Processo nº 0238741-46.2024.8.06.0001
ID: 316057799
Tribunal: TJCE
Órgão: 38ª Vara Cível da Comarca de Fortaleza
Classe: PROCEDIMENTO COMUM CíVEL
Nº Processo: 0238741-46.2024.8.06.0001
Data de Disponibilização:
04/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
MARIANA DIAS DA SILVA
OAB/CE XXXXXX
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ANA CAROLINA PAES GALVAO DE MELO
OAB/CE XXXXXX
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38ª Vara Cível da Comarca de Fortaleza Rua Desembargador Floriano Benevides Magalhães, 220, Edson Queiroz, FORTALEZA - CE - CEP: 60811-690 Nº DO PROCESSO: 0238741-46.2024.8.06.0001 CLASSE: PROCEDIM…
38ª Vara Cível da Comarca de Fortaleza Rua Desembargador Floriano Benevides Magalhães, 220, Edson Queiroz, FORTALEZA - CE - CEP: 60811-690 Nº DO PROCESSO: 0238741-46.2024.8.06.0001 CLASSE: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7) ASSUNTO: [Rescisão do contrato e devolução do dinheiro, Tutela de Urgência] AUTOR: TATHIANE FARIAS DE CARVALHO e outros REU: VENTURE CAPITAL PARTICIPACOES E INVESTIMENTOS S/A SENTENÇA Vistos, etc. I. RELATÓRIO Trata-se de Ação de Rescisão Contratual c/c Devolução dos Valores Pagos e Tutela Provisória de Urgência, ajuizada por Tone Wagner Viana da Silva e Tathiane Farias de Carvalho, em face de Residence Club S/A (Venture Capital Participações e Investimentos S/A). Narram os autores que adquiriram, em 22/08/2020, uma cota imobiliária temporal do empreendimento "Residence Club at the Hard Rock Hotel Fortaleza", mediante contrato de promessa de compra e venda. Pagaram até o momento R$ 34.442,50 do valor total de R$ 59.900,00. Ocorre que o imóvel, cuja entrega estava prevista para 31/07/2021, ainda não foi concluído, ultrapassando em mais de dois anos o prazo contratual, sem justificativa plausível. A construção da unidade adquirida sequer foi iniciada, conforme demonstrado por vídeos e informações da própria empresa. Além disso, a empresa tem alterado unilateralmente os prazos e cláusulas contratuais, violando os direitos dos consumidores e caracterizando má-fé. A conduta tem gerado frustração e abalo psicológico aos autores, que investiram economias no empreendimento, sem retorno. O caso é reiterado: existem mais de 290 processos semelhantes tramitando no TJCE e a empresa já foi multada pelo DECON/MPCE em R$ 12 milhões pelos atrasos. Diante disso, os autores requerem a rescisão contratual, devolução integral dos valores pagos sem multa contratual e indenização por danos morais, em razão da falha na prestação do serviço e sofrimento causado pela conduta da requerida. Os autores formulam os seguintes pedidos principais na ação: Gratuidade da Justiça, com base na CF/88 (art. 5º, LXXIV) e CPC (art. 98), por ausência de recursos suficientes. Tutela de urgência liminar, inaudita altera parte, para: Suspensão da exigibilidade das parcelas vencidas e vincendas; Proibição de negativação do nome da autora; Aplicação de multa diária de R$ 500,00 em caso de descumprimento. Tramitação no Juízo 100% Digital, conforme Resolução CNJ nº 345/2020. Citação da ré para contestar, sob pena de revelia. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor, com inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII, do CDC). Julgamento totalmente procedente, para: Rescindir o contrato n.º H1-14778; Determinar a restituição integral dos valores pagos (R$ 38.238,41), corrigidos, sem multa; Declarar nulidade de cláusulas abusivas, como retenção de valores, parcelamento da devolução e eleição de foro; Condenar ao pagamento de multa contratual de 1% ao mês pelos 22 meses de atraso (R$ 8.412,45); Condenar ao pagamento de indenização por danos morais de R$ 15.000,00; Confirmar eventual tutela de urgência deferida. Condenação da ré em custas e honorários advocatícios de 20% sobre o valor da condenação (art. 85, § 2º, CPC). Valor da causa: R$ 61.650,86. Despacho, id 117416790, o juízo determinou que a parte autora emende a petição inicial, para: Comprovar a hipossuficiência econômica, mediante a juntada das duas últimas declarações de imposto de renda dos promoventes; Alternativamente, recolher as custas processuais ou apresentar proposta de parcelamento. Alertou que o não cumprimento das diligências poderá resultar no indeferimento da petição inicial e consequente cancelamento da distribuição, conforme arts. 290 e 319 e seguintes do CPC. Petição dos autores, id 117416791, requerem: A concessão do benefício