Processo nº 5010272-91.2025.4.04.7000
ID: 323065068
Tribunal: TRF4
Órgão: 11ª Vara Federal de Curitiba
Classe: PROCEDIMENTO COMUM CíVEL
Nº Processo: 5010272-91.2025.4.04.7000
Data de Disponibilização:
11/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
ANA PAULA BRITO RODRIGUES
OAB/PR XXXXXX
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PROCEDIMENTO COMUM Nº 5010272-91.2025.4.04.7000/PR
AUTOR
: ADENILSON RAMOS DA LUZ
ADVOGADO(A)
: ANA PAULA BRITO RODRIGUES (OAB PR053059)
DESPACHO/DECISÃO
I - RELATÓRIO
Em 24 de fevereiro de 2025,
AD…
PROCEDIMENTO COMUM Nº 5010272-91.2025.4.04.7000/PR
AUTOR
: ADENILSON RAMOS DA LUZ
ADVOGADO(A)
: ANA PAULA BRITO RODRIGUES (OAB PR053059)
DESPACHO/DECISÃO
I - RELATÓRIO
Em 24 de fevereiro de 2025,
ADENILSON RAMOS DA LUZ
e
VALDENICE BATISTA
deflagraram a presente demanda, sob rito comum, em face do INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA - INCRA, pretendendo a condenação do requerido a promover a regularização da sua situação possessória quanto ao assentamento quanto ao lote n. 477-B do projeto de assentamento 8 de Abril. no Município de Jardim Alegre, bem como à reparação dos danos morais que disseram terem suportado.
Os autores sustentaram exercer a posse direta sobre o aludido lote há cerca de 5 anos, e que referida área teria sido explorada anteriormente pela Diretoria do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST. Alegaram que, após um longo período de reivindicações, o lote n. 477 teria sido dividido em duas áreas - 477-A e 477-B -, sendo que eles teriam promovido uma edificação no imóvel e desde então explorado a área do lote n 477-B. Disseram que, no entanto, estariam enfrentando sérias dificuldades, na medida em que não teriam sido beneficiados pela Reforma Agrária e lhes faltaria as condições mínimas para exploração econômica do bem, tampouco lhes sendo fornecida energia elétrica e água encanada.
Eles asseveraram terem formalizado diversos pedidos junto ao INCRA para regularização do assentamento, sendo que seus pleitos teriam sido indeferidos no âmbito administrativo, com motivação que não condiria com a realidade da família. De outro norte, segundo afirmaram, o INCRA teria regularizado o lote vizinho, de n. 477-A, causando-lhes sentimento de exclusão e abalo emocional, passível de indenização.
Eles postularam a concessão da assistência judiciária gratuita e de tutela de urgência, a fim de que o INCRA providencie a emissão de título de posse ou equivalente e implemente o fornecimento de energia elétrica e instalação de água em sua residência. Detalharam seus pedidos, juntaram documentos e atribuíram à causa o valor de R$ 50.000,00 (correspondente ao valor dos danos morais perseguidos).
No evento 4 declarei a competência deste juízo para a causa, deferi o pedido de justiça gratuita e determinei que os autores promovessem emenda, a fim de direcionarem os pedidos de fornecimento de energia elétrica e água às concessionárias de serviço público responsáveis. Indeferi o pedido de tutela de urgência e determinei a citação do INCRA.
Os autores promoveram emenda no evento 12, em que disseram não possuirem interesse em demandar as concessionárias de energia e água, ao tempo em que postularam fosse oficiado à Copel e à Sanepar para realizarem os procedimentos necessários ao fornecimento dos serviços em seu lote. Eles retificaram o valor da causa para R$ 1.378.448,00.
O Ministério Público Federal exarou ciência da decisão inicial e postulou por nova vista ao término da instrução processual, no evento 16.
O INCRA foi citado, estando em curso o prazo para resposta. De outro norte, os autores reiteraram o pedido de tutela de urgência, sustentando a ocorrência de fato novo, dado que teriam sido notificados pelo INCRA, em 20/03/2025, para desocuparem o imóvel em 30 dias. Eles anexaram a notificação, prova fotográfica e vídeos.
Os autos vieram conclusos.
II - FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Pressupostos processuais e condições da ação:
Reporto-me ao despacho de movimento-4, no que diz respeito aos pressupostos processuais e às condições para válido exercício do direito de ação. Não sobrevieram elementos que ensejem revisão dos elementos dispostos no referido despacho, no que diz respeito a tais questões.
2.2. Emenda a peça inicial - evento 12.
No movimento 12, em 27 de março de 2025, os autores emendaram a petição inicial e renovaram o pedido de antecipação de tutela. Na ocasião, eles alegaram o seguinte:
"
Os Autores encontram-se em processo de regularização no lote nº 477-B do PROJETO DE ASSENTAMENTO 8 DE ABRIL há aproximadamente cinco (5) anos, onde exercem a atividade agrícola e residencial de forma regular e em conformidade com as diretrizes do programa de reforma agrária
. O Autor, ao longo dos anos, realizou diversas
benfeitorias no imóve
l, destacando-se a construção de uma casa, realizou financiamento junto a instituições bancárias para plantio, além de outros investimentos que garantem a produtividade da propriedade. Além disso, tem registro CADPRO.
Recentemente, no dia 20/03/2025, o Autor foi surpreendido por uma notificação do INCRA, exigindo a desocupação do imóvel dentro de 30 (trinta) dias, sob a alegação de que se trata de área comunitária (tudo documentado pelas câmeras de segurança existentes na casa, que são anexadas). Tal notificação é equivocada, visto que o próprio INCRA, em momento anterior, havia regularizado o lote e a posse do Autor, não havendo qualquer alteração nos parâmetros que justifique a revogação de sua posse. Importante frisar que, dentro do Assentamento 8 de Abril existem outras 3 (três) áreas comunitárias que estão em completo estado de abandono.
"
Eles argumentaram ainda que
"Claramente, não há necessidade de retirar o Autor e sua família do lote que lhes foi concedido, porque seu lote é infinitamente menor que as áreas comunitárias já existentes e em total desuso e descaso. O Autor, em razão da notificação, encontra-se em situação de insegurança jurídica, visto que, além de já ter cumprido todas as exigências para a regularização da sua posse, possui investimentos que dependem da continuidade de sua atividade no local."
Anexaram fotos e vídeos. Postularam a sua manutenção na posse direta no aludido imóvel.
2.3. Processamento da emenda da peça inicial:
Note-se que os autores deduziram, ao início desta demanda, uma pretensão condenatória. Buscaram, com isso, a condenação do INCRA à titulação do imóvel em questão, assegurando-lhes o registro do bem em cartório. Na emenda de movimento12, eles acrescentaram um pleito possessório - manutenção na posse direta do bem.
Defiro o processamento de ambas as pretensões. A cumulação dos pleitos se revela adequada, conforme art. 327, CPC/15, no caso em vertente, eis que ambas a pretensões foram endereçadas ao INCRA, autarquia federal, de modo que o processamento da causa persiste sob a alçada da Justiça Federal. Ademais, a distribuição perante este Juízo também se revela escorreita, eis que esta unidade jurisdicional detém competência para a apreciação de tais requerimentos.
2.4. Legitimidade dos autores - pedido possessório:
Acrescento que os autores estão legitimados para a deflagração da demanda possessória, diante da alegação de que estariam no exercício da posse direta sobre o imóvel em exame. Não deduziram pretensão alheia em nome próprio, de modo que não esbarraram nas vedações do art. 18, CPC.
2.5. Outorga uxória:
Dado que ambos os requerentes subscreveram aludida emenda da inicial, o requisito da outorga uxória - art. 73, CPC restou atendido.
2.6. Legitimidade do INCRA - pedido possessório:
Os autorse alegaram que o INCRA teria postulado a retomada do referido imóvel, ao argumento de cuidar-se de área comunitária, insuscetível de submissão à posse direta e exclusiva dos requerentes. Por conta disso, a autarquia fundiária está legitimada para esta causa, já que os demandantes insurgem-se justamente contra tal determinação administrativa.
2.7. Litisconsórcio necessário - pedido possessório:
Em primeiro e precário exame, não diviso uma situação de litisconsórcio necessário no presente caso, de modo a exigir a convocação de outras pessoas para comporem a relação processual. Ressalvo nova análise do tema, caso se evidencie que eventual acolhimento da pretensão dos autores acabará por atingir diretamente a esfera jurídica de terceiros - art. 506, CPC/15.
2.8. Interesse processual - situação em exame:
Em princípio, a pretensão dos autores dificilmente seria acolhida na prática, a vingar sua narrativa. Argumentaram que o INCRA teria exigido a retomada da posse diretea sobre a área em que ambos os requerentes se encontrariam, o que evidencia conflito extrajudicial. Não se aplica ao caso a lógica do tema 350, STF, que trata de pretensões previdenciárias.
Caso a pretensão dos autores venha a sera colhida, isso lhes será útil, incrementando a segurança jurídica no exercício da posse sobre aludido bem. O rito processual eleito pela parte se revela adequado - art. 558, CPC/15.
2.9. Adequação da peça inicial com a emenda:
Dada a emenda, reputo que a parte autora atendeu, no essencial, os requisitos do art. 319, Código de Processo Civil. Talvez haja adiante a necessidade de detalhamento das fronteiras da área em causa, com a apresentação do exame georreferenciado.
Por ora, contudo, entendo que a peça inicial com a emenda de movimento 12 viabilizam o exercício do contraditório, para os fins do art. 5, LIV, LV, Constituição e art. 7, parte final, CPC/15.
2.10. Citações de potenciais interessados:
Menciono o art. 554, §1, Código de Processo Civil/15:
"No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública."
Segundo art. 554, §2, CPC/15,
"Para fim da citação pessoal prevista no § 1º, o oficial de justiça procurará os ocupantes no local por uma vez, citando-se por edital os que não forem encontrados."
RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. OCUPAÇÃO COLETIVA DE IMÓVEL POR GRANDE NÚMERO DE PESSOAS. LITISCONSÓRCIO PASSIVO MULTITUDINÁRIO. CITAÇÃO PESSOAL DOS OCUPANTES QUE SE ENCONTRAREM NO LOCAL. CITAÇÃO DOS DEMAIS POR EDITAL. RÉUS DESCONHECIDOS E INCERTOS. ART. 554, § 1º, DO CPC. INEXISTÊNCIA DE CITAÇÃO POR EDITAL. NULIDADE. 1. Recurso especial interposto em 2/8/2020 e concluso ao gabinete em 17/2/2022. 2. O propósito recursal consiste em dizer se: a) houve negativa de prestação jurisdicional; e b) nas ações possessórias ajuizadas contra número indeterminado de pessoas se faz obrigatória, sob pena de nulidade, além da citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no imóvel, a citação por edital dos demais ocupantes não encontrados, nos termos do art. 554, § 1º, do Código de Processo Civil. 3. Devidamente analisadas e discutidas as questões de mérito, e fundamentado o acórdão recorrido, de modo a esgotar a prestação jurisdicional, não há que se falar em violação do art. 1.022 do CPC/15. 4.
Nas ações possessórias ajuizadas contra número indeterminado de pessoas, formando um litisconsórcio multitudinário, faz-se obrigatória a observação do art. 554, § 1º, o qual dispõe que "no caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais
". 5. O novel diploma processual civil determina que seja dada ampla publicidade acerca da existência da ação possessória, podendo se utilizar de anúncios em jornais, rádios locais, cartazes na região, dentre outros meios que alcancem a mesma eficácia, para garantir o conhecimento do feito pelos ocupantes do imóvel. Inteligência do art. 554, § 3º, do Código de Processo Civil. 6. A desobediência do procedimento previsto no art. 554, §§ 1º e 3º, acarreta a nulidade de todos os atos do processo por violação ao princípio do devido processo legal, ao princípio da publicidade e da ampla defesa. 7. Na hipótese, ao não ser realizada a citação por edital dos demais ocupantes do imóvel não presentes quando da citação pessoal, deve ser reconhecida a nulidade de todos os atos do processo. 8. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1996087 SP 2021/0271438-4, Data de Julgamento: 24/05/2022, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/05/2022)
A respeito do tema, leia-se:
"O edital, como regra, é publicado, cumulativamente, na rede mundial de computadores, no sítio do tribunal respectivo, e, também, na plataforma de editais do Conselho Nacional de Justiça (cf. inc. II do art. 257 do CPC/2015; cf. Res. 234/2016 do CNJ, que instituiu “o Diário de Justiça Eletrônico Nacional (DJEN) como plataforma de editais do CNJ e instrumento de publicação dos atos judiciais dos órgãos do Poder Judiciário”, nos termos do art. 1.º da referida resolução; sobre a necessidade de publicação cumulativa, cf. TJDF, AgIn 0701032-37.2017.8.07.0000, 5.ª T., rel. Des. Josaphá Francisco dos Santos, j. 10.05.2017). Tal forma de publicação tem alcance muito mais amplo que a antes prevista no Código revogado (afixação na sede do juízo e publicação em órgão oficial e jornal local, cf. art. 232, II e III, do CPC/1973). Em regiões em que o acesso à rede mundial de procuradores seja precário, pode o juiz, em atenção às características locais, determinar que a publicação se dê também de outro modo (p. ex., afixação do edital em local de ampla circulação de pessoas). O prazo referido no inc. III do art. 257 do CPC/2015 diz respeito ao tempo em que o edital deverá permanecer publicado; o prazo para a prática de ato processual pela parte, correspondente a essa publicação, deve-se contar de acordo com o art. 231, IV do CPC/2015 (“considera-se dia do começo do prazo […] IV – o dia útil seguinte ao fim da dilação assinada pelo juiz, quando a citação ou a intimação for por edital”).
O prazo em que o edital deverá permanecer publicado, de todo modo, é processual, a ele se aplicando o disposto no art. 219 do CPC/2015, quanto à contagem do prazo em dias úteis. Para evitar que haja dúvida a respeito, convém deixar claro, na determinação judicial, esse aspecto (sobre o dever de esclarecimento e de prevenção, cf. comentário ao art. 6.º do CPC/2015)
."
(MEDINA, José Miguel Garcia.
Código de Processo Civil Comentado.
São Paulo: RT. 2021. Comentários ao art. 257, CPC).
Adiante, deverá ser apurado se tal entendimento se aplica ao caso. Em princípio, a parte autora insurge-se contra atos da autarquia federal requerida, não apontando eventuais outros aventados atos de esbulho, tidos por praticados por terceiros.
2.11. Pedidos endereçados à COPEL e SANEPAR:
Nâo conheço dos pedidos dos autores, no que toca à expedição deo fícios à COPEL ou SANEPAR. De partida, não são partes na demanda e pela regra do art. 506, CPC/15, nem mesmo sentença transitada em julgado por impor obrigações a quem não tenha tido efetiva oportunidade de atuar no processo, ofertando resposta e contribuindo para a formação do entendimento jurisdicional para solução do caso.
O Juízo não se substitui, ademais, à iniciativa das partes - art. 141, CPC - a ser promovida mediante detalhamento de uma pretensão em juízo (pedido + causa de pedir), conforme art. 319, CPC.
Ademais, a parte não comprovou a existênica de uma pretensão resistida. Cabe à própria parte promover diligências junto à COPEL e SANEPAR para adoção das medidas que julgarem pertinentes. Eventual demanda contra tais tais entidades deve ser submetida ao crivo da Justiça Estadual, por não estarem preenchidos os requisitos do art. 327, CPC, para cumulação de pretensões, dado não haver litisconsórcio necessário entre elas e o INCRA, no contexto do presente processo.
Tudo equacionado, DEIXO de apreciar o pleito de expedição de ofícios (evento 12), por ausência de fundamento legal para tanto.
2.12.
Valor da causa -
processo
em exame:
No presente, caso, os autores postularam a condenação do requerido à promover a outorga do título de domínio do imóvel em questão e a reparar alegados danos morais, pretensamente decorrentes da demora na transferência do domínio. Em princípio, a despeito da alegada demora na titulação, os requeridos encontrar-se-iam exercendo a posse direta sobre referido bem desde a celebração do contrato pertinente.
No evento 12 eles promoveram emenda à inicial, atribuindo à causa o valor de R$ 1.378.448,00, proveniente da soma do aventado preço dolote em questão com a indenização perseguida a título de reparação dos alegados danos morais.
