Processo nº 0801330-12.2023.8.15.0321
ID: 308123469
Tribunal: TJPB
Órgão: Vara Única de Santa Luzia
Classe: AçãO PENAL - PROCEDIMENTO ORDINáRIO
Nº Processo: 0801330-12.2023.8.15.0321
Data de Disponibilização:
26/06/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Poder Judiciário da Paraíba Vara Única de Santa Luzia AÇÃO PENAL - PROCEDIMENTO ORDINÁRIO (283) 0801330-12.2023.8.15.0321 [Preconceituosa] AUTOR: M. P. D. E. D. P. REU: M. C. D. N. N. D. SENTENÇA Vis…
Poder Judiciário da Paraíba Vara Única de Santa Luzia AÇÃO PENAL - PROCEDIMENTO ORDINÁRIO (283) 0801330-12.2023.8.15.0321 [Preconceituosa] AUTOR: M. P. D. E. D. P. REU: M. C. D. N. N. D. SENTENÇA Vistos etc. O Ministério Público ofereceu denúncia contra MARIA CAPITULINA DA NÓBREGA NETA DANTAS, qualificada nos autos, pela prática de crime previsto no art. 20, caput da Lei n. 7.716/1989. Narra que: “No dia 31 de julho de 2023, na cidade de Santa Luzia-PB, a denunciada praticou, induziu ou incitou a discriminação ou preconceito" em razão da orientação sexual da pessoa. Consta do caderno indiciário que, nas circunstâncias de tempo e espaço acima narradas, a acusada falou com a genitora sobre o fato do sobrinho F. A. H. N. ter levado o namorado para a casa da avó durante as festividades do São João 2023 e que com isso, teria faltado com o respeito com todos, inclusive a memória do falecido avô. Segundo se apurou, a vítima disse que a acusada, a qual é sua tia teria dito que isso é uma imoralidade e que não havia respeito por parte da vítima, por ter levado dois “viados” para dentro de casa e que os problemas de saúde da mãe da vítima, decorrem do desgosto por ter um filho gay.” Recebida a denúncia, a denunciada foi citada e no prazo legal apresentou resposta escrita à acusação no prazo legal. Procedida a instrução processual com a produção e prova oral. Em alegações finais, o Ministério Público requereu a procedência da denúncia com consequente condenação da denunciada. O assistente de acusação, embora devidamente intimado, não apresentou as alegações finais no prazo legal. Por sua vez, a defesa requereu a absolvição. Subsidiariamente, não sendo acolhido o pedido de absolvição seja a pena fixada no mínimo legal. Relatados, em síntese. DECIDO: Não havendo nulidades a serem declaradas e não havendo nos autos irregularidades que devam ser declaradas de ofício, passa-se à análise do conjunto probatório. Consta nos autos que a denunciada está sendo acusada de ter: “No dia 31 de julho de 2023, na cidade de Santa Luzia-PB praticado, induzido ou incitado a discriminação ou preconceito" em razão da orientação sexual da pessoa. Consta do caderno indiciário que, nas circunstâncias de tempo e espaço acima narradas, a acusada falou com a genitora sobre o fato do sobrinho F. A. H. N. ter levado o namorado para a casa da avó durante as festividades do São João 2023 e que com isso, teria faltado com o respeito com todos, inclusive a memória do falecido avô. Segundo se apurou, a vítima disse que a acusada, a qual é sua tia teria dito que isso é uma imoralidade e que não havia respeito por parte da vítima, por ter levado dois “viados” para dentro de casa e que os problemas de saúde da mãe da vítima, decorrem do desgosto por ter um filho gay.” A persecução penal foi instaurada através de portaria da lavra da autoridade policial, após provocação da vítima. O crime previsto no art. 20 da Lei n. 7.716/1989 é formal. A consumação do crime ocorre com a conduta, ou seja, não é preciso que o resultado pretendido pelo agente se concretize para que o crime seja considerado consumado. A vítima relatou em seu depoimento que: Não lembra qual foi o dia, mas acredita que estava de férias e retornou para Santa Luzia. Mora em Santa Luzia e João Pessoa. Naquele dia que chegou em Santa Luzia estava fazendo algumas coisas no escritório e uma tia chegou até o depoente, informando que a avó do depoente estava chorando, porque a denunciada teria ido na parte da manhã e tinha falado um monte de coisas. Que era uma falta de respeito o depoente ter trazido um namorado. O depoente não se respeitava e também não respeitava a memória do avô. O depoente vivia enchendo a cassa de ‘viado”. Segundo o depoente a denunciada falou um monte de coisa. O depoente lembra que naquele dia por volta das 14horas deu uma raiva tão grande dentro do depoente, um ódio que ia perdendo de fato suas razões. Naquele dia o depoente disse que iria pegar o seu carro, iria acabar com o carro, pois iria entrar na casa da denunciada para mostrar a ela o que era respeito. A tia do depoente o segurou dentro do escritório e terminou que o depoente acalmou-se. O depoente afirma que ligou para a denunciada a esculhambando e disse que iria a Patos lavrar um boletim de ocorrência. Pediu para a denunciada o respeitar, pois nunca faltou respeito com ela. O depoente mora há muitos anos com a avó, na mesma casa onde os fatos aconteceram. Que, quem relatou os fatos para o depoente foi a tia Suzana. Em razão desses fatos, o depoente afirma que teve até uma depressão. A avó não quis falar tudo que a denunciada tinha falado. Depois a avó disse que a denunciada falou do filho de Ana, de Fabrício e que a casa era cheia de ‘viado’ e que ninguém prestava. Disse o depoente que a denunciada falou que os problemas de saúde da mãe era decorrente de desgosto. Afirma o depoente que sua orientação desde os 14 anos de idade sempre foi de conhecimento e que não foi problema. Relata o depoente que ficou sem ânimo e já pensou até em fechar o seu escritório. Por sua vez, a declarante ZUMIRA SUZANA DA NÓBREGA que em seu depoimento esclareceu o seguinte: Afirmou ser irmã da denunciada e tia da vítima. Estava conversando com a genitora. A genitora disse para a depoente que Felipe estava desrespeitando o pai da depoente, por ter o pai da depoente, já falecido e, Felipe ter ido com um rapaz para a casa da depoente. Sempre soube da opção sexual de Felipe. A genitora da depoente nunca opinou sofre esse fato. A depoente confirmou que a denunciada chegou a dizer que o problema de saúde da mãe de Felipe teria sido em razão da orientação sexual de Felipe. Felipe está indo pouco na casa da depoente e da avó e que não se conversam mais. Chegou a presenciar um bate boca por telefone entre Felipe e a denunciada. Esse bate boca começou quando a depoente relatou os fatos para Felipe. Felipe então ligou para a denunciada, começaram a discutir e a depoente saiu. Acho que na situação não iria chegar a tanto. O depoimento da vítima está coeso com o depoimento prestado pela declarante ZUMIRA SUZANA DA NÓBREGA. As demais pessoas arroladas não presenciaram os fatos Nesse ponto, saliento que não há elementos para desacreditar os consistentes depoimentos prestados pela vítima e pela declarante Zumira. Para desacreditar esses depoimentos, seria necessário a demonstração do interesse da vítima e da declarante prejudicar a denunciada com tão graves acusações. Ora, se de um lado a denunciada tem razões óbvias de tentar se eximir da responsabilidade criminal, por outro, a vítima assim como qualquer testemunha, não tem motivo para incriminar inocentes, a não ser que se apresente prova concreta da inverdade desses depoimentos, ônus do qual a douta defesa não se desincumbiu. Em verdade, não seria crível que a vítima e a declarante Zumira tivessem fantasiados essa acusação contra a denunciada. Assim, valoradas as provas produzidas sob o crivo do contraditório, verifica-se que são idôneas, coesas e harmônicas, bem como estão em consonância com os elementos de informação colhidos durante a fase policial, de modo que suficientes para fundamentar o édito condenatório. Em relação à qualificação jurídico-penal dos fatos, destaco que o Plenário do Colendo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26/DF e do Mandado de Injunção nº 4.733/DF (j. 13.06.2019), assentou o entendimento de que as condutas homofóbicas e transfóbicas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, traduzem expressões de racismo, em sua dimensão social, e assim configuram os tipos penais previstos na Lei nº 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceitos de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. Nesse sentido: “E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO EXPOSIÇÃO E SUJEIÇÃO DOS HOMOSSEXUAIS, TRANSGÊNEROS E DEMAIS INTEGRANTES DA COMUNIDADE LGBTI+ A GRAVES OFENSAS AOS SEUS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM DECORRÊNCIA DE SUPERAÇÃO IRRAZOÁVEL DO LAPSO TEMPORAL NECESSÁRIO À IMPLEMENTAÇÃO DOS MANDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO INSTITUÍDOS PELO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, art. 5º, incisos XLI e XLII) A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO COMO INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DAS CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS FRUSTRADAS, EM SUA EFICÁCIA, POR INJUSTIFICÁVEL INÉRCIA DO PODER PÚBLICO A SITUAÇÃO DE INÉRCIA DO ESTADO EM RELAÇÃO À EDIÇÃO DE DIPLOMAS LEGISLATIVOS NECESSÁRIOS À PUNIÇÃO DOS ATOS DE DISCRIMINAÇÃO PRATICADOS EM RAZÃO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL OU DA IDENTIDADE DE GÊNERO DA VÍTIMA A QUESTÃO DA “IDEOLOGIA DE GÊNERO” SOLUÇÕES POSSÍVEIS PARA A COLMATAÇÃO DO ESTADO DE MORA INCONSTITUCIONAL: (A) CIENTIFICAÇÃO AO CONGRESSO NACIONAL QUANTO AO SEU ESTADO DE MORA INCONSTITUCIONAL E (B) ENQUADRAMENTO IMEDIATO DAS PRÁTICAS DE HOMOFOBIA E DE TRANSFOBIA, MEDIANTE INTERPRETAÇÃO CONFORME (QUE NÃO SE CONFUNDE COM EXEGESE FUNDADA EM ANALOGIA “IN MALAM PARTEM”), NO CONCEITO DE RACISMO PREVISTO NA LEI Nº 7.716/89 INVIABILIDADE DA FORMULAÇÃO, EM SEDE DE PROCESSO DE CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE, DE PEDIDO DE ÍNDOLE CONDENATÓRIA FUNDADO EM ALEGADA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO, EIS QUE, EM AÇÕES CONSTITUCIONAIS DE PERFIL OBJETIVO, NÃO SE DISCUTEM SITUAÇÕES INDIVIDUAIS OU INTERESSES SUBJETIVOS IMPOSSIBILIDADE JURÍDICO CONSTITUCIONAL DE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, MEDIANTE PROVIMENTO JURISDICIONAL, TIPIFICAR DELITOS E COMINAR SANÇÕES DE DIREITO PENAL, EIS QUE REFERIDOS TEMAS SUBMETEM-SE À CLÁUSULA DE RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI EM SENTIDO FORMAL (CF, art. 5º, inciso XXXIX) CONSIDERAÇÕES EM TORNO DOS REGISTROS HISTÓRICOS E DAS PRÁTICAS SOCIAIS CONTEMPORÂNEAS QUE REVELAM O TRATAMENTO PRECONCEITUOSO, EXCLUDENTE