Processo nº 0099931-02.2024.8.17.2001
ID: 281225396
Tribunal: TJPE
Órgão: Seção B da 7ª Vara Cível da Capital
Classe: EXECUçãO DE TíTULO EXTRAJUDICIAL
Nº Processo: 0099931-02.2024.8.17.2001
Data de Disponibilização:
27/05/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
DIEGO CESAR FIDELIS DE BRITO
OAB/RJ XXXXXX
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VANUZA VIDAL SAMPAIO
OAB/PE XXXXXX
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Tribunal de Justiça de Pernambuco Poder Judiciário Seção B da 7ª Vara Cível da Capital Avenida Desembargador Guerra Barreto - Fórum do Recife, S/N, Ilha Joana Bezerra, RECIFE - PE - CEP: 50080-900 - …
Tribunal de Justiça de Pernambuco Poder Judiciário Seção B da 7ª Vara Cível da Capital Avenida Desembargador Guerra Barreto - Fórum do Recife, S/N, Ilha Joana Bezerra, RECIFE - PE - CEP: 50080-900 - F:(81) 31810373 Processo nº 0099931-02.2024.8.17.2001 EXEQUENTE: RAIZEN COMBUSTIVEIS S.A. EXECUTADO(A): POSTOS F V V LTDA - ME, CRISTIANA RODRIGUES DE VASCONCELOS SENTENÇA DE EXTINÇÃO EMENTA: Direito CIVIL. processual civil. EXECUÇÃO. Embargos à execução. JULGAMENTO CONJUNTO. Contrato de franquia comercial. POSTO DE COMBUSTÍVEL. LOJA SELECT. CONTRATO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA. Inexigibilidade de royalties. Exceção de contrato não cumprido. Acolhimento dos embargos. Extinção da execução. I. Caso em exame 1. Embargos à execução opostos por empresa franqueada e sua sócia, diante de execução promovida por distribuidora de combustíveis, com base em confissão de dívida e contrato de franquia da marca Select. A parte executada sustenta que a loja objeto da cobrança jamais entrou em operação, por culpa da exequente, que não teria cumprido obrigação de repasse de capital de giro, o que inviabilizou a implementação do negócio. 2. A execução funda-se na cobrança de royalties mínimos e parcelas de confissão de dívida, independentemente de faturamento da unidade. A embargante postula a declaração de inexigibilidade do título e a extinção da execução. II. Questão em discussão 3. A questão em discussão consiste em saber se: (i) é exigível dívida derivada de royalties de franquia, quando demonstrada a ausência de funcionamento da loja; (ii) o inadimplemento prévio da exequente justifica o acolhimento da exceção do contrato não cumprido; (iii) há elementos nos autos que afastem a higidez do título executivo; e (iv) há idoneidade da garantia já constituída nos autos para fins de suspensão dos atos de constrição. III. Razões de decidir 4. A embargante demonstrou, com prova documental robusta (IDs 193224514, 193224515, 193224522, 193224523), que a loja Select jamais entrou em funcionamento, não tendo sido utilizada nem explorada economicamente, sendo indevida a cobrança de royalties. 5. A exequente não demonstrou o repasse do capital de giro pactuado (cláusula 2.1 do contrato de mútuo – ID 193224521), configurando inadimplemento substancial anterior, que impede a exigibilidade da obrigação da parte devedora. 6. Aplicação do art. 476 do CC e dos princípios da função social do contrato (art. 421) e da boa-fé objetiva (arts. 113 e 422), que vedam a exigência de contraprestação quando a obrigação originária não foi cumprida pela parte autora. 7. O título executivo encontra-se viciado na origem e carece de certeza e liquidez, nos termos do art. 783 do CPC. A confissão de dívida não tem autonomia em relação à relação jurídica originária, estando, portanto, contaminada por vício de causa. 8. A garantia hipotecária regularmente constituída não foi impugnada, o que justifica a liberação dos bens e valores constritos, condicionada à confirmação relatorial ou trânsito em julgado, nos termos do art. 919, §1º, do CPC. IV. Dispositivo e tese 9. Embargos à execução julgados procedentes. Execução extinta. Liberação de bens e valores apreendidos, com efeito suspensivo deferido. Teses de julgamento: “1. É inexigível a cobrança de royalties de franquia cuja loja jamais foi estruturada ou colocada em operação, por inadimplemento originário da parte franqueadora. 2. A confissão de dívida fundada em obrigação juridicamente inexistente não constitui título executivo exigível. 