Processo nº 0000314-52.2009.8.10.0138
ID: 329420706
Tribunal: TJMA
Órgão: Vara Única de Urbano Santos
Classe: AçãO PENAL - PROCEDIMENTO ORDINáRIO
Nº Processo: 0000314-52.2009.8.10.0138
Data de Disponibilização:
18/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
ESTADO DO MARANHÃO PODER JUDICIÁRIO - COMARCA DE URBANO SANTOS E-mail: vara1_usan@tjma.jus.br Fone: (98) 3469-1603 Processo n. 0000314-52.2009.8.10.0138 AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃ…
ESTADO DO MARANHÃO PODER JUDICIÁRIO - COMARCA DE URBANO SANTOS E-mail: vara1_usan@tjma.jus.br Fone: (98) 3469-1603 Processo n. 0000314-52.2009.8.10.0138 AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO RÉU: ALDENIR SANTANA NEVES, EX-PREFEITO MUNICIPAL DE URBANO SANTOS DECISÃO Vistos etc. I - RELATÓRIO Trata-se de Ação Penal ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Maranhão em face de ALDENIR SANTANA NEVES, qualificado nos autos como ex-Prefeito do Município de Urbano Santos, imputando-lhe a suposta prática dos crimes tipificados no art. 1º, inciso I, do Decreto-Lei nº 201/67 (apropriação ou desvio de bens ou rendas públicas), no art. 1º da Lei nº 9.613/98 (lavagem de dinheiro) e no art. 299 do Código Penal (falsidade ideológica). A denúncia, fundamentada no Procedimento Investigatório Criminal nº 001/2013-GAECO , narra que os ilícitos teriam sido cometidos no período de 2005 a 2008, "quando ocupava o cargo de prefeito municipal daquela localidade". A acusação detalha um esquema de apropriação de rendas públicas em proveito próprio, evidenciado por movimentações financeiras incompatíveis com os rendimentos declarados pelo réu, depósitos de verbas das prefeituras em suas contas pessoais, e a manutenção de documentos públicos originais em sua residência particular. É o breve relatório. Decido. II - FUNDAMENTAÇÃO A questão a ser analisada de ofício por este Juízo cinge-se à sua competência para processar e julgar a presente demanda. A Constituição Federal, em seu art. 29, inciso X, bem como a Constituição do Estado do Maranhão, em seu art. 81, estabelecem a competência originária do Tribunal de Justiça para processar e julgar os Prefeitos por crimes comuns. Trata-se da prerrogativa de foro por função, uma garantia que não visa a proteger a pessoa do gestor, mas sim a resguardar o livre e independente exercício do cargo público. Da análise dos autos, verifica-se que a própria peça acusatória descreve, de forma inequívoca, um nexo funcional entre os delitos imputados e o cargo de Prefeito Municipal exercido pelo denunciado. A denúncia é explícita ao afirmar que o réu teria se apropriado de rendas públicas e praticado os demais atos ilícitos no período de 2005 a 2008, enquanto estava à frente da gestão municipal de Urbano Santos. As condutas narradas, como a criação de "equipes fantasmas" do Programa Saúde da Família (PSF) para desviar recursos federais, a utilização de recursos da prefeitura para assumir compromissos financeiros pessoais e o desvio de verbas destinadas a programas educacionais, estão intrinsecamente vinculadas às atribuições e responsabilidades do cargo de chefe do Poder Executivo Municipal. Corroborando este entendimento, o Supremo Tribunal Federal, em recente e aprofundada análise sobre a matéria, tem se posicionado pela manutenção da prerrogativa de foro mesmo após a cessação do mandato. Em decisão paradigmática (HC 232.627/DF); o Ministro Gilmar Mendes ressaltou que a prerrogativa serve a "propósitos virtuosos: manter a estabilidade das instituições democráticas e preservar o funcionamento do Estado". VEJAMOS: “DECISÃO: Trata-se de reclamação ajuizada por Eduardo Consentino da Cunha contra decisão proferida pela 10ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Distrito Federal, que recebeu a denúncia oferecida contra o reclamante na Ação Penal nº 1001170-04-2023.4.01.3400. Na petição inicial, o reclamante alegou que a decisão de recebimento da denúncia foi proferida no âmbito de “ação penal destinada a processar a existência de ilícitos supostamente cometidos enquanto o reclamante estava investido no cargo de Deputado Federal e em razão das funções então exercidas”. Aludiu ao recente entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 232.627/DF, defendendo “a persistência do foro por prerrogativa de função quanto a fatos ocorridos exercício do mandato parlamentar, ainda que haja sua perda superveniente