Assim, ao menos por ora, acolho o valor atribuído á demanda, até por força da dificuldade de se atribuir um conteúdo econômico acurado ao exercício da posse direta sobre o imóvel. Ressalvo novo exame do tema, caso a tanto instado na forma do art. 293, CPC.
2.13. Prazo prescricional - outorga de título:
No evento 4, discorri - com cognição não exaustiva - sobre os prazos prescricionais aplicáveis à pretensão condenatória, deduzida pelos autores no movimento 01. Enfatizei, então, ser aplicável ao caso o prazo de 05 anos, na forma do art. 1. do decreto 20.910/32.
Por outro lado, também enfatizei que aludido prazo prescricional seria renovado periodicamente, dado que a pretensão estariam fundada na alegação de atraso na outorga de titulação. Enquanto referido atraso persistisse, a pretensão do demandante não seria extinta pela prescrição, dado cuidar-se, a rigor, de pretensão prospectiva: requerimento de adoção de comportamento futuro pelo INCRA, com a efetiva entrega do documento.
2.14. Prazo prescricional - reparação de danos:
De modo semelhante, em princípio, restaria aplicação ao caso o prazo de 05 anos, previsto no decreto 20.910/32, contados da data em que os autores tenham tomado conhecimento do alegado prejuízo moral (
actio nata
). Segundo a narrativa dos demandados, porém, alegados danos seriam renovados de tempos em tempos, enquanto a demora na expedição do documento persistisse, razão pela qual a pretensão reparatória não teria sido atingida pela prescrição com prazo quinquenal.
2.15. Prazo prescricional - manutenção na posse:
Em princípio, demandas possessórias estão submetidas ao prazo prescricional de 10 anos, conforme se infere do art. 205, Código Civil/2002:
REINTEGRAÇÃO DE POSSE - PRESCRIÇÃO DECENAL - ART. 205 DO CC - NÃO OCORRÊNCIA - ESBULHO - REQUISITOS PREENCHIDOS.
Nos termos do art. 205 do CC, a prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor. Tendo a ação de reintegração de posse sido ajuizada durante o prazo de 10 (dez) anos previsto no art. 205 do Código Civil, não há que se falar em prescrição.
Na ação de reintegração de posse, o autor deve, nos termos do art. 561 do CPC, comprovar a sua posse anterior, o esbulho praticado e a data em que ocorreu. Suficientemente comprovados os requisitos do art. 561 do CPC, a procedência é medida que se impõe. (TJ-MG - AC: 50038860720178130480, Relator: Des.(a) Marco Aurelio Ferenzini, Data de Julgamento: 13/04/2023, 14ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 13/04/2023)
Quando endereçada à Fazenda Pública, a pretensão prescreve, em princípio, em 05 anos, por conta do caráter especial do art. 1 do decreto 20.910/32, se confrontado com as normas gerais do Código Civil. No curso de eventual processo administrativo, em cujo âmbito a pretensão da demandante tenha sido debatida, o cômputo do processo permanece suspenso - art. 4. do decreto 20.911/32. De modo semelhante, caso a pretensão tenha origem em uma questão que demande apuração criminal, o cômputo da prescrição permanece suspenso até que sobrevenha o trânsito em julgado da sentença pertinente, prolatada no âmbito criminal, conforme art. 200, Código Civil/02.
Note-se, contudo, que aludido prazo deve ser computado da data em que a parte tenha tomado conhecimento do alegado esbulho da sua posse sobre o imóvel, conforme
postulado da
actio nata
.
No caso em exame, segundo relato lançado na peça inicial, aludido prazo não se esgotou, considerando que ela sustentou ter sido recentimente instada a deixar o imóvel em que se encontraria. Assim, persistindo o pretenso ato de esbulho, o processamento desta demanda se revela devido.
2.16. Eventual caducidade:
Em regra, os prazos decadenciais são oponíveis às pretensões constitutivas ou desconstitutivas. Atingem os chamados
direitos potestativos
- ou seja, direitos formativos geradores, na dicção de Francisco Pontes de Miranda, a exemplo do divórcio, rescisão unilateral de contratos de locação etc.
Sustenta-se que a
"decadência, ou caducidade, na definição de Câmara Leal, é a extinção ou perecimento do direito pelo decurso do prazo fixado ao seu exercício, sem que seu titular o tivesse feito.
O principal efeito da decadência, seguindo o raciocínio de Câmara Leal, é o de extinguir o direito
. Desta circunstância decorre o fato de que a decadência do direito faz desaparecer a ação que deveria assegurá-lo: a) quando direito e ação não se identificam, a ação não chega sequer a nascer; b) a decadência perece com o direito, quando ambos nascem simultaneamente."
(NERY, Rosa; NERY JR, Nelson.
Instituições de Direito Civil. vol. 1
São Paulo: RT. 2019. item 79).
No presente caso,
não está em debate a invocação de direito potestativo
, de modo que a situação jurídica, reclamada pela parte autora, não está submetida a prazos decadenciais. Dado que não se aplica o CDC ao caso, resta afastada também a norma do art. 26,II, §1º, CDC/1990.
2.17. Considerações gerais sobre a antecipação de tutela:
Como sabido, a cláusula do devido processo envolve alguma aporia. Por um lado, o processo há de ser adequado: deve assegurar defesa, contraditório, ampla produção probatória. E isso consome tempo. Todavia, o processo também deve ser eficiente, ele deve assegurar ao titular de um direito uma situação jurídica idêntica àquela que ele teria caso o devedor houvesse satisfeito sua obrigação na época e forma devidas.
A demora pode contribuir para um debate mais qualificado entre as partes; todavia, também leva ao grande risco de ineficácia da prestação jurisdicional, caso o demandante tenha realmente razão em seus argumentos.
Daí a relevância do prudente emprego da tutela de urgência, prevista no art. 300 e ss. do CPC/15. Desde que a narrativa do demandante seja verossímil, seus argumentos sejam fundados e a intervenção imediata do Poder Judiciário seja necessária - i.e., desde que haja
fumus boni iuris
e
periculum in mora -
a antecipação da tutela deverá ser deferida.
Sem dúvida, porém, que o tema exige cautela, eis que tampouco soa compatível com o devido processo a conversão da antecipação em um expediente rotineiro, o que violentaria a cláusula do art. 5º, LIV e LV, CF. Ademais, o provimento de urgência não pode ser deferido quando ensejar prejuízos irreversíveis ao demandado (art. 300, §3º, CPC).
Daí o relevo da lição de Araken de Assis, como segue:
"A tutela de urgência e a tutela de evidência gravitam em torno de dois princípios fundamentais: (a) o princípio da necessidade; e (b) o princípio da menor ingerência.
- Princípio da necessidade - Segundo o art. 301, in fine, a par do arresto, sequestro, arrolamento de bens, e protesto contra a alienação de bens, o órgão judiciário poderá determinar qualquer outra medida idônea para asseguração do direito. Essa abertura aplica-se às medidas de urgência satisfativas (art. 303, caput): a composição do conflito entre os direitos fundamentais somente se mostrará legítima quando houver conflito real, hipótese em quase patenteia a necessidade de o juiz alterar o esquema ordinário de equilíbrio das partes perante o fator temporal do processo. A necessidade de o juiz conceder medida de urgência apura-se através da comparação dos interesses contrastantes dos litigantes. Dessa necessidade resulta a medida adequada à asseguração ou à satisfação antecipada em benefício do interesse mais provável de acolhimento em detrimento do interesse menos provável.
- Princípio do menor gravame - O princípio do menor gravame ou da adequação é intrínseco à necessidade. É preciso que a medida de urgência seja congruente e proporcional aos seus fins, respectivamente a asseguração ou a realização antecipada do suposto direito do autor. Por esse motivo, a medida de urgência cautelar prefere à medida de urgência satisfativa, sempre que adequada para evitar o perigo de dano iminente e irreparável, e, na órbita das medidas de urgência satisfativas, o órgão judiciário se cingirá ao estritamente necessário para a mesma finalidade." (ASSIS, Araken de.
Processo civil brasileiro.
volume II. Tomo II. Parte Geral. São Paulo: RT, 2015, p. 370-371).
Quando se cuide-se, ademais, de pedido em desfavor da Fazenda Pública, a lei 8.437/1992 veda a antecipação de tutela que implique compensação de créditos tributários ou previdenciários
(art. 1º, §5º). A lei do mandado de segurança veda a concessão de liminares com o fim de se promover a entrega de mercadorias, a reclassificação de servidores públicos e o aumento ou extensão de vantagens de qualquer natureza (art. 7º, §2º, lei 12.016).
Registre-se que o STF já se manifestou sobre a constitucionalidade de algumas dessas limitações (lei 9.494/1997), conforme se infere da conhecida ADC 04-6/DF, rel. Min. Sydnei Sanches (DJU de 21.05.1999), com os temperamentos reconhecidos no informativo 248, STF. No âmbito do Direito Administrativo militar, há restrições ao emprego do
writ
, por exemplo, diante do que preconiza o art. 51, §3º, lei n. 6.880/1980, ao exigir o exaurimento da via administrativa.
O juízo não pode antecipar a eficácia meramente declaratória de uma cogitada sentença de procedência. Afinal de contas, a contingência é inerente aos provimentos liminares; de modo que a certeza apenas advém do trânsito em julgado (aliás, em muitos casos, sequer depois disso, dadas as recentes discussões sobre a relativização da
res iudicata
).
"É impossível a antecipação da eficácia meramente declaratória, ou mesmo conferir antecipadamente ao autor o bem certeza jurídica, o qual somente é capaz de lhe ser atribuído pela sentença declaratória. A cognição inerente ao juízo antecipatório é por sua natureza complemente inidônea para atribuir ao autor a declaração - ou a certeza jurídica por ele objetivada." (MARINONI, Luiz Guilherme.
A antecipação da
tutela
.
7. ed. SP: Malheiros. p. 55).
2.18. Hipóteses de contraditório postergado:
Em regra, a antecipação de tutela apenas pode ser promovida quando assegurado prévio contraditório ao demandado, conforme art. 5, LIV e LV, CF e art. 7, parte final, CPC.
Isso não impede, todavia, que, em situações excepcionais, o contraditório seja postergado, em face da urgência documentada nos autos
.
PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR PARA DETERMINAR O PROCESSAMENTO DE RECURSO ESPECIAL. POSSIBILIDADE. EXISTÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS DO FUMUS BONI JURIS E DO PERICULUM IN MORA. 1. O Superior Tribunal de Justiça tem entendido que a regra de obstar o recurso especial retido deve ser obtemperada para que não esvazie a utilidade daquele apelo extremo. 2.
O poder geral de cautela há que ser entendido com uma amplitude compatível com a sua finalidade primeira, que é a de assegurar a perfeita eficácia da função jurisdicional. Insere-se aí a garantia da efetividade da decisão a ser proferida. A adoção de medidas cautelares (inclusive as liminares inaudita altera parte) é fundamental para o próprio exercício da função jurisdicional, que não deve encontrar obstáculos, salvo no ordenamento jurídico
. 3. O provimento cautelar tem pressupostos específicos para sua concessão. São eles: o risco de ineficácia do provimento principal e a plausibilidade do direito alegado (periculum in mora e fumus boni iuris), que, presentes, determinam a necessidade da tutela cautelar e a inexorabilidade de sua concessão, para que se protejam aqueles bens ou direitos de modo a se garantir a produção de efeitos concretos do provimento jurisdicional principal. 4. Em tais casos, pode ocorrer dano grave à parte, no período de tempo que mediar o julgamento no tribunal a quo e a decisão do recurso especial, dano de tal ordem que o eventual resultado favorável, ao final do processo, quando da decisão do recurso especial, tenha pouca ou nenhuma relevância. 5. Existência, em favor da requerente, da fumaça do bom direito e do perito da demora, em face da patente contrariedade ao art. 2º, da Lei nº 8.437/92, visto que, na hipótese dos autos, não há necessidade da prévia audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, vez que o ente Municipal sequer figura na relação processual. 6. Medida Cautelar procedente, para determinar o processamento do recurso especial. ..EMEN: (MC 200100113001, JOSÉ DELGADO, STJ - PRIMEIRA TURMA, DJ DATA:13/05/2002 PG:00150 ..DTPB:.)
Com efeito, citando novamente Araken de Assis, quando enfatiza o que transcrevo abaixo:
"
O processo constitucionalmente justo e equilibrado (faires Verfahren) exige a oportunidade de as partes influírem na atividade do órgão judiciário. O princípio do contraditório, na sua dimensão horizontal, assegura à parte a possibilidade de manifestação acerca das (a) razões de fato, (b) os meios de prova tendentes a demonstrar-lhes a veracidade, e (c) as razões de direito da contraparte
.
O processo criará inexoravelmente uma comunidade de trabalho, sem prejuízo da parcialidade das partes, e o contraditório assume dimensão vertical. Limitará a atuação do órgão judiciário no que concerne à matéria de direito, domínio que lhe toca na qualidade maître du droit -,79 impondo a manifestação prévia das partes sobre (a) a qualificação jurídica dos fatos afirmados, ou dos fatos não alegados, mas constantes dos autos, que o juiz possa considerar relevantes; (b) as normas legais que o juiz entenda aplicáveis à resolução da causa; e (c) as questões que se mostra lícito ao juiz conhecer sem alegação das partes (v.g., as “condições” da ação – legitimidade e interesse processual –, a teor do art. 485, § 3.º). O art. 357, IV, exige a delimitação das questões de direito na decisão de saneamento e de organização do processo para essas finalidades.
A urgência autoriza, entretanto, a postergação do contraditório em certas condições. É o que se infere do art. 300, § 2.º, segundo o qual “a tutela de urgência pode ser concedida liminarmente”. O art. 12, caput, da Lei 7.347/1985 determina o seguinte na ação civil pública: “Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo”. E o art. 7.º, III, da Lei 12.016/2009 estipula que o juiz, no mandado de segurança, ordenará a suspensão incontinenti do ato de autoridade “quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida
." (ASSIS, Araken de.
Processo civil brasileiro.
volume II. Tomo II. Parge Geral: institutos fundamentais. São Paulo: RT, 2015, tópico 1.425).
Outrossim,
"Duas situações autorizam o juiz à concessão de liminar sem a audiência do réu (inaudita altera parte): (a) sempre que o réu, tomando prévio conhecimento da medida, encontre-se em posição que lhe permita frustrar a medida de urgência; (b) sempre que a urgência em impedir a lesão revele-se incompatível com o tempo necessário à integração do réu à relação processual. Essa última hipótese é objeto do seguinte precedente do STJ: “Justifica-se a concessão de liminar inaudita altera parte, ainda que ausente a possibilidade de o promovido frustrar a sua eficácia, desde que a demora de sua concessão possa importar em prejuízo, mesmo que parcial, para o promovente."
(ASSIS, Araken.
Obra citada.
tópico 1.426).
Com efeito,
"
É constitucional a decisão antecipatória de tutela que, liminarmente e adiando a observância do contraditório para momento posterior, concede a antecipação dos efeitos da tutela para homenagear outro direito em voga, cuja preterição se revelar mais danosa
. 2. O perigo de irreversibilidade da medida, não obstante existente no presente caso, não subsiste quando encarado frente ao perigo da demora, o qual milita em favor da parte agravada."
(TJ-PE - AI: 2784312 PE, Relator: Roberto da Silva Maia, Data de Julgamento: 21/05/2013, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 29/05/2013).
Note-se, por exemplo, que a compreensão e aplicação do art. 2, da lei n. 8.437, de 1992, não podem implicar inexorável vedação à antecipação de tutela
inaudita altera parte
, sobremodo quando em causa perigo de danos ambientais, dado o alcance do art. 225, da Constituição e legislação correlata. Assim, "
O Superior Tribunal de Justiça tem flexibilizado o disposto no art. 2º da Lei n.º 8.437/92 a fim de impedir que a aparente rigidez de seu enunciado normativo obste a eficiência do poder geral de cautela do Judiciário
."
(REsp 1130031/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, 2.T. julgado em 22/06/2010, DJe 03/08/2010)
Por sinal, "
Excepcionalmente, é possível conceder liminar sem prévia oitiva da pessoa jurídica de direito público, desde que não ocorra prejuízo a seus bens e interesses ou quando presentes os requisitos legais para a concessão de medida liminar em ação civil pública. Hipótese que não configura ofensa ao art. 2º da Lei n. 8.437/1992
."
(AgRg no REsp 1.372.950/PB, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/6/2013, DJe 19/6/2013.)