E DISCRIMINATÓRIO QUE TEM SIDO DISPENSADO À VIVÊNCIA HOMOERÓTICA EM NOSSO PAÍS: “O AMOR QUE NÃO OUSA DIZER O SEU NOME” (LORD ALFRED DOUGLAS, DO POEMA “TWO LOVES”, PUBLICADO EM “THE CHAMELEON”, 1894, VERSO ERRONEAMENTE ATRIBUÍDO A OSCAR WILDE) A VIOLÊNCIA CONTRA INTEGRANTES DA COMUNIDADE LGBTI+ OU “A BANALIDADE DO MAL HOMOFÓBICO E TRANSFÓBICO” (PAULO ROBERTO IOTTI VECCHIATTI): UMA INACEITÁVEL (E CRUEL) REALIDADE CONTEMPORÂNEA O PODER JUDICIÁRIO, EM SUA ATIVIDADE HERMENÊUTICA, HÁ DE TORNAR EFETIVA A REAÇÃO DO ESTADO NA PREVENÇÃO E REPRESSÃO AOS ATOS DE PRECONCEITO OU DE DISCRIMINAÇÃO PRATICADOS CONTRA PESSOAS INTEGRANTES DE GRUPOS SOCIAIS VULNERÁVEIS A QUESTÃO DA INTOLERÂNCIA, NOTADAMENTE QUANDO DIRIGIDA CONTRA A COMUNIDADE LGBTI+: A INADMISSIBILIDADE DO DISCURSO DE ÓDIO (CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, ARTIGO 13, § 5º) A NOÇÃO DE TOLERÂNCIA COMO A HARMONIA NA DIFERENÇA E O RESPEITO PELA DIVERSIDADE DAS PESSOAS E PELA MULTICULTURALIDADE DOS POVOS LIBERDADE RELIGIOSA E REPULSA À HOMOTRANSFOBIA: CONVÍVIO CONSTITUCIONALMENTE HARMONIOSO ENTRE O DEVER ESTATAL DE REPRIMIR PRÁTICAS ILÍCITAS CONTRA MEMBROS INTEGRANTES DO GRUPO LGBTI+ E A LIBERDADE FUNDAMENTAL DE PROFESSAR, OU NÃO, QUALQUER FÉ RELIGIOSA, DE PROCLAMAR E DE VIVER SEGUNDO SEUS PRINCÍPIOS, DE CELEBRAR O CULTO E CONCERNENTES RITOS LITÚRGICOS E DE PRATICAR O PROSELITISMO (ADI 2.566/DF, Red. p/ o acórdão Min. EDSON FACHIN), SEM QUAISQUER RESTRIÇÕES OU INDEVIDAS INTERFERÊNCIAS DO PODER PÚBLICO REPÚBLICA E LAICIDADE ESTATAL: A QUESTÃO DA NEUTRALIDADE AXIOLÓGICA DO PODER PÚBLICO EM MATÉRIA RELIGIOSA O CARÁTER HISTÓRICO DO DECRETO Nº 119-A, DE 07/01/1890, EDITADO PELO GOVERNO PROVISÓRIO DA REPÚBLICA, QUE APROVOU PROJETO ELABORADO POR RUY BARBOSA E POR DEMÉTRIO NUNES RIBEIRO DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL, PROTEÇÃO DOS GRUPOS VULNERÁVEIS E FUNÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO EXERCÍCIO DE SUA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL A BUSCA DA FELICIDADE COMO DERIVAÇÃO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITA DO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA UMA OBSERVAÇÃO FINAL: O SIGNIFICADO DA DEFESA DA CONSTITUIÇÃO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO CONHECIDA, EM PARTE, E, NESSA EXTENSÃO, JULGADA PROCEDENTE, COM EFICÁCIA GERAL E EFEITO VINCULANTE APROVAÇÃO, PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, DAS TESES PROPOSTAS PELO RELATOR, MINISTRO CELSO DE MELLO. PRÁTICAS HOMOFÓBICAS E TRANSFÓBICAS CONFIGURAM ATOS DELITUOSOS PASSÍVEIS DE REPRESSÃO PENAL, POR EFEITO DE MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO (CF, ART. 5º, INCISOS XLI E XLII), POR TRADUZIREM EXPRESSÕES DE RACISMO EM SUA DIMENSÃO SOCIAL Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”). NINGUÉM PODE SER PRIVADO DE DIREITOS NEM SOFRER QUAISQUER RESTRIÇÕES DE ORDEM JURÍDICA POR MOTIVO DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL OU EM RAZÃO DE SUA IDENTIDADE DE GÊNERO Os integrantes do grupo LGBTI+, como qualquer outra pessoa, nascem iguais em dignidade e direitos e possuem igual capacidade de autodeterminação quanto às suas escolhas pessoais em matéria afetiva e amorosa, especialmente no que concerne à sua vivência homoerótica. Ninguém, sob a égide de uma ordem democrática justa, pode ser privado de seus direitos (entre os quais o direito à busca da felicidade e o direito à igualdade de tratamento que a Constituição e as leis da República dispensam às pessoas em geral) ou sofrer qualquer restrição em sua esfera jurídica em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero! Garantir aos integrantes do grupo LGBTI+ a posse da cidadania plena e o integral respeito tanto à sua condição quanto às suas escolhas pessoais pode significar, nestes tempos em que as liberdades fundamentais das pessoas sofrem ataques por parte de mentes sombrias e retrógradas, a diferença essencial entre civilização e barbárie. AS VÁRIAS DIMENSÕES CONCEITUAIS DE RACISMO. O RACISMO, QUE NÃO SE RESUME A ASPECTOS ESTRITAMENTE FENOTÍPICOS, CONSTITUI MANIFESTAÇÃO DE PODER QUE, AO BUSCAR JUSTIFICAÇÃO NA DESIGUALDADE, OBJETIVA VIABILIZAR A DOMINAÇÃO DO GRUPO MAJORITÁRIO SOBRE INTEGRANTES DE GRUPOS VULNERÁVEIS (COMO A COMUNIDADE LGBTI+), FAZENDO INSTAURAR, MEDIANTE ODIOSA (E INACEITÁVEL) INFERIORIZAÇÃO, SITUAÇÃO DE INJUSTA EXCLUSÃO DE ORDEM POLÍTICA E DE NATUREZA JURÍDICO-SOCIAL O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito. COMPATIBILIDADE CONSTITUCIONAL ENTRE A REPRESSÃO PENAL À HOMOTRANSFOBIA E A INTANGIBILIDADE DO PLENO EXERCÍCIO DA LIBERDADE RELIGIOSA A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero. TOLERÂNCIA COMO EXPRESSÃO DA “HARMONIA NA DIFERENÇA” E O RESPEITO PELA DIVERSIDADE DAS PESSOAS E PELA MULTICULTURALIDADE DOS POVOS. A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, POR REVESTIR-SE DE CARÁTER ABRANGENTE, ESTENDE-SE, TAMBÉM, ÀS IDEIAS QUE CAUSEM PROFUNDA DISCORDÂNCIA OU QUE SUSCITEM INTENSO CLAMOR PÚBLICO OU QUE PROVOQUEM GRAVE REJEIÇÃO POR PARTE DE CORRENTES MAJORITÁRIAS OU HEGEMÔNICAS EM UMA DADA COLETIVIDADE As ideias, nestas compreendidas as mensagens, inclusive as pregações de cunho