Processo nº 5155679-83.2024.8.09.0051
ID: 313972392
Tribunal: TJGO
Órgão: Goiânia - 5ª UPJ Varas Cíveis: 12ª, 20ª, 21ª, 22ª, 23ª e 25ª
Classe: REINTEGRAçãO / MANUTENçãO DE POSSE
Nº Processo: 5155679-83.2024.8.09.0051
Data de Disponibilização:
02/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
GUSTAVO JAIME DE SOUZA
OAB/GO XXXXXX
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Poder Judiciário
Comarca de Goiânia
Gabinete do Juiz da 21ª Vara Cível
Telejudiciario (62) 3216-2070, Fórum Cível: 62-3018-6000, 5ª UPJ das Varas Cíveis (62) 3018-6456 e (62) 3018-6457, WhatsApp …
Poder Judiciário
Comarca de Goiânia
Gabinete do Juiz da 21ª Vara Cível
Telejudiciario (62) 3216-2070, Fórum Cível: 62-3018-6000, 5ª UPJ das Varas Cíveis (62) 3018-6456 e (62) 3018-6457, WhatsApp 5ª UPJ: (62) 3018-6455
E-mail 5ª UPJ: 5upj.civelgyn@tjgo.jus.br, Gabinete Virtual: gab21varacivel@tjgo.jus.br, WhatsApp Gabinete 21ª: (62) 3018-6472
Endereço: (Edificio Forum Civel) Avenida Olinda, Esquina com Rua PL-03, Qd. G, Lt. 04, Park Lozandes, Cep: 74.884-120 - Goiânia - GO
SENTENÇA
Processo nº 5155679-83.2024.8.09.0051
I - RELATÓRIO.
Trata-se de AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE ajuizada pelo ESPÓLIO DE MÁRCIO PEREIRA DE OLIVEIRA, representado por sua inventariante SANDRA CRISTINA GOMES DE OLIVEIRA, em face de KAMILLA CRUVINEL VIEIRA GOMES, objetivando a reintegração na posse do imóvel situado na Rua Jaguaribe, Qd. 84, Lts. 09/13, Residencial Lago dos Buritis, Apt. 1102, Torre B, Parque Amazônia, Goiânia, CEP 74840590, bem como o arbitramento de aluguéis a partir de setembro de 2023, no valor mensal de R$ 1.600,00, totalizando R$ 9.600,00 até a data da petição inicial.
Em sua exordial, o autor alega ser o legítimo proprietário do imóvel, comprovado por Escritura Pública de Compra e Venda e Registro Imobiliário. Narrou que o imóvel foi ocupado pelo herdeiro Michel Márcio Gomes de Oliveira e sua cônjuge Kamilla Cruvinel Vieira Gomes (requerida) com consentimento dos proprietários originais. Após término conturbado do relacionamento do casal, o imóvel teria sido desocupado. Com o falecimento do proprietário Sr. Márcio Pereira de Oliveira, constituiu-se o espólio. Sustenta que a requerida se recusa a devolver o imóvel, caracterizando esbulho possessório, comprovado por notificação extrajudicial.
Inicialmente, este Juízo indeferiu o pedido de gratuidade da justiça formulado pelo autor, deferindo, contudo, o parcelamento das custas processuais em 10 vezes.
Após tentativas infrutíferas de citação, a requerida foi finalmente citada e intimada por meio do aplicativo WhatsApp e ligação telefônica, conforme certidão datada de 07/11/2024.
Em sua contestação (24/01/2025), a requerida pleiteou a concessão da justiça gratuita, alegando estar desempregada. No mérito, argumentou que não ocorreu esbulho possessório, uma vez que sua posse é mansa e pacífica, corroborada por declaração datada de 20/12/2023, na qual a própria inventariante teria cedido a casa para a requerida morar gratuitamente. Apontou contradição na narrativa do autor, afirmando que a notificação extrajudicial possui data de 29/01/2023, sendo anterior à declaração de cessão do imóvel (20/12/2023).
