3ª Promotoria De Justiça Da Comarca De Almirante Tamandaré/Pr - Ministério Público x Gerson Denilson Colodel e outros
ID: 307394449
Tribunal: TJPR
Órgão: Vara da Infância e da Juventude - Seção Cível - Almirante Tamandaré
Classe: AÇÃO CIVIL PÚBLICA INFÂNCIA E JUVENTUDE
Nº Processo: 0010500-95.2024.8.16.0024
Data de Disponibilização:
25/06/2025
Advogados:
ALESSANDRA CARDOSO
OAB/PR XXXXXX
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PAULO EDUARDO POLOMANEI DE OLIVEIRA
OAB/PR XXXXXX
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EDSON ADIR DA CRUZ
OAB/PR XXXXXX
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PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO PARANÁ COMARCA DA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA - FORO REGIONAL DE ALMIRANTE TAMANDARÉ VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE - SEÇÃO CÍVEL - ALMIRANTE TAMANDARÉ - PROJUDI R…
PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO PARANÁ COMARCA DA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA - FORO REGIONAL DE ALMIRANTE TAMANDARÉ VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE - SEÇÃO CÍVEL - ALMIRANTE TAMANDARÉ - PROJUDI Rua João Baptista de Siqueira, 282 - Vila Raquel - Almirante Tamandaré/PR - CEP: 83.501-610 - Fone: 41 3263-5053 - E-mail: at-4vj-s@tjpr.jus.br Autos n. 0010500-95.2024.8.16.0024 Ação Civil Pública Parte autora: Ministério Público do Estado do Paraná Parte ré: Município de Almirante Tamandaré e Gerson Denilson Colodel SENTENÇA RELATÓRIO Cuida-se de ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Estado Paraná, em que pleiteia, em desfavor do Município de Almirante Tamandaré e do então Prefeito Gerson Denilson Colodel, condená-los na obrigação de fazer voltada à oferta de vagas para todas crianças de 0 (zero) a 3 (três) anos de idade em creches e de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade em pré-escolas, residentes no município de Almirante Tamandaré/PR, de forma a zerar a demanda reprimida. Conta que no âmbito do Inquérito Civil n. MPPR-0001.24.000779- 7, requisitou ao requerido Gerson Denilson Colodel, na qualidade de então Chefe do Poder Executivo de Almirante Tamandaré/PR, informações e documentos sobre a política educacional desenvolvida pelo município tamandareense. A resposta foi no sentido de que o “número de vagas já existentes é 2.912” e ciente está de que faltam ao menos 3.683 vagas para os Infantis 0, I, II, III e IV, isso sem considerar o Infantil V, haja vista que omitiu indicá-lo, e “planeja” a criação de apenas 420 vagas para o atendimento integral da demanda por educação infantil. Como referiu o MP, “a conta não fecha”. Diante desse cenário, pautado na tese fixada no Tema 548 do STF e no argumento da prioridade do direito das crianças à educação e do esgotamento das tentativas empreendidas administrativamente para solução do problema, pede sejam os autores (Município e Prefeito) compelidos a: (2.1) ofertar vagas no atendimento à educação infantil, para crianças de 0 (zero) a 3 (três) anos de idade em creches e de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade em pré-escolas, em instituição da rede pública mais próxima da residência dos infantes ou local de trabalho dos seus genitores ou responsáveis, observados o sistema de georreferenciamento e os critérios para a oferta de transporte escolar; (2.2) subsidiariamente, não sendo possível o cumprimento integral da obrigação na forma do item “2.1”, a assegurar a matrícula das crianças de 0 (zero) a 3 (três) anos de idade em creches e de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade em pré-escolas, em instituições da rede pública tamandareense, que que não as mais próximas da residência dos infantes ou do local de trabalho dos seus genitores ou responsáveis, mediante o fornecimento de transporte escolar adequado, até a posterior transferência para unidade mais próxima da residência dos educandos ou do trabalho dos seus genitores ou responsáveis; e (2.3) subsidiariamente, não sendo possível o cumprimento integral da obrigação na forma dos itens “2.1” e “2.2”, com o objetivo de evitar superlotação dos Centros Municipais de Educação Infantil – CMEIs e garantir pleno acesso à educação infantil, assegurar a matrícula das crianças de 0 (zero) a 3 (três) anos de idade em creches e de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade em pré-escolas da rede particular, às expensas Município de Almirante Tamandaré, bem como a oferta de transporte escolar adequado aos estudantes, até que seja disponibilizada vaga na rede pública, na forma as hipóteses anteriores. Requer, também, a condenação da parte requerida em danos morais coletivos (na quantia de R$100.000,00). Recebida a inicial, o pedido liminar foi deferido com fundamento na plena evidência do direito pleiteado (art. 311, inciso II, do CPC) – evento 7. Citados, Gerson Denilson Colodel não apresentou defesa; o Município, por seu turno, o fez no evento 31. Pela peça, sustenta a ilegitimidade passiva do ex-prefeito, ao argumento de que a responsabilidade é do Município como pessoa jurídica. Além disso, argui a incompetência da Vara da Infância e da Juventude e pugna pelo chamamento da União ao processo por sua corresponsabilidade e consequente remessa à Justiça Federal. No mérito, refuta as alegações de omissão municipal, apresentando dados sobre o aumento de vagas ao longo dos anos e planos para novas construções de creches com apoio da União e do Estado. Pugna pela improcedência do pedido de danos morais coletivos por falta de comprovação de desídia municipal e pela revisão do prazo conferido em liminar para, no mínimo, quatro anos. Contesta, por fim, o pedido de vagas em período integral, argumentando que não há obrigatoriedade legal. O Parquet, no sequencial 47, rebate a tese de incompetência da