Processo nº 1002041-35.2022.4.01.3508
ID: 322733295
Tribunal: TRF1
Órgão: Juizado Especial Cível e Criminal Adjunto à Vara Federal da SSJ de Itumbiara-GO
Classe: PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CíVEL
Nº Processo: 1002041-35.2022.4.01.3508
Data de Disponibilização:
11/07/2025
Polo Passivo:
Advogados:
RAPHAEL MARQUES SILVA
OAB/GO XXXXXX
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Subseção Judiciária de Itumbiara/GO Juizado Especial Cível e Criminal Adjunto à Vara Federal da SSJ de Itumbiara/GO PROCESSO: 1002041-35.2022.4.01.3508 CLASSE: PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL …
Subseção Judiciária de Itumbiara/GO Juizado Especial Cível e Criminal Adjunto à Vara Federal da SSJ de Itumbiara/GO PROCESSO: 1002041-35.2022.4.01.3508 CLASSE: PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL (436) AUTOR: ANTONIO CARLOS FERREIRA, IRACI FRANCISCA DE JESUS FERREIRA Advogado do(a) AUTOR: RAPHAEL MARQUES SILVA - GO29225 REU: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS TERCEIRO INTERESSADO: CENTRAL DE ANÁLISE DE BENEFÍCIO - CEAB/INSS SENTENÇA TIPO "A" - RESOLUÇÃO Nº. 535/06-CJF SENTENÇA Relatório dispensado (Lei 9.099/1995, artigo 38 e Lei 10.259/2001, artigo 1º). Trata-se de ação cível proposta por LETICIA FERREIRA DE JESUS, representada por seu genitor ANTONIO CARLOS FERREIRA, contra o INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL, cujo pedido é a declaração de inexistência de débito c/c o restabelecimento de benefício assistencial à pessoa portadora de deficiência. Noticiado o óbito da autora em 18/04/2023, fora habilitado ao polo ativo da demanda seus genitores ANTONIO CARLOS FERREIRA e IRACI FRANCISCA DE JESUS FERREIRA (Id’s 2149137364, 2149137386 e 2154764994). Tenho por presentes os pressupostos processuais e as condições da ação, merecendo destaque a existência de interesse processual por parte da autora, mormente porque o INSS mantém suspenso o benefício assistencial NB 108.590.948-1 desde 01/03/2021 (Id. 1238051291). Quanto à prejudicial de mérito, declaro, desde já, prescrita a pretensão referente a crédito vencido em data anterior ao quinquênio imediatamente anterior ao ajuizamento desta ação, que se deu em 27/07/2022. Não há, assim, preliminares ou prejudiciais que impeçam a apreciação do mérito da presente ação previdenciária, na porção referente ao crédito vencido em data posterior a 27/07/2017, apreciação que passo a fazer. a) Da inexistência de débito Foram juntados aos autos documentos que identificaram, após regular procedimento administrativo, o recebimento indevido de benefício assistencial NB 108.590.948-1 no período compreendido entre 23/03/1999 e 01/03/2021, data da suspensão do benefício (Id. 1238051291 e 2194720703). A questão que segue é se, constatada a irregularidade no recebimento de valores pela parte autora, está ela obrigada a restituir à requerida as importâncias indevidamente recebidas. b) Devolução pelo segurado dos valores de benefício previdenciário pagos indevidamente pelo INSS. Descabimento. Erro administrativo de fato. Presença de boa-fé objetiva do segurado. Inicialmente, registre-se que o Superior Tribunal de Justiça julgou, no dia 10/03/2021, o Tema 979 (REsp n. 1.381.734/RN, Primeira Seção, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe 23/04/2021), aplicando a modulação dos efeitos da decisão, de modo que esta somente atingirá os processos que tenham sido distribuídos, na primeira instância, a partir de 23/04/2021, data da publicação do acórdão. Convém esclarecer que duas situações restaram divisadas no julgamento do referido recurso. A primeira refere-se ao pagamento indevido decorrente de erro administrativo de direito, ou seja, interpretação errônea e/ou má aplicação da legislação. Neste caso, tem-se que havia aparência de juridicidade no pagamento decorrente da interpretação jurídica originária da Administração, a qual foi posteriormente revista. Tal cenário fora delimitado pelo STJ nos seguintes termos da ementa: “O beneficiário não pode ser penalizado pela interpretação errônea ou má aplicação da lei previdenciária ao receber valor além do devido. Diz-se desse modo porque também é dever-poder da Administração bem interpretar a legislação que deve por ela ser aplicada no pagamento dos benefícios. Dentro dessa perspectiva, esta Corte Superior evoluiu a sua jurisprudência