Processo nº 5334770-02.2025.8.09.0051
ID: 328968410
Tribunal: TJGO
Órgão: Goiânia - 5ª UPJ Varas Cíveis: 12ª, 20ª, 21ª, 22ª, 23ª e 25ª
Classe: AçãO CIVIL PúBLICA CíVEL
Nº Processo: 5334770-02.2025.8.09.0051
Data de Disponibilização:
18/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
MARICI GIANNICO
OAB/SP XXXXXX
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NICOLE DE BARROS MOREIRA REIS
OAB/SP XXXXXX
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Poder Judiciário
Comarca de Goiânia
Gabinete do Juiz da 21ª Vara Cível
Telejudiciario (62) 3216-2070, Fórum Cível: 62-3018-6000, 5ª UPJ das Varas Cíveis (62) 3018-6456 e (62) 3018-6457, WhatsApp …
Poder Judiciário
Comarca de Goiânia
Gabinete do Juiz da 21ª Vara Cível
Telejudiciario (62) 3216-2070, Fórum Cível: 62-3018-6000, 5ª UPJ das Varas Cíveis (62) 3018-6456 e (62) 3018-6457, WhatsApp 5ª UPJ: (62) 3018-6455
E-mail 5ª UPJ: 5upj.civelgyn@tjgo.jus.br, Gabinete Virtual: gab21varacivel@tjgo.jus.br, WhatsApp Gabinete 21ª: (62) 3018-6472
Endereço: (Edificio Forum Civel) Avenida Olinda, Esquina com Rua PL-03, Qd. G, Lt. 04, Park Lozandes, Cep: 74.884-120 - Goiânia - GO
SENTENÇA
Processo nº 5334770-02.2025.8.09.0051
I – RELATÓRIO.
Trata-se de AÇÃO CIVIL PÚBLICA ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS em face de AMAZON SERVIÇOS DE VAREJO DO BRASIL LTDA, objetivando a cessação de prática reputada abusiva, consistente na inserção de propagandas publicitárias interruptivas em filmes e séries do serviço de streaming "Prime Video", com cobrança adicional para sua remoção, mesmo para assinantes que haviam contratado o serviço anteriormente à implementação da referida prática.
O Inquérito Civil nº 202500213288 foi instaurado pelo Ministério Público em 14/04/2025, após o recebimento de denúncia anônima relatando que a empresa Prime Vídeo e Comércio LTDA (posteriormente identificada como Amazon Serviços de Varejo do Brasil LTDA) estaria realizando "cobrança adicional ao plano de assinatura para que não surgissem anúncios publicitários durante a fruição de filmes e séries". A instauração fundamentou-se no artigo 129, inciso III, da Constituição Federal e na competência do Ministério Público para defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Nos autos do referido inquérito, o Ministério Público expediu Recomendação à Amazon para que: a) suspendesse imediatamente a veiculação de propagandas que interrompessem a exibição de filmes para consumidores que haviam contratado o serviço antes da implementação da prática; b) se abstivesse de cobrar valor adicional para remoção das propagandas; e c) disponibilizasse canal específico de atendimento para esclarecimentos.
Em resposta à Recomendação, a Amazon reconheceu que implementou, a partir de 02 de abril de 2025, a inserção de anúncios publicitários interruptivos durante a exibição de conteúdo audiovisual na plataforma Prime Video, bem como instituiu cobrança adicional de R$ 10,00 (dez reais) mensais para a remoção desses anúncios, mesmo para consumidores que haviam contratado o serviço antes da mudança. A empresa sustentou a licitude da prática, alegando que os Termos de Uso do serviço previam a possibilidade de alterações, que houve comunicação prévia aos consumidores e que o uso continuado do serviço configuraria aceitação tácita das novas condições.
Diante da resposta considerada insatisfatória, o Ministério Público ajuizou a presente Ação Civil Pública em 30/04/2025, sustentando, em síntese, que: a) a alteração unilateral do contrato é abusiva; b) a comunicação aos consumidores foi insuficiente e inadequada; c) a essência do serviço de streaming caracteriza-se pela ausência de interrupções; d) a conduta viola o princípio da conservação contratual; e) as cláusulas que permitem alterações unilaterais prejudiciais são nulas de pleno direito; f) o consentimento presumido não é válido; g) há violação de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
O órgão ministerial requereu, em sede de tutela de urgência, que a requerida: a) suspendesse a veiculação de propagandas interruptivas para consumidores antigos; b) se abstivesse de cobrar valor adicional desses consumidores; c) mantivesse o preço originalmente contratado; d) comunicasse individualmente os clientes; e) disponibilizasse canal específico de atendimento; f) restituísse em dobro os valores adicionais já pagos; e g) informasse precisamente a quantidade, duração e frequência das publicidades para novos contratos.
Em decisão de 07/05/2025, este Juízo deferiu parcialmente os pedidos de tutela de urgência, determinando à requerida que cumprisse, no prazo de 10 (dez) dias, as medidas solicitadas pelo Ministério Público, com exceção da restituição em dobro, que ficou reservada para análise após a instrução processual.
A Amazon interpôs Agravo de Instrumento contra a decisão liminar, ao qual foi concedido efeito suspensivo pela Desembargadora Camila Nina Erbetta Nascimento, em 14/05/2025, suspendendo os efeitos da decisão liminar até julgamento definitivo do recurso. A Desembargadora entendeu, em juízo preliminar, que a Amazon demonstrou ter comunicado seus clientes com antecedência superior a um mês, o que poderia afastar a alegação de violação ao dever de informação, e que a manutenção da liminar poderia causar dano grave à empresa devido à necessidade de complexas modificações na arquitetura tecnológica da plataforma.
Em contestação apresentada em 28/05/2025, a Amazon arguiu, preliminarmente, a ilegitimidade ativa do Ministério Público, sustentando que o direito em debate é exclusivamente individual homogêneo, sem demonstração concreta de relevante interesse social. No mérito, defendeu a licitude da prática comercial, afirmando que: a) os Termos de Uso preveem possibilidade de alterações; b) houve comunicação prévia com antecedência superior a um mês; c) o uso continuado do serviço após comunicação configura aceitação tácita; d) não há venda casada na cobrança adicional; e) inexiste vício no serviço, que continua funcionando normalmente.
A Amazon alegou especificamente ter "informado ampla e claramente seus clientes entre os dias 25 e 26 de fevereiro de 2025" sobre as alterações que entrariam em vigor em 02 de abril de 2025, o que configuraria um prazo superior a um mês para os consumidores decidirem sobre a continuidade do serviço. A comunicação teria sido realizada via e-mail, mensagens na área do cliente e SMS para e-mails não entregues.