Sabe-se, pois, que
"
a jurisprudência do STJ tem mitigado, em hipóteses excepcionais, a regra que exige a oitiva prévia da pessoa jurídica de direito público nos casos em que presentes os requisitos legais para a concessão de medida liminar em ação civil pública
(art. 2º da Lei 8.437/92). Precedentes do STJ."
(REsp 1.018.614/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/6/2008, DJe 6/8/2008).
2.19. Demandas posessórias - considerações gerais:
Ademais, o Código Civil dispõe, no seu art. 1210, que "
O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado
."
Já o art. 1212/CC preconiza que "
O possuidor pode intentar a ação de esbulho, ou a de indenização, contra o terceiro, que recebeu a coisa esbulhada sabendo que o era."
Por seu turno, o art. 932 do Código de Processo Civil/1973 assegurava que "
O possuidor direto ou indireto, que tenha justo receio de ser molestado na posse, poderá impetrar ao juiz que o segure da turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório, em que se comine ao réu determinada pena pecuniária, caso transgrida o preceito
.'"
Dispositivo semelhante é veiculado nos arts. 567 e 568 do CPC/15.
Ora, como explica Joel Dias Figueira Júnior, "
O interdito possessório tutela a posse, garantindo a permanência do possuidor e a abstenção, por parte de terceiros, da prática de turbação ou esbulho que ainda não se concretizaram, mas que ele tem justo receito de que sejam realizados futuramente."
(FIGUEIRA JR., Joel Dias.
Liminares nas ações possessórias.
2. ed. SP: RT, 1999, p. 74).
Ainda segundo o processualista, "
O justo receio de sofrer molestação importa em termo fundado, e não em mera possibilidade, especulação ou ilação do possuidor. Resultará de ameaça (verbal ou escrita) ou terá como causa o comportamento do sujeito que exprima a sua vontade inequívoca em traduzir os seus gestos em atos de moléstia (esbulho ou turbação)
. Em outras palavras, significa 'um receio fundado em fatos concretos e passíveis de demonstração, de que a posse seja turbada e de que ele seja privado da posse.' A verdade é que a expressão justo receio representa juridicamente um conceito vago, vinculado a interpretação do magistrado à análise das peculiaridades de cada caso concreto, porquanto somente elas demonstrarão a existência desse requisito para a concessão da tutela de conteúdo cominatório negativo (tutela inibitória)."
(FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias.
Obra citada.
p. 75).
Vale a pena atentar, tanto por isso, para o precedente abaixo:
PROCESSO CIVIL. INTERDITO PROIBITÓRIO. POSSE DOS AUTORES POSTERIOR À IMISSÃO NA POSSE PELO INCRA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO, PORQUANTO AUSENTES OS REQUISITOS DO ARTIGO 932 DO CPC. 1.
Tem direito à expedição do mandado de interdito possessório o possuidor direto ou indireto que tenha justo receito de ser molestado na posse, nos termos do artigo 932 do CPC
. 2. Restando incontestável o fato de os autores terem entrado no imóvel mais de cinco anos após o início da posse pelo INCRA, vê-se a impossibilidade de manejarem a presente ação possessória. 3.
Alegações de que fariam jus a serem assentados na referida fazenda por serem credores dos desapropriados não devem ser objeto da presente lide. Se os apelantes pretendem discutir os critérios utilizados pelo INCRA para a escolha dos futuros assentados, devem propor ação própria para esse fim, já que a demanda possessória não comporta esse tipo de debate. 4. Apelação a que se nega provimento
. (AC 200783000019532, Desembargador Federal Leonardo Resende Martins, TRF5 - Terceira Turma, DJE - Data::14/07/2010 - Página::457.)
2.20. Direito de propriedade - considerações panorâmicas:
O art. 5º,
caput
e XXII da Constituição, asseguram a tutela à propriedade individual; já o art. 170, Lei Maior/1988, lista o respeito à propriedade como fundamento da Ordem Econômica.
"Consignando a propriedade privada, a Constituição garante o direito de apropriação, o direito de aquisição de bens ou, mais amplamente, direitos patrimoniais.
Os particulares, sejam pessoas singulares ou colectivas, gozam do direito de ter bens em propriedade e, em geral, do direito de se tornar, por actos inter vivos ou mortis causa, titulares de quaisquer direitos de valor pecuniário - direitos reais, direitos de crédito, direitos de autor, direitos sociais ou outros. Os direitos patrimoniais não ficam reservados ao Estado ou à Comunidade, podem ser também dos cidadãos.
Não se trata (ou não se trata principalmente) da previsão de um regime ou de uma relação na base da atribuição de bens a uma pessoa com exclusão das demais ou da colectividade, e que tanto poderia respeitar aos particulares, como ao próprio Estado (em contraposição ao domínio público). Trata-se, antes, do reconhecimento de que as pessoas, assim como têm direitos de liberdade, de associação ou de defesa, têm também o direito de ter coisas ou direitos de significado econômico." (MIRANDA,
Jorge.
Manual de direito constitucional.
Tomo IV: direitos fundamentais. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2.000, p. 527)
Joaquim Canotilho e Vital Moreira afiançam o que segue:
"Teoricamente, o âmbito do direito de propriedade abrange pelo menos quatro componentes: (a) a liberdade de adquirir bens; (b) a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; (c) a liberdade e os transmitir; (d) o direito de não ser privado deles. Talvez se possa acrescentar uma quinta dimensão: o direito de reaver os bens sobre os quais se mantém direito de propriedade (p.ex., cláusula de resgate de propriedade na venda de bens móveis duradouros. Conf. diretiva 2000/35/CE). Aparentemente, só o segundo aspecto não está contemplado de forma explícita neste preceito constitucional.
Revestindo o direito de propriedade, em vários dos seus componentes, uma natureza negativa ou de defesa, ele possui natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, compartilhando por isso do respectivo regime jurídico específico (conf. art. 17), nomeadamente para efeito do regime de restrições. A este propósito interessa ter em conta, não apenas os limites explícitos (sobretudo em matéria de propriedade dos meios de produção), mas também os limites não expressos, decorrentes de outras normas e princípios constitucionais, que vão desde os princípios gerais da constituição econômica e financeira (entre os quais as obrigações fiscais, conf. art. 103), até aos direitos sociais (defesa do ambiente, do patrimônio cultural, etc.).
A ausência de uma explícita reserva de lei restritiva, embora cause alguma perplexidade (pois, é corrente na história constitucional e no direito constitucional comparado), não impede porém que a Lei - seja por via de algumas específicas remissões constitucionais expressas (art. 82, 88 e 94), seja por efeito da concretização de limites não expressamente estabelecidos ou autorizados, sobretudos, por colisão com outros direitos fundamentais - possa determinar restrições mais ou menos profundas ao direito de propriedade. De uma forma geral, o próprio projecto econômico, social e político da Constitu9ição implica um estreitamento do âmbito dos poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de restrições (quer a favor do Estado e da colectividade, quer a favor de terceiros) das liberdades de uso, fruição e disposição.
De qualquer modo, estas restrições estão sujeitas aos limites das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, dado o caráter análogo do direito de propriedade, podendo as restrições vir a revelar-se injustificadas por violação dos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, incluindo a possibilidade de reserva de propriedade por motivos subjectivos (conf. AcsTC 76/58 e 187/01, referentes à reserva de propriedade das farmácias aos farmacêuticos
." (CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital.
Constituição da República Portuguesa Anotada.
Volume 1: arts. 1º a 107. 1. ed. brasileira. 4ª edição portuguesa. ST: RT, Coimbra: Coimbra Editora, p. 802-803)
Ainda segundo Canotilho e Vital Moreira,
"
Um elemento essencial deste direito consiste no direito de não ser privado da propriedade (nem do seu uso). Ele não goza, porém, de protecção constitucional em termos absolutos, estando garantido antes como um direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado no caso de desapropriação
. Com efeito, a Constituição prevê várias figuras de desapropriação forçada por acto de autoridade pública, desde a expropriação por utilidade pública em geral (n. 2), passando pela expropriação de solos urbanos para efeitos urbanísticos (c. art. 65º, 4), até a nacionalização de empresas e meios de produção em geral (conf. art. 83)."
(
CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital.
Obra citada.
p. 805)
O Código Civil Brasileiro/2002 tratou do tema nos seus arts. 1.228 e 1.231, do que destaco:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o
O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas
.
§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3o
O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente
.
§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.
Isso significa que, evidentemente, o direito de propriedade não é absoluto
; todavia, quando seja o caso, eventual expropriação depende de motivos que tenham sido previstos, de modo válido, na legislação brasileira. É o que ocorre com a expropriação ditada pelo art. 243,
caput,
CF (expropriação de terras com culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou com a exploração de trabalho escravo), com o art. 182, §3º, Constituição da República (desapropriação de imóveis urbanos) etc.
2.21. Considerações gerais sobre usucapião:
No dizer de Caldas de Araújo,
"a usucapião encerra uma dualidade ínsita em sua essência, pois, na medida em que cria um direito, destrói outro, da mesma natureza. Trata-se da aplicação do princípio durum in solidum dominium esse non posse. A perda da propriedade é consequência da prescrição aquisitiva, a qual opera seus efeitos ipso iure, motivo pelo qual a sentença judicial que reconhece direito d prescribente é de natureza preponderantemente declaratória (art. 1.241 do Código Civil brasileiro). Enfim, de acordo com o magistério de Baudry-Lacantinerie e Tissier: a prescrição aquisitiva é um modo de aquisição de propriedade resultante da posse lícita prolongada durante um determinado tempo."
(ARAÚJO, Fabio C. de.
Usucapião.
2. ed. SP: Malheiros. 2013, p. 111).
A Constituição Republicana preconiza, nos arts. 183 e 191:
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio,
desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural
. § 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. § 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. (...)
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião
Semelhante é o conteúdo do art. 1.240 do Código Civil:
"Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1 O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. § 2 O direito previsto no parágrafo antecedente não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez."
Transcrevo a análise de Marco Aurélio S. Viana a respeito do tema:
"
O possuidor deve sê-lo pelo prazo de cinco anos, sem interrupção ou oposição. Já estudamos os dois conceitos. Advertimos, agora, para um ponto: a utilização do imóvel como moradia deve se desenvolver pelos cinco anos. Não se admite a acessio possessionis, ou seja, que o possuidor acrescente à sua posse a dos seus antecessores. A esse entendimento se chega porque o dispositivo em exame é claro quando vincula a posse à moradia. A contagem do tempo anterior á incompatível com a ideia presente no comando legal. Além disso, o art. 183 da Constituição nada dispõe no sentido da soma das posse o que inibe a lei ordinária
.
O que se pretende com a norma em estudo é assegurar ao possuidor ou sua família o direito de haver uma moradia. O conceito de família está na lei maior, que assim considera aquela constituída pelo casamento, a entidade familiar, na qual se encontra a união estável, e a família monoparental (art. 226, §1º). Por isso, o prazo é contado em favor da família. O fato de um dos cônjuges falecer, ou um dos conviventes, ou o pai de forma com seus descendentes a família monoparental, isso não prejudica os demais membros da família, que completado o lapso de tempo, podem usucapir." (
VIANA, Marco Aurélio S.
Comentários ao novo Código Civil.
Dos direitos reais. Arts. 1.225 a 1.510. Volume XVI. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 155.)
Reporto-me também ao art. 1.244 do Código Civil pátrio:
"Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião."
Cuidando-se de área rural, em princípio será aplicável o prazo do art. 1.238 do Código Civil:
"Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo."
Enfatize-se que, por força do disposto no art. 183, CF/1988 e art. 102, Código Civil/2002, os bens públicos não podem ser adquiridos mediante usucapião. Atente-se também para a lógica das súmulas 340, STF e 497, STJ:
Súmula 340 - STF.
Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião
.
Súmula 496 - STJ. Os registros de propriedade particular de imóveis situados em terrenos de marinha não são oponíveis à União.
Os Tribunais têm reputo ser incabível a usucapião de imóvel situado na poligonal de uma área de remanescentes de quilombos:
"usucapião. cerceamento de defesa. inocorrência. bem situado em terra quilombola. inviabilidade. honorários advocatícios. manutenção. 1. Não há falar em cerceamento de defesa pela não oportunização da produção de prova testemunhal, que se revela absolutamente despicienda no caso em tela, em que o pleito recai sobre bem imprescritível. 2.
O regramento da matéria inviabiliza a aquisição por usucapião de bem situado em terra quilombola
. 3. No que diz respeito à verba honorária, não há falar quer em afastamento, quer em redução. Tendo o autor sucumbido, compete-lhe arcar com os honorários da parte adversa, os quais, no caso concreto, foram fixados nos termos da legislação processual (art. 85, §§ 2º e 6º, do CPC)."
(TRF-4 - AC: 50110120520144047204 SC 5011012-05.2014.4.04.7204, Relator: MARGA INGE BARTH TESSLER, Data de Julgamento: 16/06/2020, TERCEIRA TURMA)
2.22. Discussão de domínio em demandas possessórias:
A despeito da menção acima ao direito de propriedade e ao tema da usucapião - que podem ter relevo para o debate a respeito da caracterização de um imóvel como remanescente de quilombo -, convém ter em conta que, nos termos do art. 1.196 do Código Civil/2002, possuidor é todo aquele que exerça, ainda que não plenamente, algum dos poderes inerentes à propriedade
. A posse é definida obliquamente, por meio da caracterização do possuidor. A referência à possibilidade de exercício de um dos poderes da propriedade evidencia que o instituto depende do exercício efetivo de algumas das característas do domínio. Sustenta-se, em regra, que a posse é um fato, conquanto isso apenas seja consistente com a posse direta. Quanto à posse indireta - a exemplo daquela mantida pelo locador em face do locatário, essa conceituação como "fato" se esmaece, dado que persiste aí a relação jurídica. Ela se dá por meio da manifestação de uma das faculdades previstas no art. 1.228, Código Civil - uso, gozo, disposição e direito de sequela.
Em princípio, a posse se manifesta através de atos de vontade, com exercício em nome próprio, o que a distingue da mera detenção, a exemplo da guarda de bens confiadas ao estagiário (fâmulo da posse, arts. 1.198 e 1.204, do CC/2002).
"
Há manifestação de vontade na posse. O possuidor exprime sua intenção de possuir o bem. Assim, salvo quando a posse resultar de sucessão, hipótese em que o herdeiro será possuidor mesmo que ignore o falecimento do de cujus, haverá elemento volitivo a caracterizar a relação possessória.A posse adquirida pela sucessãoé notável exceção ao disposto no art. 1.196 do CC/2002 . Em regra, o possuidor estará ciente da possibilidade de exercer poder sobre a coisa. É nisso que consiste o elemento volitivo necessário à caracterização da posse
."
(SICA, Heitor.
Comentários ao Código de Processo Civil: Artigos 674 ao 718
. São Paulo:RT. 2017. Capítulo III).
Há distintas teorias sobre a natureza da posse - consolidadas em objetiva, subjetiva -, relevando ao caso ter em conta que
"O esbulho gera imprevisibilidade e insegurança nas relações sociais e constitui grave violação da esfera jurídico-patrimonial do possuidor legítimo, quer ele seja, quer não seja simultaneamente proprietário. Para que a economia cresça e a pobreza diminua é necessária a realização de investimentos. Mas a premissa para a alocação de recursos é a previsibilidade, a confiança no retorno daquilo que foi investido, sendo digno de nota que o investidor aplica seu capital excedente.
Se é assim, soluções jurídicas que levem à instabilidade, à insegurança, não podem ser consideradas como remédios para a erradicação da pobreza e diminuição da quantidade de despossuídos. O contrário é verdadeiro: a erradicação da pobreza passa pela segurança e previsibilidade das relações sociais. É preciso conceder ao legítimo possuidor a segurança de possuir
."
(SICA, Heitor.
Obra citada.
capítulo III).
Assim,
"Na condição de arrendatário de uma gleba de terra, preciso ter segurança de que minha posse será respeitada contra qualquer ato espoliativo do proprietário. Na condição de possuidor proprietário, preciso ter a segurança de que minha posse não será esbulhada, o que permitirá a alocação de recursos para o desenvolvimento da pecuária, da agricultura ou de outro empreendimento. A posse permite que o bem seja economicamente fruído pelo legítimo possuidor. Essa é a função da posse, sendo de nenhuma relevância que ao substantivo se acrescente o adjetivo. A posse de boa-fé, que protege o colono, que protegia já em Roma o pequeno agricultor, que permite a aquisição da propriedade por meio da prescrição aquisitiva em suas diversas modalidades, é o mesmo instituto que ainda hoje se mostra essencial para o desenvolvimento da economia, sendo objeto de miríade de negócios jurídicos"
(SICA, Heitor.