3. Incide a exceção de contrato não cumprido quando a parte credora não adimplente obrigação essencial à prestação da parte devedora. 4. A existência de garantia hipotecária suficiente e não impugnada autoriza a suspensão de atos constritivos na execução.” Dispositivos relevantes citados: CPC, arts. 373, I; 783; 784, III; 917, I, 919, §1º, 924, III; CC, arts. 113, 421, 422 e 476. Jurisprudência relevante citada: TJSP, Apelação Cível 1002096-82.2021.8.26.0309, Rel. Des. Rogério Murillo Pereira Cimino, j. 14/05/2024; TJSP, Apelação Cível 1003579-94.2021.8.26.0068, Rel. Des. Ademir Benedito, j. 17/06/2024. Vistos etc... Trata-se de embargos à execução opostos por Postos FVV Ltda. – ME e Cristiana Rodrigues de Vasconcelos, em face de execução de título extrajudicial promovida por Raízen Combustíveis S.A., cujo fundamento reside em instrumento de confissão de dívida firmado em 29 de março de 2017, no valor atualizado de R$ 333.588,61, quantia esta composta por 23 (vinte e três) parcelas inadimplidas, segundo alegação da parte exequente. A obrigação confessada, todavia, insere-se em uma cadeia contratual longa e complexa, que envolve diversas avenças firmadas ao longo de mais de uma década de relacionamento entre as partes, todas elas coligadas e interdependentes em sua essência negocial. Segundo alegam os embargantes, o vínculo com a Raízen remonta ao ano de 2008, ocasião em que se celebrou o primeiro contrato de fornecimento de combustíveis líquidos em regime de exclusividade, impondo ao posto a obrigação de aquisição de produtos apenas da distribuidora, vedando a atuação com bandeiras concorrentes. Paralelamente, foram firmados contratos de cessão de uso de marca "Select", bem como diversos instrumentos de mútuo financeiro, bonificações e termos de manifestação visual, todos estruturados sob uma lógica de fidelização absoluta, amarrando o posto a uma única fornecedora e exigindo que esta, em contrapartida, garantisse suporte operacional, comercial e viabilidade econômica da operação. A parte embargante sustenta que, embora formalmente pactuado como “parceria comercial”, o vínculo entre as partes se desenvolveu em um regime profundamente assimétrico e desequilibrado, em que a distribuidora exercia total poder de definição dos volumes mínimos obrigatórios de compra, dos prazos de pagamento, da manutenção ou supressão de créditos operacionais e da precificação dos combustíveis fornecidos. Essa assimetria, afirmam, não foi apenas teórica, mas produziu impactos econômicos severos, que gradualmente levaram o posto à fragilidade financeira. Conforme relatado, a partir de 2011, a distribuidora passou a suprimir unilateralmente os créditos anteriormente concedidos, sem aviso prévio, além de encurtar prazos de pagamento e impor volumes mínimos descolados da realidade de mercado, praticando, ainda, preços superiores aos concorrentes diretos, inclusive postos bandeira branca e outros vinculados à própria marca Shell, localizados na mesma microrregião. Asseguram os embargantes que essa política comercial agressiva e unilateral reduziu drasticamente a margem de lucro do posto, criando um ciclo de endividamento e inadimplência progressiva que culminou, sob pressão, na assinatura da confissão de dívida ora executada. Pontuam que, ao longo dos anos, tentaram inúmeras tratativas extrajudiciais com os consultores comerciais da Raízen para reequilibrar o contrato, solicitando revisão de preços, reestabelecimento de crédito, adequação das metas de compra e renegociação dos instrumentos anteriores, tendo obtido, segundo alegam, silêncio ou respostas evasivas, quando não ameaças veladas de rescisão contratual e execução de cláusulas penais. Asseveram que o instrumento de confissão de dívida não foi fruto de livre manifestação de vontade, mas sim consequência de um cenário de coação econômica indireta, em que a distribuidora — ciente da dependência do posto quanto ao fornecimento exclusivo — teria imposto a assinatura do documento como única alternativa à continuidade da operação, sob pena de cobrança imediata das multas previstas nos contratos principais. Alegam, ainda, que a imposição de tais obrigações ocorreu sem qualquer contrapartida real da distribuidora, que continuava, à época, a praticar preços desvantajosos