por motivos como fim do mandato ou cassação”. Requereu, liminarmente, “a suspensão da Ação Penal nº 1001170- 04.2023.4.01.3400, bem como da citação e do prazo para apresentar resposta à acusação, até a conclusão, pelo Supremo Tribunal Federal, do julgamento do habeas corpus nº 232.627”. Ao final, pugnou pela “a declaração de nulidade da denúncia e do seu recebimento na origem. Tendo em vista que Procuradoria-Geral da República possui a atribuição exclusiva para atuação em casos envolvendo a imputação de delitos de ação penal pública perante este STF, devem ser os autos a ela remetidos para que forme sua própria opinio delicti, com o posterior prosseguimento do feito perante o Supremo Tribunal Federal”. É o relatório. Decido. Inicialmente, dispenso a requisição de informações e a remessa dos autos à Procuradoria-Geral da República, por entender que o processo já está em condições de julgamento (RISTF, art. 52, parágrafo único). Superada a questão, rememoro que a reclamação, tal como prevista no artigo 102, I, l, da Constituição e regulada nos artigos 988 a 993 do Código de Processo Civil e 156 a 162 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, tem cabimento para preservar a competência do tribunal ou garantir a autoridade de suas decisões, bem como contra ato administrativo ou decisão judicial que contrarie súmula vinculante ( CF/88, art. 103-A, § 3º). No caso em tela, discute-se possível afronta à competência desta Corte para processar e julgar Deputados Federais, nos termos do art. 53, § 1º, da Constituição Federal. Por razões de coerência e integridade com a compreensão que se forma no Plenário do Supremo Tribunal Federal, passo a examinar a questão suscitada nesta reclamação a partir do que assentei no exame de questão de ordem apresentada no bojo do INQ 4787. Naquela oportunidade, ponderei que os fundamentos da prerrogativa de foro demonstram que ela serve a propósitos virtuosos: manter a estabilidade das instituições democráticas e preservar o funcionamento do Estado. Também contribui para rechaçar aleivosias semeadas contra a sua manutenção pela Constituição de 1988. Desmente a falsa crença – uma fábula – de que o foro especial constitui privilégio incompatível com o regime republicano e que serviria apenas para blindar a elite política. Como prerrogativa do cargo, o foro contribui para o equilíbrio e a harmonia entre os Poderes e para a eficiente condução dos negócios públicos. Até por se tratar de prerrogativa do cargo, e não de privilégio pessoal, o foro privativo para atos cometidos no exercício das funções deve substituir mesmo após a cessação do exercício funcional. Afinal, a saída do cargo não ofusca as razões que fomentaram a outorga de competência originária aos Tribunais. O que ocorre é justamente o contrário. É nesse instante que adversários do ex-titular da posição política possuem mais condições de exercer influências em seu desfavor, e a prerrogativa de foro se torna mais necessária para evitar perseguições e maledicências. Como disse o Ministro Victor Nunes, a saída do cargo acarreta a perda das proteções a ele inerentes, como a imunidade temporária do Presidente da República ( CF, art. 86, § 4º) e a possibilidade de sustação de ação penal proposta contra parlamentar ( CF, art. 53, § 3º); por isso, “surge, ou permanece, ou se alarga, a possibilidade, para outrem, de tentar exercer influência sobre quem vai julgar o ex-funcionário ou ex-titular de posição política, reduzido, então, frequentemente à condição de adversário da situação dominante (...) é, pois, em razão do interesse público do bom exercício do cargo, e não do interesse pessoal do ocupante, que deve subsistir a jurisdição especial, como prerrogativa de função, mesmo depois de cessado o exercício” (Reclamação 473, Rel. Min. Victor Nunes, julgada em 31.1.1962). Há mais. A subsistência do foro especial, após a cessação das funções, também se justifica pelo enfoque da preservação da capacidade de decisão do titular das funções públicas. Se o propósito da prerrogativa é garantir a tranquilidade necessária para que o agente possa agir com brio e destemor, e tomar decisões, por vezes, impopulares, não convém que, ao se desligar do cargo, as ações penais contra ele passem a tramitar no órgão singular da justiça local, e não mais no colegiado que, segundo o legislador, reúne mais condições de resistir a pressões indevidas. Tome-se