, vigem desde a data de sua promulgação e constituem, portanto, o paradigma de aferição da constitucionalidade de regras infraconstitucionais supervenientes. 2. Admissão, sem compromisso definitivo, da validade sob a EC 19/98 - qual afirmada no regime anterior (RE 228.080) -, da possibilidade da imposição por Estados e Municípios de subtetos à remuneração de seus servidores e agentes políticos: a questão parece não ser a de buscar autorização explícita para tanto na Constituição Federal, mas sim de verificar que nela não há princípio ou norma que restrinja, no ponto, a autonomia legislativa das diversas entidades integrantes da Federação. 3. A admissibilidade de subtetos, de qualquer sorte, sofrerá, contudo, as exceções ditadas pela própria Constituição Federal, nas hipóteses por ela subtraídas do campo normativo da regra geral do art. 37, XI, para submetê-las a mecanismo diverso de limitação mais estrita da autonomia das entidades da Federação: é o caso do escalonamento vertical de subsídios de magistrado, de âmbito nacional (CF, art. 93, V, cf. EC 19/98) e, em termos, o dos Deputados Estaduais. 4. A EC 19/98 deixou intocada na Constituição originária a reserva à iniciativa dos Tribunais dos projetos de lei de fixação da remuneração dos magistrados e servidores do Poder Judiciário (art. 96, II, b); e, no tocante às Assembléias Legislativas, apenas reduziu a antiga competência de fazê-lo por resolução ao poder de iniciativa dos respectivos projetos de lei (art. 27, § 2º): tais normas de reserva da iniciativa de leis sobre subsídios ou vencimentos, à primeira vista, são de aplicar-se à determinação de tetos ou subtetos. 5. Ao controle da validade da lei estadual questionada, no tocante à fixação do teto e do escalonamento dos subsídios da magistratura local, não importa que não discrepem substancialmente dos ditames do art. 93, V, CF: à inconstitucionalidade da lei por incompetência do ente estatal que a editou é indiferente a eventual identidade do seu conteúdo com o da norma emanada da pessoa política competente. 6. Validade, ao primeiro exame, do subteto previsto no âmbito do Poder Executivo estadual, dando-se, porém, interpretação conforme à disposição respectiva, de modo a afastar sua aplicabilidade enquanto não promulgada a lei de fixação do subsídio do Ministro do STF, prevista no art. 37, XI, CF, na redação da EC 19/98. (ADI-MC 2087, SEPÚLVEDA PERTENCE, STF.)
'Reajuste com base na sistemática do Decreto-Lei 2.308/1986. Sua revogação pelo Decreto-Lei 2.335/1987, que instituiu a Unidade de Referência de Preços (URP) para reajuste de preços e salários. Inexistência de direito adquirido. No caso, não há sequer que se falar em direito adquirido pela circunstância de que, antes do final do mês de junho de 1987, entrou em vigor o Decreto-Lei 2.335, que alterou o sistema de reajuste ao instituir a URP, e isso porque, antes do final de junho (ocasião em que, pelo sistema anterior, se apuraria a taxa da inflação), o
que havia era simplesmente uma expectativa de direito, uma vez que o gatilho do reajuste só se verificava, se fosse o caso, nessa ocasião, e não antes. Ademais, não há direito adquirido a vencimentos de funcionários públicos nem a regime jurídico instituído por lei
.' (RE 144.756, Rel. p/ o ac. Min. Moreira Alves, julgamento em 6-6-2012, Plenário, DJ de 18-3-1994.)
2.33. Certificação de registro:
A lei n. 10.826/2003 estipulou, no seu art. 24, que "
Excetuadas as atribuições a que se refere o art. 2º desta Lei, compete ao
Comando do Exército autorizar e fiscalizar a produção, exportação, importação, desembaraço alfandegário e o comércio de armas de fogo e demais produtos controlados, inclusive o registro e o porte de trânsito de arma de fogo de colecionadores, atiradores e caçadores
."
Antes da publicação dessa lei, o Exército exercia aludida atribuição nos termos do
decreto nº 3.665, de 20 de novembro de 2000
, cujo art. 3, XL, estipulava:
"Certificado de Registro - CR: documento hábil que autoriza as pessoas físicas ou jurídicas à utilização industrial, armazenagem, comércio, exportação, importação, transporte, manutenção, recuperação e manuseio de produtos controlados pelo Exército."