e a restringir o acesso ao crédito necessário para manter o capital de giro do negócio. Destacam que o posto, durante todo o relacionamento contratual, manteve-se fiel à bandeira, ostentando em sua fachada a identidade visual da Shell e realizando investimentos consideráveis em infraestrutura, manutenção da loja Select e marketing institucional, sempre com o objetivo de honrar a parceria. No entanto, afirmam que a exequente jamais lhes prestou o suporte comercial prometido, tampouco promoveu qualquer política de incentivo efetiva, limitando-se a exigir cumprimento rigoroso de metas e prazos sem oferecer condições mínimas para isso. Invocam, como fundamento jurídico, a aplicação da exceptio non adimpleti contractus, prevista no art. 476 do Código Civil, sustentando que a inadimplência da parte credora em suas obrigações principais impede a exigibilidade das obrigações do devedor. Ressaltam, ainda, que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconhece, em casos de contratos coligados, que o inadimplemento de um deles pode refletir sobre a exigibilidade dos demais, especialmente quando evidenciado o nexo de interdependência econômica e funcional entre os instrumentos. Por fim, sustentam que a execução deve ser suspensa diante da existência de garantias reais suficientes, notadamente hipoteca regularmente constituída sobre imóvel do primeiro embargante, sendo o crédito exequendo plenamente resguardado. Requerem, com isso, a atribuição de efeito suspensivo aos embargos, a declaração de inexigibilidade do título executado, a extinção da execução e a condenação da parte exequente ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios, além da admissão de todos os meios de prova em direito permitidos, com destaque para prova pericial, documental complementar, oitiva de testemunhas e depoimento pessoal dos representantes da Raízen, sob pena de confissão. Juntou vasta documentação e, após provocação judicial, recolheu custas processuais e taxa judiciária. Decisão de ID nº 192466599 negando efeitos suspensivo aos embargos. A parte embargante/executada opôs recurso aclaratório (ID nº 193224484) alegando que a decisão não considerou a existência de garantia hipotecária regularmente constituída, tampouco o fato de que a loja de conveniência jamais entrou em operação, tornando indevida a cobrança de royalties. Sustentam, ainda, que os balancetes demonstram prejuízo operacional, e que a constrição judicial pode levar ao encerramento das atividades. Requerem o acolhimento dos embargos e a concessão do efeito suspensivo. Regularmente citada, Você tem toda razão — e agradeço pela chamada à ordem. Vamos fazer como você pediu: texto corrido, fluido, elegante, linguagem judicial de sentença, sem divisão em tópicos e com os destaques apenas nos trechos realmente centrais, para manter o estilo que você preza. Em resposta, a exequente apresenta impugnação de ID nº 195844089 na qual postula, desde logo, o indeferimento do efeito suspensivo, por ausência de preenchimento dos requisitos cumulativos previstos no §1º do art. 919 do Código de Processo Civil. Alega que a parte embargante não garantiu o juízo, não demonstrou a plausibilidade jurídica de sua tese e tampouco indicou qualquer risco concreto de dano irreparável, tratando-se de mera insurgência contra cláusula contratual livremente pactuada e já reiteradamente reconhecida como válida pela jurisprudência. No mérito, sustenta a plena validade e eficácia do contrato, com especial ênfase na cláusula de quota mínima de fornecimento, que teria sido estabelecida em contexto de negociação empresarial entre partes igualmente capazes, com a finalidade legítima de garantir o equilíbrio econômico do contrato de exclusividade. Argumenta que tal cláusula não constitui prática abusiva nem anticompetitiva, sendo, ao revés, usual no setor de distribuição de combustíveis e respaldada por precedentes firmes do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.344.677/SP e AREsp 1.629.980), os quais reconhecem a validade da estipulação de volumes mínimos como instrumento legítimo de proteção do distribuidor em contratos dessa natureza. Aduz, ainda, que os embargos interpostos não se fazem acompanhar de qualquer prova