o caso do Juiz que, no final da carreira, recebe pedido de medidas cautelares contra políticos influentes. Ou do Promotor de Justiça que, nessa condição, se depara com ilícitos cometidos por lideranças locais. Ou, ainda, do Governador que, no último ano do mandato, contraria interesses corporativos da magistratura ou do Ministério Público. Todos eles correm risco de retaliações devido a atos praticados no exercício de suas funções – risco que se agrava com o desligamento do cargo. Garantir a esses agentes a prerrogativa de serem julgados por juízes experientes, no Tribunal escolhido pelo legislador, mesmo após a aposentadoria ou fim do mandato, parece ser a melhor maneira de preservar a liberdade de ação no desempenho das suas funções. O Ministro Sepúlveda Pertence tratou dessa questão no julgamento do Inquérito 687-QO: “é fugir ao senso das realidades evidente negar que, para a tranquilidade no exercício do cargo ou do mandato – e para essa tranquilidade contribui, como pressupõe a Constituição, a prerrogativa de foro – ao seu titular mais importa tê-lo assegurado para o julgamento futuro dos seus atos funcionais do que no curso da investidura, quando outras salvaguardas o protegem. Por isso, “mais que apanágio do poder atual, a prerrogativa de foro serve a libertar o dignitário dos medos do ostracismo futuro”. Como disse o Ministro Victor Nunes, ainda em 1962: “essa correção, sinceridade e independência moral com que a lei quer que sejam exercidos os cargos públicos ficaria comprometida, se o titular pudesse recear que, cessada a função, seria julgado, não pelo Tribunal que a lei considerou mais isento, a ponto de o investir de jurisdição especial para julgá-lo no exercício do cargo, e sim por outros que, presumidamente, poderiam não ter o mesmo grau de isenção” (Reclamação 473, Rel. Min. Victor Nunes Leal, j. em 31.1.1962). Esse era o espírito da Súmula 394: garantir aos ocupantes de cargos relevantes as condições necessárias para o exercício das funções de Estado, unificando o foro para julgamento de atos praticados no exercício do cargo num órgão colegiado de maior hierarquia, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após o afastamento das funções. Como disse Alberto Zacharias Toron, a súmula procurou garantir “a proteção do cargo, ainda que de forma indireta, se durante seu exercício o delito tivesse sido praticado”, ao “resguardar o ex-mandatário que, no ostracismo, possa ser alvo da ação dos inimigos, da opinião pública e, eventualmente, daqueles que, particulares ou outros agentes públicos, se sentiram prejudicados por atos seus e possam querer influir no processo” (Decisões controversas do STF, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2020, p. 109-110). A súmula, editada em 1964, retratava orientação firme do Tribunal, documentada em diversos precedentes da época. O exame desses julgados proporciona um olhar histórico sobre o assunto e demonstra que a tradição constitucional brasileira já acolheu a interpretação aqui defendida, que dá ao foro privativo um alcance compatível com sua justificação teleológica. O primeiro precedente que influenciou a edição da súmula remonta ao Recurso Criminal 491, Rel. Min. Pedro dos Santos, julgado em 15.12.1923. O recurso foi interposto por Epitácio Pessoa contra decisão que afastou a competência da Justiça Federal para julgar queixa-crime por ele ajuizada contra Mário Rodrigues, redator-chefe do Correio da Manhã. O querelante já havia deixado a Presidência da República, quando ajuizou a ação penal por crime contra a honra, considerando-se caluniado por notícia relacionada a atos funcionais. O Plenário decidiu que, como a notícia envolvia o exercício do mandato, deveria subsistir a competência do Juiz designado para julgar a exceção da verdade (exceptio veritatis) contra funcionário público federal, mesmo após o desligamento do cargo. Com base nas lições de Francesco Carrara, o voto do Ministro Pedro dos Santos concluiu que “nada importa a circunstância de ser o injuriado atualmente um simples particular, pois a proteção especial não se confere ao indivíduo, mas ao ofício público, e este pode ser ferido por motivo de um ato que lhe é inerente, ainda quando a ofensa ocorra depois de retirado o funcionário à vida privada. Se a tutela da lei cessasse com o término da função pública, os outros órgãos da autoridade ou da administração exerceriam