Em réplica (25/02/2025), o autor reafirmou sua condição de legítimo proprietário do bem, com posse legítima pelo princípio do "Droit de Saisine". Argumentou que o documento apresentado pela requerida (declaração de casa cedida) seria apenas um comprovante de endereço para fins escolares dos netos, sem o condão de desconstituir a propriedade do espólio. Alegou ainda que a requerida deixou o imóvel em diversas oportunidades e retornou/invadiu o imóvel em setembro de 2023, com oposição do espólio, o que motivou a notificação extrajudicial de 02/02/2024.
Este Juízo proferiu despacho (13/05/2025) determinando que as partes delimitassem as questões de fato e de direito controvertidas e especificassem as provas que pretendiam produzir.
Em sua manifestação (13/05/2025), a requerida apontou como questões controvertidas: a natureza da ocupação do imóvel; o animus domini; a existência de acordo de uso gratuito; a eficácia da notificação extrajudicial; e a tolerância ou anuência à ocupação. Especificou como provas: documentos já anexados e prova testemunhal.
O autor (26/05/2025) reiterou a vasta documentação comprobatória de propriedade e pagamento de despesas condominiais e IPTU. Refutou a "declaração de casa cedida" e expressamente requereu o julgamento antecipado da lide com base nas provas já juntadas aos autos, que, segundo ele, demonstram cabalmente a ocupação irregular do imóvel em prejuízo do espólio. Argumentou que não foi apresentado nenhum fato impeditivo, modificativo ou extintivo do seu direito, conforme artigos 373, I e II do CPC, justificando assim o julgamento antecipado, com fundamento no artigo 355, caput, do CPC. Subsidiariamente, para a hipótese de não acolhimento do pedido de julgamento antecipado, requereu o depoimento pessoal da requerida e a oitiva de testemunhas.
É o relatório. DECIDO.
II - FUNDAMENTAÇÃO.
1. DAS QUESTÕES PROCESSUAIS PRELIMINARES.
1.1. Do Julgamento Antecipado da Lide e da Ausência de Cerceamento de Defesa
Verifico que não há nulidades a serem declaradas ou irregularidades a serem sanadas. As partes são legítimas, possuem interesse processual e estão devidamente representadas, estando presentes os pressupostos processuais e as condições da ação.
No tocante ao prosseguimento do feito, a parte autora expressamente requereu o julgamento antecipado da lide, por entender que as provas documentais já produzidas são suficientes para o deslinde da causa. A requerida, por sua vez, pleiteou a produção de prova testemunhal.
O artigo 355, inciso I, do Código de Processo Civil, autoriza o julgamento antecipado do mérito quando não houver necessidade de produção de outras provas. Como leciona Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero, na obra "Novo Código de Processo Civil Comentado" (4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024), "o julgamento antecipado do pedido não constitui uma faculdade do juiz, mas um imperativo legal, quando presentes seus requisitos".
No caso em análise, as questões controvertidas essenciais - natureza da posse da requerida, existência de esbulho, eficácia da notificação e direito à reintegração - podem ser adequadamente solucionadas com base nos documentos já colacionados aos autos, notadamente: (i) escritura pública e registro imobiliário do imóvel; (ii) comprovantes de pagamento de IPTU e condomínio pelo espólio; (iii) notificação extrajudicial e comprovante de recebimento pela requerida; e (iv) declaração de cessão gratuita apresentada pela própria requerida.
O Superior Tribunal de Justiça já pacificou o entendimento de que "não há cerceamento de defesa quando o julgador considera desnecessária a produção de prova, mediante a existência nos autos de elementos suficientes para a formação de seu convencimento" (AgInt no AREsp 1.549.770/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/04/2020, DJe 28/04/2020).