religioso, podem ser fecundas, libertadoras, transformadoras ou, até mesmo, revolucionárias e subversivas, provocando mudanças, superando imobilismos e rompendo paradigmas até então estabelecidos nas formações sociais. O verdadeiro sentido da proteção constitucional à liberdade de expressão consiste não apenas em garantir o direito daqueles que pensam como nós, mas, igualmente, em proteger o direito dos que sustentam ideias (mesmo que se cuide de ideias ou de manifestações religiosas) que causem discordância ou que provoquem, até mesmo, o repúdio por parte da maioria existente em uma dada coletividade. O caso “United States v. Schwimmer” (279 U.S. 644, 1929): o célebre voto vencido (“dissenting opinion”) do Justice OLIVER WENDELL HOLMES JR.. É por isso que se impõe construir espaços de liberdade, em tudo compatíveis com o sentido democrático que anima nossas instituições políticas, jurídicas e sociais, para que o pensamento e, particularmente, o pensamento religioso não seja reprimido e, o que se mostra fundamental, para que as ideias, especialmente as de natureza confessional, possam florescer, sem indevidas restrições, em um ambiente de plena tolerância, que, longe de sufocar opiniões divergentes, legitime a instauração do dissenso e viabilize, pelo conteúdo argumentativo do discurso fundado em convicções antagônicas, a concretização de valores essenciais à configuração do Estado Democrático de Direito: o respeito ao pluralismo e à tolerância. O discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações e manifestações que incitem a discriminação, que estimulem a hostilidade ou que provoquem a violência (física ou moral) contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, não encontra amparo na liberdade constitucional de expressão nem na Convenção Americana de Direitos Humanos (Artigo 13, § 5º), que expressamente o repele. A QUESTÃO DA OMISSÃO NORMATIVA E DA SUPERAÇÃO TEMPORAL IRRAZOÁVEL NA IMPLEMENTAÇÃO DE ORDENS CONSTITUCIONAIS DE LEGISLAR. A INSTRUMENTALIDADE DA AÇÃO DIRETA POR OMISSÃO NA COLMATAÇÃO E CONCRETIZAÇÃO DAS CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS FRUSTRADAS, EM SUA EFICÁCIA, POR INJUSTIFICÁVEL INÉRCIA DO PODER PÚBLICO A omissão do Estado que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional (como aquela que deriva do art. 5º, XLI e XLII, de nossa Lei Fundamental) qualifica-se como comportamento revestido de intensa gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados da Lei Fundamental. Doutrina. Precedentes (ADI 1.458- -MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente ou, então, do que a promulgar com o intuito de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes ou de grupos majoritários, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos ou, muitas vezes, em frontal desrespeito aos direitos das minorias, notadamente daquelas expostas a situações de vulnerabilidade. A ação direta de inconstitucionalidade por omissão, nesse contexto, tem por objetivo provocar legítima reação jurisdicional que, expressamente autorizada e atribuída ao Supremo Tribunal Federal pela própria Carta Política, destina-se a impedir o desprestígio da Lei Fundamental, a neutralizar gestos de desprezo pela Constituição, a outorgar proteção a princípios, direitos e garantias nela proclamados e a obstar, por extremamente grave, a erosão da consciência constitucional. Doutrina. Precedentes do STF. (ADO 26, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 13-06-2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-243 DIVULG 05-10-2020 PUBLIC 06-10-2020) Independentemente de eventuais considerações outras, é fato que a mais alta Corte do país afirmou a inconstitucionalidade por omissão do Poder Legislativo no estabelecimento de marco protetivo de grupo vulnerável em razão de suas condições sexuais. Trata-se, portanto, de exercício supremo e legítimo de controle de constitucionalidade concentrado, registrando, dessa forma, caráter vinculante, a teor do que dispõe o artigo 102, parágrafo 2º da Constituição Federal. Nesse sentido, são os julgados do Colendo Superior Tribunal de Justiça e de outras Cortes de Justiça do país: “CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL PENAL. HOMOFOBIA. RACISMO EM SUA DIMENSÃO SOCIAL. CONTEÚDO DIVULGADO NO FACEBOOK E NO YOUTUBE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR COMPETENTE O TRIBUNAL SUSCITANTE. 1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26, de relatoria do Ministro Celso de Mello, deu interpretação conforme à Constituição, "para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional". 2. Tendo sido firmado pelo Supremo Tribunal Federal o entendimento de que a homofobia traduz expressão de racismo, compreendido em sua dimensão social, caberá a casos de homofobia o tratamento legal conferido ao crime de racismo. 3. No caso, os fatos narrados pelo Ministério Público estadual indicam que a conduta do Investigado não se restringiu a uma pessoa determinada, ainda que tenha feito menção a ato atribuído a um professor da rede pública, mas diz respeito a uma coletividade de pessoas. 