Processo nº 5701448-75.2023.8.09.0024
ID: 313754901
Tribunal: TJGO
Órgão: Caldas Novas - 1ª Vara Cível
Classe: DESPEJO POR FALTA DE PAGAMENTO CUMULADO COM COBRANçA
Nº Processo: 5701448-75.2023.8.09.0024
Data de Disponibilização:
02/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
ROBERTO MARINO
OAB/SP XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS
COMARCA DE CALDAS NOVAS - 1ª VARA CÍVEL
E-mail e WhatApp do Gabinete: gab1vcivelcaldas@tjgo.jus.br - (64) 3454-9634
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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS
COMARCA DE CALDAS NOVAS - 1ª VARA CÍVEL
E-mail e WhatApp do Gabinete: gab1vcivelcaldas@tjgo.jus.br - (64) 3454-9634
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Processo nº: 5701448-75.2023.8.09.0024
Demandante(s): ESPÓLIO de PAULO JOSÉ MOREIRA BITTENCOURT PORTO
Demandado(s): Zeferino Quinta De Oliveira
SENTENÇA/MANDADO/OFÍCIO
Este documento possui força de MANDADO/OFÍCIO, nos termos dos artigos 136 ao 139-A do Código de Normas e Procedimentos do Foro Judicial, da Corregedoria do Estado de Goiás, devendo a Escrivania afixar selo de autenticidade na 2ª via, se necessário, para cumprimento do ato.
1. RELATÓRIO.
Trata-se de ação movida pelo Espólio de Paulo José Moreira Bittencourt Porto, representado por sua inventariante, Miria Rodrigues de Godoy Bittencourt Porto, em face de Zeferino Quinta de Oliveira e Vinício Alves de Oliveira, todos qualificados nos autos.
Alega-se que, enquanto ainda vivo o autor da herança, celebrou com os réus contrato de arrendamento tendo por objeto área rural correspondente a 145,2 ha da propriedade denominada “Fazenda Dorinha”, sendo o arrendante comodatário da respectiva área e tendo o contrato de arrendamento anuência dos proprietários do imóvel, Paulo Washington Bittencourt Porto e Violeta Dorinha Moreira Bittencourt Porto. Alega que o contrato possuía prazo determinado, vigendo de abril de 2019 a abril de 2023 e, por força de sua cláusula 9ª, seria irrevogável e transmissível aos herdeiros das partes contratantes; e que o locativo fora estabelecido em 2.100 sacas (70 sacas por alqueire), referentes à safra colhida no primeiro semestre de 2023, as quais deveriam ser depositadas no Armazém Geral sob o nome do arrendante. Alega que, no entanto, no termo do pagamento, já falecido o autor, sua inventariante fora surpreendida com a informação, dada pelos arrendatários, de que não pagariam o aluguel avençado, pois haviam assinado um novo contrato de arrendamento, datado de 10.04.2022, sobre a mesma área, assinado pela herdeira Rosária Maria Bittencourt Porto Piovesan, que se identificara como inventariante do Espólio ora autor. Alega que o referido contrato é nulo, pelo fato de haver contrato original com o mesmo objeto em pleno vigor e pela ilegitimidade da citada herdeira em contrair obrigações em nome do Espólio, não sendo sua inventariante; nem tampouco em nome do espólio dos proprietários do imóvel, Paulo Washington e Violeta Dorinha, segundo, inclusive, reconhecido por decisão judicial, neste último caso. Sustenta a validade e a vigência do contrato original firmado pelas partes, a ilegitimidade da herdeira Rosária para pactuar em nome dos espólios, a impossibilidade do objeto do contrato assinado pela herdeira, e sua nulidade absoluta. Alega que os requeridos infringiram o contrato por eles firmado, pelo que postula a declaração da rescisão contratual por culpa dos réus, bem como a sua condenação à restituição da área arrendada, e ao pagamento de indenização do valor da safra devida, acrescido dos consectários legais, bem como de indenização pela eventual indisponibilização da área para plantio após o encerramento do prazo contratual, acrescido dos consectários legais.
Decisão de evento 04 recebeu a inicial e determinou a citação dos requeridos.