Justiça Estadual e concorda ter ocorrido perda superveniente da legitimidade de Gerson Denilson Colodel, dada a extinção do mandato. No mérito, reafirma que o direito à educação é fundamental e de eficácia plena, não sujeito à reserva do possível, e que a omissão do Município configura dano moral coletivo in re ipsa. Finalmente, requer a intimação do Município para regularizar sua representação processual e o julgamento procedente dos pedidos iniciais. Instados a especificar provas, Ministério Público e Município pugnam pelo julgamento antecipado do mérito (eventos 60 e 63). É o brevíssimo relatório. Decido. FUNDAMENTAÇÃO Julgamento antecipado do mérito Anuncio o julgamento antecipado do mérito, vez que compreendo se tratar de questão unicamente de direito. Demais disso, a prolação da sentença sem maiores delongas visa a contemplar a razoável duração do processo preconizada pelo artigo 5º, LXXVIII, da CRFB/88. Questões prévias O Município aponta que “a União, notadamente pela complexidade da causa e pelo claro impacto orçamentário e financeiro frente ao Município de Almirante Tamandaré, deve estar presente no polo passivo desta demanda para responder solidariamente com a obrigação de fazer” e, por consequência, alega a incompetência da Vara da Infância e Juventude para julgá-la. Sem razão o ente, contudo. Segundo dicção do art. 211, § 2º, da Constituição da República, conjugado com o art. 11, V, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, é de responsabilidade privativa do Município oferecer educação infantil em creches e pré-escolas. Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino. § 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil. Art. 11. Os Municípios incumbir-se-ão de: V - oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino. Não é cabível, portanto, o chamamento ao processo da União e tal assertiva vai ao encontro da posição da 6ª e 7ª Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR - 6ª Câmara Cível - 0002980-02.2018.8.16.0184 - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADORA LILIAN ROMERO - J. 19.06.2019 e TJPR - 7ª Câmara Cível - 0002906-64.2020.8.16.0058 - Campo Mourão - Rel.: DESEMBARGADOR DARTAGNAN SERPA SA - J. 09.04.2021). Ademais, a Justiça da Infância e da Juventude tem competência absoluta para processar e julgar causas envolvendo matrícula de menores em creches ou escolas, nos termos dos arts. 148, IV, e 209 da Lei 8.069/90 (Tema Repetitivo 1058 do STJ). E regem-se pelas disposições do ECA as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular de atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idade (art. 208, III). Em tempo, ainda que coubesse chamar a União, o requerido nem sequer observou a regra processual prevista no art. 131 do CPC. Lado outro, assiste razão no tocante à ilegitimidade superveniente de Gerson Denilson Colodel. Quando proposta a ação, Gerson atuava como prefeito do Município de Almirante Tamandaré. Inobstante, diante do encerramento de seu mandato em 31 de dezembro de 2024, sobreveio a perda superveniente da legitimidade passiva do ex-prefeito, o que motiva extinguir o processo sem resolver o mérito nesse particular. Mérito Cinge-se a controvérsia na obrigação de o Município de Almirante Tamandaré ofertar vagas para todas crianças de 0 (zero) a 3 (três) anos de idade em creches e de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade em pré-escolas, residentes no município, de forma a zerar a demanda reprimida. As razões de decidir serão divididas em três partes. Em primeiro lugar, tamanha a relevância, transcrever-se-á trecho do voto do Ministro Relator Luiz Fux quando do julgamento do RE n. 1.008.166 (Tema 548) sobre a relevância do acesso à educação infantil. Num segundo momento, tratar-se-á a respeito da obrigação municipal de ofertar educação infantil em creches e pré-escolas. Por fim, examinar-se-á o pedido de condenação do Município de Almirante Tamandaré em dano moral coletivo. 1. Relevância do acesso à educação infantil Quando do julgamento do RE n. 1.008.166 no âmbito da Repercussão Geral do tema, o Ministro Relator Luiz Fux introduziu seu voto fundamentando a importância do acesso de crianças à educação infantil para a formação da personalidade, como se depreende a seguir[1]: A educação infantil, como primeira etapa do ciclo de educação básica, assume relevância singular no início da formação da personalidade humana. Com efeito, as primeiras experiências de convívio educacional na primeira infância marcam etapas importantes na formação de sua personalidade, bem como da sua socialização e inteligência emocional, contribuindo para o desenvolvimento de capacidades psíquicas, físicas e motoras, em metodologia lúdica que permita o cuidado e a proteção integral das crianças. Deveras, na primeira infância, o acesso à educação infantil de qualidade é essencial para que se busque, mediante o exercício de funções de cuidado, educação e atenção, a formação de componentes imprescindíveis ao desenvolvimento integral das crianças, para que essas possam, de forma ativa, começar a construir conhecimentos sobre si mesmas, bem como sobre o mundo que as cerca. Nesse contexto, a partir do momento em que o acesso ao mercado de trabalho se tornou necessário para o sustento econômico das famílias, emerge a necessidade das creches, como estabelecimentos extradomiciliares específicos destinados ao serviço de educação e cuidado para as crianças de primeira infância, enquanto os demais integrantes de suas famílias se afastam do lar para trabalhar. No contexto normativo mais recente, a afirmação significativa do direito social à educação pela Constituição de 1988 – que prevê o dever do Estado em garantir “educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade” (art. 208, IV) –, bem como da regulamentação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/1996), reafirma-se a concepção das crianças como efetivos sujeitos de direitos à educação, ao cuidado e à proteção integral (art. 227 da CRFB/1988). Paralelamente, também se garante como direito social dos trabalhadores a “assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas” (art. 7º, XXV, da CRFB/1988). Muito além da transmissão do conhecimento, a importância do processo educacional se coaduna com o ideal democrático de construção de uma sociedade livre, justa e plural, já que, nas palavras doutrinárias do Min. Celso de Mello, “o acesso à educação é uma das formas de realização concreta do ideal democrático” (MELLO FILHO, José Celso de. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 533). Com efeito, o direito à educação, direito social da maior relevância, demonstra sua importância para a construção de um Brasil mais desenvolvido e democrático. Pelos benefícios difusos, a sociedade tem o dever e o direito de que as crianças, mesmo de mais tenra idade, se insiram no ambiente escolar de qualidade, que lhes permita seu desenvolvimento integral. Como destaca-se em sólida sede doutrinária, verbis: “O que fica evidente é que a educação deve ser uma preocupação pública, porque não é um problema de pai, mãe, menino e menina, mas um problema da sociedade. As sociedades democráticas educam em autodefesa, isto é, para se protegerem: se uma sociedade não cria cidadãos capazes de viver harmoniosamente, se não cria o tipo de cidadão capaz de participar de forma crítica e construtiva nas instituições, está condenado a não ser mais do que uma democracia de fachada ou nome, mas não uma democracia real, porque estes exigem democratas e os democratas não são plantas selvagens que nascem entre as pedras por acaso, mas algo que tem que ser cultivado socialmente pelos modos de educação” (SAVATER, Fernando. Los caminos para la libertad: ética y educación. Fondo de Cultura Económica, 2015 – tradução livre). Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas (ONU) enumera como Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 4 da Agenda 2030 a promoção de educação de qualidade, para assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. De forma mais específica, a meta 4.2 dispõe sobre o compromisso de assegurar a todas as crianças o desenvolvimento integral na primeira infância (0 a 5 anos), mediante acesso a cuidados e à educação infantil de qualidade, de modo que estejam preparadas para etapas posteriores de sua vida escolar. De outro lado, estudo publicado em 2011 e organizado em parceria pela Representação da UNESCO no Brasil, a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação no Brasil (MEC/SEB) e a Fundação Orsa revela um nítido perfil socioeconômico na disparidade de frequência à creche e no acesso à educação infantil no Brasil, verbis: “A frequência à creche tem um viés socioeconômico: enquanto apenas 10,8% das crianças atendidas se situam na faixa de rendimento familiar mensal médio per capita de até meio salário-mínimo (SM), 18,7% estão na faixa de meio a um SM, 28,7% com mais de um até dois SM, 32% com mais de dois a três SM, e 43,6% são filhas de famílias cuja renda mensal média per capita é maior do que três SM”.[2] Sob essa perspectiva, também se assevera que “A elaboração de políticas públicas que universalizassem o acesso à creches poderia contribuir para a redução das desigualdades sociais e raciais, posto que a educação implica em reflexo direto no mercado de trabalho, e, consequentemente, em ascensão social”[3]. Em especial, são atingidas de forma ainda mais gravosa as mulheres mães de filhos pequenos, as quais procuram ingressar ou permanecer no mercado de trabalho, como há muito já reconhecido pelo Tribunal Constitucional da Espanha, em Recurso de Amparo julgado em 1987.[4] Observe-se ainda que, em julho de 2019, foi anunciado o Compromisso Nacional pela Educação Básica, firmado pelo MEC, em parceria com o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Udime). Naquele documento, em que se assumia o objetivo de tornar o Brasil referência em educação básica na América Latina até 2030, o diagnóstico de acesso à educação infantil revelava que, em 2017, apenas 34,1% das crianças de 0 a 3 anos eram matriculadas no sistema de ensino infantil.[5] Vale lembrar, ainda, os ensinamentos de James Heckman, professor da Universidade de Chicago laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 2000, para quem o desenvolvimento na primeira infância é um investimento público inteligente, na medida em que a antecipação dos programas de educação para a primeira infância maximiza o retorno social de longo prazo. Assim, o acesso à educação pública de qualidade no desenvolvimento da primeira infância influencia, inclusive, os resultados socioeconômicos que a sociedade como um todo colherá no futuro, não apenas por um melhor desenvolvimento de suas capacidades cognitivas, mas também pelas não cognitivas, exigindo-se, em concretização desse direito social, que recursos públicos sejam reforçados na ampliação do acesso precoce ao serviço educacional de qualidade.[6] Todas essas premissas reforçam a importância que se deve assumir para o tratamento do acesso à educação infantil durante a primeira infância, questão que assume, também, status constitucional. 