Obra citada.
capítulo III).
Acrescente-se, ainda, que
"Não se nega que o interesse do legítimo possuidor deve ser tutelado frente ao do proprietário, embora na maioria das vezes as figuras do possuidor e do proprietário coincidam. O que não se admite é a simplista solução de invocar a função social da posse a fim de permitir o esbulho do legítimo possuidor proprietário. A argumentação sobre a função social da posse trilha esse caminho sinuoso e não raras vezes parece admitir como objetivo a superação da “propriedade burguesa”. Ocorre que a proteção da propriedade e da posse é elemento essencial para que a economia se desenvolva, com melhores resultados principalmente para a parcela mais desfavorecida da população, seja pela oferta de emprego, seja pelo acesso a bens de consumo mais baratos, seja ainda pela redistribuição de recursos mediante tributação do imóvel."
(SICA, Heitor.
Obra citada.
capítulo III).
Segundo Heitor Sica,
"Da autonomia da posse resulta, ainda, a impossibilidade de se verificar, para a finalidade de conceder proteção possessória, o cumprimento dos requisitos caracterizadores da função social da propriedade. Sendo a posse instituto autônomo, considerações sobre a função social da propriedade são completamente estranhas aos interditos possessórios.
Desse modo, requerida a tutela jurisdicional da posse, não cabe ao juiz subordinar o deferimento da proteção possessória ao cumprimento dos requisitos elencados no art. 2.º, § 1.º, alíneas a a d do Estatuto da Terra ou, o que seria ainda pior, a critérios pessoais de atendimento da função social
."
(SICA, Heitor.
Obra citada.
capítulo III).
Note-se que o Código Civil definiu como posse injusta aquela que não for violenta, clandestina ou precária (art. 1.200, CC). A definição, como se vê, ocorre por exclusão. Para saber o que é posse justa é necessário definir posse violenta, clandestina e precária. Violenta é a posse adquirida com o uso de força. Clandestina é a posse cuja aquisição ocorre às ocultas, agindo ardilosamente aquele que procura conquistar a posse. Precária é a posse marcada pelo abuso de confiança, em que aquele que recebeu a coisa deixa de devolvê-la. Justa, portanto, será a posse que não estiver tisnada pelos vícios da violência, clandestinidade ou precariedade. (SICA, Heitor.
Obra citada.
capítulo III).
Quanto à posse de boa-fé, atente-se para o seguinte:
"De boa-fé, nos termos do caput do art. 1.201 do CC/2002 , é a posse exercida por possuidor que desconhece vício ou obstáculo à aquisição da coisa. Caracteriza-se a posse de boa-fé quando houver plausibilidade na crença do possuidor sobre a legitimidade de sua condição, de modo que a consciência sobre o caráter ilegítimo da posse a caracteriza como de má-fé. O critério classificatório enfatizado pelo dispositivo é a convicção do possuidor sobre a idoneidade da posse, a demonstrar que a boa-fé é verificada na dimensão subjetiva, não na objetiva.
No parágrafo único do art. 1.201 é mencionado que o justo título do possuidor conduz à presunção de sua boa-fé.
Justo títuloé o fundamento de legitimidade da posse, compreendido como o ato jurídico que o possuidor reputa como capaz de lhe transmitir o bem. Desse conceito decorre a importante consequência de que o justo título deve cumprir os requisitos formais que do título são exigidos. Com efeito, tratando-se de ato jurídico capaz de instilar no possuidor a ideia de transmissão legítima e, consequentemente, de posse de boa-fé, não é aceitável que o justo título descumpra cabalmente os pressupostos de validade do título. Se isso ocorrer, justo título não há.
Suponha-se que o possuidor invoque como justo título de sua posse a transmissão verbal e gratuita do imóvel em que vive. Ainda que tenha havido a alegada “doação” e mesmo que o possuidor realmente creia na possibilidade de transmissão verbal da propriedade, fato é que inexiste justo título na hipótese, pois no art. 1.245 o Código Civil é inequívoco ao exigir o registro do título translativo no Registro de Imóveis para que se perfectibilize a transmissão da propriedade por ato intervivos
. A “doação verbal” do imóvel é ato em completo descompasso com os requisitos previstos em lei para a transmissão da propriedade por ato entre vivos. Isso significa que não poderia o possuidor crer na legitimidade de sua posse? A resposta é negativa. O possuidor poderia crer na legitimidade de sua posse, mas nesse caso não contaria com a presunção de boa-fé em seu favor, haja vista a inexistência de justo título. A consciência do possuidor quanto à legitimidade ou ilegitimidade de seu ato teria de ser investigada." (SICA, Heitor.
Obra citada.
capítulo III).
Note-se ainda que, nos termos do
art. 1.203 do CC/02
, presume-se que a posse mantenha o caráter com que fora adquirida. Cuida-se de uma presunção relativa -
iuris tantum,
cabendo ao interessado comprovar a alteração das características do exerecício da posse. Em regra, a mera vontade do possuidor é insuficiente para operar modificação na natureza da posse, demandando comprovação da alteração do título que justifica seu exercício. D'outro tanto, admite-se que duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, sendo-lhes assegurado o exercício de posse sobre o bem desde que não ocorra exclusão de outro compossuidor. Cuida-se de situação de composse, a exemplo do que ocorre com o condomínio, ou com a posse de objetos indivisíveis, a exemplo de um veículo utilizado em regime de rodízio entre colegas de trabalho.
Anoto ainda que o art. 1.199 do CC/2002 autoriza, no regime de composse, cada um dos possuidores a exercer a posse sobre a totalidade da coisa comum, desde que não exclua idêntica prerrogativa de outro possuidor
.
Assim,
"Para analisar a defesa da posse pelo detentor, mediante interditos, impõe-se previamente indicar duas categorias de detenção. A primeira, denominada detenção dependente ou subordinada, é aquela praticada pelo fâmulo da posse ou por aquele que exerce ato tolerado ou permitido pelo possuidor. Está prevista nos arts. 1.198 e 1.208 do CC/2002 . A segunda modalidade de detenção é a independente, sendo exemplo aquela praticada com violência ou clandestinidade. Sua previsão está no período final do art. 1.208.
O detentor dependente não poderá ajuizar os interditos possessórios. Sua condição de servidor da posse não lhe outorga essa prerrogativa. Perceba-se, quanto ao detentor independente, que o vício de sua posse, eis que obtida mediante violência ou clandestinidade
, limita-se ao antigo possuidor. Em relação ao restante da sociedade sua posse será legítima. Disso decorre a possibilidade do detentor independente fazer uso dos interditos contra terceiros."
(SICA, Heitor.
Obra citada.
capítulo III).
Sublinha-se, por conta disso, que a posse e o domínio não se confundem. A propriedade é direito real. A posse tem sido considerada como um fato - conquanto melhor seria distinguir posse-fato e direito à posse. O proprietário do imóvel poderá ser o possuidor, mas em situações corriqueiras o possuidor direto não se confunde com o proprietário. Em muitas situações, o sistema legislativo assegura ao possuidor tutela da posse até mesmo contra o proprietário, a exemplo do que se dá em casos de retomada irregular da posse de imóvel locado, por exemplo. O art. 1.204 assinala que o direito ao exercício da posse é adquirido a partir do momento em que se torna possível exercer em nome próprio algum dos poderes inerentes ao domínio ou propriedade. O dispositivo é complementado pelo art. 1.196, Código Civil.
Ademais, o art. 1.223 do CC/2002 preconizou que haverá perda da posse, mesmo contra a vontade do possuidor, quando cessar o exercício do poder sobre o bem, na forma do art. 1.196. Já o art. 1.224 do mesmo código estipulou que a posse só se considera perdida, por quem não presenciou o esbulho, se ciente da agressão deixa de recuperar a coisa ou, tentando fazê-lo, é violentamente repelido. Ainda que a vontade do possuidor se manifeste no sentido de exercer a posse, terá ocorrido perda quando houver cessado definitivamente o poder fático exercido sobre a coisa. (SICA, Heitor.
Obra citada.
capítulo III).
Daí o relevo do que segue:
"
As ações possessórias são materialmente sumárias, sendo nelas vedada a discussão sobre a propriedade, conforme assentam os arts. 557, par. ún. do CPC e 1.210, § 2.º do CC. A sumariedade material, a restringir o thema decidendum à posse, subsistirá mesmo quando as ações possessórias não seguirem o procedimento especial em razão do decurso do prazo de ano e dia.Essa posição contava com a adesão da doutrina sob o código revogado, devendo ser mantida sob o diploma vigente.
A natureza das ações possessórias é ponto controverso. Nega-se que sejam ações pessoais, pois inexiste obrigação entre o autor e o réu. Não seria concebível que o esbulhador, o turbador ou mesmo aquele que ameaça a posse fossem transformados em devedores do autor. Facilmente se vê que as ações possessórias, ecos na contemporaneidade dos célebres interditos romanos, não são ações pessoais. Concluir-se-ia, então, tratar-se de ações reais. Objeta-se, contra essa conclusão, que a posse é fato, cuja proteção só ocorre depois da agressão. Nessa perspectiva, não sendo a posse direito, não seria possível classificar as ações possessórias como ações reais.
Ocorre que se denominam como ações reais aquelas cujo bem da vida seja coisa corpórea, de modo que a concepção das ações possessórias como reais não pressupõe a caracterização da posse como direito real. As ações possessórias abrigam pretensões reais, ou seja, pretensões sobre a coisa, sendo então correto classificá-las como ações reais, embora a posse não seja um direito real." (SICA, Heitor.
Obra citada.
capítulo III).
Atente-se para a conhecida súmula 487 do STF -
"Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada."
Segundo a Suprema Corte,
"O atual Código Civil e a redação atribuída ao art. 923 do Código de Processo Civil impedem a apreciação de questões envolvendo a jus petitorium em juízo possessório. No entanto, a doutrina de Pontes de Miranda esclarece ser possível a exceptio dominii nos casos em que duas pessoas disputam a posse a título de proprietários ou quando é duvidosa a posse de ambos os litigantes. Dessa forma, "a exceção do domínio somente é aplicável quando houver dúvida acerca da posse do autor e do réu ou quando ambas as partes arrimarem suas respectivas posses no domínio, caso em que a posse deverá ser deferida àquela que tiver o melhor título, ou seja, ao verdadeiro titular, sem, contudo, fazer coisa julgada no juízo petitório".10. Por fim, a questão debatida nos autos encontra respaldo na Súmula STF 487, in verbis: (...)
Silvio de Salvo Venosa adverte que "somente se traz à baila a súmula se ambos os contendores discutirem a posse com base no domínio, ou se a prova do fato da posse for de tal modo confusa que, levadas as partes a discutir o domínio, se decide a posse em favor de quem evidentemente tem o domínio. Todavia a ação não deixa de ser possessória, não ocorrendo coisa julgada acerca do domínio
" (
ACO 685, rel. min. Ellen Gracie, red. p/ o ac. min. Marco Aurélio, P, j. 11-12-2014, DJE 29 de 12-2-2015).
Por seu turno, o STF tem decidido como segue:
DIREITO CIVIL. INTERDITO PROIBITÓRIO. EXCEÇÃO DE DOMÍNIO. ART. 505, SEGUNDA PARTE, CC/1916. ENUNCIADO SUMULAR N. 487/STF. INCIDÊNCIA. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO DESACOLHIDO. I -
A proteção possessória independe da alegação de domínio e pode ser exercitada até mesmo contra o proprietário que não tem posse efetiva, mas apenas civil, oriunda de título.
II -
Na linha da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do verbete sumular n. 487/STF, firmada na vigência do Código de 1916, cabe a exceção de domínio nas ações possessórias se com base nele a posse for disputada.
III - Sem ter o Tribunal de segundo grau abordado a ilegitimidade passiva e sem ter o recorrente apontado, quanto ao tema, violação de lei federal, incidem na espécie os enunciados n. 282 e 284 da súmula/STF. (STJ - REsp: 200353 CE 1999/0001779-0, Relator: Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Data de Julgamento: 20/02/2003, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: --> DJ 17/03/2003 p. 232 RJTAMG vol. 88 p. 557)
Como regra, porém, o debate a respeito do domínio do bem resta excluído do
thema decidendum -
ou seja, do alcance - das demandas possessórias, por conta dessa relativa independência entre a tutela da posse e a tutela do domínio. Atente-se para o art. 557, CPC/15:
"
Na pendência de ação possessória é vedado, tanto ao autor quanto ao réu, propor ação de reconhecimento do domínio, exceto se a pretensão for deduzida em face de terceira pessoa
."
Nesse sentido, leia-se:
"Apelação. Imóvel. Manutenção de posse. Cumprimento, pelo autor, dos requisitos previstos no art. 561, do CPC. Comprovação de turbação da posse. Ré que alega ser proprietária do imóvel e pretende a tutela possessória com fundamento nessa condição. Impossibilidade.
Distinção e autonomia entre os institutos posse e propriedade. Vedação, nas ações possessórias, da exceção do domínio (exceptio proprietatis ou exceptio domini). Inteligência do artigo 557 do CPC
. Sentença mantida. Majorada a verba honorária sucumbencial, nos termos do artigo 85, § 11 do CPC, observada, contudo, a gratuidade da justiça concedida a ré. Recurso a que se nega provimento." (TJ-SP - AC: 10011851920218260035 SP 1001185-19.2021.8.26.0035, Relator: Mauro Conti Machado, Data de Julgamento: 14/02/2023, 16ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 23/02/2023)
"POSSESSÓRIA Ação de reintegração de posse Sentença de improcedência Alegada posse decorrente de aquisição do imóvel
Inviabilidade de discussão de qualquer título e de domínio que é próprio de ação petitória Ausência de demonstração de posse anterior sobre a área objetada na ação
Prevalência dos limites entre as propriedades, outrora por cerca Requisito da posse, incomprovada Inteligência do art. 927, do CPC Esbulho possessório não caracterizado Sentença mantida Recurso desprovido, e majorados os honorários advocatícios ( CPC, art. 85, § 11)". (Apelação nº 1021985-91.2020.8.26.0071, Rel. Des. José Wagner de Oliveira Melatto Peixoto, 37a Câmara de Direito Privado, julgado em 11/05/2022).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO POSSESSÓRIA. INCABÍVEL A EXCEÇÃO DE DOMÍNIO. RECURSO DESPROVIDO. I.
Nas ações possessórias, mostra-se inócua a exceção de domínio, posto que se trata de instrumento processual destinado à proteção da posse e não da propriedade
. II. Agravo desprovido. (TJ-MA - AG: 277682008 MA, Relator: ANTONIO GUERREIRO JÚNIOR, Data de Julgamento: 31/03/2009, SAO LUIS)
DIREITO CIVIL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. EXCEÇÃO DE DOMÍNIO. PROVA DA POSSE E DO ESBULHO. PROCEDÊNCIA.
A proteção possessória independe da alegação de domínio, que só é cabível nas ações possessórias se com base nele a posse for disputada. Provada a posse do apelado, há que ser deferida a reintegração de posse. Apelação improvida
. (TRF-5 - AC: 331016 RN 0032110-71.2003.4.05.0000, Relator: Desembargador Federal Paulo Machado Cordeiro (Substituto), Data de Julgamento: 14/07/2005, Primeira Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da Justiça - Data: 10/08/2005 - Página: 1097 - Nº: 153 - Ano: 2005)
Segundo a fundamentação deste acórdão,
"
Ademais, deve-se ressaltar que seria inadmissível oposição fundada em domínio, como quer fazer a parte apelante, eis que não pode a oposição ter objeto mais amplo do que o da demanda principal, que só admite discussão sobre a posse, visto ser a lide de natureza possessória, onde não se discute o domínio, mas tão somente a posse, que é um estado de fato. As ações de cunho possessório não podem ser convertidas em ação petitórias, pois têm naturezas distintas e, conseqüentemente, requisitos distintos
. A exceção de domínio, exceção a esta regra, só pode ser aplicável em casos taxativos (quando duvidosa a posse de ambos os litigantes ou quando as partes disputam a posse a título de proprietárias)."
