Processo nº 1001685-54.2024.8.11.0017
ID: 333593115
Tribunal: TJMT
Órgão: 2ª VARA DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA
Classe: PROCEDIMENTO COMUM CíVEL
Nº Processo: 1001685-54.2024.8.11.0017
Data de Disponibilização:
24/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO 2ª VARA DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA SENTENÇA Processo: 1001685-54.2024.8.11.0017. AUTOR(A): ELIZABETH ALVES DE ALENCAR REU: ESTADO DE MATO GROSSO, MUNICÍPIO DE SÃO…
ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO 2ª VARA DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA SENTENÇA Processo: 1001685-54.2024.8.11.0017. AUTOR(A): ELIZABETH ALVES DE ALENCAR REU: ESTADO DE MATO GROSSO, MUNICÍPIO DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA Vistos, etc. I. RELATÓRIO: Trata-se de Ação de Obrigação de Fazer, com pedido de tutela de urgência, ajuizada por ELIZABETH ALVES DE ALENCAR em face do ESTADO DE MATO GROSSO e do MUNICÍPIO DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA, com o escopo precípuo de obter a imediata transferência hospitalar e o tratamento cirúrgico de peritonite, em virtude de seu grave e urgente estado de saúde. A parte autora, qualificada nos autos, foi internada no Hospital Municipal Prefeito João Abreu Luz, em São Félix do Araguaia/MT, em 25 de agosto de 2024, apresentando diagnóstico de Peritonite (CID K659), acompanhada de sintomas como dor pélvica, vômito e hipotensão. Adicionalmente, seu histórico médico revela a coexistência de hipertensão e cardiopatia, com cirurgia cardíaca prévia e prótese valvar, conforme documentação médica anexada à petição inicial (ID 167009942). A petição inicial destacou que, desde a internação, o quadro clínico da paciente sofreu agravamento, culminando em sangramento interno significativo. Foi veementemente sublinhado que a unidade hospitalar local não dispunha do aparelhamento necessário para a realização dos exames e cuidados essenciais à autora, o que justificava, com máxima urgência, a sua transferência para um hospital de referência com retaguarda de Unidade de Terapia Intensiva – UTI Cardiológica Adulto, visando o tratamento cirúrgico da peritonite. Postulou a concessão de tutela de urgência para que lhe fosse garantido o tratamento cirúrgico, inclusive por meio da rede privada, às expensas dos cofres públicos, com a cominação de multa diária e eventual sequestro de numerário em caso de descumprimento, bem como o benefício da justiça gratuita. Em análise preliminar, este Juízo, em decisão datada de 27 de agosto de 2024, determinou a remessa dos autos ao Núcleo de Apoio Técnico do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso – NAT, para emissão de parecer técnico sobre a situação da paciente, em prazo exíguo de 06 horas (ID 167017988). Em resposta, o NAT apresentou parecer técnico favorável em 28 de agosto de 2024, atestando a urgência do caso e o risco à vida da paciente (ID 167236835). Considerando o parecer técnico e a gravidade da situação, este Juízo proferiu decisão em 28 de agosto de 2024, deferindo a gratuidade da justiça à autora e concedendo a antecipação dos efeitos da tutela de urgência (ID 167241374). Em 03 de setembro de 2024, o ESTADO DE MATO GROSSO, por meio de petição de juntada automatizada, informou o cumprimento da medida liminar. Foi anexada Certidão de Acompanhamento Técnico nº 0548/2024, emitida pela Coordenadoria de Articulação à Regulação – ATCRUE, dando conta de que a paciente ELIZABETH ALVES DE ALENCAR fora admitida no HOSPITAL GERAL E MATERNIDADE DE CUIABÁ em 30 de agosto de 2024, em leito de UTI Adulto, e encontrava-se em tratamento hospitalar, com o procedimento de "TROCA VALVAR C/ REVASCULARIZAÇÃO MIOCÁRDICA" com status de "APROVADA" no SISREG III (ID 167829306 e ID 167829307) O MUNICÍPIO DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA apresentou contestação em 11 de setembro de 2024 (ID 168781366), arguindo, preliminarmente, sua ilegitimidade passiva em razão da média/alta complexidade do procedimento. No mérito, reiterou a ausência de sua responsabilidade, afirmando que