2. Obrigação municipal de ofertar educação infantil em creches e pré-escolas Objetiva o Ministério Público impor ao Município de Almirante Tamandaré a obrigação de atender a demanda local alusiva à inclusão das crianças em creche e pré-escola. Sustenta, para tanto, que no âmbito do Inquérito Civil n. MPPR-0001.24.000779- 7, requisitou ao requerido Gerson Denilson Colodel, na qualidade de então Chefe do Poder Executivo de Almirante Tamandaré, informações e documentos sobre a política educacional desenvolvida pelo município tamandareense. A resposta foi no sentido de que o “número de vagas já existentes é 2.912” e ciente está de que faltam ao menos 3.683 vagas para os Infantis 0, I, II, III e IV, isso sem considerar o Infantil V, haja vista que omitiu indicá-las, e “planeja” a criação de apenas 420 vagas para o atendimento integral da demanda por educação infantil. Referiu o Parquet, e com razão, que “a conta não fecha”, motivo pelo qual intenta compeli-lo a zerar a demanda reprimida. Sobre o direito material aplicável, importante é relembrar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 alçou a dignidade da pessoa humana como um de seus cinco fundamentos (art. 1º, III), alcançada, a exemplo de outros direitos básicos e imprescindíveis, pelo direito social à educação (art. 6º), previsto no artigo 205 como “direito de todos e dever do Estado e da família”. Segundo a Carta, é dever do Estado ofertar “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria” e “educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade” (art. 208, I, IV). Tal direito é público subjetivo e seu desprovimento enseja responsabilização do Poder Público, nos termos do art. 208, §§ 1º e 2º. Em complemento, o artigo 211, § 2º, da CR, ao disciplinar acerca da distribuição dos sistemas de ensino, impõe aos Municípios a atuação prioritária no ensino fundamental e na educação infantil, aqui destacado, justamente, o atendimento em creche e pré-escola. Tratando-se de direito fundamental de crianças, o capítulo constitucional intitulado “Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso”, reforça o dever de o Estado assegurar, com absoluta prioridade, o direito à educação. No Estatuto da Criança e do Adolescente, o direito à educação foi reiterado, com garantia de prioridade (art. 4º, parágrafo único), revelando o importante papel dos Municípios de garantir o pleno desenvolvimento da população infanto-juvenil por meio de implementação de políticas públicas eficientes (art. 54, IV). Intensa é a preocupação em se priorizar os interesses básicos das crianças que foi editada, em março de 2016, a Lei n. 13.257, a qual, dispondo sobre as políticas públicas para a primeira infância - compreendida a faixa etária que engloba os seis primeiros anos completos de vida da criança -, traça como área prioritária a educação infantil, promovendo a expansão com qualidade de oferta, instalações e equipamentos adequados e profissionais qualificados. Sem prejuízo, é direito contemplado, também, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (n. 9.394/96), que reitera (nos arts 11, 29 e 30) a incumbência da municipalidade em oferecer educação infantil em creches (para crianças até 3 anos de idade) e pré-escolas (para crianças de 4 a 5 anos de idade) e na Lei Orgânica do Município requerido que, nos mesmos moldes, prioriza o atendimento em creche e pré-escola, ressalta a importância de zelar pela educação, bem como impõe a aplicação anual de nunca menos de 30% da receita tributária em prol do ensino (arts. 159, III, 160 e 164). Ainda no âmbito infraconstitucional, a edição da Lei n. 14.851/2024 reforça a preocupação do legislador com o tema ao tornar obrigatória a criação de mecanismos que permitam identificar, divulgar e atender a demanda por vagas no atendimento à educação infantil de crianças de 0 (zero) a 3 (três) anos de idade. Finalmente, a tese firmada em julgamento de casos repetitivos pelo Supremo Tribunal Federal (Tema 548) reconhece a educação básica em todas as suas fases – educação infantil, ensino fundamental e ensino médio – como direito fundamental de todas as crianças e jovens, dotada a norma constitucional de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata. Para além de reafirmar o dever constitucional primário dos entes municipais de assegurar às crianças entre zero e cinco anos de idade o atendimento em creche e pré-escola, também consagrou a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário em casos como o presente, mediante determinação destinada à Administração Pública para que efetue as matrículas necessárias à realização da promessa constitucional de prestação universal da educação infantil. Vejamos: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO ADMINISTRATIVO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. GARANTIA DE VAGA EM CRECHE OU PRÉ-ESCOLA ÀS CRIANÇAS DE ZERO A CINCO ANOS DE IDADE. AUTOAPLICABILIDADE DO ART. 208, IV, DA CF/88. PRINCÍPIOS DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DA RESERVA DO POSSÍVEL. VIOLAÇÃO. INOCORRÊNCIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que assegura às crianças de zero a cinco anos de idade a primeira etapa do processo de educação básica mediante o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (art. 208, IV, da Constituição Federal). 2. O Estado tem o dever constitucional de garantir o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão estatal e violação a direito subjetivo, sanável pela via judicial. Precedentes: ARE 639.337-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe de 15/9/2011; AI 592.075-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJe de 4/6/2009, e RE 384.201- AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, DJ de 3/8/2007. 3. O Poder Judiciário pode impor à Administração Pública a efetivação de matrícula de crianças de zero a cinco anos de idade em estabelecimento de educação infantil, sem haja violação ao princípio constitucional da separação dos poderes. 4. Ex positis, voto no sentido de, no caso concreto, NEGAR PROVIMENTO ao recurso extraordinário interposto pelo Município de Criciúma. 