(TRF-5 - AC: 331016 RN 0032110-71.2003.4.05.0000, Relator: Desembargador Federal Paulo Machado Cordeiro (Substituto), Data de Julgamento: 14/07/2005).
Ainda nesse sentido,
DIREITO CIVIL – INTERDITO PROIBITÓRIO – EXCEÇÃO DE DOMÍNIO – ART. 505, SEGUNDA PARTE, CC/1916 – ENUNCIADO SUMULAR Nº 487/STF – INCIDÊNCIA – PRECEDENTES DO STJ – LIMINAR INAUDITA ALTERA PARTE – AGRAVO – SENTENÇA DEFINITIVA – PENDÊNCIA DE JULGAMENTO DA APELAÇÃO – RECURSO ESPECIAL DESACOLHIDO – I -
A proteção possessória independe da alegação de domínio e pode ser exercitada até mesmo contra o proprietário que não tem posse efetiva, mas apenas civil, oriunda de título. II - Na linha da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do verbete sumular nº 487/STF, firmada na vigência do Código de 1916, cabe a exceção de domínio nas ações possessórias se com base nele a posse for disputada
. (STJ – RESP 327214 – PR – 4ª T. – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – DJU 24.11.2003 – p. 00308)
DIREITO CIVIL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. EXCEÇÃO DE DOMÍNIO. PROVA DA POSSE E DO ESBULHO. PROCEDÊNCIA.
A proteção possessória independe da alegação de domínio, que só é cabível nas ações possessórias se com base nele a posse for disputada. Provada a posse do apelado, há que ser deferida a reintegração de posse. Apelação improvida
. (TRF-5 - AC: 331016 RN 2003.05.00.032110-5, Relator: Desembargador Federal Paulo Machado Cordeiro (Substituto), Data de Julgamento: 14/07/2005, Primeira Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da Justiça - Data: 10/08/2005 - Página: 1097 - Nº: 153 - Ano: 2005)
PROCESSO CIVIL. OPOSIÇÃO. AÇÃO POSSESSÓRIA. EXCEÇÃO DE DOMÍNIO. INCABÍVEL. ART. 923 DO CPC. DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA. I -
Ainda que presente precedente em sentido diverso ( REsp 780.401/DF), prevalece na doutrina, como também na jurisprudência do Excelso Pretório, do Superior Tribunal de Justiça e desta Corte Regional Federal, a compreensão de que é incabível a intervenção de terceiros na modalidade oposição (art. 56, CPC) fundada em domínio da propriedade em face de ação possessória. Com a atual redação do art. 923 do CPC, conferida pela Lei 6.820/1980, não há mais falar em exceção de domínio nas ações possessórias, notadamente porque as causas vislumbram objetivos diferentes, na medida em que a oposição pretende, em última análise, o reconhecimento da propriedade com base no domínio e a ação possessória almeja proteção com força no fato jurídico da posse, tratando-se, pois, de institutos distintos que requerem tratamento processual próprio
. Nesse sentido: STF: ACO 736, Relatora Min. ELLEN GRACIE, DJ 16/05/2005. STJ: AgRg no REsp 1294492/RO, Rel. Ministro OG FERNANDES, DJe 14/10/2015; AgRg no REsp 1389622/SE e REsp 1204820/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe 24/02/2014 e 07/12/2015; REsp 685.159/DF, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJe 19/10/2009. TRF 1: AC 1977-08.2005.4.01.4100/RO, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, e-DJF1 de 08/05/2015; AC 166-87.2007.4.01.3309/BA, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL SELENE MARIA DE ALMEIDA, e-DJF1 de 14/10/2013; AC 2755-55.2003.4.01.4000/PI, Rel. JUIZ FEDERAL convocado MARCIO BARBOSA MAIA, e-DJF1 de 28/08/2013; AGA 25107-76.2003.4.01.0000/DF, Rel. JUIZ FEDERAL convocado MARCELO DOLZANY DA COSTA, e-DJF1 de 25/02/2013, entre outros. II - Assim colocados os fatos, não merece retoque a sentença que julgou improcedente a oposição fundada no reconhecimento do domínio em face da ação possessória que discute a reintegração de posse da Chácara 177 da Colônia Agrícola Vicente Pires - Região Administrativa de Taguatinga - DF. III - Apelação da União a que se nega provimento. (TRF-1 - AC: 00041665620044013400, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JIRAIR ARAM MEGUERIAN, Data de Julgamento: 15/02/2016, SEXTA TURMA, Data de Publicação: 29/02/2016)
Acrescento que, na forma do art. 557, Código de Processo Civil/15,
"Na pendência de ação possessória é
vedado, tanto ao autor quanto ao réu, propor ação de reconhecimento do domínio
, exceto se a pretensão for deduzida em face de terceira pessoa. Parágrafo único.
Não obsta à manutenção ou à reintegração de posse a alegação de propriedade ou de outro direito sobre a coisa
."
Há discussões sobre a validade deste enunciado, no que toca à proibição de deflagração de demanda de conteúdo petitório -
ou seja, com discussão sobre o domínio do bem
- na pendência de demanda possessória. Em princípio, referida vedação parece agressiva ao art. 5, XXXV, Constituição, que assegura a todos os brasileiros e aos estrangeiros presentes em solo nacional o direito à prestação jurisdicional efetiva, tanto na vertente repressiva, quanto inibitória. Ademais, há uma diferença entre vedar o debate do domínio no âmago de uma demanda possessória, de um lado, e interditá-la de toda e quaquer forma, de outro, na pendência da possessória. Até porque a demanda de domínio pode ter sido deflagrada antes, e então os problemas que justificariam o art. 557, CPC/15, persistiriam, salvo se for imposta uma suspensão obrigatória da demanda petitória, por conta de questão prejudicial.
Tem prevalecido, de todo modo, o entendimento de que a aludida vedação do art. 557, CPC/15, estaria em conformidade com a Constituição. Segundo Luiz Guilherme Marinoni,
“Constitucionalidade da Proibição da Discussão do Domínio na Pendência da Ação Possessória. Não há dúvida que a restrição à discussão do domínio é constitucional.
Tal restrição não viola o direito de propriedade nem, muito menos, o direito de defesa ou o direito de ação. A restrição tem o objetivo de tornar possível a prestação de uma forma de tutela jurisdicional imprescindível à situação jurídica de possuidor. Não há posse ou situação jurídica de possuidor sem tutela jurisdicional possessória e não há efetiva e adequada tutela jurisdicional possessória sem restrição à discussão do domínio
. Não fosse assim, a posse e o possuidor estariam ao desamparo da tutela do Estado. A restrição, além de estar fundada na posse, está baseada no direito fundamental à tutela jurisdicional adequada e efetiva dos direitos (art. 5.º, XXXV, CF). A propriedade pode ser tutelada mediante o exercício do direito de ação depois de esgotado o juízo possessório”
(MARINONI, Luiz Guilherme e outros. Novo Código de Processo Civil Comentado. 3. ed. São Paulo: RT. 2017).
Transcrevo os julgados abaixo:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA E AÇÃO POSSESSÓRIA EM ANDAMENTO. VERIFICAÇÃO DA IDENTIDADE DE PARTES. VEDAÇÃO DE AJUIZAMENTO DA AÇÃO PETITÓRIA. (...) 2. É vedada a propositura de ação para o reconhecimento do domínio, enquanto pendente ação possessória, tendo em vista a distinção existente entre os juízos possessório e petitório: naquele, o exercício do poder de fato sobre a coisa será o objeto da ação; neste, a discussão será a respeito da titulação jurídica dos direitos sobre a coisa. (...) 8. Recurso especial parcialmente provido.” (STJ - REsp 1204820/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 15/10/2015, DJe 07/12/2015).
“AGRAVO REGIMENTAL – APELAÇÃO CÍVEL - SEGUIMENTO NEGADO – PROCESSO POSSESSÓRIO PENDENTE - DISCUSSÃO DE DOMÍNIO – IMPOSSIBILIDADE - DECISÃO DO
RELATOR
MANTIDA – RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
Ainda que não seja pela ilegitimidade ativa dos apelantes, a ação deve ser extinta com base na impossibilidade de se discutir domínio quando pendente processo possessório. A despeito do resultado alcançado, prevalece a decisão do
relator
, a não ser que sobrevenha retratação, ou em Recurso de Agravo Regimental, dele divirja o colegiado
.” (TJMT - AgR 140451/2014, DESA. SERLY MARCONDES ALVES, QUARTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO, Julgado em 29/10/2014, Publicado no DJE 04/11/2014).
Em princípio, o domínio sobre o imóvel pode ser debatido em um processo subsequente, depois do trânsito em julgado da possessória. Isso acaba protraindo a solução de tais causas, sabidamente demoradas. Sabe-se que a sentença prolada quanto à posse não suscita coisa julgada no que toca ao domínio, nem mesmo quando essa questão houver composto a fundamentação da sentença, diante do que preconiza o art. 504, I, CPC/15. Deve-se atentar, porém, para a suspensão do cômputo da prescrição para a deflagração da ação de domínio, dada a impossibilidade de agir no curso da possessória.
Nesses casos, a suspensão do cômputo do prazo prescricional se dá com força no art. 199, Código Civil/2002:
"
Não corre igualmente a prescrição: I - pendendo condição suspensiva
."
Essas são algumas considerações, com caráter precário, a respeito da tutela possessória no sistema jurídico pátrio.
2.23. Direitos defensivos e prestacionais:
Deve-se atentar para a classificação dos direitos fundamentais, propugnada por Robert Alexy, entre
direitos defensivos e prestacionais
. Direitos defensivos são efetivados, no geral, pela simples abstenção do Estado ou da comunidade política. Basta que a Administração Pública e os particulares não violem as liberdades e patrimônio individuais. Tais direitos custam, eis que demandam uma estrutura mínima para apreciação de
habeas corpus,
pedidos de indenização etc.
Os pedidos de cada interessado, individualmente considerado, não incrementam significativamente, porém, os custos já existentes. A impetração de um
habeas corpus
ou mandado de segurança não exalta consideravelmente o custo da prestação do serviço público jurisdicional. Mesmo que aquele pedido não houvesse sido formulado, os gastos com a remuneração dos servidores públicos e estrutura física correspondente continuariam praticamente inalterados.
Situação um tanto distinta ocorre com os chamados direitos prestacionais. Nesse âmbito, a prerrogativa individual não se contenta com simples contenção estatal: exige uma atuação pró-ativa de alteração do
status quo,
ou seja, a melhoria das condições de vida, o efetivo aprimoramento do contexto empírico. Referida categoria demanda custos mais elevados, tornando mais perceptíveis - e portanto, mais debatidos - os encargos econômicos necessários para a efetivação de quaisquer direitos (HOLMES, Stephen.
The cost of rights:
why liberty depends on taxes. Paperback).
Robert Alexy explica o que segue:
"
A polêmica sobre os direitos a prestações está caracterizada por diferenças de opinião a respeito do caráter das tarefas do Estado, do direito e da Constituição, inclusive quanto aos direitos fundamentais, assim como também sobre a evolução da situação atual da sociedade
. Como nela, entre outras coisas, se trata do problema da redistribuição, sua carga política é óbvia. Em nenhum outro âmbito é tão clara a conexão entre o resultado jurídica e as valorações gerais práticas ou políticas. Em nenhum outro âmbito se discute tão tenazmente. É sintomático que nesta situação se fale - com intenção crítica ou positiva - da alteração da compreensão do direito fundamental, e se peça para desdemonizar, desideologizar o conceito dos direitos fundamentais sociais."
(ALEXY, Robert.
Teoria de los derechos fundamentales.
Centro de estúdios políticos y constitucionales, Madrid, p. 427).
Essa questão retoma, bem se percebe, o tema da justiça distributiva (RAWLS, John.
Justice as fairness.
USA: Harvard Press, 2.003, p. 50) e concepções morais que estão no seu âmago: liberalismo, comunitarismo etc. Ao que interessa, cumpre salientar que a República Federativa do Brasil obrigou-se à implementação
progressiva de aludidos direitos prestacionais
, observado o limite dos recursos existentes. É o que se infere, por exemplo, do art. 26 do Pacto de San José da Costa Rica (Decreto Legislativo n. 27/92, e promulgada pelo decreto nº 678/92).
Deve-se assegurar, portanto, a efetividade às normas prestacionais fundamentais; é incompatível com o atual estágio do Direito Constitucional supô-las como meros programas de ação (STF, ADPF 45, voto Min. Celso de Melo. Ver também RE 393.175-AgR/RS). Não obstante, é inexorável a conclusão de que esse
tema não é singelo
, pois envolve outros vetores dignos de nota: autonomia orçamentária, isonomia entre os dependentes da atuação pública, limites para a intervenção do Poder Judiciário na atuação do Poder Executivo e critérios para distribuição de recursos escassos.
2.24. Direito ao mínimo existencial:
Cumpre tecer algumas considerações, ademais, sobre o chamado patrimônio jurídico mínimo (mínimo existencial). Trata-se de um consectário direto do reconhecimento da dignidade humana (art. 1º, inc. III, CF), enquanto alicerce do Estado. Quanto à dignidade do Homem, oportuna a lição de Ingo Wolfgang Sarlet,
"Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos." (SARLET, Ingo Wolfgang.
Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60)
Quanto ao conceito do 'mínimo existencial', colho de Ricardo Lobo Torres, quando sustenta que
"
O Mínimo Existencial é direito subjetivo protegido negativamente contra a intervenção do Estado e, ao mesmo tempo, garantido positivamente pelas prestações estatais
. Diz-se, pois, que é direito de status negativus e de estatus positivus, sendo certo que não raro se convertem uma na outra ou se complicam mutuamente a proteção constitucional positiva e negativa."
(TORRES, Ricardo Lobo.
Tratado de direito constitucional financeiro e tributário:
volume III: os direitos humanos e a tributação. Imunidades e Isonomia. 3ª ed., rev. atual. RJ: Renovar, p. 187-188).
Ainda segundo Torres,
"Os direitos da liberdade exigem o status negativus, que significa o poder de autodeterminação do indivíduo, a liberdade de ação ou de omissão sem qualquer constrangimento por parte do Estado. O status negativus do mínimo existencial se afirma, no campo tributário, através das imunidades fiscais: o poder de imposição do Estado não pode invadir a esfera de liberdade mínima do cidadão representada pelo direito à subsistência. Mas essa imunidade é paradoxal, eis que protege tanto o pobre como o rico, dentro dos limites mínimos necessários à garantia da dignidade humana."
(TORRES, Ricardo Lobo.
Obra citada,
p. 188).
Em sentido semelhante, leia-se Ana Paula de Barcellos,
A eficácia jurídica dos princípios constitucionais.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 305; Luiz Edson Fachin.
O estatuto jurídico do patrimônio
mínimo
.
2. ed., Renovar, 2006 e Ricardo Lobo Torres.
Direito
ao
mínimo
existencial
.
Renovar, 2009. Ora, é justamente o 'direito fundamental ao patrimônio mínimo' que ampara as cláusulas de imunidade fiscal; o chamado 'bem de família' (lei nº 8.009/90 e arts. 1.711 e ss. Código Civil/2002); as impenhorabilidades do art. 649, CPC/73 e art. 833, CPC/15, dentre outros institutos similares.
Aludida garantia é projeção dos arts. 6º e 7º, inc. IV, dentre outros dispositivos constitucionais. Disso também decorre a necessidade de que proventos de aposentadoria/pensão tenham efetiva aptidão para assegurar qualidade de vida (art. 7, IV, Constituição Federal/88).
2.25. Direito fundamental à moradia digna:
A Constituição brasileira reconheceu a todos o direito fundamental à moradia digna, conforme arts. 6º, art. 7º, IV, dentre outros. Cuida-se de um direito prestacional fundamental, como salienta Ingo Wolfgang Sarlet na obra "O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia.
Revista Brasileira de Direito Público.
Belo Horizonte. Editora Fórum, 2003."
"
O reconhecimento da existência de tal direito obriga a Comunidade e o Estado a empreenderem esforços de modo a assegurar a todos os indivíduos residentes em território nacional condições mínimas de moradia digna
.