O Ministério Público apresentou réplica em 04/06/2025, refutando as teses defensivas e reafirmando a abusividade da prática, a insuficiência da comunicação, o impacto em grupos hipervulneráveis, a configuração de dano moral coletivo e a necessidade de veiculação de comunicado sobre a ACP. Quanto à comunicação, o MPGO interpretou a menção da Amazon de que a comunicação ocorreu entre 25 e 26 de fevereiro como o período total de aviso, e não como o início de um período que se estenderia até 02 de abril, o que seria insuficiente para uma mudança dessa magnitude.
Foram juntadas ao processo diversas denúncias de consumidores relatando o desconhecimento da alteração ou a insatisfação com a implementação de anúncios em suas assinaturas contratadas anteriormente.
Após a manifestação de ambas as partes sobre a produção de provas, o processo encontra-se concluso para julgamento.
É o relatório. DECIDO.
II – FUNDAMENTAÇÃO.
II.1. DO JULGAMENTO ANTECIPADO DO MÉRITO E DA NÃO CONFIGURAÇÃO DE CERCEAMENTO DE DEFESA.
De início, cumpre ressaltar que o presente feito comporta julgamento antecipado do mérito, nos termos do art. 355, inciso I, do Código de Processo Civil, sendo desnecessária a dilação probatória.
Como ensina Fredie Didier Jr., "o julgamento antecipado é obrigatório quando presentes os seus pressupostos, constituindo dever-poder do magistrado". Segundo o autor, "o instituto não implica nenhuma nulidade da sentença por cerceamento de defesa se a matéria é unicamente de direito ou se nos autos há elementos suficientes para a análise das questões referentes à controvérsia". O processualista enfatiza que o contraditório deve ser observado na fase postulatória, oportunizando às partes manifestação sobre os fatos e direito que fundamentam a demanda.
Nelson Nery Júnior sustenta que o preceito do art. 355 do CPC é cogente: "conhecerá, e não poderá conhecer; se a questão for exclusivamente de direito, o julgamento antecipado da lide é obrigatório". Para o autor, não pode o juiz, por sua mera conveniência, relegar para fase ulterior a prolação da sentença se houver desnecessidade de ser produzida prova em audiência.
José Roberto dos Santos Bedaque ensina que o julgamento antecipado da lide representa situação em que é dispensável a produção de novas provas, pois "a matéria fática é incontroversa em decorrência da revelia ou já existem elementos suficientes para a formação do convencimento do juiz. A cognição, nesses casos, é exauriente e implica entrega da tutela jurisdicional inicialmente pleiteada".
A jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, conforme se extrai do AgInt nos EDcl no AREsp 2.334.114/SP (3ª Turma, j. 10/06/2024), estabelece que "não configura cerceamento de defesa o julgamento antecipado da lide quando o tribunal de origem considera o feito devidamente instruído, reputando desnecessária a produção de provas para o julgamento, por se tratar de matéria eminentemente de direito ou de fato já comprovado documentalmente".
No mesmo sentido, o AgInt no REsp 1.653.868/SE (3ª Turma, Min. Moura Ribeiro) firmou que "não configura cerceamento de defesa o julgamento antecipado da lide, devidamente fundamentado, sem a produção das provas tidas por desnecessárias pelo juízo, uma vez que cabe ao magistrado dirigir a instrução e deferir a produção probatória que considerar necessária à formação do seu convencimento".
Importante ressaltar que o julgamento antecipado não viola o princípio da não surpresa, previsto no art. 10 do CPC/2015, quando as partes tiveram conhecimento de todos os elementos dos autos e oportunidade de se manifestar sobre eles. Segundo o STJ, o princípio da não surpresa visa assegurar que "as partes não sejam surpreendidas por fundamentos ou interpretações jurídicas que não puderam debater durante o processo". No julgamento antecipado, essa garantia é preservada porque: 1) as partes conhecem todos os fatos alegados e provas produzidas; 2) houve oportunidade de manifestação na fase postulatória; 3) a decisão se baseia apenas em elementos já debatidos nos autos.
No caso em análise, a controvérsia centra-se em questões eminentemente de direito e na interpretação dos documentos já acostados aos autos, especialmente os Termos de Uso do Amazon Prime Video, as comunicações enviadas aos consumidores e as denúncias juntadas ao processo. Os fatos relevantes para o deslinde da controvérsia são incontroversos entre as partes - notadamente a inserção de anúncios publicitários interruptivos e a cobrança adicional para sua remoção - divergindo apenas quanto à qualificação jurídica desses fatos.
Assim, estando o processo devidamente instruído com todos os elementos necessários à formação do convencimento judicial, impõe-se o julgamento antecipado da lide, em obediência aos princípios da duração razoável do processo, da eficiência e da economia processual, sem que isso configure qualquer cerceamento do direito de defesa.
II.2. DA PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
A requerida suscita preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público, argumentando que o direito em debate é exclusivamente individual homogêneo, com titulares determináveis e afetados individualmente, sem demonstração concreta de relevante interesse social.
A preliminar não merece acolhimento.
A legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação civil pública em defesa de direitos individuais homogêneos de consumidores encontra respaldo no art. 129, III, da Constituição Federal, bem como nos arts. 81 e 82 do Código de Defesa do Consumidor e no art. 5º da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).
O Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido de que o Ministério Público possui legitimidade para a defesa coletiva de direitos individuais homogêneos de consumidores, ainda que disponíveis, quando presente relevante interesse social, caracterizado pela natureza do bem jurídico tutelado ou pela massificação do conflito.
A matéria encontra-se, inclusive, sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça. A Súmula 601 do STJ é cristalina: "O Ministério Público tem legitimidade ativa para atuar na defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores, ainda que decorrentes da prestação de serviços públicos".
No caso em análise, a prática impugnada afeta substancialmente milhões de consumidores brasileiros assinantes do serviço Prime Video, transcendendo interesses meramente individuais e atingindo a coletividade de forma ampla e difusa, o que evidencia o relevante interesse social subjacente à demanda.
Conforme leciona Claudia Lima Marques, "o contrato, no contexto do CDC, não mais é regido apenas pela vontade das partes, mas sim por uma ordem pública de proteção ao consumidor vulnerável", focando no "reequilíbrio da relação contratual" e na justiça contratual (Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 9ª ed., São Paulo: RT, 2022, p. 274).