5. A tese da repercussão geral fica assim formulada: 1. A educação básica em todas as suas fases – educação infantil, ensino fundamental e ensino médio – constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens, assegurado por normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata. 2. A educação infantil compreende creche (de zero a 3 anos) e a pré-escola (de 4 a 5 anos). Sua oferta pelo Poder Público pode ser exigida individualmente, como no caso examinado neste processo. 3. O Poder Público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica (RE 1008166, Relator: Min. Luiz Fux. Tribunal Pleno. Julgado em 22.09.2022. DJe publicado em 20.04.2023). Conclui-se, assim, por tais comandos, ser desnecessária – e até mesmo descabida -, quaisquer digressões que rumem à conclusão de que o ente municipal não seria o responsável por fornecer as vagas necessárias a consolidar o direito à educação básica, tampouco que não seria possível ao Poder Judiciário exigir a efetivação das matrículas das crianças listadas em creches e pré-escolas. E não se olvida, por óbvio, da situação orçamentária que assombra os Municípios brasileiros. Daí, poder-se-ia levantar a possibilidade de aplicar a teoria da reserva do possível, enquanto mecanismo de imposição de limite à determinação de obrigações de fazer, por parte do Poder Judiciário. A utilização do aludido instituto, no entanto, foi afastada pelo STF quando do exame do Tema 548. Nesse particular, vale mencionar o voto proferido pela Ministra Cármen Lúcia[7]: (...) É que a educação compõe o mínimo existencial sem o qual a dignidade da pessoa humana é confiscada. José Afonso da Silva ensina que a educação é direito fundamental do homem que implica em dever estatal de aplicação de recursos específicos na área, a fim de se garantir, efetivamente, esse serviço público essencial: “A Constituição de 1988 eleva a educação ao nível dos direitos fundamentais do homem, quando a concebe como um direito social (art. 6º) e direito de todos (art. 205), que, informado pelo principio da universalidade, tem que ser comum a todos. A situação jurídica subjetiva completa-se com a cláusula que explicita o titular da obrigação contraposta àquele direito, constante do mesmo dispositivo, segundo a qual a educação ‘é dever do Estado e da família’. Vale dizer: todos têm o direito à educação, e o Estado tem o dever de prestá-la, assim como a família. Isso significa, em primeiro lugar, que o Estado tem que se aparelhar para fornecer, a todos, os serviços educacionais, oferecer ensino, de acordo com os princípios e objetivos estatuídos na Constituição. Essas normas constitucionais - repita-se - têm, ainda, o significado jurídico de elevar a educação à categoria de serviço público essencial, que ao Poder Público impende possibilitar a todos - de onde a preferência constitucional pelo ensino público, pelo quê a iniciativa privada, nesse campo, embora livre, é, no entanto, secundária e condicionada (arts. 209 e 213). A consecução prática dos objetivos da educação, consoante o art. 205 - pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho requer que o Poder Público organize os sistemas de ensino público, para cumprir com seu dever constitucional para com a educação, mediante prestações estatais que garantam, no mínimo, os serviços consignados no art. 208. Esse dever estatal com a educação implica que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, cada qual com seu sistema de ensino, em regime de colaboração mútua e reciproca, destinem, anualmente, recursos específicos para o financiamento dos serviços educacionais, num mínimo não inferior às percentagens previstas no art. 212 da CF” (SILVA, José Afonso da. Comentário ao art. 205. In: Comentário Contextual à Constituição 6.ed. São Paulo:Malheiros, 6.ed., 2009, p. 785, grifos nossos). 10. No § 2º do art. 211 tem-se que os municípios “atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil”. Assim, cuida a educação infantil, início da educação básica, de direito fundamental de atendimento obrigatório pelo município, dele não podendo se eximir. Nem se argumente, como pretende o Município recorrente, que o Poder Judiciário não pode impor a destinação dos recursos municipais na área da educação, ou que “a disponibilização de vagas em estabelecimento pré-escolar é meta programática que o Poder Público tem o dever de implementar na medida de suas possibilidades”. Ingo Wolfgang Sarlet, Daniel Mitidiero e Luiz Guilherme Marinoni lecionam que o limite da reserva do possível, quando se trata de direito à educação, não tem aplicação garantida: “A habitual ponderação relativa à ausência de recursos (limite da reserva do possível), assim como a ausência de competência do tribunais para decidir sobre destinação de recursos públicos, aqui se revelam de ainda mais difícil aceitação. Note-se que, de acordo com o art. 212 da Constituição, a União não poderá aplicar menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios menos de 25% da receita resultante dos impostos, na manutenção e desenvolvimento do ensino. O montante da verba orçamentária mínima (o legislador poderá estabelecer valores superiores), seguramente representando a maior fatia do orçamento público, demonstra a importância atribuída à educação. No §3º do mesmo artigo, encontra-se, por sua vez, regra que prioriza a distribuição dos recursos para o ensino obrigatório (fundamental). Já considerada a alteração resultante da EC 14, de 12.09.1996, o art. 212, §5º, ressaltando igualmente a prioridade do ensino fundamental, prevê que este contará, como fonte adicional de financiamento, com os recursos decorrentes da contribuição social do salário-educação” (SARLET, Ingo Wolfgang; MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Direito Constitucional. 9.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 696). A fórmula, pois, da reserva do possível, quando em pauta questão afeta à salvaguarda do mínimo existencial – aqui consubstanciada no acesso à educação básica (creche e pré-escola), não pode ser usada para legitimar injusto descumprimento de deveres constitucionalmente impostos ao poder público. 