Citados, os requeridos apresentaram contestação (evento 48), na qual alegam que seriam arrendatários da citada área desde 25.05.2011, nela realizando exploração agrícola por mais de 13 anos, portanto. Alegam que a área arrendada corresponde a 411,4 ha, sendo dividida em duas glebas, uma, de 256,52 ha, e outra, citada na inicial, de 145,2 ha. Alegam que nunca tiveram qualquer desavença com o arrendante, Paulo José, nem com o comodante, Paulo Washington, seu pai; e que com eles celebraram contrato com vigência entre 25.05.2011 e 25.05.2021. Alegam que, tendo o comodante falecido em 07.08.2019 e o arrendante falecido em 02.09.2021, o contrato de comodato perdeu a eficácia; ao passo que o arrendamento, cujo termo final ocorrera em 25.05.2021, também se encontrava finalizado. Alegam que, no entanto, por ocasião do pagamento da safra 2021/2022, a inventariante Miria Rodrigues de Godoy Bittencourt Porto exigiu dos réus o pagamento, diretamente a ela, do locativo correspondente à área de 145,2 ha, citada na inicial, o que fora feito pelos requeridos, que lhe repassaram a quantia de R$376.467,00 referentes à área em testilha; R$28.090,00, referentes a uma área “cujo contrato é apenas verbal”; e R$138.147,00, referentes a 25% da área de 256,52 ha. Alegam que, inconformados, os demais herdeiros do Espólio autor, Rosária, Dora, e Luís, exigiram-lhes o pagamento de 25% da área total, tendo, inclusive, a herdeira Rosária se apresentado como inventariante, nos termos de escritura pública. Em razão disso, alegam que efetuaram o pagamento na proporção solicitada, transferindo R$215.833,20 para cada um dos três herdeiros. Alegam que, ao assim procederem, acabaram por pagar 1575 sacas a mais que o avençado, o que lhes causou enorme prejuízo. Alegam que o contrato de comodato tem natureza personalíssima, sendo extinto com a morte do comodante – ocorrida em 2019 – razão pela qual o contrato que fundamenta a inicial seria nulo. Pleiteiam a suspensão do processo até a resolução da disputa entre os herdeiros, em trâmite pela 2ª Vara da Família e Sucessões da Comarca de São José dos Campos/SP, consoante notificação extrajudicial que lhes fora enviada pelo Espólio. Alegam que depositaram em armazém as sacas referentes ao locativo, sendo que as referentes às safras de 2022/2023 e 2023/2024 foram vendidas para evitar deterioração, sendo o produto da venda depositado em conta judicial vinculada ao processo de sobrepartilha dos bens deixados pelo autor, ao que a inventariante teria expressamente anuído. Sustentam sua adimplência contratual e questionam a validade do contrato e da ata notarial juntados à inicial. Ao final, pugnam pela improcedência dos pedidos iniciais e pela condenação do autor ao pagamento de multa por litigância de má-fé.
Houve réplica (evento 51).
Instadas as parte a especificarem as provas que pretendessem produzir, a parte autora pugnou pelo julgamento antecipado da lide (evento 56), ao passo que os requeridos postularam a juntada de documentos (comprovantes de pagamento e de depósito judicial), a oitiva de testemunhas, a realização de perícia grafotécnica no contrato de comodato que instrui a inicial, a fim de se verificar a autenticidade da assinatura nele aposta; e a realização de perícia na propriedade, a fim de se demonstrar a ausência de danos ao imóvel rural durante o período de arrendamento (evento 57).
Decisão de evento 59 saneou o feito, delimitando os pontos controvertidos e fixando o ônus da prova, facultando à autora prazo para manifestação sobre os documentos juntados pelos réus no evento 57; indeferindo o pedido de produção de prova pericial formulado pelos réus; determinando a juntada da integralidade do contrato de comodato para viabilizar a conveniência do deferimento de prova pericial grafotécnica; e postergando o exame da conveniência do deferimento da prova testemunhal pleiteada.
Em manifestação de evento 63 a autora se manifestou sobre os documentos juntados no evento 57, e em manifestação de evento 64, procedeu à juntada da íntegra do contrato de comodato.
Sobreveio nova manifestação sobre os documentos juntados no evento 57, com a formulação de novos pedidos pela parte autora (evento 66).
Em manifestação de evento 67, Rosária Maria Moreira Bittencourt Porto Piovesan e Dora Maria Moreira Bittencourt Porto requereram sua habilitação no feito enquanto terceiras interessadas.