tratamentos de alta complexidade ou alto custo seriam encargo exclusivo do Estado. Em conclusão, requereu o acolhimento da preliminar ou a improcedência do pedido, bem como a limitação do preço ao teto previsto pelo STF no Tema nº 1.033 para os serviços, e providências quanto à intimação pessoal da Secretaria de Saúde e a preferência pelo bloqueio judicial em detrimento de multas. O ESTADO DE MATO GROSSO, por sua vez, apresentou contestação em 30 de setembro de 2024 (ID 170680501), suscitando preliminares de incompetência absoluta do Juizado Especial da Fazenda Pública, em razão do valor da causa ser inferior a 60 (sessenta) salários-mínimos, nos termos da Lei nº 12.153/2009. Subsidiariamente, arguiu a competência absoluta da 1ª Vara Especializada de Fazenda Pública de Várzea Grande, em se tratando de ações de saúde contra o Estado, conforme Resolução nº 09/2019 do TJMT, e sustentou que a autora não se enquadrava nas exceções para idosos, crianças ou juizados. No mérito, absteve-se de defesa direta, afirmando a inexistência de elementos contrários nos autos, mas ressaltando que tal abstenção não implicava reconhecimento da procedência do pedido, tampouco a aplicação dos efeitos da revelia à Fazenda Pública. Em conclusão, requereu o acolhimento das preliminares ou a improcedência do pedido, bem como a limitação do preço ao teto previsto pelo STF no Tema nº 1.033 para os serviços, e providências quanto à intimação pessoal da Secretaria de Saúde e a preferência pelo bloqueio judicial em detrimento de multas. A parte autora apresentou réplica em 11 de dezembro de 2024 (ID 178478808), refutando as preliminares arguidas pelos réus. Confirmou o cumprimento da medida liminar, com a internação da autora no Hospital Geral e Maternidade de Cuiabá em 30 de agosto de 2024. O Ministério Público do Estado de Mato Grosso, atuando como custos legis, manifestou-se em 08 de fevereiro de 2025, pugnando pelo julgamento antecipado do feito e pela total procedência dos pedidos formulados na exordial (ID 183312585). Vieram os autos conclusos para sentença (ID 192765313) É o relatório. Decido: II. FUNDAMENTAÇÃO: A presente demanda versa sobre o direito fundamental à saúde e à vida, questões de máxima relevância constitucional que impõem ao Poder Público a inafastável obrigação de assegurar o acesso universal e igualitário às ações e serviços necessários à promoção, proteção e recuperação da saúde de seus cidadãos. A análise detida dos autos revela a necessidade de apreciação das preliminares arguidas pelos requeridos, para, somente então, adentrar no exame do mérito da pretensão autoral. Das Preliminares: Da Preliminar de Incompetência Absoluta do Juízo e da Vara Especializada (Estado de Mato Grosso) O ESTADO DE MATO GROSSO arguiu duas preliminares de incompetência, sustentando a competência do Juizado Especial da Fazenda Pública, em razão do valor da causa, e, subsidiariamente, a competência da 1ª Vara Especializada de Fazenda Pública de Várzea Grande para ações de saúde contra o Estado. No que tange à suposta competência do Juizado Especial da Fazenda Pública, cumpre registrar que a Lei nº 12.153/2009, que dispõe sobre os Juizados Especiais da Fazenda Pública, estabelece em seu artigo 2º, caput, que é de competência desses juizados o processamento, conciliação e julgamento de causas cíveis de interesse dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, de valor até 60 (sessenta) salários-mínimos. Contudo, o § 4º do mesmo dispositivo legal preceitua que, nas comarcas onde não houver Juizado Especial da Fazenda Pública instalado, as ações de sua competência tramitarão nas Varas Cíveis comuns. Quanto a preliminar de competência absoluta da 1ª Vara Especializada de Fazenda Pública de Várzea Grande, mister se faz um aprofundado exame das normas e precedentes pertinentes. O Estado de Mato Grosso invocou a Resolução nº 09/2019 do TJMT, que buscou especializar a Vara da Fazenda Pública de Várzea Grande para o julgamento de ações de saúde contra o Estado em todo o território mato-grossense. Entretanto, tal pretensão normativa foi objeto de