Aludido documento havia de ser apostilado pelo Exército, segundo o art. 3, VII, Decreto 3.665
. Foi exigido para, dentre outras medidas, as
"atividades de fabricação, utilização, importação, exportação, desembaraço alfandegário, tráfego e comércio de produtos controlados."
(art. 9 do decreto 3.665). Também era exigido para a obtenção da licença para comércio, fabricação ou emprego de produtos controlados, assim como para manutenção de arma de fogo, cópia autenticada do Título ou Certificado de Registro fornecido pelo Exército (art. 34). O procedimento para obtenção do registro estava detalhado nos arts. 83 e ss. do revogado decreto 3.665/2000.
Com a superveniência, da lei n. 10.826/2003 -
reconhecida como válida pela Suprema Corte
, com pontuais ressalvas (ADIs 6134, 6675, 6676, 6677, 6680, 6695, 2729 e 5538/STF) -, o tema foi alvo de novo regramento, persistindo, porém, o emprego do aludido certificado de registro, a exemplo do quanto constou no decreto nº 5.123, de 1º de julho de 2004.
Houve uma sucessão de decretos, publicados em prol da regulação do tema (art. 84, IV, Constituição), merecendo destaque o decreto nº 9.847, de 25 de junho de 2019, que detalhou as atribuições do Exército nesse âmbito
.
2.34. Portaria n. 51 – COLOG, de 08 de setembro de 2015:
Reportando-se ao
art. 14, IX, do Regulamento do Comando Logístico
, aprovado pela Portaria do Comandante do Exército nº 719, de 21 de novembro de 2011; ao art. 24 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; ao art. 263 do Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados (R-105), aprovado pelo Decreto nº 3.665, de 20 de novembro de 2000; e à Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC), o
Comandante Logístico do Exército
publicou a portaria 51/205 versando sobre o tema.
Transcrevo os seguintes dispositivos da portaria:
"Art. 4º
Os Certificados de Registro Pessoa Física (CRPF) de Colecionador, Atirador Desportivo ou Caçador (CAC) e os Certificados de Registro Pessoa Jurídica (CRPJ) de museu ou de entidades de tiro e de caça autorizam o exercício das atividades de colecionamento, tiro desportivo e caça com PCE
. § 1º A autorização de que trata o caput possibilita a aquisição, a importação e a exportação, o tráfego, a exposição, a armazenagem e a recarga de munição. § 2º As autorizações para aquisição, importação, exportação, tráfego e exposição de PCE devem ser específicas. § 3º
As atividades de armazenagem e de recarga de munição não necessitam de autorização específica, porém devem estar apostiladas ao CR.
Art. 5º
Apostila é o documento anexo e complementar ao CR no qual são registradas informações qualitativas e quantitativas dos PCE autorizados e suas posteriores alterações
.
Art. 6º Apostilamento é qualquer alteração de dados constantes do CR ou da Apostila. Pode ser inclusão, exclusão, atualização, substituição ou qualquer outra modificação de dados.
Art. 7º O prazo de validade do CR para colecionador, atirador desportivo e caçador é de três anos, contados a partir da data de sua concessão ou de sua última revalidação.
Art. 8º
O prazo de validade da apostila é o mesmo do CR ao qual está vinculada
. (...)
Art. 11.
A autorização para o exercício das atividades de colecionamento, tiro desportivo e caça pode ser suspensa ou cancelada nas condições estabelecidas nesta portaria e no R-105
. (...)
Art. 28.
O cancelamento de CR poderá ocorrer a qualquer tempo por solicitação do interessado ou ex officio pela FPC, nos termos dos art. 49 e 50 do R-105
."
Transcrevo também os mencionados arts. 49 e 50 do R-105, que cuida do regime dos produtos controlados:
Art. 49. Na revalidação dos TR e dos CR será emitido um novo documento, mantendo-se a numeração original, conforme o caso. § 1º O pedido de revalidação deverá dar entrada na RM de vinculação do requerente, no período de 90 (noventa) dias que antecede o término da validade do registro. § 2º
O vencimento do prazo de validade do registro, sem o competente pedido de revalidação, implicará o seu cancelamento definitivo e sujeitará as pessoas físicas ou jurídicas ao previsto no art. 241 deste Regulamento
. § 3o Satisfeitas as exigências quanto à documentação e aos prazos, no ato de protocolizar o pedido de revalidação, o registro terá sua validade mantida até decisão sobre o pedido.