Despacho de evento 69 instou as partes a se manifestarem sobre a petição de evento 67.
Em manifestação de evento 73, a autora pugnou pela rejeição do pedido de evento 67; ao passo que os requeridos se manifestaram favoravelmente (evento 74), ao que a parte autora, espontaneamente, apresentou réplica (evento 76).
Os autos vieram conclusos.
É o relatório. Decido.
2. FUNDAMENTAÇÃO
Bloqueio da manifestação de evento 65
Inicialmente, determino o bloqueio da manifestação de evento 65, eis que protocolada por engano no presente feito, segundo declarado pela própria parte (evento 66).
Admissibilidade da intervenção de terceiros (evento 67)
A seguir, considerando que as peticionantes do evento 67 são irmãs e coerdeiras do espólio autor, reúnem o interesse jurídico necessário a lhes viabilizar a intervenção neste feito na qualidade de assistentes simples do polo passivo.
Destaco, por oportuno, que, contrariamente ao afirmado na manifestação de evento 73, a decisão de evento 32 não rejeitou o pedido de intervenção formulado pelas mesmas peticionantes, mas, tão-somente, reconheceu a ausência de formulação de pedido de intervenção de terceiros e a diversidade da matéria tratada na petição bloqueada de evento 31 e a presente lide, a saber:
Ainda, evidencio que a petição das terceiras alegadamente interessadas, herdeiras do Espólio de Espólio de Paulo Washington Bittencourt Porto, protocolada no evento 31 tem o condão de causar tumulto processual, visto que além da notícia da celeuma, foram anexados 753 páginas de documentos extraidas de incidente processual de remoção de inventariante, distribuído por dependência ao processo de inventário autos nº 1019130-71.2023.8.26.0577, em trâmite na 2ª Vara de Família e Sucessões de São José dos Campos, do Tribunal de Justiça Estadual de São Paulo.
Com efeito, determino o bloqueio da petição de evento 31, uma vez que não vislumbro utilidade nos referidos documentos para esclarecimento da presente lide, a qual atine precipuamente a pretensão de haver a resolução do contrato por inadimplência, retomada do bem e indenização pela safra devida e uso do imóvel.
Consigno que não há pedido de intervenção das terceiras alegadamente interessadas para integrarem a lide na condição de assistentes dos requeridos, bem como que os pedidos formulados para obstar o levantamento de eventual produto de arresto ou decorrente de pagamento realizado pelos requeridos, com ulterior transferência de valores para o juízo da 2ª Vara de Família da Comarca de São José dos Campos-SP, nos autos da Ação de Sobrepartilha nº 106130-71.2023.8.26.0577, para que, naqueles autos, discuta-se a quem pertence o montante e especialmente, a validade do contrato apresentado pela Requerida nesta ação, deverão ser remetidos às vias ordinárias, mormente a ausência de decisão judicial prévia acerca da ausência de higidez do contrato de arrendamento apresentado pelo autor, ou ainda declaração de nulidade.
Diversa, no entanto, é a postulação de evento 67, na qual as intervenientes expressamente requerem sua “habilitação enquanto terceiras interessadas”.
Por tais, fundamentos, portanto, determino a habilitação das intervenientes Rosária Maria Moreira Bittencourt Porto Piovesan e Dora Maria Moreira Bittencourt Porto, na qualidade de assistentes simples do polo passivo, devendo receber o processo no estado em que se encontra (art. 119, parágrafo único, do Código de Processo Civil).
Desnecessidade da produção de prova pericial grafotécnica e testemunhal
Em seguida, uma vez juntada a íntegra do contrato de comodato que lastreia o pedido inicial (evento 64), reputo desnecessária a produção tanto de prova pericial grafotécnica quanto de prova testemunhal, uma vez que, em cotejo ao citado documento, reputo tratar-se a controvérsia de questão unicamente de direito, a dispensar a realização de ulterior dilação probatória.
Demais disso, consigno que, no Brasil vige o chamado sistema da "persuasão racional" ou "livre convencimento motivado", em função do qual o destinatário da prova dos autos é o Juiz, que pode formar seu convencimento a partir dos elementos que julgar necessários ao deslinde da controvérsia, contanto que o faça de maneira motivada.