da justiça gratuita, com fundamento na jurisprudência do STJ, segundo a qual a simples declaração de hipossuficiência é presumidamente suficiente para o deferimento, salvo prova em contrário; Juntam aos autos extratos bancários dos últimos três meses, em razão de não possuírem, no momento, as declarações de imposto de renda, e afirmam que sua situação econômica é precária, o que inviabiliza o custeio das despesas processuais sem prejuízo do sustento próprio e familiar. Requerem, por fim, o deferimento do pedido de gratuidade da justiça. Despacho, id 117416799, o juízo entendeu que os extratos bancários apresentados pelos autores são insuficientes para comprovar a hipossuficiência econômica, pois não afastam a possibilidade de existência de outros bens ou contas. Dessa forma, determinou-se que os autores juntassem as duas últimas declarações completas de imposto de renda, sendo dispensada a apresentação apenas no caso de isenção, o que deverá ser expressamente informado. Concedeu-se prazo para cumprimento, facultando-se, alternativamente, o recolhimento integral ou parcelado das custas, sob pena de cancelamento da distribuição, conforme o art. 290 do CPC. Decisão Interlocutória proferida pela Desembargadora Maria de Fátima de Melo Loureiro, nos autos do Agravo de Instrumento nº 0629107-61.2024.8.06.0000, interposto por Tone Wagner Viana da Silva e Tathiane Farias Decarvalho, deferindo a tutela recursal de deferimento do benefício da justiça gratuita, intimando a agravada para, responder o recurso e comunicando o juízo de piso a respeito da decisão. Com comunicação feita ao Juízo a quo, sobreveio Decisão Interlocutória, id 17416807, deferindo a tutela de urgência requestada, no sentido de suspender o pagamento das parcelas concernentes ao contrato sob nº H1-14778, devendo ainda a parte promovida se abster de incluir o nome da parte promovente nos cadastros restritivos de crédito, até ulterior deliberação deste Juízo. Contestação, id 117419185, preliminarmente, impugnando a gratuidade judiciária concedida para a parte autora. No mérito, defende a legalidade e validade do contrato firmado em 22/08/2020 relativo à aquisição de cota de multipropriedade no empreendimento "Residence Club at The Hard Rock Hotel Fortaleza". Argumenta que: O contrato foi livremente pactuado, com cláusulas claras e firmadas com transparência e boa-fé, sem vícios de consentimento. O atraso na entrega do empreendimento se deve a caso fortuito e força maior, especialmente em razão da pandemia da COVID-19, cujos efeitos foram reconhecidos judicialmente em decisões recentes. Aponta previsão contratual expressa que permite a prorrogação do cronograma de obras em situações excepcionais, como pandemia, inflação de insumos, alta da taxa Selic e crise no setor da construção civil. Cita jurisprudência que valida cláusulas de prorrogação de entrega de obra, destacando que o contrato em questão contempla hipóteses de dilação por fatores externos. Alega que os efeitos econômicos da pandemia, como escassez de matéria-prima, elevação do custo de materiais e mão de obra, juros elevados e inflação generalizada, justificam o atraso sem caracterizar inadimplemento contratual. Refuta a alegação de falta de transparência, afirmando que informou regularmente seus clientes por diversos canais (site, WhatsApp, e-mail etc.) e que concedeu benefícios compensatórios, como vouchers RCI de hospedagem internacional. Questiona a veracidade de vídeos usados pelos autores (como o do canal "Flávio Drone"), afirmando que as obras estão em andamento, com registro fotográfico atualizado. Nega a existência de cláusulas abusivas e sustenta que não houve má-fé nem ilicitude que justifique a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ou qualquer pedido de indenização. Quanto à multa aplicada pelo DECON/MPCE, informa que já houve redução de 50% da penalidade por decisão administrativa. Alega que a quantidade de ações judiciais contra a empresa é proporcional ao seu porte e que muitas não são ações de consumidores insatisfeitos, mas envolvem outras relações jurídicas. Por fim, sustenta que não praticou qualquer ilícito, não deu causa à rescisão contratual e que a ação deve ser julgada improcedente por ausência de fundamento legal para os pedidos formulados. Em síntese, a requerida fundamenta sua defesa na ocorrência de eventos extraordinários e imprevisíveis, em cláusulas contratuais válidas e na boa-fé objetiva, pleiteando