Se partirmos do critério do reconhecimento expresso pela ordem jurídica positiva de um direito fundamental à moradia, deixando, portanto, de lado manifestações no plano da legislação infraconstitucional e até mesmo outros direitos fundamentais conexos, especialmente a função social da propriedade, já consagrada pelas primeiras Constituições do Estado social de Direito ou dos Estados socialistas (já bastaria lembrar aqui as Constituições do México e da Alemanha [Constituição de Weimar], respectivamente, de 1917 e 1919), verifica-se ter sido na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948), onde, pela primeira vez, restou consignado o reconhecimento, pela ordem internacional, dos assim denominados direitos econômicos, sociais e culturais, dentre os quais o direito à moradia. Com efeito, de acordo com o artigo XXV da Declaração:
‘Todos têm direito ao repouso e ao lazer, bem como a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos, e serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice, ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.'
A partir do citado dispositivo, já no âmbito do direito internacional convencional, o direito à moradia passou a ser objeto de reconhecimento expresso em diversos tratados e documentos internacionais, destacando-se, seja pela sua precedência cronológica, seja pela sua relevância, o Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, de 1966, também ratificado e incorporado ao direito interno brasileiro, onde, no artigo 11, consta que ‘Os Estados signatários do presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma contínua melhoria de suas condições de vida
’.
Para além de outros tratados internacionais, de cunho universal (isto é, não regional), onde houve menção expressa a um direito à moradia, verifica-se que no plano das convenções de caráter regional, houve maior timidez ou cautela, já que nem a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950) nem a Carta Social Europeia (1961) reconhecem expressamente um direito à moradia, não obstante a referência, nos artigos 16 e 19 da Carta Social, à moradia no âmbito da proteção dos trabalhadores estrangeiros (imigrantes) e do direito da família à proteção social e legal. Também a Carta da Comunidade Europeia sobre Direitos Fundamentais Sociais (1989) refere apenas a necessidade de medidas positivas para a proteção e integração de pessoas portadoras de deficiência, incluindo a moradia.
Todavia, importa referir – em que pese a negativa, em princípio, de uma obrigação dos Estados de assegurarem uma moradia aos cidadãos – reconhecimento da função social da propriedade e até mesmo de certas dimensões (no caso, de caráter eminentemente defensivo) de um direito à moradia pela Comissão Europeia de Direitos Humanos e dos Tribunais Europeus (Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e Tribunal Europeu de Direitos Humanos) em alguns de seus julgados envolvendo despejos e desapossamentos.
Por derradeiro, a nova Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia,aprovada no Conselho Europeu de Nice, França, em 07 de dezembro de 2000, mas ainda destituída da força vinculativa dos demais tratados referidos, contém referência expressa à dimensão social dos direitos fundamentais, prevendo o direito de acesso às prestações de segurança social e assistência social, inclusive no que diz com um auxílio para a habitação, com o objetivo de assegurar uma existência condigna aos necessitados (art. 34), além da previsão de um direito à proteção da saúde (art. 35), apenas para citar os exemplos mais relevantes.
De modo geral, todavia, convém sinalar, há quem registre uma tendência à exclusão de um direito geral à moradia (não restrito a certas parcelas da sociedade ou grupos de pessoas, tais como deficientes, crianças, refugiados, etc) na esfera dos documentos regionais, como também dão conta os exemplos da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e o Protocolo Adicional da Convenção Americana de Direitos Humanos (Protocolo de São Salvador)
.
Ainda no plano internacional, pela sua relevância especial para o reconhecimento e proteção do direito à moradia, inclusive pela sua influência no que diz com a fundamentação de uma inserção deste direito na nossa própria ordem jurídica, na condição de direito fundamental social, cumpre citar os documentos oriundos de duas grandes conferências promovidas pela ONU sobre a problemática dos assentamentos humanos, respectivamente em 1976 (Declaração de Vancouver sobre Assentamentos Humanos - Habitat I) e em 1996, em Istambul, Turquia, da qual resultou a assim designada Agenda Habitat II, tido como o mais completo documento na matéria, do qual também o Brasil é signatário.
Já por ocasião da Declaração de Vancouver (1976) restou assegurado que a moradia adequada constitui um direito básico da pessoa humana. Por ocasião da Agenda Habitat II (Declaração de Istambul, de 1996), além de reafirmado o reconhecimento do direito à moradia como direito fundamental de realização progressiva, com remissão expressa aos pactos internacionais anteriores (art. 13), houve minuciosa previsão quanto ao conteúdo e extensão do direito à moradia (art. 43) bem como das responsabilidades gerais e específicas dos Estados signatários para a sua realização, que voltarão a ser objeto de referência.
Traçado este breve panorama no que diz com o reconhecimento e proteção na esfera do direito internacional geral e convencional, e deixando de lado os relevantes aspectos ligados à sua força vinculante, eficácia e efetividade, voltamo-nos agora para o direito constitucional estrangeiro, limitando-nos, quanto a este ponto, a consignar a notícia de que atualmente bem mais de cinquenta Constituições reconhecem expressamente um direito fundamental à moradia, revelando aqui uma tendência aparentemente mais progressista e afinada com os paradigmas internacionais colocados pela ONU, do que a manifestada no plano dos documentos regionais, tal como já referido, muito embora também aqui (no que diz com o direito constitucional) possam ser apontados alguns retrocessos, especialmente quando se tomar como parâmetro não apenas a mera previsão formal no texto das Constituições, mas sim, o nível de efetividade do direito à moradia, assim como dos direitos sociais em geral, circunstância que dispensa, por ora, maiores comentários.
No direito constitucional pátrio, em que pese ter sido o direito à moradia incorporado ao texto da nossa Constituição vigente (art. 6º) – na condição de direito fundamental social expresso - apenas com a edição da Emenda Constitucional nº 26, de 2000, constata-se que, consoante já referido no voto da Deputada Federal Almerinda Carvalho, relatora do PEC nº 60/98, na Constituição de 1988 já havia menção expressa à moradia em outros dispositivos, seja quando dispôs sobre a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para "promover programas de construção de moradia e a melhoria da condições habitacionais e de saneamento básico" (art. 24, inc. IX), seja quando no artigo 7º, inciso IV, definiu o salário mínimo como aquele capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, dentre outros elementos, com moradia. Da mesma forma, a vinculação social da propriedade (art. 5º, XXIII, e artigos 170, inciso III e 182, parágrafo 2º), bem como a previsão constitucional do usucapião especial urbano (art. 183) e rural (art. 191), ambos condicionando, dentre outros requisitos, a declaração de domínio à utilização do móvel para moradia, apontam para a previsão ao menos implícita de um direito fundamental à moradia já antes da recente consagração via emenda constitucional.
Para além disso, sempre haveria como reconhecer um direito fundamental à moradia como decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal), já que este reclama, na sua dimensão positiva, a satisfação das necessidades existenciais básicas para uma vida com dignidade, podendo servir até mesmo como fundamento direto e autônomo para o reconhecimento de direitos fundamentais não expressamente positivados, mas inequivocamente destinados à proteção da dignidade. Neste contexto, vale lembrar exemplo garimpado do direito comparado, designadamente da jurisprudência francesa, de onde extraímos importante aresto do Conselho Constitucional (Decisão nº 94-359, de 19.01.95), reconhecendo que a possibilidade de toda pessoa dispor de um alojamento decente constitui um valor de matriz constitucional, diretamente fundado na dignidade da pessoa humana, isto mesmo sem que houvesse previsão expressa na ordem constitucional.
Por outro lado, por força do art. 5º, parágrafo 2º, da nossa Constituição, tendo em conta ser o Brasil signatário dos principais tratados internacionais em matéria de direitos humanos, notadamente (e isto por si só já bastaria) do Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, já formalmente incorporado ao direito interno, e partindo-se da premissa largamente difundida pela melhor doutrina (embora ainda não incontroversa e, de resto, repudiada pelo nosso Supremo Tribunal Federal) da hierarquia constitucional destes tratados, poder-se-á sustentar que o direito à moradia já era até mesmo expressamente consagrado na nossa ordem interna, pelo menos na condição de materialmente fundamental.
De qualquer modo, com a recente inclusão no rol dos direitos fundamentais sociais, a possível controvérsia quanto ao reconhecimento inequívoco no plano constitucional de um direito à moradia resta superada. Se o direito à moradia, pelos motivos já apontados, não chega a ser propriamente um “novo direito” na nossa ordem jurídico-constitucional, por certo a sua expressa positivação lhe imprime uma especial significação, além de colocar novas dimensões e perspectivas no que diz com a sua eficácia e efetividade, pressupondo-se, à evidência, uma concepção de Constituição que, mesmo reconhecendo – com Luís Roberto Barroso – que o direito (e também o direito constitucional) não deve normatizar o inalcançável – nem por isso deixa de outorgar aos preceitos constitucionais, notadamente os definidores de direitos e garantias fundamentais, de acordo com suas peculiaridades, sua máxima força normativa." (SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia.
Revista Brasileira de Direito Público.
Belo Horizonte, Editora Fórum, 2003)
Há, portanto, um vasto conjunto de diretivas internacionais, veiculadas em tratados e em deliberações da ONU, versando sobre o direito fundamental à moradia. A Constituição brasileira igualmente positivou o mencionado direito à moradia digna (destaco – dado que não basta qualquer moradia), conforme art. 6º (com pontual alteração pela EC 26, de 2.000):
"
São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição
."
Poder-se-ia discutir o alcance do aludido direito fundamental. Afinal de contas, os Constituintes não detalharam os meios para a concretização da mencionada prerrogativa individual. Impuseram um fim (cláusula-meta) sem especificar
prima facie
os mecanismos a serem empregados pela Comunidade e pelo Estado para tanto.
Cumpre tão somente enfatizar que, no país, há normas que asseguram a todos os que aqui residem o direito à moradia digna. Isso surte exigibilidade jurídica de tutela tanto sob o viés defensivo (p.ex., cláusula do art. 5º, inc. XI, CF e também a Lei 8.009/90) quanto prestacional.
Atente-se para a lição de Robert Alexy a respeito:
“A polêmica sobre os direitos a prestações é marcada por uma profunda divergência de opiniões acerca da natureza e da função do Estado, do Direito e da Constituição – e também dos direitos fundamentais -, bem como acerca da percepção da atual situação da sociedade.
Visto que esta polêmica se relaciona, entre outros, a problemas distributivos, seu caráter politicamente explosivo é facilmente compreendido. Em quase nenhuma área a conexão entre o efeito jurídico e as valorações práticas gerais ou políticas é tão clara, em quase nenhum campo a polêmica é tão tenaz.
Diante disso, é natural que se fale, de direitos fundamentais e que se clame por uma desdemonização do conceito de direitos fundamentais sociais. A isso se soma uma segunda peculiaridade. Na polêmica acerca dos direitos a prestações, um acordo é dificultado não apenas em razão de concepções fundamentais diversas, mas também em virtude de obscuridades conceituais e dogmáticas fundamentais, caracterizadas – entre outras coisas – por um caos terminológico freqüentemente criticado
.” (ALEXY, Robert.
Teoria dos direitos fundamentais
. Tradução de Virgílio Afonso da Silva, SP: Malheiros Editores, 2008, p. 441)
Essas questões acabam redundando no problema central destes direitos prestacionais: a baixa densidade normativa (ou melhor, o reduzido detalhamento dos comportamentos impostos pela norma) e também na baixa efetividade. Ao que interessa ao presente estudo, cumpre anotar que a Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) expressamente prevê a cláusula de vedação de retrocesso:
Artigo 26 – Desenvolvimento progressivo - Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.
Convém ter em conta, porém, que o direito à moradia digna não se confunde necessariamente com o direito de propriedade. Há inúmeros mecanismos alternativos que viabilizam que as pessoas vulneráveis possam realmente se abrigar contra intempéries e ter um lar para cuidar da sua família. Daí ser indispensável, em casos tais, que o Estado implemente políticas públicas efetivas - p.ex., uma cessão de uso com prazos elastecidos, política de renda mínima etc. -, a fim de que a pobreza seja reduzida, crianças não tenham que crescer à beira de valetas fétidas e possam, enfim, contar com um mínimo de segurança jurídica.
EM PRINCÍPIO, a temática alusiva ao direito fundamental à moradia digna tangencia o tema a ser debatido no presente processo.
2.26. Regularização fundiária urbana:
Como também é notório, o Estado brasileiro tem adotado medidas - ainda que a passos muito lentos - em prol da regularização fundiária urbana, como bem ilustra a publicação da lei n. 6.766/1979 (art. 40) e da lei n. 11.977/2009 (responsável pela instituição do programa minha casa minha vida).
Vale a pena atentar para o art. 46 da referida lei n. 11.977, na sua redação original:
"A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado."
O fato é que a regularização fundiária é um procedimento complexo, exigindo um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais. Seu objetivo é
"a um só tempo, trazer à situação de legalidade tanto o imóvel e sua ocupação quanto seus ocupantes, sob os aspectos do direito de propriedade e do direito de posse.
A intervenção com regularização jurídica é de fundamental importância, porque a situação de legalidade faz desaparecer a insegurança quanto à moradia e o receio de perdê-la, além de alentar o benefício em participar da regularização física que for necessária; se já não fosse para melhora das condições de habitabilidade, ao menos pela maior valorização econômica do imóvel já juridicamente regularizado
. Comumente, o suposto direito de propriedade ou de posse se consubstancia num contrato particular precário, ou traduzido num recibo ou escrito qualquer à guisa de documento do imóvel. No entanto, não basta a titulação do imóvel assegurando a propriedade ou a posse: resta imprescindível promover a correção das distorções urbanísticas e ambientais, notadamente quanto à falta de infraestrutura."
(FUKASSAWA, Fernando.
Regularização fundiciária urbana:
lei n. 11.977/2009. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 69).
Daí que a medida se destinava, sobremodo, para melhoria dos assentamentos irregulares,
"aqueles identificados como os aglomerados subnormais conhecidos como favelas, invasões, baixadas, comunidades, vilas, palafitas etc., enfim, caracterizados pela precariedade sob todos os aspectos relativos ao bem-estar da população, sobretudo quanto à moradia e à ordem urbanística. Considerando que o assentamento, no sentido do texto e do contexto da norma, é o resultado de estabelecer moradia, em conceito amplo, devem ser entendidos todos aqueles lugares ocupados por uma coletividade de pessoas, caracterizados pora aquelas irregularidades, como são os loteamentos clandestinos e irregulares. Aliás, na definição do art. 47, VI, são assentamentos irregulares as ocupações inseridas em parcelamentos informais ou irregulares, localizadas em áreas urbanas públicas ou privadas, utilizadas predominantemente para fins de moradia."
(FUKASSAWA, Fernando.
Obra citada.
p. 69).
Note-se que, de certo modo, a regularização fundiária por parte da União Federal já estava prevista no art. 50 da aludida lei n. 11.977:
Art. 50. A regularização fundiária poderá ser promovida pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios e também por:
I – seus beneficiários, individual ou coletivamente; e
II – cooperativas habitacionais, associações de moradores, fundações, organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público ou outras associações civis que tenham por finalidade atividades nas áreas de desenvolvimento urbano ou regularização fundiária.
Parágrafo único. Os legitimados previstos no caput poderão promover todos os atos necessários à regularização fundiária, inclusive os atos de registro.
Art. 51. O projeto de regularização fundiária deverá definir, no mínimo, os seguintes elementos:
I – as áreas ou lotes a serem regularizados e, se houver necessidade, as edificações que serão relocadas;
II – as vias de circulação existentes ou projetadas e, se possível, as outras áreas destinadas a uso público;
III – as medidas necessárias para a promoção da sustentabilidade urbanística, social e ambiental da área ocupada, incluindo as compensações urbanísticas e ambientais previstas em lei;
IV – as condições para promover a segurança da população em situações de risco; e
IV - as condições para promover a segurança da população em situações de risco, considerado o disposto no parágrafo único do art. 3º da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979; e
V – as medidas previstas para adequação da infraestrutura básica.
§ 1
o
O projeto de que trata o caput não será exigido para o registro da sentença de usucapião, da sentença declaratória ou da planta, elaborada para outorga administrativa, de concessão de uso especial para fins de moradia.
§ 2
o
O Município definirá os requisitos para elaboração do projeto de que trata o caput, no que se refere aos desenhos, ao memorial descritivo e ao cronograma físico de obras e serviços a serem realizados.
§ 3
o
A regularização fundiária pode ser implementada por etapas.
Art. 52. Na regularização fundiária de assentamentos consolidados anteriormente à publicação desta Lei, o Município poderá autorizar a redução do percentual de áreas destinadas ao uso público e da área mínima dos lotes definidos na legislação de parcelamento do solo urbano.