Outra não é a disciplina do art. 370 do Código de Processo Civil, que preceitua, em seu caput, que "caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito" e cujo parágrafo único, em fiel congruência aos ditames da eficiência processual consagrada constitucionalmente e no art. 8º do mesmo Código, estabelece que "o juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias."
De maneira correlata, o Superior Tribunal de Justiça possui o consolidado entendimento de que é lícito ao Juízo indeferir as provas que reputar desnecessárias ao julgamento do feito, a saber:
"AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PLANO DE SAÚDE. NEGATIVA DE COBERTURA DE TRATAMENTO DOMICILIAR (HOME CARE). CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. SUFICIÊNCIA DAS PROVAS. PRINCÍPIO DA PERSUASÃO RACIONAL. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ. DANO MORAL. QUANTUM INDENIZATÓRIO. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO PROVIDO. DECISÃO RECONSIDERADA. AGRAVO CONHECIDO PARA NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL.
1. O agravo em recurso especial deve ser conhecido, pois efetivada a dialeticidade recursal.
2. Não há cerceamento de defesa quando o julgador, ao constatar nos autos a existência de provas suficientes para o seu convencimento, indefere o pedido de produção de prova. Cabe ao juiz decidir sobre os elementos necessários à formação de seu entendimento, pois, como destinatário da prova, é livre para determinar as provas necessárias ou indeferir as inúteis ou protelatórias, motivadamente.
3. No caso, para se concluir que a prova cuja produção fora requerida pela parte é ou não indispensável à solução da controvérsia, seria necessário se proceder ao reexame do conjunto fático-probatório, providência incompatível com a via estreita do recurso especial, nos termos da Súmula 7/STJ.
4. É possível a revisão do montante da indenização por danos morais nas hipóteses em que o quantum fixado for exorbitante ou irrisório, o que, no entanto, não ocorreu no caso em exame, pois o valor da indenização, arbitrado em R$ 7.000,00 (sete mil reais), não é excessivo nem desproporcional aos danos sofridos em razão da negativa injustificada de cobertura de tratamento domiciliar (home care) de doença acobertada pelo plano de s aúde.
5. Agravo interno provido para reconsiderar a decisão agravada e, em novo exame, conhecer do agravo para negar provimento ao recurso especial." (STJ, AgInt no AREsp n. 2.014.748/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 4/4/2022, DJe de 6/5/2022.)
No mesmo sentido, o E. Tribunal de Justiça de Goiás:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA C/C OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, COM PEDIDO DE LIMINAR. PEDIDO DE PROVA ORAL INDEFERIDO. DESNECESSIDADE DA OITIVA DA PARTE AUTORA . CERCEAMENTO DO DIREITO DE DEFESA NÃO CONFIGURADO. 1. O magistrado é o destinatário das provas, cabendo a ele determinar a realização daquelas que entender necessárias ao deslinde da controvérsia, indeferindo aquelas denecessárias ou inúteis ao processo, nos termos do artigo 370, caput, e parágrafo único, do Código de Processo Civil, não caracterizando tal conduta cerceamento do direito de defesa das partes. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E DESPROVIDO.” (TJ-GO - AI: 06206322320198090000, Relator.: Des(a). FÁBIO CRISTÓVÃO DE CAMPOS FARIA, Data de Julgamento: 02/03/2020, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 02/03/2020).
Por tais fundamentos, portanto, indefiro o pedido de produção de prova pericial grafotécnica e de prova oral formulados pelas partes.
Mérito
Cinge-se a controvérsia em estabelecer: a) a validade do contrato de comodato anexo à inicial; b) a ocorrência de inadimplemento do contrato de arrendamento pelos requeridos; e c) a ocorrência de eventual dano na propriedade arrendada durante o período de arrendamento.
Como se sabe, o contrato de comodato “é o contrato pelo qual alguém (o comodante) entrega alguma coisa móvel inconsumível, ou imóvel, a outrem (o comodatário), para que, gratuitamente, use dela por algum tempo, e depois a restitua.” (MOREIRA ALVES, José Carlos, Direito Romano, 15ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2012, p. 489).