o reconhecimento da legalidade de sua conduta e improcedência da ação. Réplica, id 117419194 e 117419195. Decisão Interlocutória, id 117419199, invertendo o ônus da prova em favor da autora, em conformidade com a regra insculpida no art. 6º, VIII, do CDC e, por conseguinte, intimem-se as partes para dizerem se têm interesse em produzir provas além daquelas já constante nos autos, especificando-as e justificando-as, sob pena de julgamento antecipado do mérito, na forma do art. 355, I, do CPC/15. Petição da parte autora, id 117419201, informando que não possui interesse em outras formas de produção de provas, tendo em vista que já consta dos autos robusto conjunto probatório a comprovar o atraso na entrega do empreendimento. Acórdão da Segunda Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, conhecendo Agravo de Instrumento nº 0629107-61.2024.8.06.0000, interposto por Tone Wagner Viana da Silva e Tathiane Farias Decarvalho, mas negando-lhe provimento. Petição da requerida, id 127849183, pleiteia a realização de audiência de instrução virtual, com oitiva das partes e testemunhas, alegando que: A controvérsia central da ação envolve fatores externos, alheios à sua vontade, que teriam comprometido o andamento das obras, especialmente os impactos da pandemia da COVID-19 e das restrições governamentais. Sustenta que, além dos documentos já juntados, os depoimentos são necessários para elucidar os efeitos práticos e técnicos sofridos pela empresa durante o período contratual, os quais não se evidenciam plenamente no acervo documental. Afirma que não pretende utilizar a pandemia como justificativa genérica, mas sim demonstrar a impossibilidade real e concreta de cumprimento do cronograma, por circunstâncias imprevisíveis e excepcionais. Enfatiza que o indeferimento do pedido de produção de prova oral poderá configurar cerceamento de defesa, em afronta ao princípio do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da Constituição Federal). Decisão Interlocutória, id 159580202, o juízo indeferiu o pedido da parte demandada para designação de audiência de instrução, rejeitando a oitiva das testemunhas Aline de Fátima Soares Holanda e André Abreu da Silva. Fundamentou sua decisão nos seguintes pontos: a) Prova documental suficiente: Considerou que os autos já estão devidamente instruídos com prova documental capaz de permitir o julgamento da causa, nos termos do art. 370 do CPC, afastando qualquer alegação de cerceamento de defesa. b) Caráter protelatório: Avaliou que o pedido de oitiva das testemunhas seria inútil ou meramente protelatório, não se justificando a dilação probatória. c) Identidade com outro processo: Ressaltou a existência de demanda semelhante (processo nº 0208503-44.2024.8.06.0001), envolvendo o mesmo empreendimento, contrato similar, mesma parte demandada e as mesmas testemunhas. No outro feito, inclusive, a testemunha Aline foi ouvida como informante, em razão de vínculo empregatício com a requerida. d) Prova emprestada: Admitiu a utilização da prova emprestada do processo mencionado, nos termos do art. 372 do CPC, desde que observado o contraditório, o que afastaria a necessidade de nova audiência. e) Prestígio à economia processual: Fundamentou-se em precedentes do STJ e TJCE, reforçando a validade e utilidade da prova emprestada como meio lícito e eficiente, prestigiando os princípios da celeridade e economia processual. Diante disso, o magistrado anunciou o julgamento antecipado do mérito, com base no art. 355, I, do CPC, por entender que não há mais necessidade de instrução probatória. É o relatório. Decido. II. FUNDAMENTAÇÃO A. Das Preliminares 1. Da Impugnação à Justiça Gratuita A requerida impugnou a gratuidade da justiça concedida aos autores, sob a alegação de que não houve comprovação efetiva da hipossuficiência econômica. A defesa apontou que os autores são servidores públicos (analista do DNIT e coordenadora da Prefeitura de Maracanaú) e que as movimentações financeiras apresentadas, bem como o elevado valor do contrato de aquisição do imóvel (R$ 59.900,00), indicam capacidade financeira suficiente para arcar com as custas processuais. Os autores, em sua réplica, sustentaram a presunção iuris tantum de sua declaração de hipossuficiência, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, e argumentaram que a contratação de advogado particular não impede a concessão do benefício. Contudo, o relatório processual revela que o