No caso concreto, a prova testemunhal pretendida pela requerida se mostra manifestamente dispensável e irrelevante para o deslinde da causa, nos termos do art. 370, parágrafo único, do CPC. Isso porque:
A questão nuclear da controvérsia - existência de esbulho possessório - pode ser plenamente solucionada com base nos documentos já carreados aos autos, em especial a notificação extrajudicial enviada pelo espólio e recebida pela requerida;
Eventual prova testemunhal não teria o condão de desconstituir a eficácia da notificação extrajudicial, cuja existência e recebimento não foram impugnados pela requerida;
Mesmo a suposta declaração de cessão gratuita, ainda que corroborada por testemunhas, não afastaria a configuração do esbulho, uma vez que este se caracteriza pela recusa em devolver o bem após notificação inequívoca do possuidor indireto, conforme será demonstrado adiante.
É importante esclarecer que o julgamento antecipado da lide não implica, necessariamente, que todos os fatos alegados pelo autor estejam provados. A suficiência probatória para o julgamento antecipado significa que há elementos documentais bastantes para formar o convencimento judicial sobre as questões essenciais ao deslinde da causa, ainda que algum aspecto secundário ou circunstancial da narrativa autoral (como a data exata do início da ocupação) permaneça sem comprovação plena.
Nesse sentido, ensina José Carlos Barbosa Moreira, em sua obra "O Novo Processo Civil Brasileiro" (30ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2021), que "o julgamento antecipado pressupõe que o juiz disponha de elementos suficientes para formar sua convicção sobre as questões relevantes para a solução do litígio, não necessariamente sobre todas as alegações das partes".
Assim, com base no poder instrutório do juiz (art. 370, CPC), no princípio da duração razoável do processo (art. 4º, CPC) e atendendo ao pedido expresso da parte autora, impõe-se o julgamento antecipado da lide, sem que isso configure cerceamento de defesa.
1.2. Da Gratuidade da Justiça.
A requerida, em sua contestação, pleiteou a concessão dos benefícios da justiça gratuita, alegando estar desempregada, realizando apenas trabalhos informais como vendedora autônoma, juntando para tanto o documento denominado "DOC.01".
Consoante entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, há presunção juris tantum de que a pessoa física que pleiteia o benefício não possui condições de arcar com as despesas processuais sem comprometer seu próprio sustento ou de sua família. A princípio, basta o simples requerimento, sem comprovação prévia, para que lhe seja concedida a assistência judiciária gratuita (REsp 1.196.941/SP).
Em recente julgamento do Tema 1.178/STJ, a Corte Superior reafirmou a impossibilidade de fixação de critérios puramente objetivos para concessão da gratuidade da justiça, devendo o magistrado analisar as particularidades de cada caso concreto.
No caso em apreço, verifico que a requerida apresentou documentação comprobatória de sua situação de desemprego, o que, associado à natureza da demanda (ação possessória de imóvel residencial), corrobora a alegação de hipossuficiência econômica.
Desta forma, DEFIRO o pedido de gratuidade da justiça formulado pela requerida, nos termos do art. 98 do CPC.
2. DO MÉRITO.
2.1. Da Adequação da Via Eleita:
Preliminarmente, cumpre analisar a adequação da via eleita pelo autor para a tutela de seu direito. A doutrina estabelece clara distinção entre ações possessórias e ações petitórias (como a reivindicatória), sendo essencial verificar se a presente demanda se enquadra corretamente na categoria das possessórias.
Conforme ensina Orlando Gomes, em sua obra "Direitos Reais" (29ª ed., Forense, 2020, atualizada por Luiz Edson Fachin), "a ação possessória visa a proteção da posse como situação de fato, enquanto a ação reivindicatória busca a proteção da propriedade como direito real". No juízo possessório, "busca-se exercer as faculdades jurídicas oriundas da posse em si mesma considerada, sem cogitar qualquer outra relação jurídica", sendo o fundamento da pretensão exclusivamente a posse (ius possessionis).