A doutrina majoritária sói atribuir ao comodato a natureza personalíssima ou intuitu personae, a exemplo de Flávio Tartuce (Manual de Direito Civil, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2021, p. 735), Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil Brasileiro, v. 3 – Contratos e Atos Unilaterais, 22ª ed., São Paulo, SaraivaJur, 2025, p. 323) Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (Novo Curso de Direito Civil, v. 4 – Contratos, 6ª ed., São Paulo, SaraivaJur, 2025, p. 360), dentre outros.
O entendimento é corroborado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a saber:
"RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE DE IMÓVEL CEDIDO EM COMODATO POR PRAZO DETERMINADO (CEM ANOS). NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL DO COMODATÁRIO SOBRE O DESINTERESSE DO COMODANTE EM MANTER A AVENÇA, POR QUEBRA DE CONFIANÇA E/OU DESVIO DE FINALIDADE. POSSE PRECÁRIA. ESBULHO CONFIGURADO.
1. À luz dos artigos 128 e 460 do CPC de 1973, o vício de julgamento extra petita não se vislumbra na hipótese em que o magistrado, adstrito às circunstâncias fáticas (causa de pedir remota) e ao pedido constantes nos autos, procede à subsunção normativa com amparo em fundamentos jurídicos diversos dos esposados pelo autor e refutados pelo réu.
2. Como de sabença, o comodato é espécie de empréstimo gratuito, mediante o qual o comodante cede, temporariamente, ao comodatário um bem infungível, para fins de uso, assumindo este último o dever de conservar a coisa para posterior restituição.
3. A temporariedade é uma das características estruturais do comodato, uma vez consabido que a entrega gratuita de bem sem intenção de restituição caracteriza o contrato de doação e não o de empréstimo. Não há, portanto, que se falar em comodato vitalício ou perpétuo.
4. Celebrado comodato por prazo certo, não poderá o comodante, em regra, reclamar a restituição do bem antes do decurso do lapso assinalado. Por outro lado, advindo o termo contratual, exsurgirá o dever do comodatário de restituir a coisa, sob pena de configuração automática da mora, não havendo, portanto, necessidade de interpelação judicial ou extrajudicial do devedor (mora ex re).
Nessa hipótese, a não devolução da coisa emprestada no prazo fixado constitui a posse precária do comodatário e, consequentemente, caracteriza o esbulho ensejador da pretensão reintegratória do comodante.
5. De outro giro, cuidando-se de comodato precário - isto é, sem termo certo -, o comodante, em regra, somente poderá invocar o direito de retomada (hipótese de resilição unilateral ou denúncia) após o transcurso do intervalo suficiente à utilização do bem, pelo comodatário, conforme sua destinação. A constituição do devedor em mora reclamará, no caso, a prévia notificação judicial ou extrajudicial (mora ex persona), com a estipulação de prazo razoável para a restituição da coisa, cuja inobservância implicará a caracterização do esbulho autorizador do interdito possessório.
6. A superveniência de necessidade imprevista e urgente do comodante autoriza, entretanto, a retomada do bem objeto do comodato sem a observância de qualquer interregno. Ou seja, independentemente do tipo de comodato (com ou sem prazo certo), a restituição da coisa poderá ser requerida pelo comodante, a qualquer tempo, quando verificada necessidade imprevista e urgente devidamente certificada pelo Judiciário.
7. No caso concreto, malgrado não tenha sido indicada, na notificação extrajudicial, necessidade imprevista e urgente para retomada do bem, é certo que a fixação de lapso centenário, que supera a expectativa média de vida do ser humano, vai de encontro à temporariedade do comodato, não podendo subsistir a cláusula contratual que possui o condão de transmudar a declaração de vontade do comodante em doação destinada à pessoa que sequer mantém vínculo com a instituição religiosa que se pretendia beneficiar.
8. Assim, suprimido o prazo fixado, a constatação da precariedade da posse do comodatário (e, consequentemente, a configuração de esbulho) reclamaria a aferição do decurso de lapso razoável para a utilização do bem emprestado conforme sua destinação.
9. Contudo, à luz das conclusões perfilhadas pelas instâncias ordinárias - com base nas provas produzidas nos autos -, sobressai o fato de que o pastor/comodatário, abusando da confiança do comodante, procedeu ao uso do imóvel em flagrante dissonância com o propósito da celebração da avença, qual seja, a realização de cultos da Igreja do Evangelho Quadrangular. De fato, ao se desligar da igreja, logo após o pacto, e ministrar cultos em outra instituição religiosa, o pastor/comodatário incorreu em evidente quebra de confiança, o que atinge a boa-fé do negócio jurídico, configurando causa apta a fundamentar a resilição unilateral (denúncia) promovida pelo comodante.
