Ministério Público Do Trabalho e outros x Vinicius Lopes Alves
ID: 263130711
Tribunal: TRT2
Órgão: 4ª Turma
Classe: RECURSO ORDINáRIO TRABALHISTA
Nº Processo: 1000450-19.2023.5.02.0363
Data de Disponibilização:
30/04/2025
Polo Passivo:
Advogados:
SOLIMAR MACHADO CORREA
OAB/PA XXXXXX
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ALINE MARIA RIBEIRO MESQUITA
OAB/MG XXXXXX
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RAFAEL ALFREDI DE MATOS
OAB/SP XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA DO TRABALHO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 2ª REGIÃO 4ª TURMA Relatora: MARIA ISABEL CUEVA MORAES 1000450-19.2023.5.02.0363 : UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA. : VINI…
PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA DO TRABALHO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 2ª REGIÃO 4ª TURMA Relatora: MARIA ISABEL CUEVA MORAES 1000450-19.2023.5.02.0363 : UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA. : VINICIUS LOPES ALVES PROCESSO nº 1000450-19.2023.5.02.0363 (ROT) RECORRENTE: UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA. RECORRIDO: VINICIUS LOPES ALVES RELATORA: MARIA ISABEL CUEVA MORAES I - R E L A T Ó R I O. Adoto o relatório da r. sentença de id. fb87e33, que julgou parcialmente procedente a ação. Embargos de declaração opostos pela reclamada (id. b9c9653), rejeitados pela r. decisão de id. 9a57747. Recurso Ordinário interposto pela reclamada (id. 85c358f), insurgindo-se nos seguintes tópicos: incompetência da Justiça do Trabalho; vínculo de emprego; multa por embargos protelatórios; contrato intermitente; início do contrato; remuneração; férias acrescidas de um terço; anotação da CTPS e entrega de TRCT; multa do art. 477 da CLT; e recolhimentos previdenciários e fiscais. Custas processuais e depósito recursal comprovados (fls. 937/941 do PDF). Contrarrazões (id. 9943c5b). Parecer do D. Representante do Ministério Público do Trabalho (id. b631b3e), pelo não provimento do recurso interposto pela reclamada. É o relatório. II - V O T O. 1. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE. Presentes os pressupostos legais de admissibilidade, conheço do recurso interposto. 2. FUNDAMENTAÇÃO. 2.1. Suspensão do processo. Determina-se o prosseguimento do feito por não hão haver determinação de suspensão processual na decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a Repercussão Geral do Recurso Extraordinário nº 1.446.336/RJ (Tema 1291). 2.2. Preliminar Incompetência material da Justiça do Trabalho. Vindica o reclamante o reconhecimento da relação de emprego com a demandada, o que atrai a competência material da Justiça do Trabalho, à luz do artigo 114, I da Constituição Federal. Ainda que a demandada afirme que a relação estabelecida entre as partes seja de natureza civil, a questão na realidade remete ao mérito e com ele será examinada. Rejeito. 2.2. Vínculo de emprego. À luz do princípio do contrato realidade, o liame laboral configura-se independentemente da vontade das partes. Por força desse princípio, ainda que uma das partes recuse as posições de empregado e/ou empregador, estarão elas inarredavelmente ligadas por contrato de trabalho, uma vez verificados os requisitos de sua conceituação legal, mostrando-se irrelevante, ipso facto, a intenção que animou qualquer delas desde o início, não se revestindo de força vinculativa para a determinação da natureza jurídica da relação estabelecida. No mesmo sentido, a lição de Américo Plá Rodriguez, em sua clássica obra "Princípios de Direito do Trabalho", ao apontar como princípio fundamental do ordenamento jurídico do trabalho o da primazia da realidade, por força do qual, em caso de dissonância entre o que ocorre na realidade dos fatos e o que emerge de documentos, deve-se privilegiar a verdade real, isto é, ao que ocorre no mundo dos fatos, in verbis: "o significado que atribuímos a este princípio é o da primazia dos fatos sobre as formas, as formalidades ou as aparências. Isso significa que em matéria de trabalho importa o que ocorre na prática, mais do que aquilo que as partes hajam pactuado de forma mais ou menos solene, ou expressa, ou aquilo que conste em documentos, formulários e instrumentos de controle". (in Princípios de Direito do Trabalho, São Paulo: LTr, 1994, p. 227). Em arremate, mesmo que as partes tenham dado - formalmente - a roupagem da relação jurídica como sendo diversa da de emprego, os fatos devem sempre prevalecer sobre as formas, havendo de ser reconhecida a relação de emprego sempre que uma pessoa de forma pessoal e subordinada presta serviço de natureza não eventual a outrem que assume os riscos da atividade econômica. Observe-se que a Lei n. 12.587/2012, no seu artigo 11-A, trata da regularização da atividade ora em exame, reconhecendo sua legalidade, cabendo ao ente público a concessão da autorização para seu exercício. Cumprindo as exigências legais, o motorista está autorizado a exercer sua atividade, por meio do aplicativo. Antes de adentrarmos ao exame da prova dos autos, convém discorrer acerca do pensamento dos doutrinadores, diante do surgimento de novas formas de trabalho, como nos ensina Georgenor de Souza Franco, no artigo "Uberização e Trabalho Autônomo" in "Uberização do Trabalho", Revista Eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, V. 10, n. 95, janeiro/21): "Trata-se de uma inovação disruptiva que leva a sociedade a uma readaptação e a reavaliação de seus costumes tradicionais. Tendo em vista os traços caracterizadores da relação de emprego, parece que na relação Uber versus motorista o que existe não é um contrato de parceria, mas aparentemente um vínculo empregatício bem delineado. (. . .) Com efeito, temos subordinação representada pela submissão dos motoristas às regras da Uber; a não eventualidade poderia ser identificada pelo cumprimento de jornada mínima de trabalho sem o que o motorista perde o acesso ao uso do aplicativo; a pessoalidade, pela impossibilidade de transferir os trabalhos a outro motorista, sem cadastramento prévio; e a remuneração decorrente da transferência de parte do pagamento efetuado pelo cliente, em cartão de