Processo nº 1001024-92.2025.8.11.0000
ID: 259421507
Tribunal: TJMT
Órgão: Quinta Câmara de Direito Privado
Classe: AGRAVO DE INSTRUMENTO
Nº Processo: 1001024-92.2025.8.11.0000
Data de Disponibilização:
23/04/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
DANIEL FERNANDES TEIXEIRA
OAB/MT XXXXXX
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ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO QUINTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO Número Único: 1001024-92.2025.8.11.0000 Classe: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Assunto: [Obrigação de Fazer / Não Fazer, Tratament…
ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO QUINTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO Número Único: 1001024-92.2025.8.11.0000 Classe: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Assunto: [Obrigação de Fazer / Não Fazer, Tratamento médico-hospitalar, Fornecimento de medicamentos] Relator: Des(a). MARCOS REGENOLD FERNANDES Turma Julgadora: [DES(A). MARCOS REGENOLD FERNANDES, DES(A). LUIZ OCTAVIO OLIVEIRA SABOIA RIBEIRO, DES(A). SEBASTIAO DE ARRUDA ALMEIDA] Parte(s): [DANIEL FERNANDES TEIXEIRA - CPF: 618.238.301-10 (ADVOGADO), D. S. R. - CPF: 093.146.621-01 (AGRAVANTE), HAPVIDA ASSISTENCIA MEDICA LTDA - CNPJ: 63.554.067/0001-98 (AGRAVADO), SIMONE RODRIGUES SOARES - CPF: 002.031.781-65 (REPRESENTANTE/NOTICIANTE), MINISTERIO PUBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO - CNPJ: 14.921.092/0001-57 (CUSTOS LEGIS), ANDRE MENESCAL GUEDES - CPF: 021.658.613-57 (ADVOGADO)] A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos os autos em epígrafe, a QUINTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, sob a Presidência Des(a). SEBASTIAO DE ARRUDA ALMEIDA, por meio da Turma Julgadora, proferiu a seguinte decisão: POR UNANIMIDADE, PROVEU O RECURSO. E M E N T A DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PLANO DE SAÚDE. TRATAMENTO MULTIDISCIPLINAR DE CRIANÇA COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA. CUSTEIO FORA DA REDE CREDENCIADA. IMPOSSIBILIDADE DE DESLOCAMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. RECURSO PROVIDO. I. Caso em exame 1. Agravo de Instrumento interposto por D. S. R., menor impúbere representado por sua genitora, Simone Rodrigues Soares, contra decisão que indeferiu pedido de tutela de urgência para compelir a operadora de plano de saúde HAPVIDA ASSISTÊNCIA MÉDICA LTDA. a custear tratamento multidisciplinar contínuo e intensivo em clínica especializada localizada no Município de Alto Garças/MT, onde reside o agravante, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (CID F84.0), TDAH (CID F90.0) e TAG (CID F41.1). A decisão impugnada limitou-se a reconhecer a obrigatoriedade da operadora em oferecer transporte para atendimento em Rondonópolis/MT, cidade distante 130 km, por ser integrante da área de abrangência do plano. A parte agravante sustentou, em síntese, a inviabilidade do deslocamento diário em razão do comprometimento cognitivo severo do menor, com quadros de auto e heteroagressão, requerendo o custeio do tratamento no domicílio, ainda que fora da rede credenciada. II. Questão em discussão 2. As questões em discussão consistem em: (i) definir se é possível compelir plano de saúde a custear tratamento multidisciplinar fora da rede credenciada, diante da inexistência de prestadores habilitados no município de residência do beneficiário; (ii) estabelecer se o deslocamento diário de longa distância, incompatível com o quadro clínico do paciente, pode ser equiparado à negativa de cobertura contratual. III. Razões de decidir 3. A relação contratual entre as partes é regida pelo Código de Defesa do Consumidor, nos termos da Súmula n. 608 do STJ, o que impõe a interpretação das cláusulas contratuais de forma mais favorável ao consumidor, especialmente por se tratar de contrato de adesão. 4. Crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista têm direito a atendimento multiprofissional contínuo e intensivo, conforme previsto na Lei n. 12.764/2012, no Estatuto da Criança e do Adolescente e em resoluções da ANS, notadamente as Resoluções Normativas n. 539/2022 e 541/2022. 