análise pelo Superior Tribunal de Justiça no Incidente de Assunção de Competência (IAC) nº 010 (RMS nº 64.531/MT), que proferiu decisão vinculante sobre a matéria. O STJ assentou a ilegalidade da referida Resolução nº 09/2019/TJMT ao criar uma competência exclusiva em comarca arbitrariamente eleita e em desconformidade com as regras processuais e constitucionais. O precedente do STJ pacificou o entendimento de que prevalecem sobre quaisquer outras normas locais, primárias ou secundárias, as competências de foro estabelecidas em lei federal, como as da Vara da Infância e da Juventude (art. 148, IV, do ECA), do domicílio do idoso (arts. 79 e 80 da Lei nº 10.741/2003) e do Juizado Especial da Fazenda Pública (art. 2º, § 4º, da Lei nº 12.153/2009). A Súmula nº 206 do STJ, que preceitua que "a existência de vara privativa, instituída por lei estadual, não altera a competência territorial resultante das leis de processo", reforça a tese de que a criação de varas especializadas por ato infralegal não tem o condão de alterar as regras de competência fixadas pela legislação federal ou pela Constituição Federal. A decisão do STJ no IAC nº 010 é cristalina ao vedar a redistribuição de feitos com base em tal norma, e determinar o retorno aos juízos de origem dos processos já redistribuídos, salvo concordância expressa das partes. Ainda, o precedente ressalta que as previsões de retorno aos juízos de origem não se aplicam aos feitos de competência absoluta, como os dos Juizados Especiais da Fazenda, das Varas da Infância e da Juventude ou do domicílio do idoso. Assim, a Resolução nº 09/2019/TJMT é considerada ilegal e inaplicável no tocante à criação de competência exclusiva para a 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública da Comarca de Várzea Grande/MT. A tentativa de reestabelecer tal competência de forma indireta, por meio de atos da Corregedoria-Geral de Justiça que impõem a remessa obrigatória ao CEJUSC da Saúde, desvirtua a finalidade conciliatória e o princípio do juiz natural, violando o entendimento vinculante do Superior Tribunal de Justiça. Neste sentido, colaciono o seguinte julgado: AGRAVO DE INSTRUMENTO — RECURSO DESPROVIDO - JUÍZO DE RETRATAÇÃO — ASSISTÊNCIA À SAÚDE — PRESTAÇÃO CONTINUADA — INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA PRIMEIRA VARA ESPECIALIZADA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DE VÁRZEA GRANDE — TESE FIXADA EM INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA (IAC Nº 10) — OBSERVÂNCIA — NECESSIDADE — JUÍZO DE RETRATAÇÃO — POSITIVO. Aplica-se a tese fixada em sede de incidente de assunção de competência (IAC nº 10), que, a instalação de Vara Especializada não altera a competência prevista em lei, de sorte que “A Resolução n. 9/2019/TJMT é ilegal e inaplicável quanto à criação de competência exclusiva em comarca eleita em desconformidade com as regras processuais, especificamente quando determina a redistribuição desses feitos, se ajuizados em comarcas diversas da 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública da Comarca de Várzea Grande/MT”. Reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça, que a Resolução n. 09/2019/TJ-MT/OE viola as leis de processo, e, na espécie, constatado que o Agravante, viu-se obstado de continuar a demandar no Juízo da Vara de Ação Civil Pública, alternativa não resta, senão a retratação do posicionamento anteriormente adotado, e o consequente provimento do recurso, para cassar a decisão que determinou o declínio de competência para a Vara Especializada da Fazenda Pública da Comarca de Várzea Grande. (N.U 1001912-37.2020.8.11.0000, CÂMARAS ISOLADAS CÍVEIS DE DIREITO PÚBLICO, MARIO ROBERTO KONO DE OLIVEIRA, Segunda Câmara de Direito Público e Coletivo, Julgado em 27/03/2024, Publicado no DJE 27/03/2024) (grifei). Portanto, a competência para processar e julgar a presente demanda permanece com este Juízo, que é o juízo natural da causa, não havendo que se falar em deslocamento. Da Preliminar de Ilegitimidade Passiva do Município: Não prospera a arguida preliminar, na medida em que, por força de