crédito, à Uber para o motorista, mas o pagamento também pode ser diretamente ao motorista. Aparentemente estariam passíveis de identificação os tradicionais requisitos da relação de trabalho subordinado." (páginas 17 e 18). (destaques nossos). E dentre os julgados nos tribunais internacionais, proferidos nas ações judiciais ajuizadas na Espanha, Itália, Grécia e França, Georgenor de Souza Franco cita julgamento no Brasil, mais precisamente no TRT da 3ª Região (RO 0010806-62.2017.5.03.0011), que "admitiu a existência de vínculo empregatício, tendo o Relator entendido que o motorista não exerce as atividades por sua iniciativa e conveniência, não se auto-organiza, nem deixa de se submeter ao controle da empregadora. Trata-se de típico contrato de adesão com expressa previsão de que o motorista é obrigado a aceitar os termos e condições nele estipulados. No que se refere a subordinação, destacou que o motorista somente toma ciência do destino escolhido pelo usuário, quando o recebe em seu veículo e dá o comando de início da corrida. Destacou a Corte ainda a ausência de liberdade na estipulação do valor do trabalho prestado pelo próprio motorista de aplicativo o afasta, completamente, da condição de autônomo, e o fato de a avaliação do motorista realizada pelo cliente da corrida busca assegurar um padrão de qualidade dos serviços no interesse da empresa Uber, além o motorista arcar com as despesas do veículo, representando, na realidade, talvez a face mais perversa das condições impostas pela empresa para o trabalho via aplicativo Uber. (...)". (in "Uberização do Trabalho", Revista Eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, V. 10, n. 95, janeiro/21 Páginas 17 a 21). Acesso em 20.04.2021. Igualmente reconhecendo relação de emprego os processos 1000123-89.2017.5.02.0038, da 2ª Região e 0011359.34.2016.5.03.0112 da 3ª Região. E, no mesmo sentido, foi o julgado exarado no processo n. 0010258-59.2020.5.03.0002,sendo recorrente RODRIGO DE ALMEIDA MACEDO e recorrida UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA., voto da lavra do Relator Desembargador Antônio Gomes de Vasconcelos, da E. 11ª Turma do Colendo TRT da 3ª Região: "(. . .) No caso, restou claro que o reclamante, pessoa física, prestou serviços de motorista em prol da reclamada, mediante cadastro individualizado na plataforma da Uber, caracterizando a pessoalidade. Ressalta-se que a reclamada veda expressamente a utilização do cadastro de motorista por outra pessoa, conforme "Políticas de Desativação" ID. 7fc31c5 - Pág. 46. A atividade do autor era remunerada pela ré, que efetuava os repasses pelas viagens realizadas (ID. d695593). Cumpre destacar que a fixação do preço do serviço era feita pela reclamada, o que afasta a suposta autonomia do motorista. A prova documental (ID. 42e351b) demonstra, ainda, que a empresa adota a política de pagamento de prêmios aos motoristas que se destacam. Tais fatos revelam, portanto, o requisito da onerosidade. O histórico de viagens do reclamante (ID. ae3e1f7) demonstra a continuidade na prestação dos serviços, que se inseriam na atividade econômica da reclamada. Desse modo, restou comprovado o requisito da não eventualidade. A subordinação, elemento primordial da caracterização do vínculo de emprego no caso presente, foi evidenciada pelo conjunto probatório, que demonstrou que a Uber tinha o controle da prestação de serviços, exercendo poder diretivo e atuando muito além de mera locadora de plataforma virtual. O documento ID. 7fc31c5 (p. 46-48) refere-se à "Política de Desativação", que apresenta extensa lista de ações não permitidas pela Uber, tais como: "ficar online sem disponibilidade imediata", "compartilhar seu cadastro", "aceitar viagem e ter uma taxa de cancelamento maior do que a taxa de referência da cidade", "ficar online na plataforma e ter uma taxa de aceitação menor do que a taxa de referência da cidade", "instalar câmeras internas de gravação dentro do veículo", dentre outras ações não permitidas. Em caso de descumprimento das regras impostas pela reclamada, o motorista sujeita-se à rescisão contratual, perdendo acesso ao aplicativo de motorista. Tais regras tornam evidente o trabalho subordinado, na medida em que a Uber exercia plenamente seu poder diretivo ao expedir normas relativas ao comportamento e às condições de trabalho do motorista. A título de exemplo, cita-se a mensagem de bloqueio ID. 18abcce - Pág. 1, encaminhada a motorista da Uber, informando o impedimento de realizar viagens em aeroportos, por ter sido identificada atividade irregular durante auditoria. Observa-se, portanto, que os trabalhadores da Uber, incluindo o reclamante, atuavam sobre intensa e eficaz supervisão tecnológico/algorítmica, sujeitando-se a bloqueio da plataforma e sendo impossibilitados de trabalhar, medida que, a rigor, induz falta grave do empregador, qual seja, deixar de dar trabalho. Outros documentos juntados aos autos corroboram a existência do trabalho subordinado, havendo controle do número de viagens associado ao nível de avaliação dada pelos passageiros (ID. 7af4fd9 - Pág. 5-6), controle do número de viagens associado ao nível de avaliação dada pelos passageiros (ID. 7af4fd9 - Pág. 5-6) controle de taxa de cancelamento alta (ID. 7fc31c5 - Pág. 2 e 31) e taxa de aceitação baixa (ID. 7fc31c5 - Pág. 6). O contrato firmado entre as partes (Termos e Condições ID. 7cd3357) evidencia, mais uma vez, que o motorista é obrigado a cumprir regras previamente estipuladas pela ré, tais como: manter avaliação média dada pelos usuários que exceda a avaliação média mínima aceitável pela Uber para o Território, sob pena de desativação do serviço (item 2.6.2); evitar o cancelamento de solicitações de viagens enquanto o motorista estiver conectado ao aplicativo, sob a alegação de que "isso cria uma experiência negativa para os(as) Usuários do Aplicativo móvel Uber"(item 2.6.2); aceitar como forma de pagamento o cartão de crédito via aplicativo; além do cálculo pré-estabelecido pela reclamada do preço do serviço. (. . .) A atividade da reclamada não se limita, de modo algum, a apenas disponibilizar a plataforma digital de sua propriedade mediante pagamento de taxa. É ela quem dita as condições em que os serviços devem ser prestados, o preço do serviço, além de manter rígido e eficiente controle eletrônico da atividade laboral do autor. Uma vez mais insustentável o argumento de que os preços dos serviços são determinados pela plataforma ou por taxímetros (no exemplo citado pela decisão origem). A assertiva dá vida e capacidade decisória a tais dispositivos tecnológicos como se fosse independente da vontade de seus proprietários, no presente caso, da proprietária da plataforma. Os dispositivos de inteligência artificial e/ou algoritmos ainda não chegaram a esse ponto na sua concorrência com os seres humanos. Assim, reconheço o vínculo empregatício do autor com a reclamada, na função motorista, tendo em vista a comprovação dos requisitos previstos nos artigos 2º e 3º da CLT.