3. Pedido de condenação do Município de Almirante Tamandaré em dano moral coletivo Objetiva o Ministério Público, na defesa dos interesses das crianças tamandareenses, impor ao Município de Almirante Tamandaré obrigação indenizatória advinda da omissão da atuação do gestor público em assegurar vaga em creche e pré-escola até 5 (cinco) anos. Tocante à legislação aplicável, a Constituição da República garante, pelo art. 5º, X, o direito à indenização por danos morais. O Código Civil, por sua vez, cuida da responsabilidade civil e da indenização por danos morais em seus artigos 186 e 927. A Lei n. 7.347/1985 (Ação Civil Pública) disciplina a responsabilidade por danos morais causados ao interesse coletivo (art. 1º, IV), inciso incluído pela Lei n. 8.078/1990, a qual preceitua que a defesa coletiva será exercida quando se tratar de, dentre outros, interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base (art. 81, parágrafo único, II). O ECA rege as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular de atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idade (art. 208, III). Tecidas essas considerações legislativas, adentrando no dano moral coletivo, este se caracteriza pela prática de conduta antijurídica que, de forma absolutamente injusta e intolerável, viola valores éticos essenciais da sociedade, implicando um dever de reparação, que tem por finalidade prevenir novas condutas antissociais (função dissuasória), punir o comportamento ilícito (função sancionatório-pedagógica) e reverter, em favor da comunidade, o eventual proveito patrimonial obtido pelo ofensor (função compensatória indireta) – Recurso Especial n. 1.539.056 - MG. Tal categoria de dano moral — que não se confunde com a indenização por dano extrapatrimonial decorrente de tutela de direitos individuais homogêneos — é aferível in re ipsa, pois dimana da lesão em si a "interesses essencialmente coletivos" (interesses difusos ou coletivos stricto sensu) que "atinja um alto grau de reprovabilidade e transborde os lindes do individualismo, afetando, por sua gravidade e repercussão, o círculo primordial de valores sociais" (REsp 1.473.846⁄SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 21.02.2017, DJe 24.02.2017), revelando-se despicienda a demonstração de prejuízos concretos ou de efetivo abalo à integridade psicofísica da coletividade. No caso, restou amplamente demonstrado que o Município de Almirante Tamandaré permanece omisso quanto à implementação de políticas públicas reais e eficazes para suprir a demanda reprimida por vagas na educação infantil. A ausência de planejamento, a insuficiência de investimentos e a falta de resposta adequada às requisições do Ministério Público evidenciam conduta negligente e reiterada. A inicial está instruída com cópia do inquérito civil MPPR-0001.24.000779-7, no bojo do qual o Ministério Público procurou empreender um levantamento sobre as vagas existentes e buscar medidas de política pública com o ente municipal para dar conta da demanda existente. Como resultado do inquérito civil, conclui o Parquet que o número de vagas já existentes é 2.912 (dois mil e novecentos e doze) e que faltam ao menos 3.683 (três mil e seiscentos e oitenta e três) vagas para os Infantis 0, I, II, III e IV - sem considerar o Infantil V – e que o município de Almirante Tamandaré “planeja” a criação de apenas 420 (quatrocentos e vinte) vagas para o atendimento integral da demanda por educação infantil. É relativo esse número de 2024. Mas a postura recalcitrante do ente municipal é denotada de 2011. Naquela época, o Ministério Público instaurou procedimento extrajudicial, autuado como Inquérito Civil n. MPPR0001.11.000005-4, visando a apurar a irregularidade na oferta de vaga em estabelecimento de educação infantil pela Secretaria Municipal de Educação de Almirante Tamandaré, cujo procedimento embasou a ação civil pública proposta em 2016 (n. 0007179-33.2016.8.16.0024), sem olvidar de outros tantos procedimentos extrajudiciais instaurados para verificar a demanda manifesta[8] , de forma individualizada. O pedido deduzido na ação civil pública inaugurada em 2016 foi julgado procedente no sentido de obrigar o município de Almirante Tamandaré a contemplar vagas em creches e pré-escolas em período integral para as crianças de 0 a 5 anos de idade nascidas em 2017 e 1º semestre de 2018 que permanecessem em lista de espera. Contudo, diante dos sucessivos recursos interpostos pelo ente, as crianças abarcadas pela mencionada decisão, as nascidas até o primeiro semestre de 2018, já se encontravam no ensino fundamental – etapa sucessora da pré-escola. Denota-se, portanto, que as investigações a respeito da oferta de vagas para a educação infantil no Município de Almirante Tamandaré iniciaram em 2011 e, a partir de então, o Ministério Público passou a desenvolver atividades em diferentes frentes (inclusive judicialmente), tendo sempre como finalidade a mensuração do déficit de vagas e a incansável busca por solucioná-lo. Entretanto, até então, infelizmente não obteve êxito. É notável a omissão inconstitucional e a ineficácia das políticas públicas municipais a exemplo de, na própria peça de defesa, o Município admitir a necessidade de oferta de mais de 3.600 vagas, apontar que seriam necessários 20 novos CMEIs para supri-las, sem, contudo, apresentar cronograma concreto para tal. O Município, em defesa, invoca a Lei de Responsabilidade Fiscal e limitações orçamentárias. Contudo, a inviabilidade orçamentária não justifica a omissão. O STF já decidiu numerosas vezes no sentido de que o ente público não pode lançar mão do instituto da reserva do possível para sobrepô-lo aos direitos fundamentais. Como