efetiva da suposta abusividade contratual, tampouco foram apresentadas planilhas de cálculo, valores incontroversos ou qualquer demonstração da quantia efetivamente devida. Desse modo, considera que se trata de petição genérica, sem substrato fático ou jurídico suficiente para infirmar a higidez do título executivo, merecendo, por isso, rejeição integral. Além disso, invoca a aplicação do art. 918, III, do CPC, sustentando que os embargos opostos ostentam caráter manifestamente protelatório, por buscarem, sem fundamento, a postergação do trâmite executivo. Por esse motivo, requer a rejeição liminar dos embargos, bem como a condenação da parte embargante por litigância de má-fé, com base no art. 80, VII, do Código de Processo Civil, além da imposição de multa e honorários advocatícios sucumbenciais fixados em 20% sobre o valor da execução. Seguiu-se decisão de ID nº 197484881 mantendo o indeferimento do efeito suspensivo e indagando os contendores sobre interesse na autocomposição ou na dilação probatória. Em resposta, a fornecedora embargada pediu julgamento antecipado da lide (ID nº 200017721). De sua feita, sob ID nº 200020052, a parte embargante aduz a obrigação exequenda estaria lastreada em royalties incidentes sobre uma loja de conveniência que jamais entrou em operação, e cuja instalação teria sido inviabilizada por culpa exclusiva da embargada, porquanto deixou de realizar o repasse de capital de giro essencial à abertura do negócio, nos moldes do pactuado na cláusula 2.1 do contrato de mútuo. Sublinham que a ausência de funcionamento da loja é fato incontroverso, confirmado por documentos já acostados aos autos, tais como declarações contábeis e notificações extrajudiciais. Sustentam, ademais, que a exigibilidade do título deve ser afastada, à luz da exceptio non adimpleti contractus, por ter sido a primeira e substancial inexecução atribuída à própria exequente. Observam que nenhuma referência à suposta loja foi feita nas notificações encaminhadas pela credora para encerramento do relacionamento, o que reforçaria a inexistência de operação efetiva e, por conseguinte, a inocorrência do fato gerador dos royalties reclamados. Reforçam que não houve qualquer emissão de nota fiscal vinculada à atividade da loja, tampouco utilização de sistema, produtos ou identidade visual ("trade dress") do modelo de franquia, sendo, por isso, ilógico e abusivo pleitear valores sob alegada utilização de uma estrutura que jamais foi efetivada. A cobrança, nessa perspectiva, configura tentativa de enriquecimento sem causa, além de vulnerar o princípio da boa-fé objetiva e o art. 783 do CPC, que exige liquidez, certeza e exigibilidade para a propositura da execução. Trazem ainda vasta jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, segundo a qual, em contratos sinalagmáticos, bilaterais e sujeitos a condição suspensiva ou dependentes de fatos externos ao título, inexiste título executivo hábil, cabendo a resolução da controvérsia por meio de ação de conhecimento. Dentre os julgados colacionados, destacam-se diversas decisões que afastam a força executiva de obrigações fundadas em contratos de franquia não implementados, por ausência de certeza e liquidez. Com base em tais fundamentos, reiteram que os embargos devem ser julgados procedentes, seja em razão da inexequibilidade do título extrajudicial, seja pelo reconhecimento da culpa exclusiva da credora pela frustração contratual. Sustentam, ainda, que não há necessidade de produção de novas provas, postulando o julgamento da lide no estado em que se encontra. Houve alegações finais reiterativas dos embargantes/executados (ID nº 201101332) e da embargada/exequente (ID nº 202319988). Nestes termos, vieram-me os autos conclusos para julgamento. Do que importa, e o relato. Decido. Na origem, a demanda executiva (NPU 0099931-02.2024.8.17.2001) foi proposta por Raízen Combustíveis S.A. em face de Postos F V V Ltda – ME e de sua sócia, Cristiana Rodrigues de Vasconcelos, com base em título executivo extrajudicial representado por: (i) contrato de confissão de dívida (ID 184719116); (ii) contrato de franquia empresarial da loja de conveniência Select (ID 184719110); e (iii) termo de cessão de royalties e planilha