Por outro lado, a ação reivindicatória é a ação ajuizada pelo proprietário que não detém a posse em face do possuidor não proprietário, tendo como fundamento o direito de propriedade (ius possidendi). Seu objetivo é obter a posse como consequência da titularidade do domínio.
No caso em análise, embora o espólio tenha comprovado sua titularidade sobre o imóvel por meio de Escritura Pública de Compra e Venda e Registro Imobiliário, fundamenta sua pretensão na alegação de posse anterior que foi esbulhada pela requerida, e não apenas no direito de propriedade. Ademais, o autor demonstrou exercer atos possessórios sobre o bem, como o pagamento das despesas de condomínio e IPTU.
Assim, considerando que estão presentes os requisitos do artigo 561 do CPC para a ação possessória (posse anterior, esbulho, data do esbulho e perda da posse), entendo que a via eleita é adequada para a tutela do direito pretendido.
2.2. Da Legitimidade do Espólio e do Princípio da Saisine.
A legitimidade do espólio para a propositura da presente ação possessória fundamenta-se no princípio da saisine, positivado no artigo 1.784 do Código Civil, que estabelece: "Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários".
Sobre este princípio, José da Silva Pacheco, em sua obra "Inventários e Partilhas - Na Sucessão Legítima e Testamentária" (20ª edição, 2018), o define como o "reconhecimento, ainda que por ficção jurídica, da transmissão imediata e automática do domínio e posse da herança aos herdeiros legítimos e testamentários, no instante da abertura da sucessão".
A doutrina de Rodrigo Alves da Silva (2013) esclarece que "o princípio da saisine é uma ficção jurídica que autoriza uma apreensão possessória de bens do de cujus pelo herdeiro vocacionado, legítimo ou testamentário, ope legis". Este autor explica que o herdeiro, "independentemente de qualquer ato, ingressará na posse dos bens que constituem a herança do antecessor falecido, de forma imediata e direta, ainda que desconheça a morte do antigo titular".
Silva Pacheco destaca importante aspecto: "no momento da transmissão da posse e da propriedade, o herdeiro recebe o patrimônio tal como se encontrava com o de cujus. Logo, transmitem-se, também, além do ativo, todas as dívidas, ações e pretensões contra ele existentes".
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka traz importante contribuição ao afirmar que "a posse transmitida pelo droit de saisine não será sempre representada pela posse ampla, havendo casos em que a apreensão material das coisas que compõem o acervo hereditário só se realizará com a partilha. A posse que se transmite causa mortis é sempre a posse indireta".
Nesse sentido, Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, 16ª ed., 2007) enumera como um dos efeitos fundamentais da saisine o fato de que "o herdeiro passa a ter legitimidade ad causam para proteger a herança contra investidas de terceiros".
O Superior Tribunal de Justiça corrobora esse entendimento ao decidir que "existindo composse sobre o bem litigioso em razão do droit de saisine é direito do compossuidor esbulhado o manejo de ação de reintegração de posse", e que "até a partilha, o espólio é quem detém legitimidade para responder pelas obrigações deixadas pelo de cujus".
No caso em tela, com o falecimento do Sr. Márcio Pereira de Oliveira, a posse e a propriedade do imóvel transmitiram-se automaticamente ao espólio, por força do princípio da saisine. Esta transmissão confere ao espólio legitimidade ativa para a propositura da presente ação de reintegração de posse.
2.3. Da Caracterização do Esbulho Possessório, da Alegada Cessão Gratuita e da Natureza da Posse da Requerida.
O cerne da controvérsia reside na caracterização ou não do esbulho possessório. O autor alega que a requerida recusa-se a devolver o imóvel, enquanto esta sustenta que sua posse é mansa e pacífica, corroborada por declaração de cessão gratuita do imóvel.