passando a adotar o entendimento no sentido de que, para a não devolução dos valores recebidos indevidamente pelo beneficiário da Previdência Social, é imprescindível que, além do caráter alimentar da verba e do princípio da irrepetibilidade do benefício, a presença da boa-fé objetiva daquele que recebe parcelas tidas por indevidas pela administração. Essas situações não refletem qualquer condição para que o cidadão comum compreenda de forma inequívoca que recebeu a maior o que não lhe era devido”. Destarte, o órgão colegiado, diante do dever-poder da Administração em bem interpretar e aplicar a legislação, bem como da presunção de existência de boa-fé objetiva pelo segurado, estabeleceu como regra ser incabível a repetição dos valores. Para a excepcional devolução das parcelas tidas por indevidas pela Administração é preciso que, no caso concreto, fique reconhecida a ausência de boa-fé objetiva do beneficiário do pagamento, isto é, deve ser constatado que, mesmo no momento em que vigorava a interpretação jurídica que amparou o pagamento indevido, o segurado sabia ser irregular a prestação. A segunda situação, por sua vez, decorre justamente da tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema 979, qual seja, “com relação aos pagamentos indevidos aos segurados decorrentes de erro administrativo (material ou operacional), não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela Administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30% (trinta por cento) de valor do benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprova sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido”. Trata-se, portanto, de concessão irregular por erro administrativo de fato (erro material ou operacional). Neste contexto, infere-se que, ao contrário da primeira conjuntura acima explanada, nunca houve aparência de juridicidade no pagamento, já que, ainda que indevido, prorrogou-se por falha operacional da própria Administração. No caso em concreto, é necessário averiguar se o beneficiário tinha condições de perceber ter sido indevido o pagamento, isto é, ter derivado de falha operacional. Na hipótese de, mesmo diante da falha operacional da Administração e da irregularidade do pagamento, puder ser percebida a boa-fé do segurado, a repetição dos valores é de ser negada. Para enquadrar o pagamento indevido tratado nestes autos em uma das duas situações mencionadas devo resolver questões de fato, quais sejam, se o pagamento indevido adveio de erro administrativo de direito ou de fato, bem como se há comprovação nestes autos da boa-fé objetiva da parte autora. Pois bem. Para o caso em apreço, tem-se que o débito apurado pela autarquia previdenciária decorre da constatação de recebimento indevido do benefício assistencial a pessoa portadora de deficiência NB 108.590.948-1 (Id. 1238051291). Outrossim, observo que: i) o benefício assistencial em questão fora concedido a autora com DIB em 23/03/1999; ii) o genitor da autora, integrante do grupo familiar, veio a manter vínculos empregatícios nos períodos de 08/1999 a 10/1999, 04/2000 a 12/2000, 09/2001 a 03/2009, 04/2010 a 05/2011 e 07/2012 a 01/2019, passando a usufruir de aposentadoria por tempo de contribuição a partir de 25/09/2018 (CNIS no Id. 1504663353, fls. 09/30); iv) a suposta irregularidade referente ao critério da renda per capita somente foi constatada pelo INSS em 06/2021, após demanda do Poder Executivo para realização de revisão dos benefícios assistenciais. Assim, resta claro que o pagamento indevido ora discutido nos presentes autos decorreu de erro administrativo de fato (material/operacional) cometido pela autarquia previdenciária, de forma que, conforme alhures fundamentado, o ônus da prova recai sobre o beneficiário, que deve comprovar sua boa-fé. No ponto, saliento que cabia ao INSS, detentor de expertise para tratar os assuntos relacionados aos benefícios previdenciários e assistenciais, cumprir a legislação de regência e convocar o requerente para reavaliação da continuidade das condições que deram origem ao benefício concedido, conforme preceitua o art. 21 da Lei n. 8.742/1993. Ocorre que, ao contrário, a autarquia previdenciária, durante os mais de 21 (anos) anos em que a autora gozou do benefício assistencial, sequer procedeu a uma única revisão, sendo certo que só veio a tomar conhecimento da alegada