Agravo de Instrumento nº 0629107-61.2024.8.06.0000, interposto pelos autores com o objetivo de obter o benefício da justiça gratuita, teve seu provimento negado pelo Acórdão da Segunda Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Embora uma tutela recursal inicial tenha deferido provisoriamente o benefício, a decisão colegiada final do Tribunal de Justiça do Ceará sobre o agravo prevalece. A presunção relativa de veracidade da declaração de hipossuficiência pode ser afastada por elementos que evidenciem a capacidade financeira da parte. A decisão da instância superior já analisou e afastou a alegada hipossuficiência dos autores, tornando a questão preclusa para este juízo de primeiro grau. Diante da decisão definitiva do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, que negou provimento ao Agravo de Instrumento interposto pelos autores, a preliminar de impugnação à justiça gratuita deve ser acolhida. 2. Da Competência do Juízo A requerida arguiu preliminar de incompetência do juízo, embora o contrato de promessa de compra e venda estabeleça expressamente o "Foro da Cidade e Comarca de Fortaleza, Estado do Ceará" como o competente para dirimir eventuais litígios. Os autores, por sua vez, são domiciliados em Fortaleza e Maracanaú, ambas cidades que se inserem na Comarca de Fortaleza/CE. Os autores, em sua réplica, defenderam a competência do foro de seu domicílio para ações de reparação de danos, nos termos do art. 53, inciso V, do Código de Processo Civil, e a interpretação ampla da expressão "delito" pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça para incluir ilícitos civis. A cláusula de eleição de foro em contratos de adesão pode ser considerada abusiva e, portanto, nula, quando demonstrada a hipossuficiência do consumidor ou a dificuldade de acesso ao Poder Judiciário em razão de sua aplicação. No presente caso, entretanto, o foro eleito contratualmente coincide com o domicílio dos autores, não havendo qualquer prejuízo ou óbice ao acesso à justiça. Pelo contrário, a escolha do foro de seu domicílio é uma faculdade conferida ao consumidor pela legislação protetiva. Não se vislumbra, portanto, qualquer conflito real de competência ou situação que justifique o afastamento da cláusula contratual ou da regra geral do domicílio do autor. Assim, a preliminar de incompetência deve ser rejeitada, por manifesta ausência de fundamento. 3. Do Julgamento Antecipado do Mérito e Produção de Provas A requerida pleiteou a realização de audiência de instrução para a oitiva de testemunhas, com o intuito de comprovar os impactos da pandemia da COVID-19 e outras questões de força maior que, em sua visão, justificariam o atraso na obra. O juízo, por meio de decisão interlocutória, indeferiu o pedido, considerando a prova documental já constante nos autos como suficiente para o julgamento da causa, o caráter protelatório da medida e a possibilidade de utilização de prova emprestada de processo similar, anunciando o julgamento antecipado do mérito. O magistrado é o destinatário da prova, cabendo-lhe aferir a necessidade de dilação probatória para a formação de seu convencimento, nos termos do art. 370 do Código de Processo Civil. A decisão de indeferir a produção de prova oral e anunciar o julgamento antecipado do mérito (art. 355, I, CPC) encontra respaldo na suficiência do conjunto probatório documental já constante nos autos, bem como nos princípios da celeridade e economia processual. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais de Justiça estaduais, como o TJCE, valida o indeferimento de provas que se mostram inúteis ou meramente protelatórias. A existência de prova emprestada de processo similar, envolvendo o mesmo empreendimento e as mesmas testemunhas, reforça a desnecessidade de nova produção probatória, prestigiando a eficiência processual. Desse modo, a decisão que indeferiu a produção de provas adicionais e anunciou o julgamento antecipado do mérito deve ser mantida, por estar em consonância com a legislação processual e a jurisprudência consolidada. B. Da Relação de Consumo e Inversão do Ônus da Prova 1. Da Aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) A relação jurídica estabelecida entre as partes, que envolve a promessa de compra e venda de uma cota de multipropriedade imobiliária para fins de uso de lazer e recreação, configura uma típica relação de consumo. Os autores, na condição de promissários compradores, são os