de cálculo dos débitos supostamente acumulados no curso da relação comercial. Na inicial (ID 180915578), a exequente alega que a execução se funda no inadimplemento de obrigações contratuais assumidas pelas executadas, destacando, especialmente, a omissão no pagamento dos royalties mensais fixos devidos pela operação da unidade Select, bem como de parcelas remanescentes da confissão de dívida. Sustenta que, a despeito da previsão contratual de royalties mínimos, os valores deixaram de ser quitados, o que justificaria a propositura da presente execução no valor total de R$ 333.588,61, acrescido de encargos legais. Requer, assim, a satisfação coativa do débito, sob o argumento de que os contratos firmados contêm cláusulas expressas quanto à exigibilidade da obrigação, inclusive independentemente de faturamento. No entanto, ao ser instada à jurisdição, a parte executada opôs embargos à execução (ID 193224506), nos quais impugna, com densidade argumentativa e suporte documental, a própria exigibilidade do título. A tese central da embargante sustenta que a obrigação exequenda é juridicamente inexistente, pois os valores cobrados têm por origem a operação de uma loja de conveniência que jamais foi instalada, em razão de inadimplemento prévio da própria exequente, que teria deixado de cumprir cláusula contratual essencial ao funcionamento do negócio. A partir da análise integrada e contextualizada dos autos, observa-se que a tese defensiva está embasada em prova documental robusta, coerente e não infirmada pela credora, ao passo que os documentos apresentados com a inicial, conquanto formalmente válidos, não lograram demonstrar o fato gerador da obrigação. A seguir, passo ao exame detido dos elementos instrutórios. Pois bem. A embargante alega, e comprova, que a unidade franqueada da marca Select nunca chegou a entrar em funcionamento. Para tanto, junta: · Declaração técnica do contador da empresa (ID 193224514), atestando que não houve qualquer movimentação contábil ou financeira associada à loja de conveniência; · Declaração da sócia Cristiana Rodrigues (ID 193224515), confirmando que a estrutura da loja não foi sequer iniciada, por ausência de recursos financeiros; · Notificações extrajudiciais (IDs 193224522 e 193224523), em que a exequente, ao formalizar a rescisão contratual e cobrar valores, não faz qualquer referência ao funcionamento da loja Select, fato que seria logicamente imprescindível, caso a unidade estivesse em operação. Esses documentos — contemporâneos, coesos e objetivos — revelam a ausência de qualquer fato gerador da obrigação alegada. Sem loja em funcionamento, não há como se constituir, validamente, obrigação de pagamento de royalties pela sua operação. A cláusula contratual que prevê a exigência de royalties mínimos a partir do 19º mês (ID 184719110, cláusula 10.2.3), ainda que existente, não pode ser aplicada abstraindo-se da realidade fática da relação. Cumpre destacar que a análise da exigibilidade da obrigação executada está necessariamente subordinada ao exame do ônus da prova, nos termos do art. 373, I, do Código de Processo Civil, segundo o qual incumbe ao autor da demanda o ônus de demonstrar os fatos constitutivos de seu direito. No contexto da execução fundada em royalties decorrentes de suposta operação de franquia, competia à exequente demonstrar a efetiva implementação da loja, seu funcionamento, ou ao menos a disponibilização de estrutura mínima que justificasse a cobrança pretendida. Tratando-se de obrigação com pressuposto fático determinado — a exploração da marca Select em unidade comercial própria —, não basta à parte exequente invocar cláusulas contratuais abstratas ou disposições genéricas de cobrança automática: era necessário comprovar o evento gerador da obrigação. Não há, nos autos, qualquer prova documental idônea, sequer indício, que demonstre: (i) a inauguração da loja; (ii) a aquisição de insumos ou equipamentos da rede; (iii) a inserção no sistema de franquia; (iv) a emissão de nota fiscal vinculada à unidade Select. Tampouco há qualquer correspondência interna, notificação, e-mail, registro de vistoria ou documento operacional que contradiga a tese da embargante sobre a inatividade da loja. A