irregularidade quando instaurou procedimento administrativo para tal fim. Outrossim, em que pese a legalidade de a Administração Pública rever seus próprios atos, corrigindo-os e anulando-os quando eivados de vícios, também não deve o beneficiário ser penalizado pela falha administrativa quando claramente não deu causa ao erro. Necessário dizer, portanto, que não é possível extrair a má-fé do autor, pois não há o menor indicativo de que tivesse ciência de que, uma vez deferido o benefício pela Autarquia Federal, seu genitor, integrante de seu grupo familiar, estaria impossibilitado de realizar atividades laborativas a fim de complementar a renda da família. No mais, repita-se, cabe ao INSS reavaliar, a cada dois anos, a manutenção dos requisitos necessários para o recebimento dos benefícios por ele concedidos. Todavia, muito embora a ausência dos requisitos importe na regular cessação do benefício até então auferido, tal fato, por si só, não é hábil a caracterizar o cometimento automático de qualquer tipo de ilícito por parte do beneficiário. Não por outro motivo, a jurisprudência tem caminhado no sentido de que nas hipóteses de prestações previdenciárias (ou assistenciais) pagas por concessão de benefício regularmente deferido, como na presente, tem-se caracterizada a boa-fé do segurado. Nesse sentido: TRF4, AC 5000772-39.2015.4.04.7133/RS, Quinta Turma, Rel. Altair Antonio Gregório, Data de Julgamento: 28/08/2018. É certo que ninguém se escusa de cumprir a lei alegando seu desconhecimento. Por certo, à luz do princípio “ignorantia legis neminem excusat” (art. 3º do Decreto-lei nº 4.657/42, com a redação dada pela Lei nº 12.376/10), não se concede a ninguém o direito de invocar o desconhecimento da lei como escusa de seu cumprimento. Porém, nessa exuberância de normas e leis, que confundem e traem os entendidos, não é de se esperar que o leigo tenha conhecimento de fato não corriqueiro, não amplamente difundido na sociedade. Nesse caminho, a boa-fé é vetor interpretativo no tocante à devolução dos valores recebidos indevidamente, sobretudo ante a natureza alimentar da prestação previdenciária. Logo, a boa-fé se presume e não foi devidamente afastada durante este processo. Nesse sentido, colaciono o seguinte julgado: TRF3, Segunda Turma, AI 0003192-57.2016.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal Souza Ribeiro, julgado em 23/08/2016, e-DJF301/09/2016. Importante ressaltar que a requerente não incorreu em infração à legislação vigente à época ao postular a concessão do benefício supracitado. Destarte, a Constituição Federal assegura, em caráter universal, o direito de petição, consubstanciado no art. 5º, XXXIV, “b” da Carta Política, razão pela qual não se pode abstrair do simples pleito administrativo/judicial do benefício a má-fé da autora. Dito isso, destaco que a conduta deste Juízo já vinha sendo no sentido de aderir à compreensão jurisprudencial majoritária que entendia incabível a repetição de benefício previdenciário quando o pagamento indevido se dá por erro administrativo, ausente prova de dolo ou má-fé do beneficiário (por todos: STF, AI 849.529-AgR, 1ª Turma, Luiz Fux, DJe 15/03/2012; STF, ARE 689.501, Decisão Monocrática, Carmen Lúcia, DJe 29/06/2012; STF, RE 633.900, 1ª Turma, Carmen Lúcia, DJe 08/04/2011). Oportuno, ainda, registrar que a tese jurídica da repetição condicionada à má-fé, nos casos de erro administrativo, vinha sendo reafirmada ao longo dos anos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Veja-se que o STJ, antes mesmo da tese firmada no Tema 979, já consignou que “os valores percebidos a título de benefício previdenciário, em razão de erro da administração e sem má-fé do segurado, não são passíveis de repetição, ante seu caráter alimentar” (Resp. 1.167.4457/RJ, Rel. Ministro Og Fernandes, julgado em 03/08/2017, Dje 09/08/2017). Esse o quadro, concluo que os valores percebidos pela autora, relativamente ao benefício assistencial NB 108.590.948-1, não são passíveis de devolução. c) Repetitividade de pagamento. Inaplicabilidade da teoria do risco-proveito nos pagamentos decorrentes de erro administrativo. A repetitividade dos pagamentos decorrentes de liminar revogada é fundamentada na teoria do risco proveito, uma vez que a parte que requereu a liminar deve arcar com os riscos da revogação. É a decantada teoria do risco-proveito, aceita