(...)" . (destaques nossos). Destaque-se ainda o seguinte julgado do C. TST: "RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014 E ANTERIOR À LEI 13.467/2017. UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA. NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO MANTIDA ENTRE OS TRABALHADORES PRESTADORES DE SERVIÇOS E EMPRESAS QUE ORGANIZAM, OFERTAM E EFETIVAM A GESTÃO DE PLATAFORMAS DIGITAIS DE DISPONIBILIZAÇÃO DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE AO PÚBLICO, NO CASO, O TRANSPORTE DE PESSOAS E MERCADORIAS. NOVAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DA FORÇA DE TRABALHO HUMANA NO SISTEMA CAPITALISTA E NA LÓGICA DO MERCADO ECONÔMICO. ESSENCIALIDADE DO LABOR DA PESSOA HUMANA PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS OBJETIVOS DA EMPRESA. PROJEÇÃO DAS REGRAS CIVILIZATÓRIAS DO DIREITO DO TRABALHO SOBRE O LABOR DAS PESSOAS NATURAIS. INCIDÊNCIA DAS NORMAS QUE REGULAM O TRABALHO SUBORDINADO DESDE QUE NÃO DEMONSTRADA A REAL AUTONOMIA NA OFERTA E UTILIZAÇÃO DA MÃO DE OBRA DO TRABALHADOR (ART. 818, II, DA CLT). CONFLUÊNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS HUMANISTAS E SOCIAIS QUE ORIENTAM A MATÉRIA (PREÂMBULO DA CF/88; ART. 1º, III E IV; ART. 3º, I, II, III E IV; ART. 5º, CAPUT ; ART. 6º; ART. 7º, CAPUT E SEUS INCISOS E PARÁGRAFO ÚNICO; ARTS. 8º ATÉ 11; ART. 170, CAPUT E INCISOS III, VII E VIII; ART. 193, TODOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988). VÍNCULO DE EMPREGO. DADOS FÁTICOS CONSTANTES DO ACÓRDÃO REGIONAL REFERINDO-SE A RELAÇÃO SOCIOECONÔMICA ABRANGENTE DE PERÍODO DE QUASE DOIS MESES. PRESENÇA DOS ELEMENTOS INTEGRANTES DA RELAÇÃO EMPREGATÍCIA. INCIDÊNCIA, ENTRE OUTROS PRECEITOS, TAMBÉM DA REGRA DISPOSTA NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 6º DA CLT (INSERIDA PELA LEI n. 12.551/2011), A QUAL ESTABELECE QUE " OS MEIOS TELEMÁTICOS E INFORMATIZADOS DE COMANDO, CONTROLE E SUPERVISÃO SE EQUIPARAM, PARA FINS DE SUBORDINAÇÃO JURÍDICA, AOS MEIOS PESSOAIS E DIRETOS DE COMANDO, CONTROLE E SUPERVISÃO DO TRABALHO ALHEIO ". PRESENÇA, POIS, DOS CINCO ELEMENTOS DA RELAÇÃO DE EMPREGO, OU SEJA: PESSOA HUMANA PRESTANDO TRABALHO; COM PESSOALIDADE; COM ONEROSIDADE; COM NÃO EVENTUALIDADE; COM SUBORDINAÇÃO. ÔNUS DA PROVA DO TRABALHO AUTÔNOMO NÃO CUMPRIDO, PROCESSUALMENTE (ART 818, CLT), PELA EMPRESA DE PLATAFORMA DIGITAL QUE ARREGIMENTA, ORGANIZA, DIRIGE E FISCALIZA A PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS ESPECIALIZADOS DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE. Cinge-se a controvérsia do presente processo em definir se a relação jurídica havida entre o Reclamante e a Reclamada - Uber do Brasil Tecnologia Ltda. - configurou-se como vínculo de emprego (ou não). A solução da demanda exige o exame e a reflexão sobre as novas e complexas fórmulas de contratação da prestação laborativa, algo distintas do tradicional sistema de pactuação e controle empregatícios, e que ora se desenvolvem por meio da utilização de plataformas e aplicativos digitais, softwares e mecanismos informatizados semelhantes, todos cuidadosamente instituídos, preservados e geridos por sofisticadas (e, às vezes, gigantescas) empresas multinacionais e, até mesmo, nacionais. É importante perceber que tais sistemas e ferramentas computadorizados surgem no contexto do aprofundamento da revolução tecnológica despontada na segunda metade do século XX (ou, um pouco à frente, no início do século XXI), a partir da informática e da internet , propiciando a geração de um sistema empresarial de plataformas digitais, de amplo acesso ao público, as quais permitem um novo meio de arregimentação de mão de obra, diretamente por intermédio desses aplicativos digitais, que têm o condão de organizar, direcionar, fiscalizar e zelar pela hígida prestação de serviços realizada ao cliente final. A modificação tecnológica e organizacional ocorrida nas duas últimas décadas tem sido tão intensa que há, inclusive, autores e correntes de pensamento que falam na existência de uma quarta revolução tecnológica no sistema capitalista. Evidentemente que essa nova estrutura de organização empresarial e de prestação de serviços facilita a aproximação e a comunicação na sociedade e no âmbito da prestação de serviços ao público alvo, seja este formado por pessoas físicas ou por instituições. Porém a lógica de sua estruturação e funcionamento também tem sido apreendida por grandes corporações empresariais como oportunidade ímpar para reduzirem suas estruturas produtivas e, especialmente, o custo do trabalho utilizado e imprescindível para o bom funcionamento econômico da entidade empresarial. De nenhuma valia econômica teria este sistema organizacional e tecnológico, conforme se percebe, se não houvesse, é claro, a prestação laborativa por ele propiciada ao público alvo objetivado - neste caso, se não existissem motoristas e carros organizadamente postos à disposição das pessoas físicas e jurídicas. Realmente, os impactos dessa nova modalidade empresarial e de organização do trabalho têm sido diversos: de um lado, potenciam, fortemente, a um custo mais baixo do que o precedente, a oferta do trabalho de transporte de pessoas e coisas no âmbito da sociedade; de outro lado, propiciam a possibilidade de realização de trabalho por pessoas desempregadas, no contexto de um