determinação constitucional, a prestação da saúde à população incumbe à União, Estados e Municípios, de forma solidária e, portanto, a ação que visa o cumprimento de tal obrigação pode ser dirigida a qualquer dos integrantes das três esferas de governo, conforme dispõe o art. 23, inciso II, da Constituição Federal: Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: […] II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; Desse modo, sendo o sistema de saúde, instituído pelo SUS, administrado sob a forma de cogestão, inexiste qualquer óbice em exigir ocumprimento da obrigação por qualquer dos entes públicos integrantes do sistema. Nesse sentido é o entendimento do Supremo Tribunal Federal e do TJMT: AGRAVO INTERNO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS QUANTO AO DEVER DE PRESTAR ASSISTÊNCIA À SAÚDE. TEMA 793. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA SUPREMA CORTE. 1. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no julgamento do RE 855.178- RG (Rel. Min. LUIZ FUX, Tema 793), examinou a repercussão geral da questão constitucional debatida nestes autos e reafirmou a jurisprudência desta CORTE no sentido da responsabilidade solidária dos entes federados quanto ao dever de prestar assistência à saúde. 2. Agravo Interno a que se nega provimento. (STF - RE: 1338906 RS 5000298-64.2019.8.21.0038, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 19/10/2021, Primeira Turma, Data de Publicação: 03/03/2022) (g.n) RECURSO INOMINADO. SAÚDE PÚBLICA. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE DO MUNICÍPIO REJEITADA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO. COMPONENTE ESPECIALIZADO DA ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA. DIRECIONAMENTO DO CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE FAZER AO ENTE ESTATAL. TEMA 793 DO STF. RECURSO PROVIDO. Rejeita-se preliminar de ilegitimidade do Município, pois, em tese, há responsabilidade solidária entre os entes estatais, a exceção dessa regra deverá ser analisada em cada caso concreto. Consoante Tema 793 do STF, “Os entes da federação, em decorrência da competência comum, sãosolidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”. Embora qualquer um dos entes públicos seja parte legítima, em conjunto ou separadamente, para ser acionado nas ações que visam à realização de procedimentos médicos/cirúrgicos, como no caso dos autos, trata-se de medicamento de alto custo, o cumprimento da obrigação deve ser direcionada ao Estado de Mato Grosso, de acordo com as regras de repartição de competência ora mencionada. Recurso provido. (TJ-MT - RI: 10309366720218110003, Relator: VALMIR ALAERCIO DOS SANTOS, Data de Julgamento: 18/04/2023, Turma Recursal Única, Data de Publicação: 19/04/2023) (g.n) Cabe ressaltar, ainda, que eventual hipossuficiência do Município não é circunstância justificadora de sua exclusão do polo passivo, porquanto, como demonstrado, na qualidade de ente federativo, possui obrigação solidária na prestação dos serviços de saúde, independentemente da sua posição financeira frente aos demais. Diante disso,REJEITO a PRELIMINAR suscitada. Do Mérito – Do Direito Fundamental à Saúde e à Vida Inexistindo nulidades a serem sanadas e nem outras questões processuais pendentes, reputo presentes os pressupostos processuais e as condições da ação. Portanto, sem embargo, passa-se ao exame do mérito desta causa. A saúde é um Direito Fundamental do cidadão, petrificado na Constituição para que nada possa impedir de ser almejado, sendo obrigação do Estado a sua garantia para a população, conforme estabelecem os arts. 6º e 196, da Constituição Federal. Vejamos: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Conforme se verifica dos dispositivos acima, a norma constitucional não faz depender sua eficácia e sua positivação à existência de recursos, à implementação de programas ou à edição de lei infraconstitucional. Assegura por si só a quem, comprovadamente carente, o direito subjetivo ao acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde para sua proteção e recuperação. Assim, qualquer aparelhamento