pela doutrina processual civil em geral (assim, Daniel Amorim Assumpção Neves, Manual de Direito Processual Civil – Volume Único, 7ª edição, 2015, páginas 1.352 e 1.353) e pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (Resp 1.191.262, 4ª Turma, Luís Felipe Salomão, 25/09/2012), além de consagrada tanto pelo CPC/1973 (artigos 273, §3º e 811) quanto pelo CPC/2015 (artigo 302). Ocorre que tal teoria não se aplica nos pagamentos decorrentes de erro administrativo. d) Inexistência de declaração de inconstitucionalidade, em controle difuso ou concentrado, do art. 115, II, da Lei 8.213/1991. Interpretação restritiva de texto legal não se confunde com a negativa de sua aplicação (e necessária declaração de inconstitucionalidade). Verifico que não se está a declarar a inconstitucionalidade do referido comando. Apenas se faz interpretação restritiva: o pagamento indevido referido no dispositivo é aquele para o qual concorreu com má-fé o segurado, não abrangendo aquele decorrente de erro administrativo. A interpretação do dispositivo de forma distinta da pleiteada pela autarquia frisa-se, não equivale à declaração de inconstitucionalidade. É este, inclusive, o entendimento sedimentado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ): “deve-se ter por inaplicável o art. 115 da Lei 8.213/91 na hipótese de inexistência de má-fé do segurado. Não se trata de reconhecer a inconstitucionalidade do dispositivo, mas que a sua aplicação ao caso concreto não é compatível com a generalidade e a abstração de seu preceito, o que afasta a necessidade de observância da cláusula de reserva de plenário” (Resp. 1.694.402/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, julgado em 03/10/2017, Dje em 11/10/2017). Assim, após análise das provas trazidas aos autos, concluo que restou demonstrada a boa-fé por parte da autora na percepção do benefício. e) Do restabelecimento do benefício assistencial Para fruição do benefício de assistência social previsto no art. 203, V, da Constituição da República, no valor de um salário mínimo por mês, a legislação de regência impõe a necessidade da satisfação de dois requisitos. O primeiro em forma alternativa: deficiência que incapacite tanto para a vida independente como para o trabalho ou idade mínima de 65 anos (Lei 8.742/1993, artigo 20, caput, primeira parte; Lei 10.741/03, artigo 34, caput). O segundo se traduz na impossibilidade de a pessoa pleiteante prover sua manutenção ou tê-la provida por sua família (Lei 8.742/1993, artigo 20, caput, parte final). f) Hipossuficiência como requisito para fruição do benefício assistencial. Critério legal da renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo. Relativização. Presunção relativa de miserabilidade (recente superação pela TNU da tese da presunção absoluta) que pode ser afastada mediante prova idônea produzida para o caso concreto. Possibilidade, por outro lado, de excepcional reconhecimento da miserabilidade de pessoa inserida em grupo familiar com renda per capita superior ao limite legal. Relativamente à impossibilidade de o requerente prover a própria manutenção ou tê-la provida por sua família, anoto o seguinte. Inicialmente destaco que o critério legal de ¼ do salário mínimo como renda familiar per capita máxima a gerar a miserabilidade que habilita o requerente ao benefício é critério legal relativo, que tanto pode ser mitigado para estender o benefício a quem se insira em família com rendimento superior quanto pode ser relativizado para restringir o benefício a quem se insira em família com renda declarada inferior. Tanto o Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.112.557, 1ª Seção, Napoleão Maia Filho, DJe 20/11/2009), quanto o Supremo Tribunal Federal (RE 580.963, Pleno, Gilmar Mendes, DJe 14/11/2013), sedimentaram a compreensão de que o critério legal objetivo – estipulado no artigo 20, §3º, da Lei 8.742/1993 – de renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo não deve ser o único conducente à conclusão de apresentar o requerente a hipossuficiência necessária à percepção do benefício assistencial. Trata-se de orientação que já havia sido vertida na Súmula n. 11 da TNU (posteriormente cancelada), bem como no Enunciado n. 51 do Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais (FONAJEF), além de reclamada por segmentos da doutrina especializada (por