Como bem pontua Hugo Nigro Mazzilli, "o interesse que legitima o Ministério Público a agir para a defesa de interesses individuais homogêneos não se exaure na soma dos interesses das pessoas lesadas, mas sim no interesse social subjacente, vinculado à relevância social decorrente da massificação ou repercussão do dano ou pela presença de interesse social relevante" (A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 35ª ed., São Paulo: Saraiva, 2022, p. 183). Na presente hipótese, é inequívoca a massificação do dano, que atinge milhões de consumidores em escala nacional.
Teori Albino Zavascki, em obra seminal sobre o tema, já apontava que "quando os direitos individuais homogêneos têm como titular uma multiplicidade significativa de pessoas, a tutela coletiva atende ao interesse social de preservar a efetividade da prestação jurisdicional, não apenas pelo aspecto da economia processual, mas principalmente pela preocupação de evitar decisões contraditórias sobre a mesma questão jurídica" (Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos, 7ª ed., São Paulo: RT, 2017, p. 137).
Ademais, a tutela coletiva se mostra como meio processual adequado para evitar a multiplicação de demandas individuais idênticas, promovendo economia processual e uniformidade das decisões judiciais. As próprias denúncias juntadas aos autos demonstram que diversos consumidores já iniciaram reclamações administrativas sobre o tema, o que potencialmente poderia gerar milhares de ações individuais semelhantes.
Assim, REJEITO a preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público.
II.3. DO MÉRITO.
II.3.1. DA RELAÇÃO DE CONSUMO E APLICABILIDADE DO CDC.
É incontroversa a existência de relação de consumo entre a requerida e seus assinantes, atraindo a incidência do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990).
A doutrina especializada, como ensina Claudia Lima Marques, reconhece que o CDC "impõe limites à autonomia da vontade, utilizando normas cogentes (imperativas), que buscam evitar práticas e cláusulas abusivas e proteger expectativas legítimas do consumidor" (Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 9ª ed., São Paulo: RT, 2022, p. 312).
Conforme observa Ricardo Luis Lorenzetti, "o surgimento da chamada 'era digital' cria a necessidade de repensar importantes aspectos da organização social", incluindo as relações contratuais virtuais, que exigem proteção específica (Comércio Eletrônico, São Paulo: RT, 2004, p. 45).
Nas palavras de Bruno Miragem, "o surgimento dos contratos eletrônicos e das relações de consumo no ambiente digital não diminui o grau de vulnerabilidade do consumidor; pelo contrário, o amplia, em razão da assimetria técnica, informacional e do maior distanciamento entre fornecedor e consumidor" (Curso de Direito do Consumidor, 8ª ed., São Paulo: RT, 2023, p. 518). Esta observação é particularmente relevante no caso em análise, onde a alteração contratual foi implementada remotamente, sem possibilidade de negociação individual.
Cláudia Lima Marques, Benjamin Herman e Bruno Miragem, em obra coletiva, identificam na contratação de serviços de streaming uma vulnerabilidade agravada do consumidor, dada a "assimetria técnica, o desconhecimento dos mecanismos tecnológicos de funcionamento do serviço e a impossibilidade prática de negociação dos termos contratuais" (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 5ª ed., São Paulo: RT, 2023, p. 412).
Portanto, inafastável a aplicação do CDC à relação jurídica em análise.
II.3.2. DA ALTERAÇÃO UNILATERAL DO CONTRATO.
A questão central da lide consiste em verificar se a inserção de anúncios publicitários interruptivos durante a exibição de conteúdo audiovisual na plataforma Prime Video, com cobrança adicional para sua remoção, configura alteração unilateral abusiva do contrato.
O art. 51, XIII, do CDC estabelece expressamente a nulidade de pleno direito das cláusulas contratuais que "autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração".
Analisando os Termos de Uso do Amazon Prime Video juntados aos autos, verifica-se que a cláusula 6.d prevê a possibilidade de modificação do serviço para: "(i) melhorar funcionalidades e/ou recursos existentes ou adicionar funcionalidades e/ou recursos novos, (ii) melhorar ou manter a experiência do usuário, (iii) efetuar mudanças técnicas razoáveis, (iv) suportar a manutenção da qualidade e a quantidade de conteúdo inclusa no Serviço ou (v) por motivos legais ou de segurança."
Embora os contratos de adesão possam conter cláusulas que prevejam alterações futuras, tais previsões devem ser interpretadas restritivamente e em consonância com os princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e do equilíbrio contratual, que são pilares do sistema de proteção contratual no CDC.
No caso em tela, a inserção de anúncios interruptivos durante a fruição de conteúdo audiovisual altera substancialmente a experiência do usuário e a própria natureza do serviço contratado, cuja característica essencial é justamente a visualização ininterrupta de filmes e séries, diferenciando-se da televisão tradicional.
Como ensina Ruy Rosado de Aguiar Júnior, as cláusulas abusivas podem ser identificadas através de "duas cláusulas gerais: a da lesão enorme e a da boa-fé objetiva", sendo nulas de pleno direito aquelas que "autorizem modificação unilateral do conteúdo após celebração" (A Boa-fé na Relação de Consumo, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 14, p. 25, abr./jun. 1995).
Como bem pontua o jurista Carlos Alberto Bittar, "a alteração unilateral das condições contratuais, em prejuízo do consumidor, fere o equilíbrio contratual e a própria essência do negócio jurídico, cujos termos devem representar a vontade de ambas as partes e não apenas do fornecedor" (Direitos do Consumidor, 7ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 167).
Na mesma linha, Paulo Lôbo destaca que "as cláusulas permissivas de alteração unilateral do contrato são, em regra, absolutamente nulas por violarem o núcleo de equidade contratual tutelado pelo CDC" (Contratos, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2022, p. 243).
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já consolidou entendimento no sentido de que "é abusiva a inclusão de novos serviços no plano [contratado] sem o consentimento do consumidor" (STJ - REsp: 1817576 RS 2019/0145471-6, Relator.: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Julgamento: 01/06/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/06/2021) , o que, por analogia, aplica-se à inclusão de anúncios publicitários em serviço anteriormente livre de interrupções.
Deve-se estabelecer uma distinção crucial entre modificação e degradação qualitativa. Uma modificação contratual legítima, no contexto de serviços digitais, poderia envolver a adição de novos recursos, a melhoria da interface do usuário, a expansão do catálogo ou a atualização de funcionalidades técnicas. Tais mudanças, em geral, não prejudicam o consumidor ou até mesmo agregam valor ao serviço. O que a Amazon implementou, no entanto, foi o oposto. A introdução de anúncios interruptivos não é um "novo recurso" ou uma "melhoria"; é a remoção de uma característica essencial e implicitamente prometida — a fruição do conteúdo audiovisual de forma contínua e imersiva —, que compunha a essência da oferta original.