alternativas, o Município menciona a existência de convênios com escolas particulares e programas estaduais e federais. São medidas, contudo, incipientes ou futuras, sem impacto imediato na realidade da sociedade tamandareense, pois aqueles ainda em trâmite e estes ainda não formalizados. Caracterizado está, portanto, o dano, decorrente de ato omisso do gestor público, violador de direito fundamental das crianças, social de seus pais e responsáveis e, por consectário, de toda a sociedade tamandareense. Logo, é passível de reparabilidade. Colocando-se em perspectiva as circunstâncias que envolvem os pequenos munícipes, “quando se nega a educação, nega-se o acesso a níveis superiores de existência; tolhem-se oportunidades, projetos que nem sequer chegam a ser concebidos. Se isso ocorre logo na infância, quando a curiosidade e a criatividade estão no ponto máximo, os prejuízos são irreparáveis”.[9] Relativamente aos pais ou responsáveis, “a educação pré-escolar abre a possibilidade de exercerem suas profissões em ambiente fora do lar, sem nenhum prejuízo para si ou para os filhos. Ou seja, a educação pré-escolar oferecida pelo Estado favorece também a cidadania dos pais ou responsáveis, como deixa claro a Constituição Federal ao mencionar que é direito dos trabalhadores urbanos e rurais a “assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas” (art. 7º, XXV)”.[10] Particularmente no que respeita às mães, a oferta de creche e pré-escola é imprescindível para lhes assegurar segurança no exercício do direito ao trabalho e à família, em razão da maior vulnerabilidade das trabalhadoras na relação de emprego, devido às dificuldades para a conciliação dos projetos de vida pessoal, familiar e laboral. Para a Ministra Rosa Weber, esse direito social tem correlação com os da liberdade e da igualdade de gênero, pois proporciona à mulher retornar (ou ingressar) ao mercado de trabalho após a gestação. O direito à educação básica não pode ser interpretado como discricionariedade e, sim, como obrigação estatal, imposta sem condicionantes, configurando omissão a falta da sua prestação (Tema 548). Demonstrado, pois, que o município de Almirante Tamandaré não está concretizando o direito fundamental das crianças tamandareenses à educação infantil, fato que motiva condená-lo por dano moral coletivo in re ipsa, passa-se à fixação do quantum indenizatório. A quantificação da indenização deve observar critérios consagrados pela doutrina e jurisprudência, com destaque para[11]: (1) critérios objetivos (relacionados ao dano) Extensão do dano (art. 944 do Código Civil): a omissão na oferta de vagas em creches e pré-escolas atinge um número indeterminado de crianças e famílias, impactando diretamente sua formação educacional e social da comunidade do Município de Almirante Tamandaré. Gravidade da ofensa: a ausência de vagas em creche compromete o desenvolvimento cognitivo e social das crianças, além de dificultar a inserção no mercado de trabalho de seus pais ou responsáveis. Persistência da omissão: trata-se de conduta reiterada e contínua por parte do ente público, o que agrava os efeitos do dano à comunidade. Importância do bem jurídico atingido: o direito à educação infantil é essencial e protegido constitucionalmente. (2) critérios subjetivos (relacionados aos lesados) Amplitude do grupo atingido: a coletividade afetada é extensa, abrangendo crianças em idade de creche e pré-escola, bem como suas respectivas famílias. Impacto na qualidade de vida: a omissão compromete o pleno desenvolvimento infantil e a estabilidade socioeconômica das famílias envolvidas. (3) critérios relacionados ao ofensor Reincidência/recalcitrância: pelos registos, a conduta omissiva do gestor público é reiterada desde, ao menos, o ano de 2011. Capacidade econômico-financeira: embora o Município alegue limitações orçamentárias, a prioridade absoluta dos direitos da criança impõe a destinação preferencial de recursos e a adoção de providências administrativas eficazes. (4) vetores de aplicação judicial Razoabilidade e proporcionalidade: o valor da indenização deve ser suficiente para compensar o dano coletivo e, ao mesmo tempo, estimular a implementação de políticas públicas efetivas. Observadas as nuances do caso concreto, a quantia de R$ 100.000,00 (cento mil reais), a título de indenização, revela-se adequada, não se mostrando excessiva, mas, sim, proporcional ao dano causado à coletividade tamandareense. DISPOSITIVO Diante do exposto, relativamente ao ex-prefeito Gerson Denilson Colodel, porquanto reconhecida a perda superveniente da legitimidade passiva, JULGO EXTINTO o processo, sem resolver o mérito, o que faço com base no art. 485, VI, do CPC. Tocante ao Município de Almirante Tamandaré, nos termos do art. 487, I, do Código de Processo Civil, JULGO PROCEDENTES os pedidos da inicial para impor: (1) em 180 dias, o dever de: (1.1) ofertar vagas no atendimento à educação infantil, para crianças de 0 (zero) a 3 (três) anos de idade em creches e de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade em pré-escolas (inclusive no turno completo, caso demonstrada a necessidade de todos aqueles que compõem o núcleo familiar), em instituição da rede pública mais próxima da residência ou local de trabalho de seus genitores ou responsáveis, observados o sistema de georreferenciamento e os critérios para a oferta de transporte escolar; (1.2) subsidiariamente, não sendo possível o cumprimento integral da obrigação na forma do item “1.1”, assegurar a matrícula das crianças de 0 (zero) a 3 (três) anos de idade em creches e de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade em pré-escolas (inclusive no turno completo, caso demonstrada a necessidade de todos aqueles que compõem o núcleo familiar), em instituições da rede pública tamandareense, ainda