desemprego agudo criado pelas políticas públicas e por outros fatores inerentes à dinâmica da economia; mas, em terceiro lugar, pela desregulamentação amplamente praticada por este sistema, gerando uma inegável deterioração do trabalho humano, uma lancinante desigualdade no poder de negociação entre as partes, uma ausência de regras de higiene e saúde do trabalho, uma clara falta de proteção contra acidentes ou doenças profissionais, uma impressionante inexistência de quaisquer direitos individuais e sociais trabalhistas, a significativa ausência de proteções sindicais e, se não bastasse, a grave e recorrente exclusão previdenciária. O argumento empresarial, em tal quadro, segue no sentido de ser o novo sistema organizacional e tecnológico tão disruptivo perante a sistemática de contratação anterior que não se fazem presentes, em sua estrutura e dinâmica, os elementos da relação empregatícia. E, efetivamente, é o que cabe examinar, afinal, no presente processo. Passa-se, dessa maneira, ao exame da relação socioeconômica e jurídica entre as partes do presente processo, respeitados os aspectos fáticos lançados pelo próprio acórdão regional, como determina a Súmula 126 do TST . Nesse exame, sem negligenciar a complexidade das questões que envolvem a discussão dos autos, o eventual enquadramento como vínculo empregatício da relação jurídica entre o prestador de serviços e as plataformas digitais, pelo Poder Judiciário Trabalhista no Brasil, vai depender das situações fáticas efetivamente demonstradas, as quais, por sua própria complexidade, podem abarcar inúmeras e múltiplas hipóteses. A propósito, no Direito brasileiro existe sedimentada presunção de ser empregatício o vínculo jurídico formado - regido pela Constituição da República (art. 7º) e pela CLT, portanto - , desde que seja incontroversa a prestação de serviços por uma pessoa natural a alguém (Súmula 212, TST). Essa presunção jurídica relativa (não absoluta, esclareça-se) é clássica ao Direito do Trabalho, em geral, resultando de dois fatores historicamente incontestáveis: a circunstância de ser a relação de emprego a regra geral de conexão dos trabalhadores ao sistema socioeconômico capitalista; a circunstância de a relação de emprego, desde o surgimento do Direito do Trabalho, ter se tornado a fórmula mais favorável e protegida de inserção da pessoa humana trabalhadora na competitiva e excludente economia contemporânea. No Brasil, desponta a singularidade de esta antiga presunção jurídica ter sido incorporada, de certo modo, até mesmo pela Constituição da República de 1988, ao reconhecer, no vínculo empregatício, um dos principais e mais eficazes instrumentos de realização de notável bloco de seus princípios cardeais, tais como o da dignidade do ser humano, o da centralidade da pessoa humana na ordem jurídica e na vida socioeconômica, o da valorização do trabalho e do emprego, o da inviolabilidade física e psíquica da pessoa humana, o da igualdade em sentido substancial, o da justiça social, o do bem-estar individual e social, o da segurança e o da subordinação da propriedade à sua função socioambiental. Com sabedoria, a Constituição percebeu que não se criou, na História do Capitalismo, nessa direção inclusiva, fórmula tão eficaz, larga, abrangente e democrática quanto a estruturada na relação de emprego. Convergindo inúmeros preceitos constitucionais para o estímulo, proteção e elogio à relação de emprego (ilustrativamente: Preâmbulo da CF/88; art. 1º, III e IV; art. 3º, I, II, III e IV; art. 5º, caput ; art. 6º; art. 7º, caput e seus incisos e parágrafo único; arts. 8º até 11; art. 170, caput e incisos III, VII e VIII; art. 193, todos do Texto Máximo de 1988), emerge clara a presunção também constitucional em favor do vínculo empregatício no contexto de existência de incontroversa prestação de trabalho na vida social e econômica. De par com isso, a ordem jurídica não permite a contratação do trabalho por pessoa natural, com os intensos elementos da relação de emprego, sem a incidência do manto mínimo assecuratório da dignidade básica do ser humano nessa seara da vida individual e socioeconômica. Em consequência, possuem caráter manifestamente excetivo fórmulas alternativas de prestação de serviços a alguém, por pessoas naturais, como, ilustrativamente, contratos de estágio, vínculos autônomos ou eventuais, relações cooperativadas e as fórmulas intituladas de "pejotização" e, mais recentemente, o trabalho de transporte de pessoas e coisas via arregimentação e organização realizadas por empresas de plataformas digitais. Em qualquer desses casos, estando presentes os elementos da relação de emprego, esta prepondera e deve ser reconhecida, uma vez que a verificação desses pressupostos, muitas vezes, demonstra que a adoção de tais práticas se dá, essencialmente, como meio de precarizar as relações empregatícias (art. 9º, da CLT). Nesse aspecto, cumpre enfatizar que o fenômeno sóciojurídico da relação empregatícia emerge quando reunidos os seus cinco elementos fático-jurídicos constitutivos: prestação de trabalho por pessoa física a outrem, com pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e sob subordinação. Observe-se que, no âmbito processual, uma vez admitida a prestação de serviços pelo suposto empregador/tomador de serviços, a ele compete demonstrar que o labor se desenvolveu sob modalidade diversa da relação de emprego, considerando a presunção (relativa) do vínculo empregatício sedimentada há várias décadas no Direito do Trabalho, conforme exaustivamente exposto. A análise casual das hipóteses discutidas em Juízo, portanto, deve sempre se pautar no critério do ônus da prova - definido no art. 818 da CLT -, competindo ao obreiro demonstrar a prestação de serviços (inciso I do art. 818 da CLT); e à Reclamada, provar eventual autonomia na relação jurídica (inciso II do art. 818 da CLT ). No caso dos autos , a prova coligida no processo e referenciada pelo acórdão recorrido demonstrou que a Reclamada administra um empreendimento relacionado ao transporte de pessoas - e não mera interligação entre usuários do serviço e os motoristas cadastrados no aplicativo - e que o Reclamante