timidamente suas incumbências, receosos do dano que lhes poderia advir quando deixassem os cargos”. Para comprovar que essa interpretação estava enraizada em nossa cultura constitucional, citou acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de janeiro de 1842, que garantiu prerrogativa de foro a juiz municipal processado por faltas funcionais, mesmo após o afastamento do cargo; e o acórdão do Supremo Tribunal Federal, de 7 de dezembro de 1904, no mesmo sentido. A jurisprudência consolidou essa orientação. Ao apreciar o HC 35.301, Rel. Min. Ary Franco, DJ 16.1.1958, o Plenário decidiu que “praticado o crime na função e em razão dela, deve subsistir o foro por prerrogativa de função”. Já no RE 39.682, Rel. Min. Ribeiro da Costa, DJ 21.8.1958, a Segunda Turma reconheceu a competência originária do Tribunal de Justiça para julgar ex-juiz de Direito, acusado por atos praticados no exercício do cargo. No HC 32.097, Rel. Min. Mário Guimarães, DJ 4.12.1952, o Plenário reconheceu prerrogativa de foro a Desembargador e enfatizou que “não se modificam as regras de competência, acima exaradas, pela aposentadoria, que sobrevenha, do magistrado”. Por fim, na Reclamação 473, Rel. Min. Victor Nunes, DJ 8.6.1962, o Plenário garantiu a prerrogativa de foro para ex-Ministro de Estado acusado de crime contra a Administração Pública. A doutrina avalizava a jurisprudência do Tribunal. José Frederico Marques disse: “(...) a competência ratione personae é absoluta, e por isso não pode ficar à mercê nem do réu, nem de qualquer outra pessoa ou órgão do poder público. Se a competência dependesse da permanência no cargo (...) ficaria ao arbítrio de uma das partes interessadas, bastando que o acusado deixasse o cargo para que ela desaparecesse. Assim, por ato próprio, alteraria ou modificaria uma competência absoluta prevista em lei. Caso a iniciativa não partisse do acusado, poderia resultar de ato do poder público, que, por meio de uma demissão, faria com que a competência especial deixasse de existir” (Da competência em matéria penal, Editora Millennium, Campinas, 2000, p. 293-294). Outra não é a posição do professor Fernando da Costa Tourinho Filho, para quem “mesmo cessada a função, o foro deve continuar (...) E assim pensamos em respeito ao princípio do Juiz natural, dogma de fé. Por isso entendemos, com Frederico Marques, que, se a infração for cometida durante o exercício funcional, o foro especial persiste mesmo que cessada a função” ( Código de Processo Penal comentado, volume 1, 13ª edição, Editora Saraiva, São Paulo, 2010, p. 331). Fundada em sólidos argumentos, a orientação centenária assegurava o devido alcance para o foro privativo. Não à toa, o Tribunal a consolidou na Súmula 394, de 3.4.1964, que vigorou por mais de três décadas, até ser cancelada pelo Plenário no julgamento do Inquérito 687-QO, Rel. Min. Sydney Sanches, em 25.8.1999. A firmeza da orientação era tamanha que o próprio relator, ao propor o cancelamento da súmula, assentiu com a solidez da interpretação nela encartada: “não se pode negar a relevância dessa argumentação, que, por tantos anos, foi aceita nesta Corte (...) mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo”. Alberto Zacharias Toron explica que a mudança se deveu não a razões jurídicas, e sim a questões funcionais, ou pragmáticas, relativas ao número de ações penais em trâmite no Tribunal: “Senão, como entender que, vigorando há mais de 35 anos, quando nenhuma Carta anterior tinha estampado disposição a respeito do foro dos ‘ex’, tivessem os ilustres juízes do Excelso Pretório acordado de um sono profundo e ‘descoberto’ que a Súmula 394 não fazia mais sentido? Teriam os ministros que judicaram debaixo do Texto de 1946 errado ao editá-la? E que dizer dos mais de dez sob a égide da Constituição vigente, sem que nunca se tivesse questionado a vigência da súmula? (...) Não parece razoável supor que, de um lado, o direito constitucional tivesse sido interpretado de forma errada durante tanto tempo e que agora, subitamente, quando já transcorreu mais de dez anos da Constituição de 1988, o STF tivesse se dado conta do equívoco interpretativo (...). Tudo leva a crer que o cancelamento da súmula se prendeu a questões funcionais ou, mais especificamente, ao excesso volume de processos que ali afluem (...) É inconcebível que se altere o entendimento ligado a várias garantias constitucionais como