Antônio Herman Benjamin, um dos autores do anteprojeto do CDC, esclarece que "a proteção contra modificações unilaterais do contrato visa justamente impedir que o fornecedor, após conquistar a preferência do consumidor, altere aspectos essenciais da contratação, frustrando a legítima expectativa formada no momento da celebração" (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 11ª ed., São Paulo: Forense, 2021, p. 376).
Essa degradação da qualidade da prestação principal viola a própria alma do contrato. Consequentemente, a cobrança adicional de R$ 10,00 não pode ser vista como um simples reajuste de preço, mas sim como o valor de um "resgate" para que o consumidor possa reaver uma qualidade que já havia sido contratada e paga.
Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer, tratando especificamente de alterações em serviços digitais, adverte que "a inclusão de publicidade em serviços anteriormente livres de anúncios representa uma alteração substancial na experiência do usuário, exigindo o consentimento expresso do consumidor, principalmente quando há cobrança adicional para retornar ao padrão original do serviço" (Defesa do Consumidor e Serviços Digitais, São Paulo: RT, 2022, p. 213).
Portanto, concluo que a inserção de anúncios interruptivos no serviço Prime Video, para contratos já existentes, configura alteração unilateral abusiva que afeta substancialmente a qualidade e o conteúdo do serviço contratado, violando o disposto no art. 51, XIII, do CDC.
II.3.3. DA QUEBRA DA BASE OBJETIVA DO NEGÓCIO JURÍDICO E VIOLAÇÃO DA CONFIANÇA LEGÍTIMA.
A conduta da Amazon também deve ser analisada sob a ótica da teoria da quebra da base objetiva do negócio jurídico, um dos mais importantes institutos de proteção ao consumidor em contratos de longa duração.
O ordenamento jurídico brasileiro contempla duas teorias principais para a revisão contratual por fatos supervenientes. O Código Civil, em seu artigo 478, adota a Teoria da Imprevisão, que exige, para a resolução do contrato, a ocorrência de "acontecimentos extraordinários e imprevisíveis" que tornem a prestação excessivamente onerosa para uma das partes, com extrema vantagem para a outra.
O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, adotou uma abordagem mais protetiva e objetiva. Em seu artigo 6º, inciso V, estabelece como direito básico do consumidor "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas".
A doutrina e a jurisprudência majoritárias entendem que o CDC se filiou à Teoria da Quebra da Base Objetiva do Negócio Jurídico. Diferentemente da Teoria da Imprevisão, esta teoria não exige que o fato superveniente seja imprevisível ou extraordinário. Basta que o evento altere as circunstâncias que formavam a "base" sobre a qual o negócio foi celebrado, rompendo o equilíbrio original e tornando a prestação excessivamente onerosa para o consumidor.
Como explica Antônio Junqueira de Azevedo, "a base objetiva do negócio compreende as circunstâncias existentes ao tempo da formação do contrato, conhecidas ou não pelos contratantes, mas objetivamente necessárias para que o contrato, segundo a vontade de ambas as partes, possa subsistir como regulamento adequado de seus interesses" (Negócio Jurídico: Existência, Validade e Eficácia, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 167).
Luís Renato Ferreira da Silva, em obra específica sobre o tema, pontua que "na teoria da base objetiva, diferentemente da teoria da imprevisão, o que importa não é a imprevisibilidade do fato superveniente, mas sim o impacto desse fato sobre o equilíbrio contratual, especialmente em contratos de execução continuada" (Revisão dos Contratos: Do Código Civil ao Código do Consumidor, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 143).
No caso do Prime Video, a ausência de publicidade interruptiva era, objetivamente, uma das bases fundamentais do negócio jurídico para a contratação do serviço. Era um diferencial que justificava a escolha do consumidor e a contraprestação paga. A alteração unilateral promovida pela Amazon quebrou essa base, impondo uma onerosidade manifesta ao consumidor, que agora se vê diante de uma escolha prejudicial: ou suporta a publicidade (um ônus na fruição do serviço) ou paga um valor adicional (um ônus financeiro) para manter o serviço como ele era.
Intimamente ligado à teoria da base do negócio está o princípio da proteção da confiança (Vertrauensschutz), um corolário direto da boa-fé objetiva (art. 4º, III, CDC). Este princípio protege a legítima expectativa do consumidor, gerada pelo comportamento do fornecedor ao longo do tempo. Ao ofertar e manter por anos um serviço de streaming sem anúncios interruptivos como parte do pacote Prime, a Amazon criou em sua base de milhões de clientes uma confiança legítima e consolidada de que essa era uma característica intrínseca e estável da assinatura.
A mudança abrupta e prejudicial, que frustra essa expectativa, configura um comportamento contraditório, conhecido no direito como venire contra factum proprium. O fornecedor, após gerar uma expectativa legítima por meio de seu comportamento anterior, não pode, posteriormente, agir de forma contrária a essa expectativa, causando prejuízo à outra parte que confiou na estabilidade da relação.
Como ensina Judith Martins-Costa, "a tutela da confiança legitima a interpretação do contrato a partir das justas expectativas criadas no aderente, permitindo a desconsideração de cláusulas abusivas que frustrem o programa contratual objetivamente considerado" (A Boa-fé no Direito Privado, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2018, p. 348).
Na mesma linha, Fernando Noronha afirma que "o princípio da confiança protege as expectativas legítimas geradas na parte mais fraca, em especial nas relações de consumo, onde o grau de confiança é potencializado pela assimetria entre os contratantes" (O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 215).
A ausência de anúncios não era um mero "não-fato" ou uma omissão; era um "silêncio qualificado" que, pelo contexto do mercado e pela prática reiterada da empresa, se tornou um elemento central e positivo da oferta. Em um mercado de mídia onde a publicidade é a regra e a principal fonte de receita, a ausência dela em um serviço pago de streaming não é um detalhe, mas um diferencial competitivo fundamental, seja ele comunicado de forma explícita ou, como no caso, implicitamente percebido e valorizado pelos consumidores.
Como bem observa Teresa Negreiros, "o silêncio contratual, quando qualificado por um contexto de expectativas legítimas, pode assumir valor positivo de manifestação, transformando-se em elemento constitutivo da base objetiva do negócio jurídico" (Teoria do Contrato: Novos Paradigmas, 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 184). É exatamente o que ocorre no presente caso.