todos: Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari, Manual de Direito Previdenciário, 11ª edição, 2009, páginas 666 e 667). Dessa forma, ao magistrado é dado, deparando-se com requerente cuja renda familiar per capita é superior a ¼ do salário mínimo, servir-se de critérios outros para concluir pela indigitada hipossuficiência. Sobre essa última situação – concessão de benefício assistencial àquele que tenha renda familiar per capita superior a ¼ do salário mínimo –, destaco o seguinte. A seguridade social é regida pelo princípio da seletividade (CF, artigo 194, parágrafo único, III) exatamente por, considerada a impossibilidade orçamentária e financeira de o Estado fazer cessar a pobreza em todos os seus graus, ser necessária a “delimitação do rol de prestações, ou seja, a escolha dos benefícios e serviços a serem mantidos pela seguridade social” (Wagner Balera, Noções Preliminares de Direito Previdenciário, 2004, página 87). Em tal situação, inevitável é que se efetuem as denominadas escolhas trágicas (Fábio Zambite Ibrahim, Curso de Direito Previdenciário, 16ª edição, 2011, página 67): dada a impossibilidade de se atenderem todas as demandas sociais na sua completa extensão, exclui-se o atendimento de algumas demandas de modo a possibilitar o atendimento daquelas tidas por prementes. Ora, referidas escolhas trágicas estão a cargo do legislador, eis que “essas decisões, fazendo uma opção num quadro de prioridades a que obrigam a escassez de recursos, devem ficar a cargo de órgão político, legitimado pela representação popular” (Gilmar Ferreira Mendes et. al, Curso de Direito Constitucional, 5ª edição, 2010, páginas 338 e 339). Tais opções feitas pelo legislador, em regra, não são suscetíveis de apreciação judicial, “a não ser em havendo manifesta arbitrariedade do legislador” (Gilmar Ferreira Mendes et. al, Curso de Direito Constitucional, 5ª edição, 2010, páginas 338 e 339). Pois bem. O que tenho é que o critério legal de ¼ do salário mínimo representa legítima escolha feita pelo legislador: na impossibilidade de fazer cessar a pobreza em todos os seus níveis, selecionou, legitimado pela representação popular, a necessidade premente (atendimento daqueles cuja renda familiar per capita seja de até ¼ do salário mínimo) tida como comportável nos sempre limitados recursos orçamentários. Somente me servirei da possibilidade aberta pelos julgados acima referidos – qual seja, de, servindo-me de critérios ‘outros’, conceder o benefícios assistencial a pessoa que tenha renda per capita familiar superior a ¼ do salário mínimo – em excepcionalíssimas hipóteses, nas quais seja constatado que o grupo familiar suporta, para sua subsistência, despesas não usuais, não encontradiças nas famílias em geral, tais como remédios em valores manifestamente desproporcionais a seus rendimentos, alimentação/vestuário/transporte que, pelas peculiares necessidades que revela o grupo familiar, esteja a causar gravame excepcional. De forma inversa, anoto que, ainda que a renda familiar per capita do requerente seja inferior a ¼ do salário mínimo, não haverá presunção absoluta de sua miserabilidade, mas, tão somente, presunção relativa. É dizer, tendo renda inferior ao limite legal, presume-se pobre e, portanto, habilitado ao benefício assistencial. Tal presunção, porém, pode ser afastada no caso concreto quando existentes provas de que não se encontra o requerente em estado de miserabilidade, seja por perceber contínua ajuda de familiares que revelam condições de supri-lo, seja por indicarem as circunstâncias ter ele rendas outras não declaradas ou por qualquer outra circunstância de permita afirmar não estar ele em situação de miserabilidade. Trata-se de compreensão que, assim, alinha-se com a concepção constitucional do caráter seletivo da seguridade social – deve selecionar aqueles que realmente dela necessitem (CF, artigo 194, II) – e, especificamente quanto à assistência social, seu caráter subsidiário, devendo ser prestado apenas a “quem dela necessitar” (CF, artigo 203, caput). Nesse contexto, embora complexa a discussão no seio da jurisprudência, tem-se que o anterior entendimento do Superior Tribunal de Justiça (Resp 1.112.557, 3ª Seção, Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 20/11/2009) pela presunção absoluta de miserabilidade foi superado pela Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, o que se fez em duas oportunidades recentes (Pedilef 5009459-52.2011.4. 