5. A Resolução Normativa n. 566/2022 da ANS impõe à operadora o dever de custear transporte para atendimento em municípios da região de saúde, mas o art. 8º da norma exige compatibilidade do transporte com a condição de saúde do beneficiário. 6. O deslocamento diário de 270 km (ida e volta), em razão da distância entre Alto Garças/MT e Rondonópolis/MT, é incompatível com a condição de saúde do agravante, tornando a exigência inviável e prejudicial ao tratamento contínuo necessário. 7. A negativa de custeio do tratamento no domicílio, diante da inviabilidade do deslocamento, configura verdadeira recusa de cobertura, contrariando os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção integral da criança e da função social do contrato. 8. O Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça do Mato Grosso reconhecem a obrigatoriedade de cobertura de tratamentos multidisciplinares para pessoas com TEA, inclusive fora da rede credenciada, quando inexistente alternativa viável. IV. Dispositivo e tese 9. Recurso provido. Tese de julgamento: 1. O plano de saúde deve custear tratamento multidisciplinar fora da rede credenciada quando demonstrada a inexistência de prestador habilitado no município de residência do beneficiário. 2. A exigência de deslocamento diário incompatível com o quadro clínico do paciente com TEA configura, na prática, negativa de cobertura. 3. A interpretação das obrigações contratuais dos planos de saúde deve observar os princípios da dignidade da pessoa humana, da função social do contrato e da proteção integral da criança. Dispositivos relevantes citados: CF, arts. 1º, III, e 227; CDC, arts. 3º, §2º, 4º, 6º, 47 e 51, IV; ECA, arts. 4º e 7º; Lei n. 12.764/2012, arts. 1º, §2º, 2º, III, e 3º, III, “b”; Resolução Normativa ANS n. 566/2022, arts. 4º e 8º; Resolução Normativa ANS n. 539/2022; Resolução Normativa ANS n. 541/2022; CPC, art. 300. Jurisprudência relevante citada: STJ, AgInt no REsp 1917411/RJ, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, j. 02.10.2023, DJe 05.10.2023; TJMT, RAI 1001091-91.2024.8.11.0000, Rel. Desa. Marilsen Andrade Addario, 2ª Câmara de Direito Privado, j. 24.04.2024, DJe 06.05.2024. R E L A T Ó R I O EXMO. SR. DES. MARCOS REGENOLD FERNANDES Egrégia Câmara: Trata-se de Agravo de Instrumento interposto por D. S. R., menor impúbere representado por sua genitora SIMONE RODRIGUES SOARES, contra r. decisão proferida pelo d. Juízo da Vara Única da Comarca de Alto Garças/MT, nos autos da Ação de Obrigação de Fazer com Pedido de Tutela de Urgência cumulada com Danos Morais n. 1000991-31.2024.8.11.0035 ajuizada em face de HAPVIDA ASSISTÊNCIA MÉDICA LTDA., que indeferiu o pedido de tutela de urgência que objetivava compelir a operadora de plano de saúde a custear tratamento multidisciplinar em clínica especializada no município de Alto Garças/MT, para o cuidado de Transtorno do Espectro Autista (CID F84.0), Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (CID F90.0) e Transtorno de Ansiedade Generalizada (CID F41.1) (vide ID. 263272297). Em suas razões recursais, o Agravante sustenta, em síntese, que: (i) é beneficiário do plano de saúde da HAPVIDA, com todas as carências cumpridas, tendo celebrado o contrato em 01/06/2019; (ii) foi diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (CID F84.0), Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (CID F90.0) e Transtorno de Ansiedade Generalizada (CID F41.1), apresentando comprometimento cognitivo severo, com quadros constantes de autoagressão e heteroagressão; (iii) necessita de tratamento multidisciplinar contínuo e intensivo com diversos profissionais, conforme prescrição médica; (iv) a operadora negou a cobertura para o tratamento na cidade de residência do menor, oferecendo apenas o atendimento em Rondonópolis/MT; (v) o deslocamento diário de mais de 270 km (ida e volta) é incompatível com sua condição de saúde, tornando