Assim, a quebra da base objetiva do negócio e a violação da confiança legítima do consumidor reforçam a conclusão pela abusividade da alteração unilateral promovida pela Amazon.
II.3.4. DO DEVER DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO ADEQUADA.
O art. 6º, III, do CDC estabelece como direito básico do consumidor "a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem".
Um aspecto controverso do caso refere-se à comunicação da alteração contratual aos consumidores. A Amazon afirma ter comunicado seus clientes de forma "ampla e claramente" entre os dias 25 e 26 de fevereiro de 2025, informando que os filmes e séries do catálogo do Prime Video no Brasil passariam a incluir anúncios limitados a partir de 02 de abril de 2025. A empresa sustenta que isso configurou uma antecedência superior a um mês, concedendo aos clientes um prazo razoável para decidir sobre a continuidade do serviço ou o cancelamento com reembolso proporcional.
Segundo a Amazon, a notificação foi feita via e-mail, mensagens na área do cliente ("Sua conta" / "Suas mensagens") e SMS para e-mails não entregues. A empresa alega que a comunicação esclareceu que o objetivo era continuar investindo em novos conteúdos, que nenhuma providência era exigida dos usuários e que haveria uma nova opção de assinatura sem anúncios por R$10,00 adicionais.
O Ministério Público, por sua vez, argumenta que a alteração foi implementada "sem prévia e adequada comunicação". O órgão sustenta que a comunicação foi realizada em "apenas 48 horas (dias 25 e 26 de fevereiro)", o que seria insuficiente para uma mudança de tal magnitude, violando o dever de informação e transparência. O MPGO interpreta a menção da Amazon de que a comunicação ocorreu entre 25 e 26 de fevereiro como o período total de aviso, e não como o início de um período de aviso que se estenderia até 02 de abril.
Foram juntadas aos autos várias reclamações de consumidores no site "Reclame Aqui" que afirmam não terem sido comunicados previamente sobre a mudança ou que ela ocorreu sem aviso no momento da contratação. Um trecho de chat com o atendimento da Amazon, anexado ao processo, mostra um cliente antigo (desde 2021) questionando a inserção de anúncios e o atendente confirmando a comunicação de fevereiro de 2025, mas sem resolver a insatisfação do cliente com a mudança aplicada à sua conta antiga.
Cabe destacar que o Tribunal de Justiça de Goiás, em decisão preliminar no Agravo de Instrumento, observou que a Amazon "demonstrou ter comunicado seus clientes com antecedência superior a um mês", o que "em princípio, poderia afastar a alegação de violação ao dever de informação". Contudo, essa foi apenas uma análise preliminar, não vinculante para o julgamento de mérito.
A doutrina especializada, como aponta Claudia Lima Marques, enfatiza que o CDC "cria deveres de informação, transparência e boa-fé, impondo ao fornecedor obrigações claras quanto à redação e ao conteúdo dos contratos pré-elaborados" (Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 9ª ed., São Paulo: RT, 2022, p. 845).
No presente caso, independentemente do prazo formal da comunicação (se apenas 48 horas ou mais de um mês), é necessário avaliar se a informação foi adequada, clara e ostensiva, permitindo ao consumidor compreender o real impacto da alteração e tomar decisão consciente.
Não se verifica que a comunicação tenha sido suficientemente clara e ostensiva, especialmente quanto aos impactos concretos da alteração na experiência do usuário, como a quantidade, duração e frequência dos anúncios, elementos cruciais para a decisão do consumidor.
Como enfatiza Adalberto Pasqualotto, "o dever de informação no âmbito digital exige um padrão de clareza e ostensividade ainda maior, considerando o volume de comunicações e a dispersão da atenção típica das interações digitais" (Publicidade e Proteção ao Consumidor, 2ª ed., São Paulo: RT, 2019, p. 167).
Na mesma linha, Bruno Miragem pondera que "o standard de informação adequada no contexto tecnológico não se satisfaz com meras comunicações genéricas, mas exige especificidade e transparência sobre todas as alterações que possam impactar a fruição do serviço" (Curso de Direito do Consumidor, 8ª ed., São Paulo: RT, 2023, p. 328).
Sérgio Cavalieri Filho destaca que "a informação é componente necessário e essencial ao produto ou serviço, que não pode ser oferecido sem ela" (Programa de Direito do Consumidor, 6ª ed., São Paulo: Atlas, 2022, p. 98).
No caso em análise, a ausência de detalhamento sobre a quantidade, duração e frequência dos anúncios representa omissão de informação essencial que impacta diretamente a qualidade da fruição do serviço.
Rizzatto Nunes acrescenta que "o direito à informação assegurado ao consumidor tem natureza instrumental, ou seja, viabiliza o exercício da liberdade de escolha e igualdade nas contratações" (Curso de Direito do Consumidor, 14ª ed., São Paulo: Saraiva, 2022, p. 214). É precisamente essa liberdade de escolha que fica prejudicada quando informações essenciais são omitidas ou comunicadas de forma inadequada.
Ademais, a tese do consentimento tácito pela continuidade de uso do serviço não encontra amparo legal, pois, conforme lição doutrinária, "o consentimento genérico aos Termos de Uso não significa consentimento específico para inserção de propagandas interruptivas ou cobrança adicional".
Paulo Valério Dal Pai Moraes adverte que "a continuidade do uso de um serviço após modificações unilaterais não configura anuência do consumidor às novas condições, mormente em serviços essenciais ou de difícil substituição imediata, como plataformas digitais onde o consumidor já investiu tempo e recursos" (Código de Defesa do Consumidor: Princípios Gerais, 4ª ed., São Paulo: RT, 2017, p. 312). Destaquei.
A inércia de um consumidor individual, inserido em uma relação de consumo massificada e de adesão, diante de uma alteração imposta unilateralmente por uma corporação com poder de mercado avassalador, não pode ser interpretada como consentimento. Na maioria das vezes, essa inércia representa resignação, falta de compreensão das consequências ou a simples submissão a uma nova realidade contratual imposta, sobre a qual o consumidor não tem poder de negociação.
O STJ, em precedente sobre inclusão de serviços não solicitados em planos de telefonia (STJ - REsp: 1817576 RS 2019/0145471-6, Relator.: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Julgamento: 01/06/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/06/2021), rechaçou veementemente a ideia de consentimento presumido, estabelecendo que a vontade do consumidor deve ser manifesta e expressa para a modificação de condições contratuais.