Art. 50.
O registro poderá ser suspenso temporariamente ou cancelado: I - por solicitação do interessado; II - em decorrência de penalidade prevista neste Regulamento; III - pela não-revalidação, caso em que será cancelado por término de validade, nos termos do § 2º do art. 49 deste Regulamento; e IV - pelo não-cumprimento das exigências quanto à documentação. Parágrafo único. A suspensão temporária do registro não implica dilatação do prazo de validade deste
.
2.35. Decreto 11.615, de 21 de julho de 2023:
Ao que releva ao caso, os
artigos 24 e 27
do mencionado decreto 11.615 estipulou, acerca do prazo de validade do Certificado de Registro de Arma de Fogo e sua renovação, o que segue adiante:
Art. 24. O CRAF terá o seguinte prazo de validade:
I - três anos para CRAF concedido a colecionador, atirador desportivo ou caçador excepcional;
II - cinco anos para CRAF concedido para fins de posse de arma de fogo ou de caça de subsistência;
III - cinco anos para CRAF concedido a empresa de segurança privada; e
IV - prazo indeterminado para o CRAF dos integrantes da ativa das instituições a que se refere o inciso IV do § 1º do art. 7º.
§ 1º Para fins de manutenção do CRAF, a avaliação psicológica para o manuseio de arma de fogo deverá ser realizada, a cada três anos:
I - pelas empresas e pelas instituições a que se referem os incisos III e IV do caput, em relação a seus funcionários e integrantes, respectivamente; e
II - pelos aposentados das carreiras a que se refere o inciso IV do § 1º do art. 7º, nas hipóteses em que a lei lhes garanta o direito ao porte de arma.
§ 2º Ressalvado o disposto no inciso I do caput, a validade do CRAF das armas cadastradas e exclusivamente vinculadas ao Sigma será regulamentada pelo Comando do Exército, observado o prazo mínimo de três anos para a sua renovação prevista no § 2º do art. 5º da Lei nº 10.826, de 2003.
Renovação do Certificado de Registro de Arma de Fogo
Art. 25. O titular do CRAF iniciará o procedimento de renovação da validade do Certificado antes da expiração do prazo estabelecido no caput do art. 24.
§ 1º No procedimento de renovação da validade, o interessado deverá cumprir os requisitos estabelecidos nos incisos III a VII do caput do art. 15.
§ 2º A inobservância ao disposto no caput poderá acarretar a cassação do CRAF.
§ 3º É proibida a renovação do CRAF de armas de fogo adulteradas, sem numeração ou com numeração raspada.
Art. 26. Na hipótese de o CRAF não ser renovado antes da expiração do prazo estabelecido no caput do art. 24, o proprietário da arma de fogo será notificado, por meio eletrônico, para, no prazo de sessenta dias:
I - entregar a arma de fogo à Polícia Federal, mediante indenização, nos termos do disposto em regulamentação a ser editada pela autoridade competente e respeitadas as disponibilidades orçamentárias;
II - efetivar a sua transferência para terceiro, observados os requisitos legais; ou
III - proceder à renovação do registro.
§ 1º Em caso de inércia do proprietário após a notificação, será instaurado procedimento de cassação do CRAF, com a consequente e imediata apreensão das armas de fogo, dos acessórios e das munições, sob pena de incorrer nos crimes previstos nos art. 12 e art. 14 da Lei nº 10.826, de 2003, conforme o caso.
§ 2º Na hipótese prevista no § 1º, o proprietário de arma de fogo não poderá:
I - comprar novas armas ou munições enquanto perdurar a situação de irregularidade; e
II - obter a emissão ou a renovação de passaporte.
Art. 27. A renovação do CRAF das armas exclusivamente vinculadas ao Sigma será disciplinada pelo Comando do Exército, observadas as disposições deste Decreto para as atividades de caça excepcional, tiro desportivo e colecionamento.