Esses dispositivos foram revogados pela Medida Provisória n. 759/2016, convertida na
lei 13.465, de 11 de julho de 2017
, versando sobre a regularização fundiária rural e urbana.
2.27. Demais vetores - cognição precária:
Reporto-me, quanto aos demais vetores normativos, ao exame que promovido no movimento 4, com cognição precária, e que tocam de perto o controle jurisdicional de atos administrativos, exame da proporcionalidade, dever de motivação, etapas do procedimenot de titulação etc.
2.28. Distribuição do ônus da prova - exame precário:
Ademais, ao que releva, a inversão do ônus da prova está prevista no art. 373, §1º, CPC, sendo projeção da lógica do art. 6º, VIII, CDC. No caso em análise, em que pese haja certa assimetria entre o autor e o INCRA, eis que esse último se trata de uma autarquia federal, dotada de poder burocrático e econômico, não diviso lastro para inversão do ônus da prova nessa etapa do processo -
para fins de apreciação do pedido de antecipação de tutela
-, sem prejuízo de nova análise por época do saneamento.
O processualista Araken de Assis promoveu uma avaliação crítica da ampliação das hipóteses de inversão do ônus da prova, promovida com o CPC/2015:
"À base da regra do art. 373, I e II, incrementada pela decisão do art. 357, III, situa-se a previsibilidade do julgamento. A distribuição do ônus das partes institui regra de conduta para as partes e, no caso de instrução infrutífera, regra de julgamento para o juiz. Uma das partes, independentemente da sua vontade e contribuição para o resultado, assumirá o risco do insucesso probatório (retro, 1.338). Essa previsibilidade decorre da rigidez da distribuição dos riscos da instrução. Ao ensejo, assinalou-se: a distribuição proporcional e invariável do ônus da prova é um postulado da segurança jurídica, sustentado pelos práticos e defendido pelos partidários das teorias divergentes.
Examinando-se com maior atenção a sistemática legal da distribuição, verifica-se que a decantada rigidez é mais aparente que genuína. O poder de iniciativa oficial interfere, quiçá decisivamente, em tal seara, diminuindo o risco da parte onerada. E o princípio da livre apreciação (art. 371) contrabalança a prova fraca. Por fim, os temperamentos oriundos de regras especiais (retro, 1.339.2) funcionam como elementos de equilíbrio e isonomia.
O processo civil social sugeriu outro critério mais abrangente: a atribuição do ônus da prova ope judicis, conforme o caso, independentemente da posição processual ocupada pela parte, e visando à facilitação da prova. Para essa finalidade, atribuiu-se o ônus casuisticamente à parte que (aparentemente) dispõe de maiores recursos, informações e proximidade com a fonte da prova. À tal orientação, que não é recente – a distribuição do ônus entre autor e réu inspirava-se, no direito comum, em razões de equidade –, a doutrina argentina contemporânea chamou de distribuição dinâmica do ônus da prova. Existem outras denominações em uso.
Não se exige esforço inaudito para identificar a fonte inspiradora da proposta de derrogação da distribuição stática. É a mesma que defende o superlativo aumento dos poderes do órgão judiciário, transformado no führer do processo, e deposita irrestrita confiança no homem e na mulher investidos na função judicante, na respectiva inteligência, prudência, tempo disponível para delicadas ponderações e flexibilidade em desincumbir-se da magna tarefa de guardião dos direitos fundamentais.
A adesão à tese autoritária descansa em dado psicológico. O fascínio, a irrefreável atração pela novidade, haja ou não maior merecimento, a busca de soluções para a numerosidade dos feitos, assumiram papel decisivo na rápida e irrefletida adesão à teoria dinâmica. As justificativas apresentadas são esquivas ou vazias, mera retórica – a “facilitação” do acesso à Justiça Pública é uma delas.
A teoria da distribuição dinâmica baseia-se em premissa claramente irreal: o juiz e a juíza brasileira, encarregados de processar e julgar milhares de processos, não têm vagares e os instrumentos necessários à ponderação dos interesses em jogo. Não é por outra razão que só se dão conta da conveniência da mudança das regras do ônus na oportunidade do julgamento. Em realidade, a distribuição dinâmica constitui um enorme perigo ao processo garantista. Apressadamente demais, salvo engano, rejeitou-se a quebra da parcialidade em favor dos vulneráveis, invarialmente beneficiados dessa maneira. Não é outro motivo da inexistência de critérios legais e da sua irrelevância. Esquece-se o melhor princípio: O arbítrio do juiz em liberdade total e não condicionado a determinados parâmetros legais que balizem a sua atuação não é um bom princípio.
O objetivo dessa extravagante “técnica” de julgamento é transparente, embora raramente enunciado. Favorece uma das partes que, segundo o critério fixo e prévio, não lograria êxito, por razões nem sempre – permita-se a metáfora – próprias do ofício de fazer justiça. Notou-se o problema, paradoxalmente, no processo trabalhista: pretendendo o autor horas extras, incumbe-lhe, segundo o art. 818 da CLT o ônus de provar a jornada excedente. Ora, a atribuição do ônus ao réu de provar a jornada de trabalho significaria, na prática, descarregar os riscos da demanda unicamente sobre o réu: ou ele contesta, assumindo o ônus; ou não contesta, e suporta os efeitos da falta de controvérsia, ensejando o acolhimento do pedido. O resultado é eloquente e desnuda, ao nosso ver, a inconstitucionalidade da regra.
Inovando o processo civil, o art. 379, caput, introduziu importante limite aos deveres das partes – comparecer em juízo e responder ao que for perguntado; colaborar com a inspeção judicial, incluindo a inspectio corporis; praticar o ato que lhe for ordenado –, porque, em qualquer hipótese, há de ser preservado “o direito de não produzir prova contra si própria”. Ora, a distribuição dinâmica do ônus da prova implica, na prática, justamente o que art. 379, caput, proíbe terminantemente. Se o veto de self incrimination descansa em bases constitucionais, o art. 373, § 1.º, é inconstitucional.
Essas considerações, e o risco latente de transformar o réu em vilão, a priori, e que já suporta riscos financeiros desiguais quando litiga com autor beneficiário da gratuidade, na melhor das hipóteses recomendam aplicação estrita da doutrina da carga dinâmica, segundo pressupostos legais previamente delimitados. Tarefa particularmente difícil, pois a técnica legislativa só pode consagrar conceitos juridicamente indeterminados e, para esse efeito, trocar “peculiaridades do fato a ser provado” por “excessiva onerosidade” é, apesar da boa intenção, trocar seis por meia dúzia. E, de qualquer modo, convém explicitar tanto o fundamento, quanto a finalidade da doutrina, a fim de evitar um dos maiores males do discurso jurídico, que é a ocultação das premissas ideológicas
.
A objeção de fundo à distribuição dinâmica radica em outro aspecto. Existem fatos difíceis de provar, porque – eis o ponto – as fontes de prova e os meios de prova ostentam limites naturais. Ora, atribuir o ônus à contraparte não elimina a dificuldade, porque intrínseca à alegação de fato. A atribuição do ônus à parte contrária da originariamente agravada aumentaria a injustiça da decisão em desacordo com os valores constitucionais. A única solução consiste em fundar a decisão em juízo de verossimilhança. Assim, se A alega que contraiu infecção no hospital B, onde esteve internado, embora não seja possível apurar cientificamente a origem da bactéria (há as que se produzem unicamente no ambiante hospitalar) não cabe atribuir ao réu B a prova que o autor A, porque supostamente encontrar-se-ia em melhores condições de provar a inexistência de fatores de contaminação no estabelecimento. Não é a regra geral da distribuição do ônus da prova a causa da injustiça, mas sua alteração.
Na vigência do CPC de 1973, buscou-se arrimo no poder de instrução oficial para sustentar a admissibilidade da distribuição casuística, ope iudicis, do ônus da prova. O STJ, no procedimento monitório, admitiu semelhante regime, repartição do ônus da prova subjetivo nas “peculiaridades do caso concreto”, dando-lhe o nome que lhe é próprio: distribuição dinâmica. De lege lata, somente o art. 6.º, VIII, da Lei 8.078/1990, autorizava, expressis verbis, a distribuição ope judicis do ônus da prova no direito
.
A construção de uma possibilidade mais geral de distribuição do ônus da prova, ope judicis, assenta em outras bases. O art. 373, § 1.º, prevê semelhante medida em três hipóteses: (a) impossibilidade de a parte desincumbir-se do ônus da prova nos termos do art. 373, I e II; (b) excessiva dificuldade em cumprir o encargo nesses termos; (c) maior facilidade em obter prova do fato contrário. Em qualquer hipótese, acrescenta o art. 373, § 2.º, a distribuição, ope judicis, não pode tornar o encargo da parte onerada impossível ou excessivamente difícil
.
A iniciativa oficial em matéria de prova nada tem a ver com o risco final suportado pela parte onerada e cristalizado na falta ou insuficiência de prova. A atuação do juiz só atenua o risco desse resultado frustrante, mas não o pré-exclui em termos categóricos e definitivos, pois não é a iniciativa que preside o resultado da prova, mas a limitação do conhecimento humano.
O fundamento mais plausível para justificar a distribuição ope judicis no sistema processual é o sistemático. Ao vedar a distribuição convencional do ônus da prova (retro, 1.339.3.2) em casos que se criem dificuldades ao exercício da pretensão ou da defesa, o art. 373, § 1.º, institui requisito mais geral. Existindo motivo concreto, prévio e perfeitamente delimitado no processo – e, não, a automática inversão em proveito do vulnerável, do cliente bancário, do trabalhador, e assim por diante –, perante o qual a aplicação da distribuição estática do art. 373, I e II, atribuiria prova de produção difícil ou impossível a uma das partes (probatio diabolica), mas a contraparte se encontraria posição mais vantajosa, cabe a distribuição ope judicis no direito brasileiro. Por exemplo: na ação em que o paciente A alega que os prepostos do nosocômio B, desatendendo às prescrições do médico C, ministraram-lhe o fármaco errado ou na dose proibida, provocando gravíssimo dano, o réu dispõe de acesso fácil aos meios de prova – ao prontuário hospitalar, no qual a equipe de enfermagem lançou os dados, e às testemunhas que, afinal, cometeram ou não o erro fatal na medicação. Em contrapartida, ao paciente A é impossível ou excessivamente difícil conhecer o prontuário e identificar as testemunhas. Essa é uma hipótese que não atrai a incidência da reserva do art. 373, § 2.º.
Somente nessas condições estritas – motivo concreto, prévio e delimitado – revela-se aceitável a distribuição ope judicis do ônus da prova perante os direitos fundamentais processuais que, operando no processo, conformam a atividade processual das partes e do órgão judiciário. Não pode se adotada como regra, mas como exceção, interpretada restritivamente. Assim, a distribuição “dinâmica” atua subsidiariamente.
A distribuição dinâmica do ônus da prova ocorre em outros ordenamentos. O art. 217.6 da Ley de Enjuiciamiento Civil espanhola institui dois meios para corrigir a inadequação formal do critério geral (onus probandi incumbit qui ei dicit): (a) a disponibilidade da prova (v.g., na investigação de paternidade, o suposto pai tem condições de esclarecer o fato biológico, através de exame de DNA); e (b) a facilidade probatória (v.g., a empresa encontra-se melhor situada para arrolar as testemunhas de eventos que ocorreram em suas dependências que o visitante ocasional). E, no direito norte-americano, o juiz alocará o ônus da prova segundo numerosas e complicadas regras
.
Essa teoria tem cunho autoritário, porque concentra poderes no órgão judiciário, e, desse modo, traz consigo alto risco de subjetivismo
. Duas objeções principais, relevando o risco de prevaricação e o dever de fidelidade do juiz ao direito, opõem-se à doutrina: (a) o já mencionado risco de subjetividade e, ademais, de relatividade: o que é fácil para certo juiz pode não o ser para outro; e (b) a violação positiva ao direito fundamental processual do contraditório. Contra o risco de subjetividade, inexiste remédio; para a violação do contraditório, a medida cabível é a exigência de que haja motivo concreto, prévio e delimitado para a distribuição ope judicis. A distribuição do ônus da prova na decisão de saneamento e de organização do processo (art. 357, III) contrabalança os riscos, norteando a atividade das partes na instrução das causas. Seja como for, as objeções evidenciam que, entre nós, inexiste ainda densidade do direito fundamental à prova. O contraditório argumentantivo (dizer e contradizer) não mais satisfaz.
As repercussões positivas ou negativas da repartição casuística podem ser aquilatadas e medidas nas relações de consumo. Em tal matriz, considerando o disposto no art. 6.º, VIII, da Lei 8.078/1990, passa-se à análise do tema, sublinhando que não se limita a tais espécies de litígio, em tese, a distribuição dinâmica." (ASSIS, Araken.
Processo civil brasileiro.
Volume II - Tomo II: Institutos fundamentais. SP: RT. 2015. p. 203-209)
Por conta de tais objeções, a inversão do ônus probatório prevista no art. 373, §1º, CPC, não pode ser aplicada sem maiores comedimentos
. Exige-se a presença de uma situação de efetiva dificuldade da parte cumprir o encargo decorrente do art. 373, I e II, ou uma manifesta maior facilidade de obtenção da prova, com a alteração do ônus. Em qualquer caso, deve-se assegurar às partes cumprir os encargos probatórios pertinentes e a medida não pode implicar hipóteses de verdadeira
probatio diabolica,
carreando à parte um ônus de impossível ou de excessivamente custosa demonstração (art. 373, §2º, CPC).
No presente caso, a inversão náo se aplica, dado não divisar uma assimetria entre as partes, de tal ordem, a justificar a medida. Por outro lado, em princípio, não parece haver maior dificuldade para que a parte demandante se desincumba dos encargos probatórios pertinentes. Assim, ao menos por ora, examino o pedido de antecipação de tutela partindo da regra do art. 373, I e II, CPC. Ressalvo novo exame desse tema por época do saneamento da demanda.
2.29. Juízos de abdução:
A distribuição do ônus da prova cuida de um critério de solução da causa, diante da eventual insuficiência da comprovação da veracidade de determinadas asserções. Na forma do art. 373, I, CPC, caso a parte autora tenha promovido a narrativa de um fato, apontado como causa da sua pretensão, e a veracidade dessa narrativa não tenha sido comprovada, a pretensão há de ser julgada improcedente.
De modo semelhante, caso a parte requerida tenha alegado a ocorrência de um fato obstativo do acolhimento da pretensão da parte autora - por exemplo, causação do dano por um terceiro, desvinculado da sua atividade econômica -, e isso não seja provado, sua impugnação não poderá ser acolhida.
Algo diferente ocorre com os critérios de valoração dos meios de prova. Nesse âmbito, tem-se em conta a forma como o Juízo deve apreciar os elementos probatórios veiculados nos autos, para fins de reconstrução histórica dos fatos narrados pelas partes.
Como sabido, indício
"é todo rastro, vestígio, sinal e, em geral, todo fato conhecido, devidamente provado, suscetível de conduzir ao conhecimento de um fato desconhecido, a ele relacionado, por meio de um raciocínio indutivo-dedutivo"
(MOURA, Maria Thereza.
A prova por
indícios
no processo penal.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 109). Tais sinais, fundamentando juízos de abdução, podem amparar um decreto condenatório; desde que sejam coerentes, harmônicos entre si, e não refutados por contraindícios.
"
Indício não é uma prova menor, mas uma prova que deve ser verificada. O indício é idôneo para apurar a existência de um fato histórico delituoso somente quando presentes outras provas que excluam uma diversa reconstrução do acontecimento. O princípio é formulado no art. 192, inc. 2, do CPP [italiano]: a existência de um fato não pode ser deduzida por meio de indícios, a menos que estes sejam graves, precisos e consonantes
. Desta regra emerge, em primeiro lugar, que um único indício nunca é suficiente." (TONINI,
Paolo.
A prova no processo penal italiano.