Assim, concluo que houve violação ao dever de informação adequada e clara, previsto no art. 6º, III, do CDC, reforçando a abusividade da alteração unilateral promovida pela Amazon.
II.3.5. DA CONFIGURAÇÃO DE VENDA CASADA.
O Ministério Público argumenta que a cobrança adicional de R$ 10,00 para remoção dos anúncios configura venda casada, prática vedada pelo art. 39, I, do CDC.
A venda casada é definida como a prática que "condiciona a venda de um produto ou serviço à aquisição de outro", sendo considerada abusiva. Identifica-se duas modalidades: a venda casada direta (imposição explícita) e a indireta (limitação da escolha do consumidor).
No caso em análise, observo que a Amazon oferece três opções ao consumidor: (1) continuar com o serviço com anúncios pelo mesmo preço; (2) pagar valor adicional para ter o serviço sem anúncios; ou (3) cancelar a assinatura com reembolso proporcional.
Conforme ensina Leonardo Roscoe Bessa, "a venda casada pode se manifestar não apenas na forma tradicional (aquisição de um produto condicionada a outro), mas também na limitação artificial de opções, obrigando o consumidor a adquirir um 'complemento' para reaver a funcionalidade original do produto principal" (Relação de Consumo e Aplicação do Código de Defesa do Consumidor, 2ª ed., São Paulo: RT, 2009, p. 234).
Na mesma linha, Nelson Nery Jr. afirma que "a degradação artificial de um serviço seguida da oferta de sua 'recomposição' mediante pagamento adicional configura modalidade sofisticada de venda casada" (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 12ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 543).
Antônio Herman Benjamin, um dos autores do anteprojeto do CDC, esclarece que "a ratio do dispositivo é impedir que o fornecedor se utilize de sua superioridade econômica ou técnica para limitar a liberdade de escolha do consumidor, forçando-o a adquirir algo que não deseja" (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 12ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 415).
No presente caso, o consumidor é forçado a adquirir o "complemento sem anúncios" para manter o serviço nas condições originalmente contratadas.
José Geraldo Brito Filomeno pontua que "a vedação à venda casada busca preservar a liberdade de escolha do consumidor, elemento essencial da autonomia privada nos contratos de consumo" (Manual de Direitos do Consumidor, 16ª ed., São Paulo: Atlas, 2022, p. 167). A estratégia da Amazon viola essa liberdade ao criar uma situação em que o consumidor é forçado a pagar mais para manter um padrão de serviço que já possuía.
A questão controversa reside em determinar se a cobrança adicional para manter o serviço nas condições originalmente contratadas (sem anúncios) configura venda casada ou se representa mera alteração do modelo de negócio.
Considerando que o serviço originalmente contratado não contemplava anúncios interruptivos, e que agora o consumidor precisa pagar valor adicional para ter acesso ao mesmo serviço sem tais interrupções, entendo caracterizada a venda casada na modalidade indireta, pois condiciona o acesso ao serviço nas condições originais à contratação de plano mais caro.
A estratégia da Amazon se amolda à figura da venda casada "às avessas" ou "dissimulada". A empresa, em um primeiro momento, degrada o serviço principal, transformando o "Prime Video" no "Prime Video com anúncios". Em um segundo momento, ela oferece um "novo" produto: a opção "sem anúncios". O consumidor que deseja ter o serviço com a qualidade original — aquela que ele já acreditava possuir e pela qual já pagava — é condicionado a adquirir esse "serviço" adicional (o ad-free add-on) exclusivamente da própria Amazon.
Portanto, concluo pela configuração de venda casada na modalidade indireta, prática abusiva vedada pelo art. 39, I, do CDC.
II.3.6. DO CONFRONTO ENTRE LIVRE INICIATIVA E PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR.
A requerida invoca as garantias constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência para justificar as alterações implementadas em seu serviço, argumentando que essas seriam prerrogativas da empresa no exercício de sua atividade econômica.
No entanto, como bem observa Rodolfo de Camargo Mancuso, "a invocação da livre iniciativa como fundamento para práticas comerciais não pode servir de escudo para condutas que desrespeitem os demais valores constitucionais, como a defesa do consumidor, também elencada como princípio da ordem econômica (art. 170, V, da CF). A interpretação constitucional exige a harmonização desses valores, sem que um anule o outro" (Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir, 10ª ed., São Paulo: RT, 2018, p. 274).
Herman Benjamin, ao analisar a tensão entre livre iniciativa e proteção do consumidor, pondera que "a Constituição Federal, ao erigir tanto a livre iniciativa quanto a defesa do consumidor à categoria de princípios da ordem econômica, estabeleceu entre eles uma relação não de exclusão, mas de complementaridade. A livre iniciativa não é absoluta, encontrando limites nos demais valores constitucionais, notadamente na proteção da parte vulnerável nas relações de consumo" (O Controle Jurídico da Publicidade. In: MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Orgs.). Direito do Consumidor: proteção da confiança e práticas comerciais. São Paulo: RT, 2018, p. 113).
No mesmo sentido, observa Ricardo Luis Lorenzetti que "a livre iniciativa econômica encontra limites na função social do contrato e na boa-fé objetiva, princípios que orientam a interpretação das relações negociais no Estado Democrático de Direito" (Teoria da Decisão Judicial: fundamentos de direito, 2ª ed., São Paulo: RT, 2018, p. 189).
Cláudia Lima Marques acrescenta: "No Estado Social e Democrático de Direito, a liberdade econômica é garantida, mas não de forma absoluta. A livre iniciativa deve ser exercida dentro dos contornos estabelecidos pelo ordenamento jurídico, notadamente pelos princípios de proteção ao consumidor. A autonomia privada, especialmente em contratos de adesão e nas relações de consumo massificadas, encontra limites na função social do contrato e na proteção da confiança" (A Proteção do Consumidor: Aspectos de Direito Privado Regional e Geral. In: Curso de Direito Internacional - OEA, 2017, p. 657).
Merece destaque o fato, ressaltado pelo Ministério Público, de que outros fornecedores dos mesmos serviços de streaming, ao adotarem prática semelhante, não alteraram os contratos vigentes (mantendo os contratos antigos como "padrão"), limitando-se a incluir duas novas modalidades de assinatura para novos contratos (com anúncios e sem anúncios "premium", "ouro", "platinum"), possibilitando a escolha aos novos consumidores, sem afetar os contratos em vigor.