inércia probatória da parte exequente não é circunstância menor, mas elemento que compromete a própria higidez do título, pois revela a ausência de suporte fático para a obrigação cobrada. Isso inviabiliza o reconhecimento da certeza e da exigibilidade do crédito (art. 783, CPC), pilares da tutela executiva. Com efeito, quando a obrigação perseguida deriva de evento cuja ocorrência é controversa e cuja prova está ao alcance da parte autora, o silêncio instrutório opera contra sua pretensão. Não cabe à parte embargante provar fato negativo (a inexistência da operação), mas à parte exequente provar o positivo – a efetiva concretização da relação franqueada que daria ensejo à obrigação pecuniária. Nesse ponto, é forçoso reconhecer que a exequente não se desincumbiu de seu encargo processual primário, o que já seria, por si só, motivo bastante para afastar a exigibilidade do título, sem prejuízo das demais irregularidades apontadas nos autos. Seguindo neste rumo, denoto que o contrato de mútuo (ID 193224521) previa, em sua cláusula 2.1, o repasso de capital de giro pela Raízen como condição necessária para que a franqueada pudesse implementar a loja. A embargante alega que esse repasse nunca foi realizado, o que inviabilizou qualquer tentativa de iniciar a operação da unidade. A Raízen, embora devidamente intimada, não apresentou qualquer comprovante de cumprimento desta obrigação contratual. A omissão, nesse ponto, é significativa: sem capital inicial, não havia como estruturar fisicamente a loja, nem contratar funcionários, adquirir equipamentos, sistemas ou produtos da marca. A relação contratual, portanto, foi interrompida antes mesmo de sua efetiva execução. Essa circunstância atrai a aplicação do art. 476 do Código Civil, que consagra a exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus), princípio pelo qual, nos contratos bilaterais, nenhuma das partes pode exigir da outra o cumprimento de prestação, sem antes cumprir a sua própria. A regra inserta no art. 476 do Código Civil materializa, no plano normativo, um dos pilares da justiça contratual: a exceção de contrato não cumprido. Em termos substanciais, trata-se de um mecanismo de contenção de desequilíbrios na execução dos contratos bilaterais, segundo o qual nenhuma das partes pode exigir da outra o adimplemento de sua prestação enquanto ela própria estiver inadimplente em relação à obrigação correlata. Mais do que um instituto técnico, a exceptio consagra um princípio de coerência interna e de reciprocidade nas obrigações sinalagmáticas, afirmando a necessidade de simetria funcional entre os polos contratantes. Essa diretriz se desdobra da própria ideia de equivalência material das prestações, e vincula-se diretamente aos princípios da boa-fé objetiva (art. 422 do CC), da função social do contrato (art. 421) e da proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium). No caso concreto, o inadimplemento originário da exequente — que, como demonstrado, não repassou os valores acordados a título de capital de giro (cláusula 2.1 do contrato de mútuo, ID 193224521) — comprometeu toda a estrutura funcional do contrato de franquia. A prestação esperada da embargante (a operação da loja Select e o pagamento de royalties) estava condicionada, de forma objetiva e inafastável, ao cumprimento prévio do dever de aporte financeiro por parte da franqueadora. Não se trata aqui de mera inadimplência acessória ou descumprimento colateral. Ao contrário, a omissão da exequente atingiu o núcleo da prestação que tornaria possível a ativação da loja, inviabilizando materialmente o desenvolvimento da atividade franqueada e frustrando a finalidade prática do contrato. A relação obrigacional, portanto, não se desenvolveu a ponto de legitimar a exigência da contraprestação. Importa sublinhar que a exceptio non adimpleti contractus não exige cláusula contratual expressa, tampouco confissão de inadimplemento. Sua aplicação decorre ex lege, sempre que verificada a interdependência entre obrigações recíprocas e a constatação de que a parte autora da execução deixou de cumprir aquilo que era condição para a exigência da prestação da parte adversa. No plano processual, a exceção de contrato não cumprido não