4. Demonstrado que as falas de suposto cunho homofóbico foram divulgadas pela internet, em perfis abertos da rede social Facebook e da plataforma de compartilhamento de vídeos Youtube, ambos de abrangência internacional, está configurada a competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento do feito. 5. Conflito conhecido para declarar competente o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, o Suscitante.” (STJ-CC n. 191.970/RS, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 14/12/2022, DJe de 19/12/2022.) “Apelação Criminal. Intolerância por orientação sexual (artigo 20 da Lei 7.716/89). Recurso da defesa. Materialidade e autoria comprovadas. Declaração da vítima coesa e segura nas duas fases da persecução. Manutenção da condenação. Dosimetria e regime adequados, sem impugnação. Desprovimento do apelo.” (TJSP; Apelação Criminal 1500370-58.2021.8.26.0101; Relator(a): Freire Teotônio; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Caçapava - Vara Criminal; Data do Julgamento: 11/04/2024; Data de Registro: 12/04/2024) “Recurso em sentido estrito Denúncia Injúria utilizando elementos referentes à orientação sexual Práticas homofóbicas que se qualificam como espécie de racismo Enquadramento na Lei nº 7.716/89 Crime que se processa mediante ação penal pública incondicionada Preenchimento dos requisitos do art. 41, do Código de Processo Penal Suficientes indícios de autoria Rejeição Não cabimento Recurso provido.” (TJSP; Recurso em Sentido Estrito 1509088-80.2023.8.26.0228; Relator (a): Alexandre Almeida; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Criminal; Foro Central Criminal Barra Funda - 25ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 25/09/2023; Data de Registro: 25/09/2023) “APELAÇÃO CRIMINAL Desacato e Discriminação Autoria e materialidade delitiva perfeitamente demonstradas ADO 26/DF Prova robusta a admitir a condenação do réu Maus antecedentes e reincidência Penas e regime readequados Recurso defensivo parcialmente provido.”(TJSP; Apelação Criminal 1500167-58.2023.8.26.0673; Relator (a): Ricardo Sale Júnior; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Criminal; Flórida Paulista - Vara Única; Data do Julgamento: 14/11/2023; Data de Registro: 14/11/2023) “APELAÇÃO CRIMINAL. Artigo 20, "caput", da Lei nº 7.716/1989. Crime de discriminação e preconceito contra pessoa transgênero. Sentença condenatória. Recursos defensivos. De acordo com o Plenário do E. Supremo Tribunal Federal, condutas homofóbicas e transfóbicas traduzem expressões de racismo. Discorda-se da decisão por violação ao princípio da reserva legal, mas não se negará a sua aplicação, ante a impossibilidade jurídica. Comprovadas a materialidade e a autoria, era mesmo o caso de condenação. O réu Abelardo impediu a entrada da vítima em sua casa em razão da sua identidade de gênero, chamando-a de "coisa", obstando, assim, o exercício do trabalho da ofendida como agente de saúde. Os outros dois réus zombaram da ofendida, humilhando-a ao imitar trejeitos femininos e ainda incitaram a conduta discriminatória do dono do imóvel e praticaram o abjeto preconceito contra ela. Testemunhas confirmaram o relato da ofendida e as versões exculpatórias dos réus não convencem. Dosimetria das penas. Pena base fixada acima do mínimo pelas consequências do crime, que causou intenso abalo psicológico na vítima. Sem outras causas modificativas das sanções. Regime aberto. Penas de reclusão substituídas por prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária. Fixação de indenização a título de dano moral "in re ipsa". Presente o pedido na inicial acusatória. Sentença mantida. NEGADO PROVIMENTO AOS RECURSOS.” (TJSP; Apelação Criminal 1503963-59.2022.8.26.0037; Relator (a): Christiano Jorge; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Araraquara - 2ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 30/01/2024; Data de Registro: 30/01/2024) No caso dos autos, o aspecto discriminatório feito pela denunciada foi comprovado. Tais aspectos constituem o delito previsto pelo artigo 20, caput, da Lei n. 7716/89. Por outro lado, é certo que a conduta tipificada pelo citado artigo detém natureza formal, o que significa que sua consumação independe da produção de um resultado naturalístico, notadamente da efetiva discriminação ou segregação. Em outros termos, o ato de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito configura a infração penal, sendo desnecessária a demonstração de dano efetivo. A configuração do tipo penal, portanto, prescinde que se analise de que maneira a conduta da denunciada foi recebida pela sociedade ou mesmo a sua capacidade de efetivamente provocar a discriminação. O tipo penal não reclama a efetiva discriminação do grupo contra o qual irrogadas as ofensas. O aspecto subjetivo, representado pelo dolo, consistente na vontade livre e consciente de realização dos elementos da figura penal típica, também restou devidamente demonstrado. A denunciada praticou o fato com evidente intenção de praticar discriminação ou preconceito em virtude de orientação sexual da vítima, portanto, restou demonstrado o dolo específico no caso posto em julgamento. Não há excludentes de ilicitude ou de culpabilidade. A denunciada é plenamente imputável. Logo, sendo a denunciada culpável, haja vista a sua imputabilidade penal, a potencial consciência da ilicitude e a possibilidade de agir de forma diversa; e não verificada qualquer causa excludente de ilicitude ou tipicidade, impõe-se a sua condenação pela prática do delito descrito na denúncia. CONCLUSÃO Mediante tais considerações, JULGO PROCEDENTE a pretensão punitiva estatal para CONDENAR a denunciada MARIA CAPITULINA DA NÓBREGA NETA DANTAS, submetendo-a ao disposto no artigo 20, caput, da Lei n. 7.716/1989. Passo à dosimetria da pena, em observância ao princípio constitucional de sua individualização (Constituição da República, art. 5º, XLVI) e consoante o disposto nos arts. 59 e 68 do Código Penal. 