A requerida alega, especificamente, que a própria inventariante, Sra. Sandra Cristina Gomes de Oliveira, teria cedido a casa para que ela morasse gratuitamente, conforme declaração datada de 20/12/2023. Esta alegação merece cuidadosa análise, uma vez que constitui o principal fundamento da defesa apresentada.
Inicialmente, é necessário verificar se há elementos nos autos para determinar a natureza jurídica da suposta cessão do imóvel: se a título gratuito ou oneroso. A declaração apresentada pela requerida menciona expressamente uma cessão gratuita, o que, em tese, configuraria um comodato verbal.
Orlando Gomes, em sua obra "Direitos Reais" (29ª ed., Forense, 2020, atualizada por Luiz Edson Fachin), define o comodato como "o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis". Segundo o ilustre doutrinador, o comodato é um contrato essencialmente gratuito, e quando há onerosidade, descaracteriza-se o instituto.
Analisando os autos, observo que não há elementos que indiquem qualquer contraprestação pela ocupação do imóvel, o que sugere, a princípio, que a suposta cessão teria ocorrido a título gratuito. Contudo, também não há robusta comprovação de que a declaração apresentada pela requerida efetivamente constituiu um contrato de comodato.
O autor, em sua réplica, contestou veementemente a validade dessa declaração, alegando que a mesma teria sido emitida apenas para fins escolares dos netos, sem o condão de constituir um verdadeiro contrato de comodato ou cessão gratuita. Esta alegação é plausível, especialmente considerando que o autor comprovou que arca com as despesas de condomínio e IPTU do imóvel, o que seria incomum em caso de cessão de uso para terceiro.
Mesmo que se admita, para fins de argumentação, a existência de uma cessão gratuita do imóvel (comodato), cumpre analisar se a recusa em restituir o bem configura esbulho possessório.
A doutrina especializada, nesse ponto, é categórica. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald lecionam que "a recusa do comodatário em devolver a coisa após o termo do contrato transforma a posse direta, até então justa, em posse injusta, pela superveniência da precariedade".
Tito Fulgêncio, em sua obra "Da Posse e das Ações Possessórias – teoria legal e prática" (12ª ed., Forense, 2015, revista por Marco Aurélio S. Viana), ensina que "a posse precária, que inicialmente era justa porque derivada de um título, torna-se injusta quando o possuidor se recusa a devolver o bem após a extinção do título".
O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que "a recusa do comodatário em restituir a coisa após o término do prazo do comodato, mormente quando notificado extrajudicialmente para tanto, implica em esbulho pacífico decorrente da precariedade da posse". A Corte estabeleceu que "nessa hipótese, a não devolução da coisa emprestada no prazo fixado constitui a posse precária do comodatário e, consequentemente, caracteriza o esbulho".
É fundamental destacar que o esbulho possessório ocorre precisamente no momento da recusa da ré em devolver o imóvel após ser notificada para tanto. É neste momento específico que a posse, até então potencialmente justa (se considerarmos a hipótese de um comodato válido), transmuta-se em posse injusta pela precariedade superveniente, caracterizando o esbulho.
Como leciona Humberto Theodoro Júnior, em sua obra já citada, "o esbulho se configura tanto pela expulsão violenta do possuidor quanto pela recusa do detentor precário em restituir a coisa após a revogação da permissão de uso". Nessa mesma linha, Flávio Tartuce (Manual de Direito Civil, 2025) ensina que "a recusa em devolver o bem após notificação inequívoca constitui esbulho por precariedade, autorizando o manejo da ação de reintegração de posse".
Em recente decisão (2021), o STJ determinou que "verificada a ciência inequívoca dos recorridos para que providenciassem a devolução do imóvel cuja posse detinham em função de comodato verbal com a falecida proprietária, configurado está o esbulho possessório".
No caso dos autos, ainda que se considere válida a declaração de cessão gratuita apresentada pela requerida, é inconteste que o espólio, por meio de notificação extrajudicial encaminhada em 02/02/2024, manifestou expressamente sua vontade de reaver o imóvel. A recusa da requerida em atender a essa notificação configura, segundo a doutrina e jurisprudência citadas, esbulho possessório decorrente da precariedade superveniente da posse.