Além disso, o artigo 80 do
decreto 11.615
define que, em relação aos CRAF's já vigentes, o prazo de validade previsto no artigo 24 deve ser aplicado da seguinte forma:
Art. 80. O prazo de validade estabelecido nos incisos II e III do caput do art. 24 aplica-se a todos os CRAF vigentes se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido menos da metade do tempo estabelecido no ato da concessão ou da renovação.
Parágrafo único. Na hipótese de CRAF anteriormente concedido para colecionador, atirador desportivo ou caçador excepcional, incidirá o prazo de validade estabelecido no inciso I do caput do art. 24, contado da data de publicação deste Decreto.
2.36. Distribuição do ônus da prova - exame
precário
:
No presente caso, há uma natural assimetria entre a parte autora e a demandada, por força do poderio burocrático dos requeridos. Isso não implica, porém, por si, a automática inversão do ônus da prova, prevista no art. 373, §1º, CPC/15.
Ao menos, não para fins de antecipação de tutela
.
Conquanto a teoria da distribuição dinâmica da prova, acolhida pelo art. 373, CPC/15, tenha seu relevo, cumprindo papel importante no processo, deve ser empregada como circunspeção, como anota Araken de Assis:
"(....)
Essa teoria tem cunho autoritário, porque concentra poderes no órgão judiciário, e, desse modo, traz consigo alto risco de subjetivismo
. Duas objeções principais, relevando o risco de prevaricação e o dever de fidelidade do juiz ao direito, opõem-se à doutrina: (a)
o já mencionado risco de subjetividade e, ademais, de relatividade: o que é fácil para certo juiz pode não o ser para outro
; e (b) a violação positiva ao direito fundamental processual do contraditório. Contra o risco de subjetividade, inexiste remédio; para a violação do contraditório, a medida cabível é a exigência de que haja motivo concreto, prévio e delimitado para a distribuição ope judicis. A distribuição do ônus da prova na decisão de saneamento e de organização do processo (art. 357, III) contrabalança os riscos, norteando a atividade das partes na instrução das causas. Seja como for, as objeções evidenciam que, entre nós, inexiste ainda densidade do direito fundamental à prova. O contraditório argumentantivo (dizer e contradizer) não mais satisfaz.
As repercussões positivas ou negativas da repartição casuística podem ser aquilatadas e medidas nas relações de consumo. Em tal matriz, considerando o disposto no art. 6.º, VIII, da Lei 8.078/1990, passa-se à análise do tema, sublinhando que não se limita a tais espécies de litígio, em tese, a distribuição dinâmica." (ASSIS, Araken.
Processo civil brasileiro.
Volume II - Tomo II: Institutos fundamentais. SP: RT. 2015. p. 203-209)
Registro, assim, que incumbe à parte autora o ônus de comprovar a veracidade da narrativa dos fatos, veiculada na peça inicial. Caberá à parte requerida o ônus de comprovar a ocorrência de fatos que porventura venham a ser invocados como óbices ao acolhimento do pleito do autor.
2.37. Elementos de convicção - exame precário:
No caso em exame, o autor apresentou cópia do Certificado de Registro concedido em 28/01/2020 e com
prazo de validade de 28/01/2030
.
Esses são os elementos de convicção veiculados nos autos.
2.38. VALORAÇÃO PRECÁRIA:
Na presente deliberação, apreciei os pressupostos processuais e as condições para válido exercício do direito de ação
. Além disso, enfatizei ser cabível o controle difuso de validade da norma impugnada, decorrente da interpretação do decreto 11.615/2023, artigos 24 e 80.
Discorri sobre os requisitos para a antecipação de tutela; tratei dos casos excepcionais de postergação do contraditório
. Na sequência, enfatizei ser viável o controle jurisdicional dos atos administrativo, ao tempo em que enfatizei que o Judiciário apenas excepcionalmente pode empregar argumentos de conveniência e oportunidade para tanto. Detalhei o alcance do postulado da proporcionalidade, tratei da autoexecutoriedade administrativa, a necessidade de atos administrativos, em sentido estrito, sejam motivados. Destaquei a importância do controle estatal sobre atividades de risco. Registrei ainda, dentre outros tópicos, a relevância do postulado da legalidade e sua progressiva mitigação na contemporaneidade, diante do reconhecimento de espaços mais amplos de produção normativa por parte do Poder Executivo, a exemplo do que tem ocorrido com agências reguladoras ou mesmo com ampla delegação de complementação normativa, por transferência decisória do Legislativo a favor do Executivo.