destinatários finais do produto, e a requerida, como incorporadora e vendedora, atua como fornecedora, enquadrando-se nas definições dos artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor. Ainda que a requerida tenha argumentado que a aquisição da multipropriedade teria um viés de investimento, afastando a aplicação do CDC , a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça adota a "Teoria Finalista Mitigada" ou "Aprofundada". Por essa teoria, o CDC pode ser aplicado mesmo quando o adquirente não é o destinatário final econômico do produto, mas se encontra em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica ou fática em relação ao fornecedor. A multipropriedade, embora possa oferecer a possibilidade de locação ou intercâmbio, é fundamentalmente adquirida para a fruição pessoal de períodos de lazer. A complexidade inerente ao mercado imobiliário e a desproporção de poder entre o consumidor individual e a grande incorporadora evidenciam a vulnerabilidade dos autores, justificando plenamente a incidência das normas consumeristas. Portanto, é aplicável o Código de Defesa do Consumidor ao presente caso, com todas as suas implicações legais. 2. Da Inversão do Ônus da Prova A decisão interlocutória que inverteu o ônus da prova em favor dos autores encontra-se em conformidade com o art. 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor. A inversão do ônus da prova não é uma medida automática, mas é cabível quando presentes a verossimilhança das alegações do consumidor ou sua hipossuficiência. No caso em tela, a verossimilhança das alegações dos autores é evidente, corroborada pela prova documental, como o contrato que estabelece prazos de entrega , a ficha financeira que demonstra os pagamentos realizados , e o vídeo e informações do site que indicam que a construção da unidade sequer foi iniciada. Adicionalmente, a hipossuficiência dos autores, não apenas sob o aspecto econômico, mas principalmente sob o técnico e informacional, é manifesta. A requerida, como incorporadora, detém o controle e todas as informações técnicas sobre o andamento da obra, os cronogramas, os custos e os motivos dos atrasos. Essa disparidade de acesso às informações e aos meios de prova justifica a inversão do ônus probatório, visando ao reequilíbrio processual entre as partes. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre a importância da "paridade de tratamento" e a necessidade de equilibrar as posições dos litigantes em conflito, inclusive com a inversão do ônus da prova. Desse modo, a inversão do ônus da prova foi corretamente aplicada e deve ser mantida, cabendo à requerida o ônus de comprovar a inexistência do atraso ou a ocorrência de fatos excludentes de sua responsabilidade. C. Do Mérito 1. Do Inadimplemento Contratual por Atraso na Entrega da Obra O contrato de promessa de compra e venda estabeleceu a data de 31 de julho de 2021 para a conclusão da obra ("Habite-se") e 31 de janeiro de 2022 para a entrega da unidade autônoma e da fração de tempo aos promissários compradores. O mesmo instrumento previu um prazo de tolerância de 180 (cento e oitenta) dias, o que estenderia o prazo final para entrega da unidade para 30 de julho de 2022. Os autores comprovaram que, até a data da propositura da ação (maio de 2024), a unidade adquirida sequer havia sido iniciada, conforme vídeo amplamente divulgado e informações do próprio site da requerida. Tal situação demonstra um atraso superior a dois anos em relação ao prazo final, já considerando o período de tolerância. A requerida, em sua defesa, alegou que o atraso se deu por motivos de caso fortuito e força maior, especialmente em razão da pandemia da COVID-19, da inflação de insumos, da alta da taxa Selic e da crise no setor da construção civil. Apontou, ainda, a existência de cláusula contratual que permite a prorrogação do cronograma de obras em situações excepcionais, incluindo "epidemia ou quarentena", "greve(s) no setor da construção" e "falta comprovada de materiais". No entanto, a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais de Justiça estaduais, como o TJSP e o TJDFT (Apelação nº 1017055-91.2021.8.26.0007 e 0029683-41.2013.8.07.0007), tem consolidado o entendimento de que eventos como escassez de mão de obra, aumento de custos de materiais, entraves burocráticos e até mesmo as consequências econômicas gerais de uma pandemia (especialmente quando as atividades da construção civil não foram