que não as mais próximas da residência ou do local de trabalho de seus genitores ou responsáveis, mediante o fornecimento de transporte escolar adequado, até a posterior transferência para unidade mais próxima da residência ou do trabalho de seus genitores ou responsáveis; e (1.3) subsidiariamente, não sendo possível o cumprimento integral da obrigação na forma dos itens “1.1” e “1.2”, com o objetivo de evitar superlotação dos Centros Municipais de Educação Infantil – CMEIs e garantir pleno acesso à educação infantil, assegurar a matrícula das crianças de 0 (zero) a 3 (três) anos de idade em creches e de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade em pré-escolas na rede particular (inclusive no turno completo, caso demonstrada a necessidade de todos aqueles que compõem o núcleo familiar), às expensas do Município de Almirante Tamandaré, bem como ofertar transporte escolar adequado às crianças, até que seja disponibilizada vaga na rede pública, na forma das hipóteses anteriores. Em relação às instituições de ensino infantil da rede particular, a matrícula deve se dar em unidades que contem com os seguintes documentos válidos: autorização para funcionamento, emitida pela SEED; alvará de funcionamento; licença sanitária; e Certificado de Licenciamento do Corpo de Bombeiros – CLCB e Certificado de Vistoria do Corpo de Bombeiros CVCB); (1.4) consignar no vigente Plano Plurianual Municipal (PPA) e na Lei Orçamentária Anual (LOA), dotações orçamentárias suficientes à oferta de educação infantil, em creche e pré-escola, por meio de rubrica/programa de trabalho específico. (2) o pagamento de indenização por danos morais na quantia de R$100.000,00 (cem mil reais). cuja quantia deverá ser revertida ao Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. A verba deverá ser corrigida monetariamente pela média entre os índices INPC/IGP-DI e acrescida de juros de mora, na ordem de 1% ao mês, ambos desde o arbitramento, tendo em vista a data em que se tornou líquida a obrigação. Sem prejuízo, na hipótese de descumprimento do prazo conferido, consoante § 2º do art. 213 do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como do art. 11 da Lei da Ação Civil Pública, FIXO multa no valor de 1.000,00 (mil reais) por dia, até o limite de R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais), a ser direcionada pessoalmente ao Prefeito do município, cuja quantia deverá ser revertida ao Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Por consectário, confirmo a liminar emanada à ref. 7, exceto quanto ao prazo conferido para cumprimento e o valor de astreintes estabelecido. Condeno o Município de Almirante Tamandaré ao pagamento das custas processuais. Lado outro, não há falar em condenação em honorários advocatícios em prol do Ministério Público. Não há falar, outrossim, em remessa necessária. Para a parte ilíquida (obrigação de fazer), é aplicável o art. 496, § 4º, II, do CPC; para a líquida (obrigação de pagar), o art. 496, § 3º, II. P. R. I. Imutável, ao arquivo. Em tempo, intime-se o Município de Almirante Tamandaré para, no prazo de 5 dias, apresentar instrumento de mandato, sob pena de revelia processual. Almirante Tamandaré, datado eletronicamente. JOSÉ ARISTIDES CATENACCI JUNIOR Juiz de Direito [1] STF - RE: 1008166 SC, Relator.: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 22/09/2022, Tribunal Pleno, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-s/n DIVULG 19-04-2023 PUBLIC 20-04-2023. [2] NUNES, Maria Fernanda Rezende; CORSINO, Patricia; DIDONET, Vital. Educação infantil no Brasil: primeira etapa da educação básica. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000214418, p. 15. [3] ROSSI, Danilo Valdir Vieira. Do ativismo judicial na formação de políticas públicas: a falta de vagas em creches. In: RANIERI, Nina Beatriz Stocco; ALVES, Angela Limongi Alvarenga (org.) Direito à educação e direitos na educação em perspectiva interdisciplinar. – São Paulo: Cátedra UNESCO de Direto à Educação/Universidade de São Paulo (USP), 2018, p. 349. [4] Recurso de Amparo 1.123/85 (1987), disponível em: https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-T-1987-18628. [5] Disponível em: http://portal.mec.gov.br/images/11.07.2019_ Apresentacao-ed-basica, p. 14. [6] HECKMAN, James J. Giving kids a fair chance. The MIT Press, 2013. [7] STF - RE: 1008166 SC, Relator.: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 22/09/2022, Tribunal Pleno, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-s/n DIVULG 19-04-2023 PUBLIC 20-04-2023. [8] Demanda manifesta: decorrente do dever, há muito exigível do Poder Público, de ofertar vagas, também na Educação Infantil, para a faixa etária de 00 a 05 anos, a todas as crianças que, por seus representantes legais, expressamente solicitaram o serviço, estando o fundamento da pretensão previsto no inciso IV, do artigo 208, da Constituição Federal. [9] Trecho do voto do Ministro Nunes Marques quando do julgamento do Tema 548 (STF - RE: 1008166 SC, Relator.: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 22/09/2022, Tribunal Pleno, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-s/n DIVULG 19-04-2023 PUBLIC 20-04-2023). [10] Trecho do voto do Ministro Nunes Marques quando do julgamento do Tema 548 (STF - RE: 1008166 SC, Relator.: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 22/09/2022, Tribunal Pleno, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-s/n DIVULG 19-04-2023 PUBLIC 20-04-2023). [11] Critérios detalhadamente relacionados por Benetti, Giovana Valentiniano. A reparação do dano moral coletivo: análise crítica dos parâmetros aplicáveis no direito brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 35. ano 10. p. 169-220. São Paulo: Ed. RT, abr./jun. 2023.
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