e/ou ordenamento estatal, seja por meio da Secretaria de Estado Saúde ou pelo Sistema Único de Saúde, deve efetivar os direitos sociais fundamentais, neste caso, o direitoà saúde, pois as políticas públicas devem se adaptar à demanda requerida pela população para suprir o “mínimo existencial” dos indivíduos. De tal sorte, o Poder Público é responsável pelas ações e serviços de saúde, não podendo, cada um e todos, esquivar-se do dever de prestá-los de forma integral e incondicional. A compensação que ocorrerá internamente entre os entes não pode atingir a pessoa que necessita do serviço de saúde, devendo o ente, acionado judicialmente prestar o serviço e após, resolver essa Inter-regulação. Insta destacar, ainda, que, a jurisprudência atual tem refutado os argumentos no tocante aos princípios da reserva do possível, da universalidade do acesso à saúde, da separação dos poderes e da falta de previsão orçamentária, comumente arguidos de forma defensiva, pois é dever do ente público fornecer o tratamento adequado àquele que dele precisa, bastando, para a constatação de sua necessidade, o atestado emitido pelo médico que acompanha o tratamento da parte autora. Ademais, o acesso à saúde é direito fundamental e as políticas públicas que o concretizam devem gerar proteção suficiente ao direito garantido, sendo passíveis de revisão judicial, sem que isso implique ofensa aos princípios da divisão de poderes, da reserva do possível ou da isonomia e impessoalidade. Da Pretensão Autoral: No caso em tela, como visto, a prova documental acostada aos autos é farta e conclusiva quanto à necessidade imperiosa do procedimento cirúrgico para a saúde da requerente. Conforme exaustivamente demonstrado nos autos, ELIZABETH ALVES DE ALENCAR se encontrava em situação de saúde gravíssima, com diagnóstico de peritonite e histórico de cardiopatia, necessitando de tratamento cirúrgico e suporte em unidade de terapia intensiva, conforme atestado por médico assistente e corroborado pelo parecer favorável do Núcleo de Apoio Técnico – NAT. A urgência da situação era patente, com risco iminente à vida da paciente, o que justificou a propositura da presente ação e o deferimento da tutela de urgência. A realização do procedimento cirúrgico, com a internação da autora no Hospital Geral e Maternidade de Cuiabá em 30 de agosto de 2024, onde foi submetida a procedimento de "TROCA VALVAR C/ REVASCULARIZAÇÃO MIOCÁRDICA" (ID 167829307), comprova de forma cabal a necessidade da intervenção judicial para a concretização do direito à saúde da parte autora. Destarte, da forma que se apresenta a situação, em que restou sobejamente evidenciado a imprescindibilidade da realização do tratamento, com urgência, como forma de prestar efetividade à regra constitucional que consagra o direito à saúde, considero que, a procedência do pedido formulado, nos moldes em que foi deduzido, é medida que se impõe. Da responsabilidade pelo cumprimento da obrigação: Entretanto, em relação a responsabilidade no cumprimento da obrigação, é certo que o SUS é composto por uma rede regionalizada e hierarquizada, com regras de repartição de competência da seguinte forma: (I) União – procedimentos de alta complexidade/alto custo; (II) Estados – alta e média complexidade; (III) municípios – ações básicas e as de baixa complexidade. Assim, o cumprimento da obrigação deve ser direcionado de acordo com as regras de repartição de competências. Assim, o cumprimento do objeto da ação pelo Município comprometeria demasiadamente o orçamento municipal e o fornecimento de atendimento necessário aos demais munícipes. Neste tópico, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 793, firmou a tese de que qualquer dos entes pode ser demandado individualmente para garantir o direito à saúde, cabendo posterior ressarcimento entre os entes públicos na via administrativa ou por ação própria. No mesmo sentido, a redação dos Enunciados de Direito da Saúde n° 8 e 60, que assim predispõem: ENUNCIADO N° 8 Nas apreciações judiciais sobre ações e serviços de saúde devem ser observadas as regras administrativas