SP:RT, p. 58)
"Valor probatório dos indícios: como já afirmamos em nota anterior, os indícios são perfeitos tanto para sustentara a condenação, quanto para a absolvição. Há autorização legal para a sua utilização e não se pode descurar que há muito preconceito contra essa espécie de prova, embora seja absolutamente imprescindível ao juiz utilizá-la. Nem tudo se prova diretamente, pois há crimes camuflados - a grande maioria - que exigem a captação de indícios para a busca da verdade real. Lucchini, mencionado por Espínola Filho, explica que a eficácia do indício não é menor que a data prova direta, tal como não é inferior a certeza racional à histórica e física. O indício é somente subordinado à prova, porque não pode subsistir sem uma premissa, que é a circunstância indiciante, ou seja, uma circunstância provada; e o valor crítico do indício está em relação direta com o valor intrínseco da circunstância indiciante. Quando esteja bem estabelecida, pode o indício adquirir uma importância predominante e decisiva no juízo (...) Assim também Bento de Faria, apoiado em Malatesta.
Realmente, o indício apóia-se e sustenta-se numa outra prova. No exemplo citado na nota anterior, quando se afirma que a coisa objeto do furto foi encontrada em poder do réu não se está provando o fato principal, que consiste na subtração, mas tem-se efetiva demonstração de que a circunstância ocorreu, através do auto de apreensão e de testemunhas. Em síntese, o indício é um fato provado e secundário (circunstância) que somente se torna útil para a construção do conjunto probatório ao ser usado o processo lógico da indução." (NUCCI, Guilherme de Souza.
Código de processo penal comentado.
8ª ed., SP: RT, p. 514)
"
Inicialmente, é de ser recordar que todos os meios de prova no processo penal são relativos, não existindo hierarquia entre eles. Fixada essa premissa, é óbvio que os indícios podem servir para sustentar uma condenação, a depender evidentemente da sua qualidade
. (...) [Nota de rodapé:] Em passagem pitoresca Denílson Pacheco afirma: É possível se condenar com base em indícios? Desde que sejam veementes e insofismáveis, a resposta é positiva. Para ilustrar, vamos contar uma estória muito difundida no meio forense. Um gato e um passarinho foram colocados no interior de uma sala hermeticamente fechada e completamente vazia. Várias testemunhas idôneas foram colocadas do lado de fora da sala durante todo o evento. A única saída foi fechada e, rapidamente, foi aberta novamente, com todas as testemunhas observando a única saída. No interior da sala, o passarinho tinha sumido. Havia somente penas pelo chão. O gato encontrava-se num canto da sala, lambendo os beiços, com sangue pelos bigodes e, ainda, umas penas pelos dentes. Alguém viu o gato comendo o passarinho? Alguém viu o assassinato do passarinho? Todas as provas são indiciárias: a sala hermeticamente fechada, o gato e passarinho sozinhos na sala, as testemunhas idôneas que observaram todo o evento etc. Mas, de todos esses indícios veementes, podemos tirar nossa firme conclusão: alguém tem dúvida de que foi o gato que comeu o passarinho? (Direito processual penal, Teoria, crítica e práxis, p. 896)." (BEDÊ JÚNIOR, Américo; SENNA, Gustavo.
Princípios do processo penal:
entre o garantismo e a efetividade da sanção. RT, p. 113.
"
A prova indiciária, ou prova por indícios, terá a sua eficiência probatória condicionada à natureza do fato ou da circunstância que por meio dela (prova indiciária) se pretender comprovar
. Por exemplo, tratando-se de prova do dolo ou da culpa, ou dos demais elementos subjetivos do tipo, que se situam no mundo das idéias e das intenções, a prova por indícios será de grande valia." (Pacelli de Oliveira,
Curso de processo penal,
6ª ed. Del Rey, p. 367).
"Se é verdade que na investigação da subjetividade do agente, o fato externo é que indica o elemento interno, isto não quer dizer que o dolo possa ser presumido. O juiz deverá se convencer da ocorrência do dolo, ainda que - para tanto - deva se basear em elementos objetivos. Estes dados objetivos devem estar provados e convencer o julgador, sem margem de dúvida, sobre qual era a intenção do acusado. A inferência do elemento subjetivo a partir de dados objetivos não significa que o dolo seja presumido." (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy.
Ônus da prova no processo penal.
SP: RT, 2.003, p. 307, grifei.
Transcrevo também alguns julgados a respeito desse tema:
"
Uma sucessão de indícios e circunstâncias, coerentes e concatenadas, podem ensejar a certeza fundada que e exigida para a condenação
."
(STJ, 5ª turma, REsp n. 130.570, rel. Min. Felix Fischer, DJU de 06.10.97, p. 50.035, omiti o restante da ementa). Ademais,
"
Indícios e circunstâncias quando múltiplos, sucessivos, coerentes concatenados e veementes, como no caso dos autos, têm o mesmo valor das provas diretas e são suficientes para embasar uma decisão condenatória, ainda mais quando excluem quaisquer outras hipóteses favoráveis ao condenado
."
(TRF da 4ª Rg., 7ª Turma, Apelação criminal de autos 200104010635742/PR, rel. Des. Fed. José Luiz Borges Germano da Silva, DJU 01.09.2004, p. 802, omiti parte da ementa).
Ainda nesse sentido,
"
Pressuposta a impenetrabilidade de consciência, se o réu não confessa, a prova do elemento subjetivo do delito só pode ser fornecida por meios indiretos, por indícios, vale dizer
."
(TRF 3ª Rg., ACR 17.877, DJU de 05.08.2005, p. 383, rel. Juiz Peixoto Júnior).
Em princípio, cabe a quem alega o ônus da demonstração segura, ou seja, crível e filtrada racionalmente, tanto quanto possível, de que os argüidos teriam praticado, ao tempo reportado pela petição inicial, a conduta imputada, ainda que isso possa ser promovido por meio da conjugação de significativos e consistentes indícios da prática infracional. Sendo isso aplicável na temática processual penal, solução semelhante impõe-se também no âmbito da ação civil pública, com os contornos próprios ao processo civil.
2.30. Elementos de convicção - exame precário:
No caso em exame, os demandantes apresentaram com a inicial instrumentos de procuração, declarações de hipossuficiência econômica, documentos pessoais, certidão de união estável, pedidos formulados administrativamente e respectivas negativas dos entes públicos.
Juntaram foto e vídeo do local. A foto evidencia o plantio de culturas no imóvel, a presença de cavalos, além da foto da sua família. No movimento 18, eles juntaram cópia da notificação n. 2850/2025 do INCRA, determinando-lhes a desocupação do imóvel no prazo de 30 dias corridos:
Eles também apresentaram fotos áreas no projeto de assentamento 8 de Abril, que estariam em estado de abandono, sem qualquer cultura, bem como gravações em vídeo, capturadas por câmera de segurança, no momento da notificação promovida por servidor do INCRA no lote n. 477-A daquele assentamento.
2.31. Valoração precária - pedido de titulaação:
Em primeiro exame, como destaquei no evento 4, não teriam sido preenchidos os requisitos para a titulação de imóveis no âmbito de programas de reforma agrária. No âmbito administrativo, o INCRA sustentou que os autores não teriam atendido as condições estabelecidas pela política Agrária:
(Ev. 1, NOT17)
Assim, necessário apurar se tal indeferimento estaria em conformidade com a legislação - e essa é a questão central desta demanda. Deve-se atentar, para esse fim, para o pedido e a causa de pedir deduzidos pela parte autora, conforme art. 141, CPC (postulado dispositivo).
Então, no que toca à imposição de prazo para a titulação, por ora mantenho a deliberação de movimento 4. Ressalvo eventual nova análise do tema, na forma do art. 296, CPC, caso acorram aos autos elementos de convicção que o justifiquem.
2.32. Valoração precária - pedido de manutenção na posse:
No que toca ao pedido de manutenção da posse, deve-se examinar, com maiores detalhes, se, de fato, o imóvel ocupado pelos autores corresponderia àquele alvo do pedido de titulação. Também deverá ser apurado se os autores teriam preenchdo os requisitos para fins de outorga do documento de transferência de domínio, tema central deste processo.
Por ora, reputo que ambos fazem jus à manutenção na posse.
De partida, dado que encontram-se discutindo em juízo a validade do indeferimento do pedido de outorga de domínio. Por ora, conquanto não tenha divisado lastro para a antecipação de tutela quanto ao tópico, tampouco se pode descartar em absoluto que ambos façam jus à medida por eles postulada. A questão apenas poderá ser elucidada ao longo da instrução processual.
Eventual retomada da posse direta sobre o imóvel, por parte do INCRA, pode implicar verdadeira sonegação de prestação jurisdicional, algo vedado pelo art. 5, XXXV, Constituição. A solução seria distinta caso a pretensão deduzida em Juizo fosse manifestamente improcedente, de modo que - em casos tais -, não haveria com a deflagração da demanda implicar interdição de atividades administrativas relevantes.
No caso, porém, convém insistir, conquanto a antecipação de tutela tenha sido indeferida, não há como descartar que os autores possam ter razão no que alegaram na peça inicial. Os elementos de convicção jungidos no movimento 18 indicam que o lote 477-A - a princípio, já regularizado - como o lote 477-B, alegadamente ocupado pelos autores, cuidar-se-iam de terrenos destinadas à instalação de cooperativa, visando beneficiar à coletividade do assentamento, bem como que a ocupação dessas áreas não teria atendido requisitos de um processo administrativo regular.
Caso se comprove serem áreas de uso comum, o exercício da posse direta pelos autores, em benefício próprio, se revelará indevido, por implicar trasmutação indevida da finalidade do terreno. Como regrei acima, sequer poderiam alegar, então, eventual usucapião, por se cuidar de imóvel de domínio público (art. 183, Constituição), enquanto tal transferência de propriedade não seja feita, mediante outorga de título.
Em primeiro exame, o servidor do INCRA ao notificar os ocupantes do lote n. 477-A (autos de n. 50121159120254047000, distribuídos ao Juízo Titular desta 11ª VF), teceu considerações sobre a situação das famílias que ocupariam referidos imóveis (
evento 18, VIDEO9
), restando destacado que apesar de não estarem regularizadas, tais ocupações seriam antigas. No caso dos autores, segundo os meios probatórios apresentaddos pelos autores, estaria em causa a posse direta exercida sobre o lote n. 477-B desde abril/2020. Ao que consta, os autores o estariam explorando mediante cultura de subsistência.
Aparentemente a ocupação teria se dado de boa-fé.
Por ora, conquanto não descarte que a posse em questão porventura esteja sendo promovida de modo ilícito/irregular - tampouco se podendo afirmar isso de modo peremptório, questão a ser apurada no curso da demanda -, é fato que pesa a constatação de que estariam já há razoável tempo no imóvel em questão. Nâo há urgência, em primeiro exame, que justifique que tenham que sair do bem desde logo. A questão da validade da posse há de ser apurada no curso da demanda.
Ao menos por ora, sem prejuízo de nova análise adiante, DEFIRO o pedido de antecipação da tutela, exclusivamente com o fim de manter os demandantes na posse do imóvel mencionado na peça inicial.
2.33. Perigo de dano:
Diante da notificação promovida pelo IBAMA, diviso uma situação de perigo para a situação jurídica dos demanadantes. Caso tenham razão nos argumentos esgrimidos na peça inicial, o imóvel seja retomado pelo INCRA e eventualmente repassado para terceiros, isso ensejará prejúizo de difícil reparação. Caso adiante se constante haver situação de perigo de dano inverso - ou seja, prejuízo inexorável para a autarquia federal - a decisão poderá ser revista.
2.34. Eventual exigência de contracautelas:
Deixo de condicionar, por ora,
a antecipação de tutela à apresentação de contracautelas pelo(a) autor(a), na forma do art. 300,§1º, CPC, dada a dificuldade de traduzir em pecúnia o conteúdo do direito invocado na peça inicial. Ressalvo eventual novo exame do tema, caso isso se revele necessário, conforme lógica do art. 296, CPC/15 - caráter modulável da antecipação de tutela.
2.35. Cominação de
multas
diárias:
D'outro tanto, deixo de cominar multas para o caso de renitente descumprimento de ordem judicial, em que pese a previsão do art. 537, CPC/15, dado que não há indicativos de que os requeridos deixaram de observar a presente determinação.
Caso tal medida se faça necessária, poderá ser cominada adiante - lógica do art. 296, CPC e caráter modulável do arbitramento de
astreintes
.
Caso haja alguma situação de descumprimento desta liminar, caberá à parte autora comunicar com urgência nos autos, a fim de que medidas dissuasórias do inadimplemento sejam adotadas.
2.36. Retorno ao
status quo ante
em caso de revogação:
Anoto, por outro lado, que -
caso a presente determinação venha a ser revogada, notadamente caso a pretensão da autora venha a ser julgada improcedente
-, isso implicará o retorno ao
status quo ante,
conforme lógica da súmula 405, STF, lógica do art. 302 e do art. 502, I, CPC.
Anoto que os requerentes podem ser responsabilizados por eventual prejuízo que a antecipação de tutela possa ensejar, caso sejam atendidos os requisitos do art. 302. CPC.
III - EM CONCLUSÃO:
3.1. DEFIRO o processamento da emenda da peça inicial, promovida no movimento 12.
3.2. INDEFIRO, porém, o processamento do pedido de expedição de ofícios à SANEPAR e COPEL, dado não figurarem como parte na demanda, de modo que não podem ser alvo de comandos por parte deste Juízo neste processo, sob pena de violação ao art. 506, CPC/15. Ademais, seria até mesmo incabível a cumulação de pedidos, nesta causa, conforme art. 327, CPC.
3.3. DESTACO que cabe à própria parte adotar as medidas que repute necessárias para a intervenção da COPEL e da SANEPAR no imóvel que disseram ocupar.
3.4. REPUTO que os autores estão legitimados para a demanda, no que diz respeito à pretensão à manutenção na posse do imóvel. O INCRA também está legitimado, dado ter sido a autarquia responsável por notificá-los para que deixem o referido terreno. Os autores atuam com interesse processual e atenderam ao requisito do art. 73, CPC/15.
3.5. REPUTO que as pretensões deduzidas neste processo não foram atingidas pela prescrição - prazo de 05 anos, art. 1 do decreto 20.910/32. Acrescento que o instituto da decadência não se aplica ao caso.
3.6.
DEFIRO o pedido de manutenção liminar na posse, nos termos da fundamentação acima
.
3.7.
EXPEÇA-SE mandado de manutenção, na forma prevista no art. 563, CPC, detalhando-se, na medida em que seja viável, os limites do imóvel em questão, ou contornos pelos quais posse ser individualizado
.
3.8.
INTIME-SE o INCRA a respeito da presente deliberação, pela via mais célere possível - art. 5, §5, da lei n. 11.419/2006
.
3.9.
REGISTRO que é dado aos autores promoverem, por meio do(a) seu(sua) advogado(a), a notificação do INCRA, conforme art. 269, §1, Código de Processo Civil/15
.
3.10. AGUARDE-SE eventual apresentação de resposta pelo INCRA, dado que a citação foi promovida conforme evento 17 - prazo de 30 dias úteis, contados na forma do art. 231, 219, 224, 335, 183, CPC, art. 9 da lei n.11419/2006, dentre outros dispositivos aplicáveis.
3.11. INTIMEM-SE os autores para, querendo, apresentarem réplica à contestação, tão logo seja juntada aos autos. Prazo de 15 dias úteis, contados da intimação, conforme arts. 219, 224, 351, CPC e art. 5 da lei n. 11.419/06.
3.12. INTIMEM-SE as partes - tão logo sse esgote o prazo para resposta, sem que tenha sido apresentada, ou tão logo tenha sido apresentada réplica ou tenha se esgotado o prazo para tanto - para que, querendo, especifiquem as diligências probatórias pertinentes e necessárias para a solução do processo. Prazo de 15 dias úteis (autores) e de 30 dias úteis, INCRA, contados da intimação - art. 183, CPC.
3.13. ANOTO que, caso requeiram a inquirição de testemunhas, deverão apresentar desde logo a pertinente lista, com a qualificação devida, atentando para o limite do art. 357, §6, CPC/15 (rito comum) ou art. 34, lei n. 9099/1995, quando se cuidar de rito dos Juizados. Caso requeiram dilação pericial, deverão apresentar desde logo os quesitos correlatos, sem prejuízo de oportuna intimação para indicação de assistentes periciais e demais medidas do art. 465, §1, CPC, caso a medida venha a ser deferida pelo Juízo. Ficam cientes de que o decurso
in albis
do aludido prazo implicará preclusão temporal. Prazo de 15 dias úteis (autores) e de 30 dias úteis, INCRA, ou seja, no mesmo termo final do prazo do item 3.12.
3.14. VOLTEM-ME conclusos oportunamente para saneamento, conforme art. 357, CPC/15.
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