Cumpre esclarecer que, embora a requerida tenha mencionado em sua contestação a existência de uma notificação extrajudicial datada de 29/01/2023, a documentação acostada aos autos pelo autor evidencia que a notificação efetivamente recebida pela requerida data de 02/02/2024, sendo este o documento a ser considerado para fins de caracterização do esbulho, por ser o único que possui comprovação inequívoca de recebimento pela parte requerida.
Quanto à alegação do autor de que a requerida teria deixado o imóvel em diversas oportunidades e retornado/invadido o imóvel em setembro de 2023, com oposição do espólio, constato que tal circunstância, embora mencionada na narrativa inicial, não foi suficientemente demonstrada nos autos através de documentação comprobatória.
Entretanto, essa questão não impede o julgamento antecipado nem prejudica a procedência da ação, uma vez que, independentemente da data exata em que a requerida iniciou a ocupação do imóvel, está provado documentalmente que: (i) o espólio é o legítimo proprietário e possuidor indireto do bem; (ii) notificou formalmente a requerida para desocupação; e (iii) a requerida recusou-se a devolver o imóvel, configurando esbulho.
É importante destacar que, conforme ensina José da Silva Pacheco, em obra já citada, o espólio detém a titularidade de todos os direitos e obrigações do de cujus, incluindo o direito de dispor dos bens hereditários e de revogar eventuais permissões ou tolerâncias concedidas pelo falecido ou por terceiros. Assim, ainda que tenha havido uma cessão gratuita anterior, o espólio possui legitimidade para revogá-la a qualquer tempo, transformando a posse da requerida em injusta a partir da notificação.
Analisando os elementos dos autos, verifico que:
O espólio comprovou sua titularidade sobre o imóvel por meio de Escritura Pública de Compra e Venda e Registro Imobiliário;
Há prova de que o espólio arca com as despesas de condomínio e IPTU do imóvel, exercendo atos possessórios sobre o bem;
A notificação extrajudicial foi devidamente encaminhada e recebida pela requerida em 02/02/2024;
A declaração de cessão gratuita apresentada pela requerida data de 20/12/2023, portanto, anterior à notificação extrajudicial;
O autor alega, de forma verossímil, que a declaração tinha finalidade específica (comprovação de endereço para fins escolares) e não configura cessão efetiva do imóvel.
Diante disso, considerando a documentação apresentada e os precedentes jurisprudenciais citados, entendo caracterizado o esbulho possessório pela recusa da requerida em desocupar o imóvel após ser devidamente notificada.
2.4. Do Arbitramento de Aluguéis e Critérios para sua Fixação.
O autor requer o arbitramento de aluguéis a partir de setembro de 2023, no valor mensal de R$ 1.600,00.
É pacífico na doutrina e jurisprudência que, a partir do momento em que se configura o esbulho possessório, emerge para o esbulhador o dever de pagar aluguéis pelo período de ocupação indevida. Este entendimento decorre do princípio que veda o enriquecimento sem causa, positivado no artigo 884 do Código Civil, bem como da necessidade de reparação pelos prejuízos causados ao legítimo possuidor.
Como ensina Silvio de Salvo Venosa (Direito Civil: Direitos Reais, 24ª ed., Atlas, 2024), "a partir do momento em que a posse se torna injusta, por precariedade, clandestinidade ou violência, nasce para o possuidor esbulhado o direito de ser indenizado pela privação do uso da coisa, normalmente quantificada pelo valor locativo do bem".
A jurisprudência do STJ consolidou que "cessado comodato de bem comum, é devido aluguel a condômino". O tribunal decidiu que "quando não há ajuste a respeito do prazo do comodato, o comodante poderá promover a resilição unilateral do contrato e requerer a restituição do bem, cabendo ao comodatário, até restituí-lo, pagar aluguel pela posse injusta" (REsp 1.789.863/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/03/2021, DJe 22/03/2021).