de repartição de competência entre os entes federados. (Redação dada na III Jornada de Direito da Saúde - 18.03.2019) ENUNCIADO N° 60 A responsabilidade solidária dos entes da Federação não impede que o Juízo, ao deferir medida liminar ou definitiva, direcione inicialmente o seu cumprimento a um determinado ente, conforme as regras administrativas de repartição de competências, sem prejuízo do redirecionamento em caso de descumprimento. Nesse sentido também se mostram os julgados do TJ/MT: AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 1002234-66.2024.8.11.9005 ORIGEM: JUIZADO ESPECIAL CÍVEL E CRIMINAL DE PONTES E LACERDA RECORRENTE: MUNICÍPIO DE PONTES E LACERDA RECORRIDOS: WILLIAM TEIXEIRA DE SOUZA e ESTADO DE MATO GROSSO JUIZ RELATOR: ARISTEU DIAS BATISTA VILELLA DATA DO JULGAMENTO: 17 a 20/02/2025(PLENÁRIO VIRTUAL) Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRATAMENTO MÉDICO DE MÉDIA COMPLEXIDADE. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. DIRECIONAMENTO PRIMÁRIO AO ESTADO DE MATO GROSSO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.I. CASO EM EXAME1. Agravo de Instrumento interposto pelo Município de Pontes e Lacerda contra decisão que deferiu tutela de urgência determinando que Estado de Mato Grosso e o Município agravante custeassem tratamento médico de média alta complexidade para paciente diagnosticada com múltiplos traumatismos. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO2. A questão em discussão consiste em determinar a quem compete, primariamente, o cumprimento da obrigação solidária para o custeio do tratamento, em observância às regras de repartição de competências do SUS. III. RAZÕES DE DECIDIR3. A saúde é direito fundamental, sendo os entes federativos solidariamente responsáveis pela prestação de assistência à saúde, conforme os artigos 6º e 196 da Constituição Federal.4. O direcionamento primário da obrigação deve respeitar a repartição de competências do SUS, cabendo ao Estado a responsabilidade pelo custeio de tratamentos de alta complexidade.5. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no Tema 793 e os Enunciados 8 e 60 das Jornadas de Direito da Saúde do CNJ corroboram o entendimento de que a solidariedade não exclui o direcionamento da obrigação conforme a competência. 6. Caso o Estado não cumpra a obrigação primária, a responsabilidade recairá sobre o Município, por força da solidariedade entre os entes. IV. DISPOSITIVO E TESE7. Recurso parcialmente provido.Tese de julgamento:1. A responsabilidade solidária dos entes federativos pela saúde pública permite o direcionamento primário da obrigação ao ente responsável pelo tratamento conforme a repartição de competências do SUS, sendo possível o redirecionamento em caso de descumprimento.Dispositivos relevantes citados: CF/1988, arts. 6º, 23, I, e 196; Tema 793 do STF; Enunciados 8 e 60 do CNJ; Lei nº 8.080/90.Jurisprudência relevante citada: STF, RE 855.178/SE, Rel. Min. Luiz Fux; TJMT, N.U 1008117-43.2024.8.11.0000, Rel. Desª Vandymara Zanoló, j. 28/08/2024; TJMT, N.U 1020092-62.2024.8.11.0000, Rel. Des. Rodrigo Curvo, j. 23/10/2024. (N.U 1002234-66.2024.8.11.9005, TURMA RECURSAL CÍVEL, ARISTEU DIAS BATISTA VILELLA, Terceira Turma Recursal, Julgado em 17/02/2025, Publicado no DJE 21/02/2025) (grifei) Nessa esteira, portanto, embora o Município seja responsável solidário, na prestação do serviço público de saúde, não é competente para prestá-lo, primariamente, porque tal obrigação se insere nas atribuições do Estado de Mato Grosso. Diante disso, entendo que o cumprimento da obrigação deve ser direcionado, primariamente, ao Estado de Mato Grosso. Oportuno registrar, contudo, que, caso não seja possível assegurar o procedimento pelo Estado, caberá ao Município garanti-lo, em razão da responsabilidade solidária, visto que o objetivo principal é salvaguardar a saúde da paciente. Da Limitação da Condenação ao Valor da Tabela SUS (Município e Estado) Ambos os requeridos, Estado e Município, pleitearam a limitação de eventual condenação ao valor da Tabela SUS para procedimentos realizados na rede