lhe prestou serviços como motorista do aplicativo digital. Assim, ficaram firmemente demonstrados os elementos integrantes da relação de emprego, conforme descrito imediatamente a seguir. Em primeiro lugar, é inegável (e fato incontroverso) de que o trabalho de dirigir o veículo e prestar o serviço de transporte, em conformidade com as regras estabelecidas pela empresa de plataforma digital, foi realizado, sim, por uma pessoa humana - no caso, o Reclamante. Em segundo lugar, a pessoalidade também está comprovada, pois o Obreiro precisou efetivar um cadastro individual na Reclamada, fornecendo dados pessoais e bancários, bem como, no decorrer da execução do trabalho, foi submetido a um sistema de avaliação individualizada, a partir de notas atribuídas pelos clientes e pelo qual a Reclamada controlava a qualidade dos serviços prestados. É também incontroverso de que todas as inúmeras e incessantes avaliações feitas pela clientela final referem-se à pessoa física do motorista uberizado, emergindo, assim, a presença óbvia do elemento fático e jurídico da pessoalidade. O caráter oneroso do trabalho executado é também incontroverso, pois a clientela faz o pagamento ao sistema virtual da empresa, em geral por meio de cartão de crédito (podendo haver também, mais raramente, pagamento em dinheiro) e, posteriormente, a empresa gestora do sistema informatizado credita parte do valor apurado na conta corrente do motorista. Ora, o trabalhador somente adere a esse sistema empresarial e de prestação laborativa porque ele lhe assegura retribuição financeira em decorrência de sua prestação de trabalho e em conformidade com um determinado percentual dos valores apurados no exercício desse trabalho. Sobre a não eventualidade , o labor do Reclamante estava inserido na dinâmica intrínseca da atividade econômica da Reclamada e inexistia qualquer traço de transitoriedade na prestação do serviço. Não era eventual, também, sob a perspectiva da teoria do evento, na medida em que não se tratava de labor desempenhado para certa obra ou serviço, decorrente de algum acontecimento fortuito ou casual. De todo modo, é também incontroverso de que se trata de labor inerente à rotina fundamental da empresa digital de transporte de pessoas humanas, sem o qual tal empresa sequer existiria. Por fim, a subordinação jurídica foi efetivamente demonstrada, destacando-se as seguintes premissas que se extraem do acórdão regional, incompatíveis com a suposta autonomia do trabalhador na execução do trabalho: 1) a Reclamada organizava unilateralmente as chamadas dos seus clientes/passageiros e indicava o motorista para prestar o serviço; 2) a empresa exigia a permanência do Reclamante conectado à plataforma digital para prestar os serviços, sob risco de descredenciamento da plataforma digital (perda do trabalho); 3) a empresa avaliava continuamente a performance dos motoristas, por meio de um controle telemático e pulverizado da qualidade dos serviços, a partir da tecnologia da plataforma digital e das notas atribuídas pelos clientes/passageiros ao trabalhador. Tal sistemática servia, inclusive, de parâmetro para o descredenciamento do motorista em face da plataforma digital - perda do trabalho -, caso o obreiro não alcançasse uma média mínima; 4) a prestação de serviços se desenvolvia diariamente, durante o período da relação de trabalho - ou, pelo menos, com significativa intensidade durante os dias das semanas -, com minucioso e telemático controle da Reclamada sobre o trabalho e relativamente à estrita observância de suas diretrizes organizacionais pelo trabalhador, tudo efetivado, aliás, com muita eficiência, por intermédio da plataforma digital (meio telemático) e mediante a ativa e intensa, embora difusa, participação dos seus clientes/passageiros. Saliente-se ser fato notório (art. 337, I, do CPC/15) que a Reclamada é quem estabelece unilateralmente os parâmetros mais essenciais da forma de prestação dos serviços e da dinâmica de funcionamento da atividade econômica, como, por exemplo, a definição do preço da corrida e do quilômetro rodado no âmbito de sua plataforma digital. Desse quadro, se percebe a configuração da subordinação jurídica nas diversas dimensões: a) clássica , em face da existência de incessantes ordens diretas da Reclamada promovidas por meios remotos e digitais (art. 6º, parágrafo primeiro, da CLT), demonstrando a existência da assimetria poder de direção/subordinação e, ainda, os aspectos diretivo, regulamentar, fiscalizatório e disciplinar do poder empregatício; b) objetiva , tendo em vista o trabalho executado estritamente alinhado aos objetivos empresariais; c) estrutural , mediante a inteira inserção do profissional contratado na organização da atividade econômica desempenhada pela Reclamada, em sua dinâmica de funcionamento e na cultura jurídica e organizacional nela preponderante; d) por fim, a subordinação algorítima , que consiste naquela efetivada por intermédio de aferições, acompanhamentos, comandos, diretrizes e avaliações concretizadas pelo computador empresarial, no denominado algoritmo digital típico de tais empresas da Tecnologia 4.0. Saliente-se, por oportuno, que a suposta liberdade do profissional para definir seus horários de trabalho e de folgas, para manter-se ligado, ou não, à plataforma digital, bem como o fato de o Reclamante ser detentor e mantenedor de uma ferramenta de trabalho - no caso, o automóvel utilizado para o transporte de pessoas - são circunstâncias que não têm o condão de definir o trabalho como autônomo e afastar a configuração do vínculo de emprego. Reitere-se: a prestação de serviços ocorria diariamente, com sujeição do Autor às ordens emanadas da Reclamada por meio remoto e telemático (art. 6º, parágrafo único, da CLT); havia risco de sanção disciplinar (exclusão da plataforma) em face da falta de assiduidade na conexão à plataforma e das notas atribuídas pelos clientes/passageiros da Reclamada; inexistia liberdade ou autonomia do Reclamante para definir os preços das corridas e dos seus serviços prestados, bem como escolher os seus passageiros (ou até mesmo criar uma carteira própria de clientes); não se verificou o