a do juiz natural e do devido processo legal, não por conta da correta aplicação do direito, mas em razão da sobrecarga de processos. É, para repetir Umberto Eco, como se fossemos cera mole (O Nome da Rosa) nas mãos das autoridades judiciais” (Decisões controversas do STF, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2020, p. 111-112). As próprias razões lançadas do voto proferido pelo Ministro Sydney Sanches justificam a suspeita levantada por Alberto Zacharias Toron. Ao fechar os olhos para as finalidades da norma (interpretação teleológica) e para a tradição constitucional (interpretação histórica), o voto se apega ao sentido literal das palavras utilizadas na Constituição para afirmar que o foro privativo não alcança os “ex-membros do Congresso Nacional, assim como não contempla o ex-Presidente, o ex-Vice-Presidente, o ex-Procurador-Geral da República, nem os ex-Ministros de Estado”. O discurso científico para por aí. No mais, o voto não esconde a pretensão de alterar, com base em critérios pragmáticos, a extensão da prerrogativa de foro. Narra que, em 1964, quando a súmula foi aprovada, eram poucos os processos criminais em trâmite na Suprema Corte, o que teria se alterado com o tempo. Àquela altura já não eram “tão raras as hipóteses de inquéritos, queixas ou denúncias contra ex-parlamentares, ex-Ministros de Estado e até ex-Presidente da República”; afirma que o volume de processos poderia inviabilizar “o exercício das competências que [a Corte] realmente tem, expressas na Constituição”. E admite que “não se trata, é verdade, de uma cogitação estritamente jurídica, mas de conteúdo político, relevante, porque concernente à própria subsistência da Corte, em seu papel de guarda maior da Constituição Federal e de cúpula do Poder Judiciário Nacional”. Por fim, pondera que os inquéritos e ações originárias são “trabalhosíssimos, exigindo dos Relatores que atuam como verdadeiros juízes de 1º grau, à busca de uma instrução que propicie as garantias que justificaram a Súmula 394”. Essas razões funcionais não são, com a devida vênia, suficientes para afastar a interpretação mais alinhada com a finalidade do foro por prerrogativa de função: a proteção da dignidade de determinados cargos públicos, garantindo tranquilidade e autonomia ao seu titular. Tenho para mim que argumentos pragmáticos, como a pretensão de maior eficiência, não autorizam que a previsão do foro especial seja esvaziada pela via interpretativa. A eficiência do Poder Judiciário deve ser fomentada não pela restrição de prerrogativas instituídas em benefício das instituições públicas, mas sim por alterações estruturais que tragam mais racionalidade para a tramitação dos processos. O Tribunal tem promovido constantes reformas regimentais para alcançar esse objetivo, como a expansão do plenário virtual, na gestão do Ministro Dias Toffoli; a fixação de prazo de 90 dias para devolução de processos com pedido de vista, por iniciativa da Ministra Rosa Weber; o retorno da competência das Turmas para julgar ações penais originárias, já na gestão do Ministro Roberto Barroso; e a convocação de juízes instrutores e auxiliares para realizarem atos de instrução do processo. As medidas implementadas produziram resultados tangíveis, como demonstram as ações penais sobre os ataques de 8 de janeiro, cuja instrução ocorreu num bom ritmo, sem sobressaltos e com rigorosa observância do direito de defesa. A experiência recente revela não somente que o Tribunal está preparado para instruir e julgar ações penais complexas, envolvendo detentores de prerrogativa de foro. Ela também comprova que o exercício dessa competência não engessa o funcionamento da Corte nem ofusca suas demais funções institucionais, como a jurisdição constitucional. O passado recente contradiz, portanto, a narrativa fatalista utilizada no Inquérito 687-QO. Demonstra, ainda, que o debate sobre a prerrogativa de foro deve ser realizado com rigor metodológico, com base em critérios jurídicos, e não com populismo judicial. Um olhar crítico para o resultado de tal julgamento revela, enfim, que o Tribunal abandonou a interpretação mais correta da prerrogativa de foro a partir de argumentos equivocados. A compreensão anterior, que assegurava o foro privativo mesmo após o afastamento do cargo, era mais fiel ao objetivo de preservar a capacidade de decisão do seu ocupante. Essa orientação deve ser