04.7001, Paulo Ernane Moreira Barros, 09/04/2014 e Processo 5000493-92.2014.4.04.7002, Daniel Machado da Rocha, 14/04/2016) e à luz do entendimento do Supremo Tribunal Federal manifestado na Rcl 4374 (Gilmar Mendes, Pleno, DJe 04/09/2013). g) Exclusão do cômputo da renda familiar para aferição da renda per capita: (i) dos benefícios assistenciais e previdenciários recebidos por idosos e incapazes no valor de um salário mínimo; (ii) dos rendimentos de pessoas que não se compreendam no conceito legal de família. Em passo seguinte, abordo os rendimentos que podem ser excluídos da renda familiar na apuração de mencionada renda per capita. Conforme já reclamava a doutrina (Fábio Zambite Ibrahim, Curso de Direito Previdenciário, 16ª edição, 2011, página 18), o Supremo Tribunal Federal (RE 580.963, Pleno, Gilmar Mendes, DJe 14/11/2013 – julgado já acima referido), reconheceu a existência de discriminação inconstitucional no artigo 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso). Isso porque, ao permitir que a renda decorrente de beneficio assistencial recebido por idoso seja excluída do cômputo da renda familiar para o fim da percepção de benefício assistencial por outro idoso, concede aos idosos que recebem benefício assistencial privilégio indevidamente não estendido aos idosos que recebem benefício previdenciário de um salário mínimo e aos deficientes que recebem benefício assistencial (que não poderiam excluir tais benefícios do cômputo da renda familiar para o fim da percepção do benefício assistencial por outro membro do grupo familiar). Por isso, tanto os benefícios assistenciais recebidos por idosos, quanto os benefícios previdenciários de um salário mínimo recebido por idosos e os benefícios assistenciais recebidos por deficientes não deverão ser computados na renda familiar para o fim da concessão do benefício em apreço. Ainda a propósito da exclusão de rendimentos na apuração da renda familiar per capita, imprescindível é a fixação do conceito de família, para os fins da percepção do benefício assistencial em questão: conceito amplo de família implica em contabilizar rendas de contingente amplo de pessoas, o que, aumentando a renda familiar, pode prejudicar o requerente, eis que sua renda familiar per capita tenderá a superar o limite legal de ¼ do salário mínimo; conceito restrito de família implica em excluir rendas de contingente amplo de pessoas, o que, reduzindo a renda familiar, pode beneficiar o requerente, eis que sua renda familiar per capita tenderá a comportar-se no limite legal de ¼ do salário mínimo. O que tenho por decisivo para dirimir a controvérsia – que é profunda entre os estudiosos – é a premissa que desenvolvi linhas acima: no contexto em que os recursos orçamentários sempre serão inferiores às necessidades sociais a que deveriam fazer frente, cabe ao legislador – não ao juiz –, legitimado pela vontade popular, efetuar as denominadas escolhas trágicas. Ora, é exatamente no exercício de tal missão que compreendo ter sido elaborado o conceito legal de família para fins de percepção do benefício assistencial (Lei 8.742/1993, artigo 20, §1º). Estabelecendo aqueles cuja renda deve ser contabilizada para apuração da renda familiar per capita, definiu o legislador a decantada subsidiariedade da atuação Estatal em matéria de assistência social: por um lado, somente atua o Estado se a renda daquelas pessoas enumeradas no dispositivo legal não for suficiente à subsistência do requerente; por outro, não se nega o Estado a atuar quando renda de pessoas outras, não compreendidas no conceito de família estabelecido pelo legislador, pudessem fazer frente à subsistência do requerente. Com esses fundamentos, não adiro à respeitável compreensão doutrinária (que animou, por exemplo, a edição do Enunciado n. 51 do FONAJEF) que preconiza poder o magistrado estender o conceito de família estabelecido no artigo 20, §1º, da Lei 8.742/1993 para abranger pessoas ali não elencadas: repito que a atribuição de selecionar normativamente – o que fez também ao elencar as pessoas cujos rendimentos podem obstar a atuação assistencial estatal – o contingente de pessoas titulares do benefício assistencial em questão é do legislador, não do juiz. Por isso, fico com a compreensão consagrada