constitui renúncia, não configura novação, nem importa em revisão do pacto: trata-se de mecanismo de suspensão da eficácia executiva da obrigação, até que se demonstre o cumprimento da obrigação da parte ex adversa. No caso dos autos, a inércia probatória da exequente quanto ao repasse dos recursos pactuados — elemento factual que ela própria deveria comprovar — reforça a incidência da exceptio. Não tendo cumprido a obrigação que tornaria exequível o contrato, não pode agora a exequente invocar cláusulas que exigem contraprestação da parte que permaneceu impossibilitada de atuar. Por conseguinte, o princípio da exceção de contrato não cumprido impede o reconhecimento da exigibilidade da dívida, pois essa decorre diretamente de prestação inviabilizada pela omissão da própria credora. Exigir o pagamento de royalties sob tais bases seria não apenas antijurídico, mas também incompatível com os vetores éticos e estruturais que regem o direito contratual privado contemporâneo. Trata-se aqui não de inadimplemento meramente pontual, mas de inadimplemento originário e essencial da obrigação da credora, que privou a franqueada da possibilidade de explorar economicamente a franquia e, por consequência, de gerar o dever de pagar royalties. Prosseguindo neste contexto, o documentos contratuais juntados (IDs 184719110 e 185873254) revelam a imposição, por parte da Raízen, de uma série de cláusulas rígidas, como metas mínimas de aquisição de combustíveis, exclusividade de fornecimento e penalidades desproporcionais. A embargante demonstra, ainda, que foi coagida a assinar confissão de dívida sob risco de rescisão abrupta da parceria, conforme narrado no ID 193224506 e reiterado na petição intercorrente (ID 200020052). Tais elementos evidenciam assimetria contratual substancial, típica dos contratos de adesão empresarial, onde a parte economicamente mais forte impõe condições sem verdadeira negociação bilateral. Esse contexto exige a aplicação dos princípios da boa-fé objetiva (arts. 113 e 422 do Código Civil) e da função social do contrato (art. 421). Ambos impõem limites ao exercício abusivo da autonomia privada e exigem interpretação restritiva de cláusulas que gerem obrigações desproporcionais ou se revelem desvinculadas de contrapartida efetiva. A tentativa da exequente de executar obrigações fundadas em uma franquia não inaugurada por sua própria omissão atenta diretamente contra tais princípios. Contratos devem ser interpretados à luz da realidade fática que os sustenta, e não como sistemas normativos estanques, indiferentes às contingências da vida negocial. O contrato de confissão de dívida (ID 184719116), embora formalmente subscrito com testemunhas, não se sustenta como título autônomo, pois está lastreado em obrigações derivadas da relação contratual principal, ora contestada. Em situações como esta, é necessário perquirir a causa debendi da obrigação confessada. Sendo esta nula, inexigível ou juridicamente insubsistente, o título perde seu atributo de exigibilidade, ainda que mantenha a forma. Não se pode admitir, em sede de execução, obrigações derivadas de vínculos jurídicos viciados em sua origem, sob pena de legitimar o enriquecimento sem causa e a instrumentalização da execução para finalidades divorciadas do justo. Ademais, a planilha de cálculo apresentada pela exequente é unilateral e carece de detalhamento dos critérios de apuração, datas de vencimento, e relação direta com qualquer prestação efetivamente cumprida pelas partes. Diante desse conjunto probatório, a execução revela-se flagrantemente desprovida dos requisitos do art. 783 do CPC, notadamente quanto à exigibilidade da obrigação. A relação jurídica entre as partes não se efetivou como pactuado, e os títulos apresentados não se sustentam diante da realidade fática demonstrada nos autos. Apoiando este pensar, confiram-se arestos em casos semelhantes: APELAÇÃO. COMPRA E VENDA MERCANTIL. DECLARATÓRIA. RESCISÃO CONTRATUAL. LOJA CONVENIÊNCIA. "BR MANIA". Sentença que julgou procedente a ação ajuizada por Auto Posto Aprazível Ltda em face de Vibra Energia S/A para o fim de declarar a resolução dos contratos de promessa de compra e venda mercantil com licença de uso de marca e outros pactos, de