Transcrevi os dispositivos normativos discutidos nesta demanda, tratei - em caráter contingente - da distribuição do ônus da prova (apenas para examinar o pedido de antecipação de tutela). Detalhei ainda os elementos probatórios veiculados nos autos até o momento.
Todos esses conceitos foram articulados acima com cognição PRECÁRIA. Destinam-se, porém, para a devida contextualização do exame do pedido do autor, diante mesmo dos argumentos esgrimidos na inicial.
O autor comprovou ter obtido junto ao Exército certificado com duração até 28 de janeiro de 2030. A narrativa dos fatos veiculada na inicial é plausível, eis que encontra suporte nos documentos apresentados.
Anoto, porém - com cognição não exaustiva - que a obtenção do certificado não configura ato jurídico perfeito. Trata-se de uma autorização de atividade de risco, promovida pelo Poder Público e que é naturalmente modulável, podendo ser revista caso se constate que ter havido modificação do contexto social envolvido, ou mesmo por conta da necessidade de revisão dos atos pertinentes
.
Suponha-se que o transporte de substâncias inflamáveis ou explosivos fosse promovido, até certa data, com base em um formulário X. Tempos depois, constata-se a necessidade de redobrar os cuidados, por conta mesmo da mudança da percepção social do risco envolvido. O motorista do caminhão ou a empresa pertinente não poderiam alegar, em tal situação hipotética, haver direito adquirido ou ato jurídico perfeito a continuar a transportar o combustível com base no formulário anterior, sem atender aos novos requisitos impostos.
Entendimento distinto tornaria o Estado refém das deliberações pretéritas, impedindo-o de regulamentar adequadamente a situação. Quando menos, criaria grupos distintos de interessados; alguns submetidos a critérios mais gravosos do que outros
. Quando o Estado autoriza que aviões possam sobrevoar casas - mesmo ciente dos riscos envolvidos nisso - não o faz de modo peremptório, dado que a todo momento pode impor novos cuidados, em prol do bem-estar da população. Esse é um aspecto do tema.
O certificado de registro - a exemplo do que ocorre com o licenciamento ambiental -
é medida contingente
podendo ser revisto a todo momento,
contanto que haja justa causa para tanto
.
Em primeiro exame, não diviso sinais de haver direito adquirido à manutenção da regramento anterior, pelas razões já expostas.
Quando um estudante é aprovado no vestibular e começa a cursar uma faculdade, não pode se insurgir validamente contra a modificação da carga horária ou mesmo da quantidade de matérias a serem cursadas. A aprovação do acesso não lhe confere o direito de preservar o regime jurídico existente ao tempo do ingresso.
Questão semelhante ocorre com o direito previdenciário; o fato de alguém encontrar-se contribuindo, mesmo que há muitos anos, para o regime previdenciário não lhe assegura o direito à preservação das regras pertinentes, salvo quando tenha preenchido todos os requisitos para tanto
. Servidores do povo não faziam jus à preservação dos critérios de percepção de quinquênios, diante da modificação da legislação. Sem dúvida que há necessidade, não raro, de
regras de transição
e de que seja examinada a proporcionalidade de tais medidas.
No caso do registro, convém enfatizar, não se trata de uma
autorização imutável ao exercício da atividade risco
, no prazo de validade. Significa que o
autor está de boa-fé
, preencheu os requisitos para obtenção da autorização, ao tempo devido. Contudo, isso não impede que haja revisão estatal dos requisitos para esse fim, a exemplo do que ocorre com demais atividades de risco. Do contrário, o indispensável controle coletivo de atividades que colocam em risco toda a comunidade apenas poderia ser exercido na autorização inicial, sem a possibilidade de modulação dos controles no seu curso, diante da inexorável necessidade de estruturas flexíveis para se enfrentar crises de conjuntar, para se enfrentar novas informações sobre riscos.