1- Culpabilidade: “Impõe-se que se examine aqui a maior ou menor censurabilidade do comportamento do agente, a maior ou menor reprovabilidade do comportamento praticado.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 298). "[...] Deve-se aferir o maior ou menor índice de reprovabilidade do agente pelo fato criminoso praticado, não só em razão de suas condições pessoais, como também em vista da situação de fato em que ocorreu a indigitada prática delituosa, sempre levando em conta a conduta que era exigível do agente, na situação em que o fato ocorreu." (DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 273). Na hipótese dos autos, a culpabilidade ressoa grave e da denunciada era exigível comportamento diverso do discriminatório praticado contra a vítima. 2- Antecedentes criminais: "Antecedentes do agente: são os fatos anteriores de sua vida, incluindo-se tanto os antecedentes bons como os maus. Serve este componente especialmente para verificar se o delito foi um episódio esporádico na vida do sujeito ou se ele, com frequência ou mesmo habitualmente, infringe a lei." (DELMANTO, Celso et. al. Código Penal Comentado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 274.) "A valoração negativa da circunstância judicial dos antecedentes implica em afirmar que a condenação anterior não cumpriu seu papel reabilitador frente ao agente, o que conduz a necessidade de exasperação da pena do mínimo legal previsto em abstrato, desde que não incida ao mesmo tempo em reincidência (Súmula 241 do STJ). Os antecedentes da denunciada não são maculados. 3- Conduta social: "Enquanto os antecedentes se restringem aos envolvimentos criminais do agente, a conduta social tem um alcance mais amplo, referindo-se às suas atividades relativas ao trabalho, seu relacionamento familiar e social e qualquer outra forma de comportamento dentro da sociedade." (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 1. p. 490). "A conduta social tem caráter comportamental, revelando-se pelo relacionamento do acusado no meio em que vive, perante a comunidade, a família e os colegas de trabalho." (SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença Penal Condenatória – Teoria e Prática. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 128-129). In casu, não existem nos autos provas que maculem a conduta social da denunciada. 4- Personalidade: "Deve ser entendida como síntese das qualidades morais e sociais do indivíduo. Na análise da personalidade deve-se verificar a sua boa ou má índole, sua maior ou menor sensibilidade ético-social, a presença ou não de eventuais desvios de caráter de forma a identificar se o crime constitui um episódio acidental na vida do réu." (BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 299). "Ora, a personalidade não é um conceito jurídico, mas do âmbito de outras ciências - Psicologia, Psiquiatria, Antropologia –, e deve ser entendida como um complexo de características individuais próprias, adquiridas, que determinam ou influenciam o comportamento do sujeito." (TELES, Ney Moura. Direito Penal – Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v. I. p. 366). Na hipótese, é impossível a avaliação da personalidade com base exclusivamente no crime praticado. 5- Motivos do crime: "Os motivos do crime são razões subjetivas que estimularam ou impulsionaram o agente à prática da infração penal. Os motivos podem ser conforme ou em contraste com as exigências de uma sociedade. Não há dúvidas de que, de acordo com a motivação que levou o agente a delinquir, sua conduta poderá ser bem mais ou bem menos reprovável. O motivo constitui a origem propulsora da vontade criminosa. Nada mais é do que o ‘porquê’ da ação delituosa. São as razões que moveram o agente a cometer o crime. Estão ligados à causa que motivou a conduta. Todo crime possui um motivo. É o fator íntimo que desencadeia a ação criminosa (honra, moral, inveja, cobiça, futilidade, torpeza, amor, luxúria, malvadez, gratidão, prepotência etc)." (SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença Penal Condenatória – Teoria e Prática. 8. ed. Salvador: Juspodvim, 2013. p. 133). No caso em apreço, os motivos são desfavoráveis à denunciada, porque não há particular relevo que justificasse a ação preconceituosa. 6- Circunstâncias do crime: "[...] as circunstâncias do crime são os fatores de tempo, lugar, modo de execução, excluindo-se aqueles previstos como circunstâncias legais." (PRADO, Luiz Regis et al. Curso de Direito Penal Brasileiro. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 428). Trata-se do modus operandi empregado na prática do delito. No vertente caso, considerando as condições de tempo, lugar e modo de execução as circunstâncias são desfavoráveis à sentenciada. 7- Consequências do crime: "As consequências denotam a extensão do dano produzido pela prática criminosa, sua repercussão para a própria vítima e seus parentes, ou para a comunidade. Elas somente devem ser consideradas quando não forem elementares do tipo, ou seja, essenciais à figura típica. Por tal motivo, são chamadas por alguns doutrinadores de 'consequências extrapenais'." (JANSEN, Euler. Manual de Sentença Criminal. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 96). Na hipótese, foram graves as consequências do crime considerando o abalo psicológico causado à vitima. 8- Comportamento da vítima: “À primeira vista, parece que este dispositivo apenas serve para abrandar a sanção penal. Todavia, o CP brasileiro [...] não considera o comportamento da vítima como atenuante, mas o inclui entre as circunstâncias judiciais. Assim sendo, em nossa opinião, o comportamento do ofendido deve ser apreciado de modo amplo no contexto da censurabilidade da conduta do agente, não só a diminuindo, mas também aumentando-a, eventualmente.” (DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 275). Na hipótese, a vítima em nada contribuiu na perpetração do delito, razão por que tal circunstância deve ser considerada neutra, não desfavorável. Na primeira fase, considerando as circunstâncias judiciais desfavoráveis, fixo a pena base em seu mínimo legal, qual seja, em 01 ano e 06 (seis) meses de reclusão e ao pagamento de 30 (trinta) dias-multa. Na segunda etapa, não vislumbro a incidência de circunstâncias agravantes ou atenuantes. Na terceira fase, ausentes causas de aumento ou de diminuição de pena, fica a pena definitiva fixada em 01 ano e 06 (seis) meses de reclusão e ao pagamento de 30 (trinta) dias-multa calculadas na razão de um trigésimo do salário mínimo da época do fato. O regime prisional deve ser o aberto. Isso porque, o quantum da pena aplicada, somado à primariedade da denunciada e à ausência de circunstâncias judiciais desfavoráveis, permitem a fixação do regime prisional mais brando. A pena privativa de liberdade é inferior a 04 anos e a denunciada é primária. Há, portanto, possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito. Nesse sentido: “DIREITO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. HOMOFOBIA. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSO MINISTERIAL. 1. DO CASO EM EXAME. Recurso de apelação interposto pelo Ministério Público contra sentença que absolveu o réu Jobis da Silva da prática do delito previsto pelo artigo 20, caput, e parágrafo 2º, da Lei n. 7.716/89. Pretensão recursal de condenação do acusado nos exatos termos da denúncia. Materialidade e autoria delitiva comprovadas. 2. DOS FATOS SUBMETIDOS A JULGAMENTO. Acusado que, ao comentar matéria publicada no site UOL sob o título “Pai solo, ele teve gêmeos gerados por sobrinha: “Realizei meu sonho”, proferiu os seguintes comentários: “História linda?? Me desculpem, mas de linda não tem nada. Estas crianças nasceram totalmente fora de um ambiente de família e nem tiveram a chance de escolher o que queriam, irresponsabilidade total e uma coisa totalmente insana. Se quisesse ter um filho, não escolheria ser um homossexual e se é um, não teria que pensar em ter filhos, pois esta sendo muito egoísta e não esta pensando no futuro das crianças inocentes. Algo muito fora da sanidade.” “Glamour demais do Viva Bem para uma história que não tem nada disso. É justamente este o trabalho da mídia que irrita muita gente, querer transformar algo deste nível em história linda e cheia de felicidade.” Atribuição de responsabilidade ao acusado pelo induzimento e incitação à discriminação e o preconceito contra pessoas homossexuais. 3. DAS RAZÕES DE DECIDIR. 3.1. Condenação adequada. Materialidade e autoria delitiva demonstradas. Declarações da vítima e depoimentos das testemunhas coesos e livres de contradição. Réu que admitiu ser o autor dos comentários publicados após reportegem publicada em site de notícias. Discurso intolerante e sem empatia, que veio carregado de ódio e desprezo à comunidade LGBTQIAPN+. 3.2 A responsabilização penal, longe de contrariar a liberdade de expressão, fixa um padrão de compatibilidade entre aquela e a liberdade, ambas erigidas à condição de direitos fundamentais. O limite reside justamente em um dos mais graves abusos, representado pela discriminação ou preconceito contra grupos minoritários. Hipótese em que a manifestação do acusado extrapolou os limites da liberdade de expressão assegurada pelo texto constitucional. Dizeres que carregaram nítido propósito de desprezo e de discriminação não se tratando, portanto, de mera crítica. 3.3. O plenário do Colendo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26/DF e do Mandado de Injunção nº 4.733/DF (j. 13.06.2019), assentou o entendimento de que as condutas homofóbicas e transfóbicas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, traduzem expressões de racismo, em sua dimensão social, e assim configuram os tipos penais previstos na Lei nº 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceitos de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. 