Decisão do TJSP estabeleceu que "é devido o pagamento de aluguel entre a data da notificação e a efetiva desocupação do imóvel", consolidando o entendimento sobre o termo inicial da obrigação locatícia (TJSP, Apelação nº 1001645-85.2020.8.26.0590, 31ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Adilson de Araújo, j. 23/02/2023).
Quanto aos critérios para fixação do valor do aluguel, a doutrina e jurisprudência recomendam a observância do valor de mercado para imóveis similares na mesma região. Na ausência de avaliação específica, tem-se adotado como parâmetro razoável o percentual de 0,5% a 1% do valor venal do imóvel por mês, ou ainda, em casos de imóveis residenciais, o percentual de 0,4% a 0,7% do valor de mercado do bem.
No caso dos autos, o valor da causa foi fixado em R$ 219.600,00, presumivelmente correspondente ao valor do imóvel. O aluguel mensal pleiteado pelo autor (R$ 1.600,00) representa aproximadamente 0,73% desse valor, o que se mostra compatível com os parâmetros acima mencionados e dentro da média de mercado para locação de imóveis residenciais similares na região.
Ademais, observo que o autor é quem arca com as despesas de condomínio e IPTU do imóvel, o que reforça a razoabilidade do valor pleiteado a título de aluguel, uma vez que tais despesas frequentemente são incluídas no cálculo do valor locativo de um imóvel.
Diante disso, considerando a caracterização do esbulho possessório e a posse injusta exercida pela requerida após a notificação extrajudicial de 02/02/2024, é cabível o arbitramento de aluguéis pelo período de ocupação indevida, a contar da data da notificação, e não de setembro de 2023, como pretende o autor. Isso porque, antes da notificação, ainda que se considerasse precária a posse da requerida, não havia manifestação inequívoca do espólio quanto à revogação da suposta cessão gratuita.
O valor mensal de R$ 1.600,00 mostra-se razoável e proporcional, representando aproximadamente 0,73% do valor do imóvel, percentual que se enquadra nos parâmetros adotados pela jurisprudência para arbitramento de aluguéis em casos similares.
2.5. Da Incidência de Juros e Correção Monetária.
No tocante à incidência de juros de mora e correção monetária sobre os aluguéis arbitrados, cumpre observar as recentes alterações promovidas pela Lei 14.905/2024 ao Código Civil brasileiro.
A Lei 14.905/2024, sancionada em 28 de junho de 2024 e com vigência iniciada em 30 de agosto de 2024, modificou os artigos 389 e 406 do Código Civil, estabelecendo novos parâmetros para a atualização monetária e juros moratórios.
O artigo 389 do Código Civil, em sua nova redação, determina que "na hipótese de o índice de atualização monetária não ter sido convencionado ou não estar previsto em lei específica, será aplicada a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA)".
Já o artigo 406, também alterado, estabelece que "os juros serão fixados de acordo com a taxa legal", sendo que "a taxa legal corresponderá à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), deduzido o índice de atualização monetária". Ademais, o § 3º do artigo 406 prevê que "caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero)".
No que concerne ao direito intertemporal, a referida lei aplica-se apenas aos fatos ocorridos após sua vigência (30 de agosto de 2024), não possuindo efeito retroativo.
No caso concreto, considerando que a constituição em mora ocorreu em 02/02/2024 (data da notificação extrajudicial), portanto, antes da vigência da nova lei, e que os aluguéis vencidos após 30/08/2024 estarão sujeitos ao novo regramento, impõe-se a aplicação de critérios distintos para cada período:
Para o período de 02/02/2024 a 29/08/2024: Aplica-se o regime anterior, com correção monetária pelo INPC e juros de mora de 1% ao mês, contados a partir da citação;
Para o período a partir de 30/08/2024: Aplica-se o novo regime estabelecido pela Lei 14.905/2024, com correção monetária pelo IPCA e juros pela taxa Selic deduzido o IPCA (considerando-se taxa zero caso o resultado seja negativo), também contados a partir da citação.