10. Desse modo, além da temporariedade, a natureza personalíssima e o caráter fiduciário do comodato também foram vulnerados pela conduta desleal perpetrada pelo comodatário, que não atendeu ao exato sentido da vontade demonstrada pelo comodante. Inteligência dos artigos 114 e 582 do Código Civil.
11. Consequentemente, infere-se a regularidade da resilição unilateral do comodato operada mediante denúncia notificada extrajudicialmente ao comodatário (artigo 473 do Código Civil), pois o "desvio" da finalidade encartada no ato de liberalidade constitui motivo suficiente para deflagrar seu vencimento antecipado e autorizar a incidência da norma disposta na primeira parte do artigo 581 do retrocitado codex, sobressaindo, assim, a configuração do esbulho em razão da recusa na restituição da posse do bem a ensejar a procedência da ação de reintegração.
12. Recurso especial não provido." (REsp n. 1.327.627/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25/10/2016, DJe de 1/12/2016.)
O E. Tribunal de Justiça de Goiás se coaduna ao mesmo entendimento, in verbis:
“APELAÇÃO CÍVEL. ALVARÁ JUDICIAL. CONTRATO DE COMODATO. NATUREZA INTUITO PERSONAE . EXTINÇÃO EM RAZÃO DO FALECIMENTO DO COMODANTE. DETERMINAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS PELO INVENTARIANTE. POSSIBILIDADE (INCLUSIVE EX OFFICIO). HONORÁRIOS RECURSAIS . I- Com o falecimento do comodante e a abertura da sucessão, transmite-se aos herdeiros, desde logo, a posse e domínio da herança, por força da saisine, restando extinto o contrato de comodato, em razão do falecimento do proprietário (contrato intuito personae). II- E dever do magistrado zelar pelo patrimônio inventariado, podendo - e devendo - determinar, inclusive de ofício, que o inventariante preste contas da sua administração a qualquer tempo, como se extrai do art. 618, inciso VII, do CPC. 3 . Deixa-se de aplicar honorários recursais (art. 85, § 11, CPC) quando a sentença não arbitra a verba honorária, em primeiro grau. III- APELAÇÃO CONHECIDA E DESPROVIDA.” (TJ-GO - APL: 02650516620168090137, Relator.: ROBERTO HORÁCIO DE REZENDE, Data de Julgamento: 26/03/2018, 5ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 26/03/2018).
A relevância em se assentar a natureza personalíssima ou intuitu personae do contrato de comodato reside no fato de que, em contratos eivados de tal característica, sobrevindo a morte de um dos contratantes, o contrato se resolve de pleno direito.
Destarte, apenas por tal circunstância, já se verifica a notória improcedência dos pedidos iniciais, eis que a parte autora pretende conferir ultratividade aos efeitos de um contrato intuitu personae em que ambas as partes – comodante e comodatário – são falecidos, o que constitui um evidente non sequitur.
Em específico, se nota que o comodante, Paulo Washington Bittencourt Porto falecera em 07.08.2019; ao passo que sua esposa e coproprietária do bem, Violeta Dorinha Moreira Bittencourt Porto falecera em 09.06.2020; enquanto o comodatário, Paulo José Moreira Bittencourt Porto falecera em 02.09.2021 – estando o contrato de comodato, por força de sua natureza personalíssima, extinto desde tais datas.
Desse modo, extinto o comodato pelo falecimento, primeiro do comodante Paulo Washington, e, a seguir, do comodatário Paulo José, a pretensão autoral não reúne a necessária causa jurídica que lhe outorgue procedência.
Subsiste, então, a questão relativa ao contrato de arrendamento celebrado pelo comodatário.
Isso porque, a teor do disposto nos arts. 23 e 26 do Decreto nº 59.566/66, o contrato de arrendamento rural é transmissível aos herdeiros do arrendante, não sendo, diversamente do que ocorre com o comodato, extinto pelo mero advento da morte.