totalmente suspensas ou limitadas por ato governamental) são considerados riscos inerentes à atividade empresarial do incorporador. Tais eventos não configuram fortuito externo apto a afastar a responsabilidade do fornecedor, pois são previsíveis e fazem parte do risco do negócio. Ainda que o contrato preveja a prorrogação por força maior, a alegação genérica de impactos da pandemia e da crise econômica não se mostra suficiente para justificar um atraso tão prolongado e a completa ausência de início da construção da unidade específica dos autores. A requerida, com o ônus da prova invertido, não logrou êxito em demonstrar de forma cabal e específica que esses eventos impactaram diretamente a ponto de impedir o início da construção da unidade dos autores por mais de dois anos, nem que agiu de forma diligente para mitigar os efeitos de tais eventos. A conduta da requerida em não entregar o imóvel no prazo contratual, já considerando o período de tolerância, e a ausência de justificativa válida para a inexecução da obra na unidade dos autores, configuram seu inadimplemento contratual exclusivo. 2. Da Rescisão Contratual e Restituição dos Valores Pagos Diante do inadimplemento contratual exclusivo da requerida, a rescisão do contrato de promessa de compra e venda é medida que se impõe. A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao editar a Súmula 543, pacificou o entendimento sobre a restituição de valores em casos de resolução de contratos de promessa de compra e venda de imóveis submetidos ao Código de Defesa do Consumidor. A Súmula estabelece que, "Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento". Uma vez configurada a culpa exclusiva da requerida pelo atraso na entrega da obra, os autores fazem jus à restituição integral dos valores efetivamente pagos. Isso significa que não há que se falar em retenção de qualquer percentual a título de cláusula penal ou comissão de corretagem, pois essas deduções são aplicáveis apenas quando a rescisão ocorre por culpa do comprador. Os autores informaram ter pago R$ 34.442,50 e requereram a restituição de R$ 38.238,41, já corrigidos. O valor a ser restituído corresponderá à totalidade dos valores efetivamente pagos pelos autores, devidamente corrigidos monetariamente desde cada desembolso e acrescidos de juros de mora. A restituição deve ocorrer de forma imediata, em parcela única, sendo abusivas as cláusulas contratuais que preveem a devolução parcelada ou somente ao término da obra. 3. Da Multa Contratual (Cláusula Penal) Os autores pleitearam a condenação da requerida ao pagamento de multa contratual de 1% (um por cento) ao mês pelos 22 (vinte e dois) meses de atraso, calculada sobre o valor de R$ 38.238,41, totalizando R$ 8.412,45. Fundamentaram seu pedido no art. 43-A, § 1º, da Lei nº 13.786/2018. O contrato prevê, em sua Cláusula Vigésima Terceira , uma indenização de 1% (um por cento) ao mês, pro rata die, sobre o valor efetivamente pago à promitente vendedora, para cada mês de atraso, caso a entrega do imóvel se estenda por prazo superior a 180 dias e o promissário comprador, adimplente, não deseje optar pela resolução (rescisão) do contrato. Por outro lado, a Cláusula Vigésima Primeira, Parágrafo Único , estabelece que, em caso de rescisão da avença por culpa exclusiva da promitente vendedora, esta devolverá a integralidade dos valores recebidos, acrescidos de uma cláusula penal de 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da venda. Em contratos de consumo, o princípio da isonomia e da reciprocidade impõe que as penalidades previstas para o inadimplemento do consumidor sejam aplicadas de forma similar ao fornecedor, em caso de sua mora. Se o contrato prevê multa de 25% sobre o valor pago para o caso de rescisão por culpa do comprador , a aplicação de multa moratória de 1% ao mês sobre o valor pago, em favor dos autores, pelo atraso na entrega, mostra-se equitativa e razoável. Considerando que o atraso na entrega da obra se deu por culpa exclusiva da requerida, e que os autores pleiteiam a rescisão do contrato cumulada com a multa, a aplicação da penalidade de 1% ao mês sobre os valores pagos, pelo período de 22 meses de atraso, é compatível com o equilíbrio contratual e a justa reparação dos danos sofridos. O cálculo dos autores sobre R$ 38.238,41 para 22 meses resulta em R$ 8.412,45, montante que se mostra proporcional ao dano decorrente da mora da requerida. Assim, a requerida deve ser condenada ao pagamento da multa contratual de 1% (um por cento) ao mês sobre o valor de R$ 38.238,41, pelo período de 22 (vinte e dois) meses de atraso, totalizando R$ 8.412,45. 