Esta distinção se justifica em observância ao princípio da irretroatividade das leis (art. 6º da LINDB) e ao entendimento jurisprudencial consolidado sobre a aplicação da lei no tempo em matéria de encargos financeiros.
III - DISPOSITIVO.
Ante o exposto, com fundamento no art. 487, I, do Código de Processo Civil, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTES os pedidos formulados na inicial para:
DEFERIR o pedido de reintegração de posse do imóvel situado na Rua Jaguaribe, Qd. 84, Lts. 09/13, Residencial Lago dos Buritis, Apt. 1102, Torre B, Parque Amazônia, Goiânia, CEP 74840590, em favor do ESPÓLIO DE MÁRCIO PEREIRA DE OLIVEIRA, representado por sua inventariante SANDRA CRISTINA GOMES DE OLIVEIRA;
DETERMINAR que a requerida KAMILLA CRUVINEL VIEIRA GOMES desocupe voluntariamente o imóvel no prazo de 15 (quinze) dias, sob pena de desocupação compulsória, fixando-se multa diária de R$ 200,00 (duzentos reais), limitada a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), em caso de descumprimento;
CONDENAR a requerida ao pagamento de aluguéis ao autor, a título de indenização pela ocupação indevida, no valor mensal de R$ 1.600,00 (mil e seiscentos reais), equivalente a aproximadamente 0,73% do valor do imóvel, a partir de 02/02/2024 (data da notificação extrajudicial) até a efetiva desocupação do imóvel, com a seguinte forma de atualização:
a) Para o período de 02/02/2024 a 29/08/2024: correção monetária pelo INPC a partir de cada vencimento e juros de mora de 1% ao mês a partir da citação;
b) Para o período a partir de 30/08/2024: correção monetária pelo IPCA a partir de cada vencimento e juros pela taxa Selic deduzido o IPCA (considerando-se taxa zero caso o resultado seja negativo), contados a partir da citação.
DEFIRO o pedido de gratuidade da justiça formulado pela requerida, nos termos do art. 98 do CPC.
DETERMINO a expedição imediata de mandado de reintegração de posse, após o decurso do prazo de 15 dias para desocupação voluntária, autorizando, desde já, o uso de força policial e arrombamento, se necessários, nos termos do artigo 562 do CPC.
Considerando que o autor obteve êxito quanto ao pedido principal (reintegração de posse) e teve deferido o pedido de arbitramento de aluguéis, apenas com ajuste na data inicial, verifico a ocorrência de sucumbência mínima do autor, nos termos do art. 86, parágrafo único, do CPC.
Dessa forma, CONDENO a requerida ao pagamento integral das custas processuais e honorários advocatícios, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o proveito econômico obtido pelo autor, correspondente à soma do valor de mercado do imóvel (R$ 219.600,00) com o valor total dos aluguéis devidos desde 02/02/2024 até a data desta sentença (R$ 8.000,00, considerando 5 meses de ocupação), totalizando uma base de cálculo de R$ 227.600,00 (duzentos e vinte e sete mil e seiscentos reais), observada a suspensão da exigibilidade em razão da gratuidade da justiça concedida (art. 98, § 3º, do CPC).
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Cópia desta decisão servirá como MANDADO/OFÍCIO, para o efetivo cumprimento das determinações constantes do ato, nos termos do artigo 136 e seguintes do Código de Normas e Procedimentos do Foro Judicial da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Goiás.
Cumpra-se.
Goiânia, data da assinatura eletrônica.
MARCELO PEREIRA DE AMORIM
Juiz de Direito da 21ª Vara Cível de Goiânia
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