resgatada. O entendimento acolhido na AP 937-QO reduz indevidamente o alcance da prerrogativa de foro, distorcendo seus fundamentos e frustrando o atendimento dos fins perseguidos pelo legislador. Mas não é só. Ele também é contraproducente, por causar flutuações de competência no decorrer das causas criminais e por trazer instabilidade para o sistema de Justiça. O precedente firmado na AP 937-QO criou uma barreira de entrada para processos nos Tribunais. A diplomação do parlamentar, por si só, não mais acarreta a remessa de processos em curso para o foro especial. O crime deve ter sido praticado no cargo e em razão das funções desempenhadas (contemporaneidade). Porém o Plenário ainda aplica a regra da atualidade, estabelecida no Inq. 687-QO, quando o agente se desvincula do cargo: o afastamento das funções acarreta o deslocamento de todos os inquéritos e ações penais originários para a primeira instância. O eminente Ministro Roberto Barroso, no julgamento da AP 937-QO, afirmou que essas flutuações trazem desordem e lentidão para a tramitação dos processos criminais: “Os frequentes deslocamentos (o ‘sobeedesce’ processual) são um dos maiores problemas da prerrogativa, capazes de embaraçar e retardar o processamento de inquéritos e ações penais, com evidente prejuízo para a eficácia, a racionalidade e a credibilidade do sistema penal. Isso alimenta, ademais, a tentação permanente de manipulação da jurisdição pelos réus. Há os que procuram se eleger para mudar o órgão jurisdicional competente, passando do primeiro grau para o STF; há os que deixam de se candidatar à reeleição, com o mesmo propósito, só que invertido: passar a competência do STF para o órgão de primeiro grau. E há os que renunciam para produzir o efeito de baixa do processo, no momento que mais lhes convém”. Para conter esses riscos, o Plenário fixou um critério de perpetuação da competência: após o final da instrução do processo, com a publicação do despacho para apresentação de alegações finais, o Tribunal continua competente para o julgamento da causa mesmo que o agente deixe o cargo. Quem instruiu a ação deverá julgá-la. Essa regra, porém, não resolve o problema apontado, porque mantém a brecha que permite a alteração da competência pela vontade do acusado. O parlamentar pode, por exemplo, renunciar antes da fase de alegações finais, para forçar a remessa dos autos a um juiz que, aos seus olhos, é mais simpático aos interesses da defesa. A falha não passou despercebida pelo Ministro Roberto Barroso, que já defendeu a antecipação desse marco para o momento de recebimento da denúncia (AP 606-QO, Rel. Min. Roberto Barroso, Segunda Turma, DJe 12.8.2014). Afora o declínio de competência por ato voluntário do agente público, as vicissitudes da vida política podem acarretar indevida cessação do foro privativo. Tome-se como exemplo o Senador que, ao fim do mandato, é eleito para o cargo de Deputado Federal, ou vice-versa. Ou, ainda, do Vice-Presidente que assume o cargo de Presidente da República, depois da renúncia do titular. A aplicação da tese firmada na AP 937-QO importaria a remessa dos inquéritos e ações para a primeira instância, e o acusado ficaria exposto aos riscos que a lei quis conter ao estabelecer o foro especial. A falha é tão gritante que o Plenário foi obrigado a relativizar a regra geral para estabelecer que a prerrogativa de foro subsiste quando o parlamentar federal é eleito, sem interrupção do mandato, para a outra Casa Legislativa (Inq. 4342-QO, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 13.6.2022). É necessário avançar no tema, para estabelecer um critério geral mais abrangente, focado na natureza do fato criminoso, e não em elementos que podem ser manobrados pelo acusado (permanência no cargo). Diante desse quadro, propus, em questão de ordem no julgamento do INQ 4787 a fixação da seguinte tese: “a prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício”. O julgamento foi interrompido por sucessivos pedidos de vista, sendo o último formulado pelo Min. Nunes Marques, mas já se formou maioria favorável à tese, considerados os votos dos Ministros Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Cristiano Zanin e Flávio Dino. Portanto, mostra-se necessário o deslinde da questão suscitada à luz dessa tese endossada pela maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, ainda que não concluído em definitivo o