Esta conduta alternativa adotada por concorrentes demonstra que existem meios menos gravosos para a implementação da estratégia comercial pretendida pela requerida, respeitando direitos adquiridos e a legítima expectativa dos consumidores, o que reforça o caráter abusivo da prática adotada pela Amazon.
Sobre as alternativas contratuais possíveis, ensina Bruno Miragem: "A boa-fé objetiva impõe ao fornecedor o dever de adotar, dentre as alternativas contratuais possíveis, aquela que cause menor restrição aos direitos e interesses legítimos do consumidor, respeitando a justa expectativa formada pela relação negocial. A existência de práticas menos gravosas no mesmo segmento de mercado constitui indício relevante da desproporcionalidade e abusividade da conduta que causa maior prejuízo ao consumidor" (Curso de Direito do Consumidor, 8ª ed., São Paulo: RT, 2020, p. 413).
Assim, mesmo considerando os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, a conduta da Amazon não se mostra justificável, pois existem alternativas menos gravosas para alcançar os mesmos objetivos econômicos sem violar os direitos básicos dos consumidores e frustrar suas legítimas expectativas.
II.3.7. DO DANO MORAL COLETIVO.
O Ministério Público postula a condenação da requerida ao pagamento de indenização por danos morais coletivos, decorrentes da prática abusiva.
Segundo entendimento do STJ, o dano moral coletivo é "categoria autônoma de dano que não se identifica com os tradicionais atributos da pessoa humana ", sendo "aferível in re ipsa" e exigindo "lesão a valores fundamentais da sociedade e se essa vulneração ocorrer de forma injusta e intolerável." (STJ - REsp: 1502967 RS 2014/0303402-4, Relator.: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 07/08/2018, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/08/2018).
Como leciona Carlos Alberto Bittar Filho, "este dano é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos" (Do Dano Moral Coletivo no Atual Contexto Jurídico Brasileiro, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 12, p. 55, out./dez. 1994).
Na mesma linha, Xisto Tiago de Medeiros Neto pontua que "o dano moral coletivo se configura quando há violação a valores e interesses transindividuais socialmente relevantes, independentemente de repercussão subjetiva em pessoas determinadas" (Dano Moral Coletivo, 5ª ed., São Paulo: LTr, 2022, p. 137).
Leonardo Roscoe Bessa, por sua vez, esclarece que "o dano moral coletivo não se vincula necessariamente a algum abalo psicológico da coletividade, mas sim à violação de valores essenciais compartilhados, que transcendem a soma dos interesses individuais dos consumidores lesados" (Dano Moral Coletivo, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 59, p. 109, jul./set. 2006).
André de Carvalho Ramos destaca que "a coletividade, mesmo não sendo dotada de personalidade jurídica, ostenta valores morais e possui patrimônio ideal que merece proteção" (A Ação Civil Pública e o Dano Moral Coletivo, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 25, p. 85, jan./mar. 1998).
No caso em tela, embora verificada a abusividade da prática adotada pela requerida, não identifico ofensa de tal magnitude a valores éticos fundamentais da sociedade que justifique a condenação por danos morais coletivos.
A alteração contratual, ainda que abusiva, não ultrapassou os limites da esfera patrimonial e contratual, sem atingir gravemente a dignidade coletiva ou causar abalo moral significativo à comunidade como um todo. Trata-se de violação contratual que, embora passível de sanção e correção pelos mecanismos do próprio CDC, não atinge o patamar de ofensa à moralidade pública exigido pela jurisprudência para a configuração do dano moral coletivo.
Como bem pontua Sérgio Cavalieri Filho, "para a configuração do dano moral coletivo, exige-se que a conduta antijurídica atinja valores e interesses coletivos fundamentais de forma particularmente intensa, ultrapassando os limites da tolerabilidade social" (Programa de Responsabilidade Civil, 14ª ed., São Paulo: Atlas, 2020, p. 143). No presente caso, embora a conduta da Amazon seja reprovável e abusiva, não se vislumbra essa particular intensidade na ofensa a valores coletivos fundamentais.
Portanto, improcede o pedido de condenação por danos morais coletivos.
II.3.8. DA EXTENSÃO TERRITORIAL DOS EFEITOS DA DECISÃO.
No caso em análise, o dano causado pela prática abusiva da requerida estende-se por todo o território nacional, atingindo consumidores em todas as unidades da federação, o que justifica a abrangência nacional da decisão.
Ademais, seria contraproducente e violaria o princípio da isonomia limitar os efeitos da decisão apenas aos consumidores residentes no Estado de Goiás, mantendo a prática abusiva para os demais consumidores brasileiros.
Assim, considerando a natureza da relação jurídica controvertida, a extensão do dano e a qualidade dos interesses tutelados, determino que os efeitos desta decisão alcancem todos os consumidores brasileiros afetados pela prática abusiva da requerida, independentemente de sua localização geográfica.
II.3.9. DA TUTELA DEFINITIVA..
Reconhecida a abusividade da alteração unilateral do contrato, a violação da confiança legítima, a insuficiência da comunicação aos consumidores e a configuração de venda casada, impõe-se a concessão da tutela definitiva para:
a) Determinar que a requerida suspenda a veiculação de propagandas interruptivas para todos os consumidores que contrataram o serviço antes da implementação dessa prática;
b) Determinar que a requerida se abstenha de cobrar qualquer valor adicional desses consumidores para a remoção das propagandas interruptivas;
c) Determinar que a requerida mantenha o preço originalmente contratado para os consumidores que aderiram ao serviço antes da implementação das propagandas, sem qualquer degradação da qualidade do serviço;
d) Determinar que a requerida comunique de forma clara, destacada e individualizada a todos os seus clientes sobre as determinações judiciais e os direitos assegurados;
e) Determinar que a requerida disponibilize canal específico de atendimento para esclarecimentos e solução de problemas relacionados a esta demanda;
f) Quanto aos contratos novos, determinar que a requerida informe precisamente a quantidade, duração e frequência das publicidades e propagandas, e de que modo serão inseridas (antes ou durante vídeos).
II.3.10. DA REPETIÇÃO DO INDÉBITO.
O Ministério Público postula a restituição em dobro dos valores adicionais já pagos pelos consumidores para a remoção dos anúncios.
O art. 42, parágrafo único, do CDC estabelece que "o consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável".
No caso em análise, tendo sido reconhecida a abusividade da cobrança adicional para remoção dos anúncios, os valores pagos pelos consumidores a este título são indevidos e, portanto, sujeitos à repetição.