3.4. Decisão proferida em razão de reconhecida omissão do Poder Legislativo e que, portanto, possui caráter vinculante aos demais órgãos do Poder Judiciário, a teor do que dispõe o artigo 102, parágrafo 2º da Constituição Federal. 3.5. Configuração do crime previsto no art. 20 da Lei 7.716/1989 que prescinde da demonstração do efetivo dano. Crime formal que se perfaz com a realização de atos discriminatórios, do induzimento e da instigação. Tipo penal que não exige a demonstração do impacto social causado pelos atos discriminatórios. 4. DA DOSIMETRIA E DO REGIME PRISIONAL. Ausência de circunstâncias judiciais desfavoráveis que permitem a fixação da pena base no mínimo legal. Circunstâncias agravantes e atenuantes, causas de aumento ou de diminuição de pena. Inexistentes. Fixação do regime prisional aberto com a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. 5. DO DISPOSITIVO. Recurso conhecido e provido para: a) condenar o réu JOBIS DA SILVA à pena de 02 anos de reclusão, em regime inicial aberto, e ao pagamento de 10 dias-multa, no valor unitário mínimo legal, como incurso no artigo 20, caput, e parágrafo 2º, da Lei n. 7.716/89; b) substituir a pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos, consistentes na prestação de serviços à comunidade, cujas entidades e condições serão especificadas por ocasião da execução penal, e no pagamento de prestação pecuniária no valor de dois salários mínimos em favor de fundo público do Estado de São Paulo ou da União que se dedique à defesa dos direitos da população LGBTQIAPN+ , a ser indicado, igualmente, pelo Juízo da execução. Legislação Citada: Lei n. 7.716/89, art. 20, caput e parágrafo 2º. Código de Processo Penal, art. 386, VII. Constituição Federal, art. 5º, incisos XLI e XLII. Código Penal, art. 44. Jurisprudência Citada: STF, ADO nº 26, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 13.06.2019. STJ, CC n. 191.970/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, Terceira Seção, j. 14.12.2022, DJe de 19.12.2022. TJSP, Apelação Criminal 1500370-58.2021.8.26.0101, Rel. Freire Teotônio, 14ª Câmara de Direito Criminal, j. 11.04.2024. TJSP, Recurso em Sentido Estrito 1509088-80.2023.8.26.0228, Rel. Alexandre Almeida, 11ª Câmara de Direito Criminal, j. 25.09.2023. TJSP, Apelação Criminal 1500167-58.2023.8.26.0673, Rel. Ricardo Sale Júnior, 15ª Câmara de Direito Criminal, j. 14.11.2023. TJSP, Apelação Criminal 1503963-59.2022.8.26.0037, Rel. Christiano Jorge, 15ª Câmara de Direito Criminal, j. 30.01.2024. (TJSP, APELAÇÃO CRIMINAL N. 0001013-18.2023.8.26.0361, RELATOR DESEMBARGADOR MARCOS ZILLI, JULGADO NO DIA 10.03.2025) Presentes os requisitos do artigo 44 do Código Penal, e considerando que a pena privativa de liberdade ficou em 01 (um) ano e 06 (seis) meses de reclusão, substituo a pena privativa de liberdade por duas penas restritiva de direitos, consistentes em: 1) Prestação de serviços gratuitos à comunidade com carga horária semanal de 07 horas, pelo período da condenação, em estabelecimento público ou entidade filantrópica a ser posteriormente designada; 2) Pagamento de prestação pecuniária de 02 (dois) salários mínimos vertidos para entidade entidade filantrópica local a ser designada pelo Juízo da Execução Penal. Esses valores serão revertidos em favor de instituições filantrópicas e que estão aptas e regulamente cadastradas em juízo para receber esses valores, ficando com a obrigação de prestar contas, posteriormente. O local do cumprimento da pena prestação de serviços gratuitos à comunidade, bem como a definição da instituição beneficiária dos recursos da pena pecuniária serão definidos em audiência admonitória. DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE Quanto à necessidade de recolhimento do réu à prisão, deve-se ponderar que qualquer restrição à liberdade antes da sentença condenatória transitada em julgado é medida excepcional, só sendo cabível quando presentes os requisitos ensejadores da prisão cautelar, previstos no art. 312 do Código de Processo Penal. Ademais que, levando em consideração o regime inicial de cumprimento estabelecido para a pena privativa de liberdade, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito e o fato de ser a denunciada primária, reconheço-lhe o direito de recorrer da presente sentença em liberdade. TRANSITADA EM JULGADO A SENTENÇA a)EXPEÇA-SE GUIA DE EXECUÇÃO PENAL e proceda a distribuição no SEEU. b)INFORME-SE à Justiça Eleitoral para fins de suspensão dos direitos políticos. Custas pela denunciada nos termos do artigo 804 CPP, suspensas em razão da gratuidade judiciária que fica deferida no momento. Publicada e registrada eletronicamente. Intimem-se. Nos termos do art. 201, §2º, do Código de Processo Penal, com as alterações introduzidas pela Lei nº 11.690, de 09 de junho de 2008, intime-se a vítima sobre os termos da sentença. Santa Luzia-PB, (data e assinatura eletrônicas). ROSSINI AMORIM BASTOS Juiz(a) de Direito
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