na Turma Nacional de Uniformização (Pedilef 2006.63.01.052381-5, Alcides Saldanha Lima e Pedilef 0054205-83.2011.4.03.6301, Frederico Augusto Leopoldino Koehler, 21/10/2015), compreensão que me vem também de respeitável escólio doutrinário (Fábio Zambitte Ibrahim, Curso de Direito Previdenciário, 16ª edição, página 20): a interpretação do conceito de família deve ser restritiva, atendo-se aos estritos termos da definição legal presente no artigo 20, §1º, da Lei 8.742/1993. Dessa forma, somente se incluem no conceito de família do requerente, para fins de apuração de sua renda familiar per capita, as pessoas expressamente enumeradas no artigo 20, §1º, da Lei 8.742/1993. Devem, a um só tempo: (1) relativamente ao requerente, “viver sob o mesmo teto” e (2) ter com o requerente as estritas relações de parentesco elencadas na norma (“o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados”). Donde concluo, por exemplo, que a renda do filho solteiro não deve ser computada, se residir em local diverso do requerente. Também não deve ser computada a renda do tio, que viva sob o mesmo teto do requerente. h) Princípio da subsidiariedade. Recente conformação pela TNU (Processo 0517397-48.2012.4.05.8300). Descabimento da assistência social estatal quando particulares (família ou sociedade) estejam a assistir de forma idônea o requerente. Superação da discussão sobre quais rendas podem ser excluídas do cômputo da renda familiar para aferição da renda per capita. Ética do respeito aos precedentes. Ocorre que a discussão posta no tópico ‘b’ supra restou parcialmente prejudicada. É que no recente julgamento do Processo 0517397-48.2012.4.05.8300 (Relator Juiz Federal Fábio César dos Santos Oliveira, julgamento concluído em 23/02/2017) a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais deu conformação ao princípio da subsidiariedade como regente da atuação positiva estatal na concessão do benefício assistencial em questão. Afirmou-se, em síntese, com apoio em respeitável magistério doutrinário, que “quando alguma tarefa pode ser cumprida pelo homem ou grupos sociais, bem como pelo Estado, deve-se dar preferências aos primeiros”. Consagrou-se, assim, a seguinte tese: “o benefício assistencial de prestação continuada pode ser indeferido se ficar demonstrado que os devedores legais podem prestar alimentos civis sem prejuízo de sua manutenção”. Em síntese, presente pessoa que, ainda que não integrante do conceito de família aludido no tópico ‘b’, esteja a suprir de forma adequada as necessidades alimentares do requerente, descabida será, em nome do princípio da subsidiariedade, a assunção do dever pelo Estado via prestação do benefício assistencial aqui postulado. Trata-se de julgado que vem sendo referida na doutrina especializada como necessário ao enfrentamento atual do tema (assim, Frederico Amado, Curso de Direito e Processo Previdenciário, 10ª edição, 2018, página 52). A aplicação do entendimento consolidado por Tribunal de Uniformização, quando verificada semelhança de casos, deve ser observado, sendo certo que este julgador tem sido fiel à ética do respeito aos precedentes, isto é, uma vez definida determinada tese jurídica à luz da orientação jurisprudencial majoritária ou de racional extração interpretativa do ordenamento jurídico, tal tese jurídica é aplicada em todos os casos a ela referentes, imposição que se tem dos princípios da segurança jurídica e do tratamento isonômico dos jurisdicionados, conforme impõe o mais autorizado escólio doutrinário (Luiz Guilherme Marinoni, A Ética dos Precedentes, 2ª edição, 2016, páginas 103 a 114) e o Código de Processo Civil (p. ex. art. 927). i) Caso concreto. Impedimento de longo prazo comprovado. Renda per capita superior a ¼ do valor do salário mínimo. Vulnerabilidade não constatada. Presunção relativa de miserabilidade afastada. Realizada perícia médica, no laudo pericial juntado nestes autos (Id. 1547960385), o perito atesta que a autora possuía impedimento físico gravíssimo por ser portadora de epilepsia, retardo mental e escoliose (CID-10: G40, F70 e M41), tendo realizado tratamento de suporte com fonoaudióloga, neurologista, fisioterapeuta e psicóloga (item “a” e anamnese). Por fim, concluiu pela presença de incapacidade desde o nascimento, ou seja, 31/08/1989 (itens “c”, “d”, “f”, “g” e “k” e Id. 1238051267). Assim, encontrava-se