Por outro lado, o
decreto 11.615/2023 parece situar-se no espaço regulamentar conferido à Presidência da República - art. 84, IV, Constituição
. A parte autora disse ter violado ao postulado da legalidade; mas, para tanto, ela se socorre de norma infralegal -
Portaria
publicada pelo Comando Logístico do Exército. Ainda que aludida Portaria possa encontrar suporte, de modo indireto, no art. 24, é fato que não afasta a atribuição presidencial de expedir decretos para regulamentação da lei. Um decreto presidencial não pode ser tomado por inválido, em princípio, por pretensamente violar uma portaria do Exército, versando sobre tema confiado à regulamentação do Poder Executivo da União.
O tema não é singelo, reitero, dado que as pessoas realmente se sentem, com razão, vítimas de um caldo imenso de violência, como notório. O Congresso tem discutido a questão, e o Supremo tem - quando convocado - avaliado a constitucionalidade de tais medidas
. Reporto-me ao julgamento recente, pela Suprema Corte, da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 85, por meio da qual, por unanimidade, declarou a constitucionalidade dos Decretos 11.366/2023 e 11.615/2023.
Não há sinais, porém, de violação a alegados direitos adquiridos ou atos jurídicos perfeitos, diante do caráter de tais chancelas estatais, orientadas à fiscalização de atividades de risco para a coletividade. INDEFIRO, por conta disso, o pedido de antecipação de tutela.
III - EM CONCLUSÃO
3.1. DECLARO a competência do Juízo Titular desta 7. Vara Federal - Subseção de Curitiba para o processo e julgamento da demanda, e sua submissão ao rito dos juizados.
3.2. REPUTO que, em primeiro exame, a presente causa é singular, não divisando sinais de violação à coisa julgada ou configuração de litispendência. Tampouco é caso de conexão processual, para os fins do art. 55, §1, CPC e leitura
a contrario sensu
da súmula 235, STJ.
3.3. REGISTRO que as partes estão legitimadas para a presente demanda; que não é caso de litisconsórcio necessário e que a parte autora possui interesse processual.
3.4. DESTACO ser cabível o controle de validade do referido decreto, mediante exame difuso, sem aptidão para transitar em julgado, apenas podendo compor a fundamentação da sentença - art. 504, I, CPC.
3.5. SUBLINHO que a pretensão da parte autora não foi atingida pela prescrição, dado o seu caráter inibitório, prospectivo. O instituto da decadência não se coloca em causa neste processo.
3.6. EQUACIONEI acima alguns vetores, com cognição precária, ainda que extensos, versando sobre o controle jurisdicional da atividade administrativa e temas correlatos.
3.7. INDEFIRO o pedido de antecipação de tutela, conforme fundamentação acima. Em primeiro exame, a redução do prazo de validade dos certificados em questão não parece violar ato jurídico perfeito ou direito adquirido, diante da natureza de tais atos, orientados ao controle de atividades de risco, podendo ser revistos caso sobrevenham elementos que o justifiquem.
3.8 INTIME-SE o autor a respeito desta deliberação.
3.9. DEIXO de designar audiência de conciliação eis que costuma se revelar infrutífera em casos como o presente.
3.10. CITE-SE a União Federal para, querendo, apresentar resposta no prazo de 30 dias úteis, contados na forma do art. 231, CPC. Aplico ao caso, ademais, os arts. 219, 224, CPC, art. 9 da lei n. 11.419/2006 e interpretação conferida ao art. 9 da lei n. 10.259/2001
3.11. INTIME-SE o autor para, querendo, apresentar sua réplica, tão logo a contestação da União tenha sido anexada aos autos ou se esgote o prazo para tanto. Aplico ao caso, analogicamente, o prazo do art. 351, CPC. Prazo de 15 dias úteis, contados da intimação.
3.12. REGISTRO que a causa parece gravitar em torno da valoração dos fatos narrados na peça inicial, sem necessidade de diligências probatórias. De todo modo, a questão haverá de ser avaliada adiante, tudo a depender do alcance das manifestações vindouras das partes.
3.13. VOLTEM conclusos para saneamento, casos as partes postulem diligências probatórias. Do contrário, VOLTEM registrados para prolação de sentença.
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