Nesse mister, a jurisprudência compreende que, considerada a natureza propter rem do contrato de arrendamento rural, o Espólio do proprietário do imóvel ingresse na relação contratual no lugar do arrendante, até o termo do contrato, a saber:
“APELAÇÃO CÍVEl. AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO. CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL FIRMADO COM CO-HERDEIRO, COMODATÁRIO DO IMÓVEL. DEMAIS HERDEIROS QUE AVENTARAM A ILEGITIMIDADE DA PARTE PARA RECEBIMENTO DOS ALUGUEIS APÓS A MORTE DA GENITORA (COMODANTE) . SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA, DECLARANDO A LEGITIMIDADE DO ESPÓLIO PARA RECEBIMENTO DOS ALUGUEIS, NA PESSOA DA INVENTARIANTE. INSURGÊNCIA DO REQUERIDO/COMODATÁRIO. 1. NULIDADE DA SENTENÇA POR CERCEAMENTO DE DEFESA . INOCORRÊNCIA. JUIZ QUE É O DESTINATÁRIO FINAL DAS PROVAS. PRESCINDIBILIDADE DE PRODUÇÃO DE OUTRAS PROVAS NO CASO CONCRETO. 2 . ALEGAÇÃO DE QUE OS EFEITOS DO COMODATO PERMANECEM APÓS O ÓBITO DA PROPRIETÁRIA, DE MODO QUE OS FRUTOS DO ARRENDAMENTO RURAL CABERIAM SOMENTE AO HERDEIRO COMODATÁRIO. SEM RAZÃO. CESSÃO A TITULO GRATUITO DE NATUREZA PERSONALÍSSIMA. EXTINÇÃO DO COMODATO VERBAL COM A MORTE DA COMODANTE . ESPÓLIO QUE É PARTE LEGÍTIMA PARA RECEBIMENTO DOS FRUTOS PROVENIENTES DE ARRENDAMENTO RURAL APÓS A EXTINÇÃO DO COMODATO, E NÃO SOMENTE UM DOS HERDEIROS. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.” (TJ-PR - APL: 00033466620218160077 Cruzeiro do Oeste 0003346-66 .2021.8.16.0077 (Acórdão), Relator.: Tito Campos de Paula, Data de Julgamento: 13/02/2023, 17ª Câmara Cível, Data de Publicação: 13/02/2023).
Dessa forma, no caso em apreço, extinto o contrato de comodato pela morte de suas partes, o Espólio dos proprietários das terras arrendadas, é que se tornou legítimo a receber a contraprestação referente ao contrato de arrendamento rural; e não o Espólio do comodatário/arrendante.
Assim sendo, considerando que os réus realizaram o pagamento à herdeira Rosária Maria Bittencourt Porto Piovesan, na qualidade de inventariante de Paulo Washington Bittencourt Porto e de Violeta Dorinha Moreira Bittencourt Porto, consoante se extrai da escritura pública de inventário extrajudicial colacionada à contestação, não se cogita, pois, do inadimplemento contratual mencionado na inicial.
Extinto o contrato de comodato com a morte das partes e não se cogitando de inadimplemento contratual, fica prejudicado o exame de eventuais perdas e danos decorrentes do mesmo inadimplemento, razão pela qual improcedem, na íntegra, os pedidos iniciais.
3. DISPOSITIVO.
Ante o exposto, com fundamento no art. 487, inciso I, do Código de Processo Civil, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos iniciais.
Pela sucumbência, condeno o autor ao pagamento das custas e despesas processuais, bem como dos honorários advocatícios do patrono dos requeridos, os quais fixo, com fundamento no art. 85, §2º, do Código de Processo Civil, em 10% do valor atribuído à causa.
Interposta apelação, intime-se a parte apelada para contrarrazões em 15 dias (art. 1.010, §1º, do CPC).
Em caso de apelação adesiva, intime-se a parte apelada adesivamente para contrarrazões em 15 dias (art. 1.010, §2º, do CPC).
Na sequência, independente de conclusão (art. 1.010, §3º, do CPC), remetam-se os autos ao egrégio Tribunal de Justiça, com as sinceras homenagens deste juízo.
Oportunamente, arquivem-se os autos.
Caldas Novas, datado e assinado eletronicamente.
Ana Tereza Waldemar da Silva
Juíza de Direito
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