cumprido o critério do impedimento de longo prazo, que podia obstruir a participação plena e efetiva da autora na sociedade em igualdade de condições com outras pessoas. Quanto à hipossuficiência alegada para fins de concessão do benefício assistencial, observo, no laudo social produzido de forma indireta (Id. 1896050175), que o grupo familiar era composto pela autora e seus genitores, sendo o endereço da família na Rua Camponesa, nº 112, Bairro São Francisco de Assis II, na cidade de MORRINHOS/GO. Ademais, a renda da família advinha de benefício de aposentadoria por tempo de contribuição percebido pelo genitor da falecida. As alegações encontram-se devidamente corroborados pelo extrato do CNIS (Id. 2027441146). Neste quadro, o grupo familiar composto pela autora e seus genitores, declarou renda de R$ 2.060,00. Nada obstante, em consulta ao CNIS do genitor da autora conforme Id xxx, é possível notar que na verdade, à época da perícia judicial (10/2023), a aposentadoria percebida por este, se encontrava no valor total de R$ 2.137,91. Dessa forma, concluo que a renda per capita do grupo familiar composto por 3 pessoas era da ordem média de R$ 712,63, ultrapassando o critério legal de ¼ do salário mínimo. A conclusão do laudo social foi de que a família não apresentava situação de miserabilidade (item 7 – Id. 1896050175). Ademais, a residência visitada é própria, de alvenaria, piso de cerâmica, forro pvc, possui 1 sala, 1 cozinha, 2 quartos, 3 banheiros, 1 cozinha, 1 área de serviço e 1 garagem. O imóvel encontra-se em bom estado de conversação e higienização. As fotografias apresentadas (Id. 1896050176) denotam um bom imóvel, com móveis e eletrodomésticos oportunos e adequados a todos os cômodos e em bom estado de conservação em sua maioria, a saber: 1 jogo de sofá, 1 estante com 1 TV de 39 polegadas, aparelho de som, 1 cama de casal, 2 camas de solteiro, 2 guarda-roupas, 1 cômoda, 1 fogão cinco bocas, 1 geladeira, 1 armário em aço, 1 mesa de mármore com seis cadeiras, 1 mesa de madeira com quatro cadeiras, 1 micro-ondas e 1 máquina de lavar roupas. O bairro de localização, por sua vez, é provido de abastecimento de água, serviço de rede de esgoto, energia elétrica, rede telefônica, coleta de águas pluviais e pavimentação asfáltica (quesitos 3.1, 3.2 e 3.3). Pois bem. Convém salientar que, consoante fundamentação teórica exposta, a presunção de miserabilidade em tais casos é relativa, cedendo diante de prova em contrário. No caso dos autos, forçoso reconhecer que não foi constatada qualquer excepcionalidade, no que tange a despesa extraordinária ou específica situação de vulnerabilidade, depreendendo-se que as necessidades da autora estavam sendo supridas de maneira satisfatória, afastando-se a presunção de miserabilidade. Por fim, vale rememorar que o benefício assistencial não pode ser utilizado para efeito de complementação de renda, mas para atender às necessidades das pessoas deficientes e idosas sem condições mínimas de sobrevivência e que se encontram em excepcional circunstância de miserabilidade, o que não restou comprovado no presente caso. Ausente o requisito de miserabilidade, não há, sob a égide da legislação de regência, embasamento à concessão de benefício assistencial pleiteado. DISPOSITIVO Esse o quadro, declaro extinto o processo com resolução do mérito (art. 487, I, CPC) e JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido da autora para tão somente declarar a inexistência do débito referente à cobrança dos valores recebidos do benefício NB 108.590.948-1, por se tratar de recebimento de boa fé, devendo o INSS abster-se de inscrever o nome da autora em dívida ativa ou quaisquer cadastros de inadimplentes. JULGO IMPROCEDENTE o pedido de restabelecimento de benefício assistencial. Sem custas e tampouco honorários advocatícios (art. 55 da Lei 9.099/95). Defiro o pedido de gratuidade da justiça, nos termos do artigo 98 e seguintes do Código de Processo Civil, considerando a declaração de hipossuficiência firmada pelo genitor da autora (Id. 1238051266), uma vez que inexiste nos autos elementos que a desconstituam. Oportunamente, arquivem-se os autos. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Itumbiara/GO, data da assinatura eletrônica. assinado eletronicamente FRANCISCO VIEIRA NETO Juiz Federal BRSD
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