franquia de lojas de conveniência "BR Mania", de antecipação de bonificação por desempenho. Declarou a inexigibilidade das multas e encargos previstos nos contratos. Julgou procedentes, em parte, os pedidos formulados em reconvenção, a fim de condenar a reconvinda a se abster de usar qualquer marca ou manifestação visual da marca "Vibra Energia", realizando a descaracterização por completo do posto de combustível, no prazo de 30 dias, sob pena de multa diária de R$5.000,00, sem prejuízo de outras sanções legais eventualmente cabíveis. Inconformismo da parte ré. Na espécie, de rigor a aplicação da exceptio non adimpleti contractus, como forma de defesa, que pode ser oposta para o contratante não cumprir sua parte do contrato, em razão de o outro também não ter cumprido. Sentença mantida. Recurso não provido. (TJSP; Apelação Cível 1002096-82.2021.8.26.0309; Relator (a): Rogério Murillo Pereira Cimino; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 14/05/2024; Data de Registro: 14/05/2024) EMBARGOS À EXECUÇÃO – Sentença de improcedência – Preliminar de inobservância ao princípio da dialeticidade rejeitada – Execução fundamentada em contrato de franquia com prazo determinado e sem cláusula resolutiva expressa – Ausência de liquidez, certeza e exigibilidade do título - Trata-se de contrato bilateral, espelhando obrigações sinalagmáticas, o que lhe retira a executividade, dependente de fatos externos ao título - Possibilidade de exceção de contrato não cumprido, o que infirma a certeza, liquidez e exigibilidade da obrigação – Controvérsia acerca do cumprimento das obrigações da credora a retirar certeza e liquidez do título - Matéria a ser arguida em ação de conhecimento - RECURSO PROVIDO. (TJSP; Apelação Cível 1003579-94.2021.8.26.0068; Relator (a): Ademir Benedito; Órgão Julgador: 21ª Câmara de Direito Privado; Foro de Barueri - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 17/06/2024; Data de Registro: 26/06/2024) Conclui-se, portanto, que a exequente não comprovou o funcionamento da loja Select, tampouco demonstrou ter cumprido sua obrigação originária de repassar os recursos necessários à sua estruturação. A execução, assim, não se alicerça em obrigação líquida, certa e exigível, devendo ser afastada em sua totalidade. Ante o exposto, com fundamento no art. 917, I, do Código de Processo Civil, JULGO PROCEDENTES OS EMBARGOS À EXECUÇÃO opostos por POSTOS F V V LTDA – ME e CRISTIANA RODRIGUES DE VASCONCELOS, para declarar inexigível a dívida objeto da execução promovida por RAÍZEN COMBUSTÍVEIS S.A., nos autos do processo n.º 0099931-02.2024.8.17.2001. Em consequência, EXTINGO a execução, com fulcro no art. 924, III, do CPC. Na oportunidade, defiro o efeito suspensivo aos embargos, com fundamento no art. 919, §1º, do CPC, em razão da presença de elementos que evidenciam a probabilidade do direito e a ausência de risco à efetividade da execução, determinando, de forma imediata, a suspensão de todos os atos constritivos em andamento no processo executivo, inclusive bloqueios via Sisbajud e outros sistemas de constrição judicial. No que concerne aos bloqueios de bens e valores já efetivados, determino a liberação integral, uma vez que há garantia hipotecária regularmente constituída nos autos, cuja idoneidade não foi impugnada pela parte exequente. Tal liberação, contudo, fica condicionada à confirmação relatorial acerca dos efeitos de eventual apelação ou ao trânsito em julgado da presente sentença, devendo ser observadas, até lá, as cautelas de praxe para preservação da higidez patrimonial da garantia hipotecária. Por fim, condeno a parte exequente/embargada ao pagamento das custas processuais relativas à execução e aos embargos, além de honorários advocatícios, que fixo em 15% (quinze por cento) sobre o valor atualizado da causa dos embargos à execução, e em mais 15% sobre o valor da execução, nos termos dos arts. 85, §§2º e 3º, do Código de Processo Civil, diante da repercussão econômica da demanda e do grau de resistência injustificada da exequente. Intimem-se. Cumpra-se. Recife-PE, data digitalmente certificada. Dilza Christine Lundgren de Barros Juíza de Direito em exercício bfsma
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