privada, com base no Tema nº 1.033 da Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal (RE 666.094). A tese fixada pelo STF estabelece que "O ressarcimento de serviços de saúde prestados por unidade privada em favor de paciente do Sistema Único de Saúde, em cumprimento de ordem judicial, deve utilizar como critério o mesmo que é adotado para o ressarcimento do Sistema Único de Saúde por serviços prestados a beneficiários de planos de saúde". Esse entendimento busca padronizar os custos para a Fazenda Pública nos casos em que, por ausência de disponibilidade na rede pública, a prestação do serviço é imposta à rede privada por ordem judicial. No presente caso, a medida liminar foi cumprida com a internação da paciente em um hospital público/SUS-credenciado (Hospital Geral e Maternidade de Cuiabá), o que, em princípio, afasta a discussão sobre o ressarcimento a uma unidade privada. Contudo, a inicial previu a possibilidade de tratamento na rede privada às expensas públicas. Assim, embora a controvérsia específica sobre o ressarcimento a particular não seja o ponto central da procedência da demanda neste momento, em face do cumprimento da liminar pela rede pública, é importante assinalar que, caso houvesse sido necessária a contratação de serviço privado em razão de comprovada inércia ou impossibilidade da rede pública em momento oportuno, o critério de ressarcimento deveria, de fato, observar o Tema nº 1.033 do STF. Tal diretriz visa a preservar o erário público de custos excessivos e desproporcionais, sem, contudo, desonerar o Estado de sua responsabilidade precípua de garantir o direito à saúde. Conclusão: Conclui-se, portanto, que a pretensão autoral merece ser acolhida em sua integralidade, confirmando-se a medida liminar concedida e tornando-a definitiva, em vista da comprovação da necessidade do tratamento, da responsabilidade solidária dos entes públicos e da efetiva prestação do serviço de saúde essencial à vida e à dignidade da paciente. III – DISPOSITIVO: Ante o exposto, com fundamento no artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil, e nos artigos 6º, 196 e 198 da Constituição Federal, JULGO PROCEDENTES os pedidos formulados na petição inicial para confirmar a tutela de urgência deferida e tornar definitiva a obrigação de fazer perante o ESTADO DE MATO GROSSO e MUNICÍPIO DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA-MT, entretanto, primariamente, ao ESTADO, em garantir o procedimento cirúrgico de perinotite da parte autora ELIZABETH ALVES DE ALENCAR, bem como quaisquer outros tratamentos decorrentes e necessários, via TFD, conforme já efetivado nos autos. Sem custas, consoante art. 3º, I, da Lei Estadual 7.603/2001, na redação dada pela Lei Estadual 11.077/2020, com vigência desde 14/04/2020. Condeno-os, solidariamente, ao pagamento de honorários advocatícios em favor da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso, os quais fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa, nos termos do artigo 85, § 3º, inciso I, do Código de Processo Civil, em observância ao precedente vinculante do Supremo Tribunal Federal (RE 1.140.005/RJ – Tema 1.002 de Repercussão Geral), devendo a verba honorária ser destinada exclusivamente ao aparelhamento da instituição. Havendo recurso: Na hipótese de interposição do recurso de apelação, certifique-se acerca da tempestividade e, em seguida, intime-se a parte recorrida para, no prazo 15 (quinze) dias, apresentar suas contrarrazões de apelação, na forma do artigo 1.010, §1º do CPC. Após, com ou sem contrarrazões recursais, voltem para análise do recurso. Preclusa a via recursal, certifique-se o trânsito em julgado. Preclusa a via recursal, certifique-se o trânsito em julgado e arquive-se com as baixas e cautelas de estilo. Publique-se. Registre-se. Cumpra-se, providenciando e expedindo o necessário, servindo a presente decisão como mandado/ofício/requisição. Às providências. São Félix do Araguaia-MT, data da assinatura eletrônica. LUÍS OTÁVIO TONELLO DOS SANTOS Juiz de Direito Substituto
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