mínimo de domínio do trabalhador sobre a organização da atividade empresarial, que era centralizada, metodicamente, no algoritmo da empresa digital; ficou incontroversa a incidência das manifestações fiscalizatórias, regulamentares e disciplinares do poder empregatício na relação de trabalho analisada . Enfim, o trabalho foi prestado pelo Reclamante à Reclamada, mediante remuneração, com subordinação, e de forma não eventual. Cabe reiterar que, embora, neste caso concreto, tenham sido comprovados os elementos da relação empregatícia, deve ser considerado que o ônus da prova da autonomia recai sobre a defesa, ou seja, o ente empresarial , já que inequívoca a prestação de trabalho (art. 818, II, da CLT), sendo forçoso reconhecer, também, que a Reclamada não se desvencilhou satisfatoriamente de seu encargo probatório. Dessa forma, deve ser reformado o acórdão regional para se declarar a existência do vínculo de emprego entre as Partes, nos termos da fundamentação. Recurso de revista conhecido e provido" (RR-100353-02.2017.5.01.0066, 3ª Turma, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, DEJT 11/04/2022). Pois bem. Ressalta a ré, na defesa, que não é empresa de transporte e sim somente explora plataforma tecnológica e os motoristas são seus clientes, isto é, são esses que remuneram a empresa e não é a demandada que remunera os motoristas. Vejamos. A Lei n. 12.965/1994, conhecida como o "Marco Civil da Internet" e que "Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.", tem como princípio, no inciso VIII do artigo 3º, a "liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei." (destaquei). Observe-se aqui que o inciso VI do mesmo dispositivo prevê o princípio da "responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei". E a legislação que dispõe sobre a comercialização do uso de plataformas digitais, a Lei n. 9.609/1998, que "dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no País (...)", prevê: "Art. 1º Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados." E o artigo 9º e parágrafo único do mesmo diploma dispõe que: "Art. 9º O uso de programa de computador no País será objeto de contrato de licença. Parágrafo único. Na hipótese de eventual inexistência do contrato referido no caputdeste artigo, o documento fiscal relativo à aquisição ou licenciamento de cópia servirá para comprovação da regularidade do seu uso." O contrato de licença de uso de software objetiva assegurar ao proprietário os seus respectivos direitos autorais, ao mesmo tempo também garante ao usuário que todas as funcionalidades e serviços estejam sempre disponíveis e em conformidade com o que foi contratado. Quanto às garantias aos usuários de programa de computador, a Lei n. 9.609/1998, dispõe que: "Art. 8º Aquele que comercializar programa de computador, quer seja titular dos direitos do programa, quer seja titular dos direitos de comercialização, fica obrigado, no território nacional, durante o prazo de validade técnica da respectiva versão, a assegurar aos respectivos usuários a prestação de serviços técnicos complementares relativos ao adequado funcionamento do programa, consideradas as suas especificações." Assim sendo, é de se deduzir que uma empresa que atua no mercado de tecnologia e licencia o uso de seu software (sua plataforma digital); deveria ter ao menos parte de sua receita oriunda de "royalties" (denominação dada ao valor devido pela licença de uso de programas de computador). No entanto, na hipótese sob exame não é o que ocorre. A reclamada não recebe qualquer valor pela licença de uso de seu software, apesar de afirmar que disponibiliza o aplicativo aos motoristas (clientes), e que não é empresa de serviços de transporte, o que suscita no mínimo um questionamento, já que estamos num sistema capitalista, cuja essência é o lucro. Como pode uma empresa ceder gratuitamente seu principal ativo e sobreviver? Ressalte-se que no "TERMOS E CONDIÇÕES GERAIS DOS SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO DIGITAL" está contido no item "5. Direitos de Propriedade; Licença" e tópico 5.1. "Concessão de Licença" que a UBER concede ao "cliente" uma licença "isenta de royalties"(fls. 892 do PDF - ID. 47541c9 - Pág. 14). Reitere-se: a licença pelo uso do software é cedida de forma gratuita aos motoristas. Consta do Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica que a atividade econômica principal da ré, classificada sob o código 74.90-1-04: "Atividades de intermediação e agenciamento de serviços e negócios em geral, exceto imobiliários." O conceito de intermediação é explicitada no item 13 do TERMO acima citado, quando trata da "Relação entre as partes": "13.1. Exceto como expressamente previsto nesse Contrato, no que diz respeito a Uber agir como agente limitado de cobrança de pagamento, apenas para fins de cobrança de pagamentos devidos pelos(as) Usuários(as) em favor do(a) Cliente, a relação entre as partes nos termos deste Contrato é de empreendedores independentes. As partes concordam expressamente que: (a) o presente contrato não é um contrato de trabalho, nem cria uma relação de trabalho (inclusive sob a perspectiva da lei trabalhista, tributária ou da segurança social), entre a Uber e o(a) Cliente ou entre a Uber e qualquer Motorista; e (b) não existe relação de joint venture, parceria, ou agência entre a Uber e o(a) Cliente ou a Uber e qualquer Motorista." Contudo, em que pese a argumentação de que o motorista é um "empreendedor", qualificação que grassa nos dias atuais, é o intermediador que define todos os principais pontos da atividade desenvolvida pelo motorista. Cumpre dizer que os requisitos do vínculo de emprego estão presentes. Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que ao contrário do que sustenta a demandada, e conforme a linha de raciocínio acima expendida, a ré explora sim a atividade econômica de transporte de passageiros e por esse meio aufere lucro. Não há dúvida que a atividade econômica da reclamada, a mercadoria da ré é o serviço de transporte. Tanto é assim que é a demandada que quantifica o valor dessa mercadoria, é a recorrida que fixa o preço do serviço de transporte que o passageiro irá pagar. Além do mais, ao revés de que afirma a demandada, examina-se na realidade uma relação de trabalho onde não estão presentes as características da prestação de serviços com autonomia, uma vez que se há recusa do motorista em atender o usuário, pode sofrer represália da UBER, como destacado no Acórdão proferido nos autos do Processo nº 0010258-59.2020.5.03.0002 (RORSum), da E. 11ª Turma do Colendo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região: "(. . .) O contrato firmado entre as partes (Termos e Condições ID. 7cd3357) evidencia, mais uma vez, que o motorista é obrigado a cumprir regras previamente estipuladas pela ré, tais como: manter avaliação média dada pelos usuários que exceda a avaliação média mínima aceitável pela Uber para o Território, sob pena de desativação do serviço (item 2.6.2); evitar o cancelamento de solicitações de viagens enquanto o motorista estiver conectado ao aplicativo, sob a alegação de que "isso cria uma experiência negativa para os(as) Usuários do Aplicativo móvel Uber"(item 2.6.2); aceitar como forma de pagamento o cartão de crédito via aplicativo; além do cálculo pré-estabelecido pela reclamada do preço do serviço. (. . .)". Na mesma linha, a seguinte reflexão acerca de "A recente decisão do TST e o vínculo de emprego entre motoristas e aplicativos": "(...) Não há liberdade efetiva quanto à quantidade de clientes a serem atendidos ou a qual percursos de viagens seguir. Caso haja número de recusas de viagens e clientes que entenda o aplicativo demasiado, o motorista corre o risco de ter a quantidade de ofertas dessas viagens para ele diminuída, e, em último caso, de ser descadastrado, eufemismo claro para demissão. Assim sendo, não há falar aqui em autodeterminação de rotina. Em face desta possibilidade de "descadastramento", ao contrário do decidido, há aqui fiscalização e possibilidade de punição ao trabalhador. Destaque-se haver também na empresa um sistema de análise da qualidade dos serviços prestados pelos obreiros, existindo a possibilidade de também haver o fim da relação como punição empresarial por eventual resultado insatisfatório. Igualmente merece ser ressaltado o fato de ser a empresa quem escolhe os clientes, as rotas e o preço das viagens, estando ausentes qualquer grau de autonomia ou interferência dos trabalhadores. Noutra linha argumentativa, não se pode restringir a aplicação da CLT apenas às relações presentes quando da segunda revolução industrial, a qual estava em pleno desenvolvimento no ano de sua entrada em vigor (1943). Se assim se procedesse, não poderia ser considerado dela a normatização de novos vínculos subordinados como o teletrabalho, existente apenas a partir da terceira revolução, o qual é abarcado pelo seu artigo 6º celetista, assim como pela Lei nº 13.467/2017. Se a CLT é aplicável também para os vínculos de emprego da terceira, por que não o seria para os da quarta revolução industrial como o labor por aplicativos? A interpretação de uma norma não pode ficar presa à vontade de quem a formatou, aos interesses legislativos da época de sua origem, sendo a interpretação histórica apenas um dos meios para dela se extrair a essência. Uma vez em vigor, a lei ganha vida independente da de seu criador, passando a integrar o sistema jurídico nacional e a ser objeto da hermenêutica, dela sendo extraídos sentidos até mesmo implícitos, desde que condizentes com o sentido do justo pregado pela jurisprudência de conceitos reinante no Estado democrático de Direito. A evolução em estudo, inclusive, foi acatada pela 2ª Turma do TST em 13 de outubro de 2004 quando da análise da situação de um teletrabalhador (TST-AIRR-812235-02.2001.5.01.5555), sendo apenas ressaltada a necessidade da existência efetiva da subordinação jurídica no caso concreto. Quanto aos elementos de configuração da relação de emprego, constantes do artigo 3º consolidado, cabe registrar que vêm sendo tratados sob nova ótica a partir das recentes medidas implantadas em prol da tão discutida flexibilização das normas trabalhistas. Nessa linha, a hierarquia e fiscalização rígidas centralizadas na pessoa do empregador são mitigadas no que tange a novas relações surgidas, dentre as quais o chamado "teletrabalho". No entanto, o requisito da subordinação jurídica que distingue a relação de emprego das demais, continua a ser fator essencial ao preenchimento dos requisitos traçados no dispositivo legal a que se alude. Já a flexibilidade de horários e possibilidade de desconexão também aventadas nos acórdãos em análise igualmente não levam a relação para o caráter autônomo, antes sendo referência da presença de uma subordinação estrutural, em que o obreiro se insere na dinâmica do tomador de seus serviços, não recebendo ordens diretas do patrão. Nela é fundamental que dentro da atividade desse tomador esteja estruturalmente vinculado o obreiro. A citada teoria, inclusive, encontra respaldo no TST, como destaca Zwicker, tendo sido adotada pela sua 6ª Turma. Recentemente, tendo em vista as novas formas de organização do trabalho, parte da doutrina e da jurisprudência vem adotando a chamada teoria da subordinação estrutural, principalmente em questões relacionadas à terceirização e ao trabalho à distância (como o teletrabalho). Nesse enfoque, reconhece-se a subordinação, inerente à relação de emprego, quando o empregado desempenha atividades que se encontram integradas à estrutura e à dinâmica organizacional da empresa, ao seu processo produtivo ou às suas atividades essenciais, não mais se exigindo a subordinação jurídica clássica, em que se verificavam ordens diretamente emanadas do empregador. Correta a 5ª Turma do TST quando, no acórdão estudado, destacou ser dever do Judiciário trabalhista a preservação dos princípios norteadores da relação de emprego, apenas reconhecendo esta quando existentes seus elementos, não devendo ser inviabilizadas novas formas de labor. Porém, ao seguir este objetivo, não se podem olvidar as inovações presentes no universo da revolução 4.0, sendo necessário evoluir e flexibilizar a interpretação de conceitos clássicos dos elementos descritos no artigo 3º da CLT a fim de descortinar a