julgamento, de modo a garantir a segurança jurídica na condução do processo penal e preservar a competência do Tribunal. No caso dos autos, as condutas imputadas ao reclamante foram inequivocamente praticadas quando exercia o cargo de Deputado Federal. A própria denúncia evidencia essa premissa fática indiscutível logo em sua introdução (eDOC 2 - p. 3): (...) No período compreendido entre os anos de 2008 e 2015, em Brasília/DF, os ora denunciados EDUARDO COSENTINO DA CUNHA e LÚCIO BOLONHA FUNARO, livres e conscientemente e em unidade de desígnios, em função do cargo que o primeiro exercia de Deputado Federal, solicitaram ao grupo empresarial SCHAHIN vantagem indevida consistente no pagamento de uma suposta dívida de R$ 98.000.000,00 (noventa e oito milhões de reais) decorrente do rompimento da barragem da Pequena Central Hidrelétrica de Apertadinho, em Rondônia, construída pelo Consórcio VILHENA, formado pela CONSTRUTORA SCHAHIN ENGENHARIA e EMPRESA INDUSTRIAL TÉCNICA, ambas contratadas pela CEBEL - CENTRAIS ELÉTRICAS DE BELEM S.A., praticando atos infringindo dever funcional, quais sejam, formular requerimentos parlamentares investigativos com a finalidade de obter o pagamento da vantagem. Assim, a partir dos elementos de cognição que embasam a denúncia, é forçoso reconhecer que as condutas delituosas imputadas ao reclamante têm relação com o exercício do mandato, razão pela qual a ação penal deve ser processada e julgada por esta Corte. No que diz respeito ao pedido de declaração de nulidade da decisão de recebimento da denúncia, consigno que, no julgamento da questão de ordem na INQ 4787, sustentei “a aplicação imediata da nova interpretação aos processos em curso, com a ressalva de todos os atos praticados pelo STF e pelos demais Juízos com base na jurisprudência anterior. A ressalva segue a mesma fórmula utilizada nas questões de ordem suscitadas no Inq. 687, Rel. Min. Sydney Sanches, e na AP 937, Rel. Min. Roberto Barroso”. Essa regra de transição, tal como o próprio mérito da questão de ordem, foi avalizada pela maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, razão pela qual deve balizar a aplicação do precedente ao caso concreto. Portanto, reputo válida a decisão de recebimento da denúncia proferida pelo magistrado de primeira instância, assim como atos de citação e cientificação eventualmente praticados em virtude dessa decisão. Ante o exposto, julgo parcialmente procedente a reclamação para assentar a competência deste Tribunal para processar e julgar a Ação Penal nº 1001170-04.2023.4.01.3400, determinando a imediata remessa dos autos a esta Corte, com a preservação da decisão de recebimento da denúncia e dos atos processuais dela decorrentes. Dê-se ciência à Procuradoria-Geral da República. Publique-se. Cumpra-se. Brasília, 19 de dezembro de 2024. Ministro GILMAR MENDES Relator Documento assinado digitalmente” Nesse sentido, a Corte Suprema tem se inclinado a fixar a tese de que "a prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício". Embora o denunciado no presente feito não mais ocupe o cargo de Prefeito, a aplicação desse entendimento é medida que se impõe para garantir a isenção e a imparcialidade do julgamento de atos que, em tese, foram praticados no ápice da representação popular municipal. Portanto, a competência do foro por prerrogativa de função, sendo de natureza absoluta e ditada pela Constituição, não pode ser afastada pela simples conclusão do mandato. Os crimes imputados, por terem sido supostamente cometidos no exercício do cargo de Prefeito e em razão das funções a ele inerentes, atraem a competência originária do Tribunal de Justiça. III - DISPOSITIVO Ante o exposto, reconheço e declaro, de ofício, a incompetência absoluta deste Juízo de primeiro grau para processar e julgar a presente Ação Penal, com aplicação da regra de transição que preserva os atos já praticados neste Juízo. Em consequência, determino a imediata remessa dos presentes autos ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, órgão competente para o julgamento, nos termos do art. 81, da Constituição Estadual. Procedam-se às anotações e baixas necessárias. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Urbano Santos/MA, 24 de junho de 2025. ANDRÉ BEZERRA EWERTON MARTINS Juiz de Direito Projeto “Juiz Extraordinário” Portaria -CGJ n.º 1454/2025
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