4. Dos Danos Morais Os autores pleitearam indenização por danos morais no valor de R$ 15.000,00, em razão da frustração, do abalo psicológico e do sofrimento causados pela conduta da requerida, além da aplicação da teoria do desvio produtivo do consumidor. O atraso prolongado e injustificado na entrega de um imóvel, que se estende por mais de dois anos além do prazo de tolerância, e a constatação de que a unidade sequer foi iniciada, ultrapassam o mero dissabor ou aborrecimento cotidiano. A expectativa de adquirir um bem imóvel, que muitas vezes representa um investimento de vida e a realização de um sonho, quando frustrada por culpa exclusiva do fornecedor, gera angústia, ansiedade e desequilíbrio emocional que configuram dano moral passível de indenização. Ademais, a situação vivenciada pelos autores se enquadra na teoria do "desvio produtivo do consumidor", que reconhece como dano indenizável o tempo vital que o consumidor é obrigado a desperdiçar para resolver problemas criados pelo fornecedor em virtude de sua má-prestação de serviço. A necessidade de os autores buscarem o Poder Judiciário, acompanhar o processo e lidar com a inércia da requerida na entrega do empreendimento, demonstra um desvio significativo de seu tempo e energia. A existência de mais de 290 processos semelhantes tramitando no Tribunal de Justiça do Ceará e a multa de R$ 12 milhões aplicada pelo DECON/MPCE à requerida por atrasos na entrega de empreendimentos corroboram a conduta reiterada e a má-fé da empresa, reforçando a gravidade do dano e a necessidade de reparação. Considerando a extensão do dano, a conduta da requerida, a capacidade econômica das partes e o caráter pedagógico e punitivo da indenização, o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a título de danos morais mostra-se razoável e proporcional. D. Das Cláusulas Abusivas (Nulidade) 1. Nulidade de Cláusulas Abusivas (Retenção de Valores, Parcelamento da Devolução, Eleição de Foro) Os autores pleitearam a declaração de nulidade de cláusulas contratuais consideradas abusivas, especificamente as que tratam da retenção de valores, do parcelamento da devolução e da eleição de foro. No que tange à retenção de valores, o contrato prevê a dedução de 25% do montante pago e a integralidade da comissão de corretagem (6%) em caso de rescisão por culpa do promissário comprador. Contudo, conforme amplamente fundamentado, a rescisão do presente contrato se dá por culpa exclusiva da requerida. Nessas circunstâncias, a Súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça é clara ao determinar a restituição integral dos valores pagos ao promitente comprador. Assim, as cláusulas de retenção de valores tornam-se inaplicáveis, não sendo necessária sua declaração de nulidade, mas sim sua ineficácia diante do caso concreto. Quanto ao parcelamento da devolução, o contrato, em sua Cláusula Vigésima, Parágrafo Sexto , prevê que a restituição de valores remanescentes ao promissário comprador (em caso de rescisão por sua culpa) seria realizada em parcela única após 180 dias da data do desfazimento do contrato. Tal disposição, em relações de consumo, é considerada abusiva e contrária ao entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Ceará, que exigem a restituição imediata dos valores pagos, em parcela única, independentemente da parte que deu causa à rescisão. No que se refere à eleição de foro, a Cláusula Sexagésima Segunda do contrato estabelece o foro da Comarca de Fortaleza/CE. Conforme analisado em preliminar, embora em contratos de adesão a cláusula de eleição de foro possa ser afastada se demonstrar hipossuficiência ou dificuldade de acesso ao Poder Judiciário para o consumidor , no presente caso, os autores são domiciliados na própria Comarca de Fortaleza/CE. Portanto, não há qualquer prejuízo ou dificuldade de acesso à justiça, e a cláusula se mantém válida e eficaz. Diante do exposto, a cláusula contratual que prevê o parcelamento da restituição de valores será declarada nula. As cláusulas de retenção de valores são inaplicáveis diante da culpa exclusiva da requerida. A cláusula de eleição de foro é válida no caso concreto. E. Da Tutela de Urgência A decisão interlocutória anterior deferiu a tutela de urgência pleiteada pelos