Contudo, considerando a existência de controvérsia jurídica razoável sobre o tema, bem como a aparente boa-fé da requerida, que se baseou em cláusula contratual para implementar a alteração, entendo caracterizado o engano justificável, o que afasta a incidência da dobra legal.
Como observa Leonardo Roscoe Bessa, "a repetição em dobro pressupõe a inexistência de engano justificável, caracterizado por erro que, nas circunstâncias do caso, podia ser razoavelmente cometido pelo fornecedor" (Manual de Direito do Consumidor, 9ª ed., São Paulo: RT, 2021, p. 343).
Na mesma linha, Bruno Miragem destaca que "a existência de interpretação jurídica controversa pode caracterizar o engano justificável, afastando a sanção da dobra" (Curso de Direito do Consumidor, 8ª ed., São Paulo: RT, 2023, p. 427).
Fábio Ulhoa Coelho esclarece que "o engano justificável que afasta a repetição em dobro é aquele decorrente de erro plenamente escusável, não provocado por dolo ou culpa grave do fornecedor" (Curso de Direito Comercial, 24ª ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 304).
No caso em tela, a controvérsia jurídica sobre a validade da alteração, inclusive com posições doutrinárias em sentidos diversos, caracteriza o engano justificável.
Assim, determino a restituição simples dos valores adicionais pagos pelos consumidores para a remoção dos anúncios, observando os critérios de atualização monetária e juros definidos pela Lei 14.905/2024, que alterou o regime de correção monetária e juros de mora no ordenamento jurídico brasileiro.
II.3.11. DA MULTA DIÁRIA (ASTREINTES).
Para garantir a efetividade da presente decisão, impõe-se a fixação de multa diária (astreintes) em caso de descumprimento, nos termos do art. 537 do Código de Processo Civil e do art. 84, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor.
A fixação do valor da multa deve observar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, considerando, de um lado, a necessidade de conferir efetividade à decisão judicial e, de outro, evitar o enriquecimento sem causa.
No caso em análise, considerando o porte econômico da requerida, empresa multinacional de grande capacidade financeira, o potencial lucro auferido com a prática considerada abusiva e a extensão do dano causado a milhões de consumidores, entendo adequada e proporcional a fixação de multa diária no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).
O valor fixado tem caráter coercitivo e dissuasório, visando compelir a requerida ao cumprimento da obrigação, sem, contudo, mostrar-se excessivo a ponto de inviabilizar sua atividade econômica. A limitação da multa ao valor total de R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais) também atende ao princípio da proporcionalidade, evitando que eventual demora no cumprimento da obrigação resulte em montante desproporcional.
Ressalto que, nos termos do art. 537, § 2º, do CPC, o valor da multa será devido ao exequente, no caso, o Ministério Público. Contudo, por se tratar de ação civil pública em defesa de interesses difusos e coletivos, o montante eventualmente arrecadado a título de astreintes deverá ser revertido ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, conforme previsto no art. 13 da Lei nº 7.347/85.
III – DISPOSITIVO.
Ante o exposto, REJEITO a preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público e, no mérito, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTES os pedidos formulados na inicial para:
DECLARAR abusiva a alteração unilateral do contrato consistente na inserção de propagandas publicitárias interruptivas em filmes e séries do serviço de streaming "Prime Video", com cobrança adicional para sua remoção, para consumidores que haviam contratado o serviço anteriormente à implementação da referida prática;
DETERMINAR que a requerida, no prazo de 30 (trinta) dias:
a) SUSPENDA a veiculação de propagandas que interrompam a exibição de filmes e demais conteúdos audiovisuais para todos os consumidores que contrataram o serviço antes da implementação desta prática;
b) ABSTENHA-SE de cobrar qualquer valor adicional dos consumidores para a remoção das propagandas interruptivas nos contratos firmados antes da implementação desta prática;
c) MANTENHA o preço originalmente contratado para os consumidores que aderiram ao serviço antes da implementação das propagandas, sem qualquer degradação da qualidade do serviço;
d) COMUNIQUE de forma clara, destacada e individualizada a todos os seus clientes sobre as determinações judiciais e os direitos assegurados;
e) DISPONIBILIZE canal específico de atendimento (via email e no site) para esclarecimentos e solução de problemas relacionados a esta demanda;
f) APRESENTE ao Ministério Público e ao PROCON-GO, no prazo de 60 (sessenta) dias, relatório detalhado com as medidas adotadas para cumprimento desta decisão, incluindo comprovação da comunicação individualizada aos consumidores;
DETERMINAR que, para contratos novos, a requerida informe precisamente a quantidade, duração e frequência das publicidades e propagandas, e de que modo serão inseridas (antes ou durante vídeos), especificando:
a) Para "planos com anúncios": quantidade exata de anúncios por conteúdo, duração precisa (minutos e segundos) de cada interrupção, frequência das interrupções, e variações por tipo de conteúdo;
b) Para "planos sem anúncios": garantia expressa de fruição ininterrupta do conteúdo;
CONDENAR a requerida à restituição simples dos valores adicionais pagos pelos consumidores para a remoção dos anúncios, corrigidos pelo IPCA/IBGE desde a data de cada desembolso e acrescidos de juros moratórios calculados conforme a "taxa legal" (diferença entre a Taxa SELIC e o IPCA do mesmo período, nos termos do art. 406, § 1º, do Código Civil, com redação dada pela Lei 14.905/2024) a partir da citação, observada a metodologia definida pelo Conselho Monetário Nacional (Resolução CMN 5.171/2024);
JULGAR IMPROCEDENTE o pedido de condenação por danos morais coletivos.
Em caso de descumprimento de qualquer das determinações acima, fixo multa diária de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), limitada a R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais), sem prejuízo de outras medidas coercitivas que se fizerem necessárias. O valor das astreintes, se efetivamente devido e cobrado, será destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, nos termos do art. 13 da Lei nº 7.347/85.
Considerando que o Ministério Público, na qualidade de autor da Ação Civil Pública, atua na defesa de interesses coletivos e goza de isenção legal (art. 18 da Lei nº 7.347/85), bem como a sucumbência mínima do Parquet (apenas o pedido de dano moral coletivo foi rejeitado), condeno a requerida ao pagamento integral das custas processuais e honorários advocatícios, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, a serem revertidos ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, conforme previsto no art. 13 da Lei nº 7.347/85.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Goiânia, data da assinatura eletrônica.
MARCELO PEREIRA DE AMORIM
Juiz de Direito da 21ª Vara Cível de Goiânia
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