real natureza jurídica inerente às novas relações de trabalho. Conclusões (. . . ) para o correto enquadramento jurídico dos novos vínculos trabalhistas, mister se faz interpretar os elementos constitutivos do contrato de emprego sob o prisma da atualidade, não mais tendo em vista apenas os conceitos clássicos do que sejam pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação jurídica. Em algum grau, esses elementos sofreram impactos da tecnologia e das telecomunicações os quais forjam hoje uma barreira intransponível para a sua exegese exclusiva sob dogmas construídos ainda na primeira metade do século 20. As relações entre aplicativos e motoristas estão inseridas no contexto do novo mundo do trabalho, havendo aqui há uma relação triangular, em que as empresas fazem a intermediação entre os trabalhadores e os clientes, havendo compartilhamento dos valores pagos por estes entre aqueles. As características narradas levam à conclusão pela presença de subordinação estrutural no particular, pois se insere o trabalhador na dinâmica do tomador de seus serviços, não recebendo ordens diretas do patrão, estando estruturalmente vinculado o obreiro na atividade do tomador de serviços." (Barbosa Júnior, Francisco de Assis. in https://www.conjur.com.br/2020-set-22/barbosa-junior-tst-vinculo-entre-motoristas-aplicativos. Acesso em 21.04.2021). Em face do exposto, com esteio no Princípio do Contrato Realidade e diante da prova documental constante nos autos, da doutrina e da melhor e recente jurisprudência dos nossos Tribunais, não merece reparos o julgado originário, que reconheceu a existência de vínculo de emprego entre as partes, na modalidade intermitente, em respeito aos limites impostos pela petição inicial. 2.4. Multa por embargos protelatórios. No caso vertente, os embargos de declaração da recorrente foram realmente opostos com intuito manifestamente protelatório, porquanto tinham por escopo apenas rediscutir o meritum causae da demanda, revolvendo a matéria fático-probatória já examinada na sentença de mérito, o que se mostra inadmissível por esta via processual, à luz do disposto no art. 535, I e II, do CPC, autorizando a imposição de multa processual (artigo 538, parágrafo único, do CPC). Negado provimento. 2.5. Contrato intermitente. Presentes os requisitos fático-jurídicos caracterizadores da relação de emprego, mostra-se de rigor o reconhecimento do vínculo de emprego entre as partes, ficando mantida a modalidade de contrato intermitente em respeito aos limites impostos pela petição inicial. Ademais, a pretensão da reclamada de incidência da multa prevista no art. 452-A, § 4º, da CLT, nas hipóteses de cancelamento de viagens pelo reclamante é inovatória, não tendo sido deduzida na contestação, o que é vedado pelo ordenamento jurídico pátrio. Negado provimento. 2.6. Data de início do contrato de trabalho. O próprio autor admitiu na petição inicial que o contrato de trabalho teve início em 11/09/2018. Por tais razões, dá-se provimento ao recurso patronal para reconhecer 11/09/2018 como sendo a data de início do vínculo empregatício. 2.7. Remuneração. Reconhecido o vínculo de emprego, não merece reparos o julgado originário ao reconhecer a remuneração como sendo os valores recebidos pelas viagens realizadas pelo reclamante. Contudo, deve ser descontada a taxa de 22,5% (média entre 20% e 25%), referente a cota parte devida ao empregador. Recurso parcialmente provido. 2.8. Férias acrescidas de um terço. Reconhecido o vínculo empregatício são devidas as férias acrescidas de um terço. Negado provimento. 2.9. Anotação da CTPS e entrega do TRCT. Reconhecida relação de emprego, mostra-se de rigor a condenação da reclamada na anotação da CTPS e entrega do TRCT ao reclamante. 2.10. Multa do art. 477 da CLT. Em que pese o reconhecimento de vínculo de emprego pela via judicial, é devida a multa prevista no art. 477, § 8º da CLT, por não ter a parte autora dado causa ao atraso no pagamento das verbas rescisórias. Entendimento em sentido diverso serviria de incentivo à fraude, pois acabaria por fomentar o descumprimento por parte das empresas de suas obrigações trabalhistas. Nesse sentido é Súmula 462 do C. TST: 462. Multa do art. 477, § 8º, da CLT. Incidência. Reconhecimento judicial da relação de emprego. (Inserida pela Res. 209/2016 - DeJT 01/06/2016) A circunstância de a relação de emprego ter sido reconhecida apenas em juízo não tem o condão de afastar a incidência da multa prevista no art. 477, § 8º, da CLT. A referida multa não será devida apenas quando, comprovadamente, o empregado der causa à mora no pagamento das verbas rescisórias. Negado provimento. 2.11. Recolhimentos previdenciários e fiscais. FGTS. Reconhecido o vínculo de emprego são devidos os recolhimentos fiscais e previdenciários, na forma da Súmula 368 do C. TST, assim como os depósitos de FGTS e pagamento da multa de 40%, com esteio no art. 15 da Lei 8036/90. Negado provimento. III - D I S P O S I T I V O. POSTO ISSO, ACORDAM os Magistrados da 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região em, por unanimidade de votos, CONHECER do Recurso Ordinário interposto pela reclamada e, no mérito, DAR-LHE PARCIAL PROVIMENTO para: (a) fixar o início do contrato de trabalho em 11/09/2018; e (b) reconhecer a remuneração do autor como sendo os valores recebidos pelas viagens realizadas, contudo, deve ser descontada a taxa de 22,5%, referente a cota parte devida ao empregador, tudo nos termos da fundamentação do voto da Relatora. Custas inalteradas. Presidiu a sessão a Excelentíssima Desembargadora Presidente Ivani Contini Bramante. Tomaram parte no julgamento as Excelentíssimas Desembargadoras Maria Isabel Cueva Moraes, Lycanthia Carolina Ramage e Juíza convocada Valéria Nicolau Sanchez. Relatora: Maria Isabel Cueva Moraes. Integrou a sessão presencial o (a) representante do Ministério Público. Sustentação oral: Dr. Lenon Tadeu Barbosa MARIA ISABEL CUEVA MORAES Desembargadora Federal do Trabalho Relatora SAO PAULO/SP, 29 de abril de 2025. FERNANDA LOYOLA BALBO Diretor de Secretaria
Intimado(s) / Citado(s)
- VINICIUS LOPES ALVES
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