autores, determinando a suspensão do pagamento das parcelas vincendas do contrato e a abstenção da requerida de incluir o nome dos autores em cadastros restritivos de crédito. O deferimento da tutela de urgência foi justificado pela presença dos requisitos do fumus boni iuris (probabilidade do direito) e do periculum in mora (perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo). Com o julgamento do mérito, que reconhece o inadimplemento contratual exclusivo da requerida e o direito dos autores à rescisão e restituição integral dos valores, a probabilidade do direito se confirmou. O perigo de dano, consubstanciado na continuidade das cobranças e na possível negativação do nome dos autores, permanece presente até a efetiva rescisão e cumprimento da obrigação de restituir. A confirmação da tutela de urgência é uma consequência lógica da procedência dos pedidos principais, garantindo que os autores não sejam ainda mais prejudicados pela conduta da requerida durante a tramitação processual. A aplicação de multa diária para o caso de descumprimento da medida liminar é um mecanismo legítimo para assegurar a efetividade da decisão judicial. Assim, a tutela de urgência anteriormente deferida deve ser confirmada em todos os seus termos. III. DISPOSITIVO Ante o exposto, e por tudo o mais que dos autos consta, com fundamento nos artigos 487, inciso I, do Código de Processo Civil, e nos termos da fundamentação supra, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTES os pedidos formulados na Ação de Rescisão Contratual c/c Devolução dos Valores Pagos e Tutela Provisória de Urgência ajuizada por Tone Wagner Viana da Silva e Tathiane Farias de Carvalho em face de Residence Club S/A (Venture Capital Participações e Investimentos S/A), para: ACOLHER a preliminar de impugnação à justiça gratuita, restabelecendo a obrigação dos autores de arcar com as custas processuais, em conformidade com o Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará nos autos do Agravo de Instrumento nº 0629107-61.2024.8.06.0000. REJEITAR a preliminar de incompetência do juízo. DECLARAR RESCINDIDO o Contrato Particular de Promessa de Venda e Compra de Fração de Tempo de Imóvel em Multipropriedade nº H1-14778, por culpa exclusiva da requerida. CONDENAR a requerida a restituir aos autores a integralidade dos valores efetivamente pagos, que totalizam R$ 34.442,50 (trinta e quatro mil, quatrocentos e quarenta e dois reais e cinquenta centavos) , devidamente corrigidos monetariamente pelo índice INCC (Índice Nacional da Construção Civil) desde a data de cada desembolso até a data da citação, e, a partir de então, pelo IPCA, e acrescidos de juros de mora de 1% (um por cento) ao mês desde a citação, a ser apurado em fase de liquidação de sentença. A restituição deverá ocorrer de forma imediata e em parcela única. DECLARAR NULA a cláusula contratual que prevê o parcelamento da restituição dos valores pagos, por ser abusiva em face da legislação consumerista. CONDENAR a requerida ao pagamento de multa contratual de 1% (um por cento) ao mês sobre o valor de R$ 38.238,41 (trinta e oito mil, duzentos e trinta e oito reais e quarenta e um centavos), pelo período de 22 (vinte e dois) meses de atraso, totalizando R$ 8.412,45 (oito mil, quatrocentos e doze reais e quarenta e cinco centavos), com correção monetária pelo IPCA a partir do ajuizamento da ação e juros de mora de 1% (um por cento) ao mês a partir da citação. CONDENAR a requerida ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), corrigidos monetariamente pelo IPCA a partir da data desta sentença (Súmula 362 do STJ) e acrescidos de juros de mora de 1% (um por cento) ao mês a partir da citação. CONFIRMAR a tutela de urgência anteriormente deferida, mantendo a suspensão da exigibilidade das parcelas do contrato e a proibição de negativação do nome dos autores, sob pena de multa diária de R$ 500,00 (quinhentos reais) em caso de descumprimento, limitada a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). Considerando a sucumbência mínima dos autores, CONDENO a requerida ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios, que fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor total da condenação, nos termos do art. 85, § 2º, do Código de Processo Civil. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. FORTALEZA, data de inserção no sistema. Juiz(a) de Direito Assinatura Digital
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