inviável o tratamento devido ao risco de crises de autoagressão durante as viagens. Argumenta, ainda, que a decisão recorrida violou: (a) a boa-fé objetiva e a função social do contrato, pois a operadora tinha ciência da localidade de residência do beneficiário quando da contratação; (b) o princípio da não discriminação, ao impor ao Agravante condições de acesso ao tratamento que não seriam exigidas de outros beneficiários sem suas limitações; (c) a dignidade da pessoa humana e a proteção integral da criança, ao priorizar a restrição geográfica do contrato em detrimento da saúde do menor; (d) a proporcionalidade e razoabilidade, ao exigir deslocamentos excessivos e prejudiciais ao tratamento. Com essas considerações, requereu a concessão de efeito ativo ao recurso para que a operadora seja compelida a custear imediatamente o tratamento multidisciplinar em clínica especializada no município de Alto Garças/MT, ainda que fora da rede credenciada. Com essas considerações, requereu, primeiramente, a concessão de efeito ativo ao recurso para que a operadora seja compelida a custear imediatamente o tratamento multidisciplinar em clínica especializada no município de Alto Garças/MT, ainda que fora da rede credenciada. No mérito, requer o total provimento do recurso para que seja reformado o r. decisum, garantindo direito do agravante ao custeio integral. A tutela antecipada recursal foi deferida no ID. 263681793. Contrarrazões apresentadas no ID. 268568283, refutando as teses recursais e pugnando, ao final, o desprovimento do recurso. A d. Procuradoria-Geral de Justiça, em seu parecer de ID. 275998898, manifestou-se pelo provimento do recurso, entendendo pela manutenção do tratamento multidisciplinar fora da rede credenciada quando demonstrada a inexistência de alternativa eficaz e risco de prejuízo ao beneficiário, especialmente em casos de Transtorno do Espectro Autista. Recurso tempestivo e dispensado do preparado (ID. 263333274). É o relatório. Inclua-se em pauta de julgamento. V O T O R E L A T O R EXMO. SR. DES. MARCOS REGENOLD FERNANDES (RELATOR) Colenda Câmara: Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do agravo de instrumento. Inicialmente, cumpre consignar que o agravo de instrumento é um recurso secundum eventum litis, ou seja, tem a sua matéria de análise restrita ao acerto ou desacerto técnico da decisão recorrida, não podendo extrapolar para a matéria de fundo e nem para as que não foram deduzidas em primeiro grau, sob pena de supressão de instância. Dito isso, na origem, a decisão agravada assim fundamentou: “(...)No presente caso, infere-se dos autos que o requerente foi diagnosticado inicialmente com atraso da fala – dispraxia (CID F80) com comportamento hipercinético, apontando suspeita de TDAH (CID F90) e comportamento disruptivo de pequena monta. Para escorreita avaliação e conclusão do diagnóstico e consequente tratamento adequado ao seu caso, prescreveu a necessidade de reavaliação a cada 04 (quatro) meses. Ante a ausência de prestador da rede credenciada pelo plano de saúde apto a realizar o tratamento nesta comarca de Alto Garças/MT onde o infante reside, o tratamento está sendo realizado na cidade de Rondonópolis/MT. Contudo, o infante e sua família não dispõem das condições necessárias para a realização do transporte entre os municípios. À vista disso, procuraram o Município e o Estado, os quais se recusaram a fornecer o transporte, aduzindo, em síntese, ser de competência do plano de saúde o custeio do transporte. Pois bem. O artigo 16, inciso X, da Lei ne 9.656/98 dispõe que, dos contratos, regulamentos ou condições gerais dos planos privados de assistência à saúde devem constar dispositivos que indiquem com clareza, dentre outros, a área geográfica de abrangência, a qual, de acordo com a ANS, corresponde à área em que a operadora fica obrigada a garantir todas as coberturas de assistência à saúde contratadas pelo beneficiário, podendo ser nacional, estadual, grupo de estados, municipal ou grupo de municípios (art. 1º, § 1º, I, da Resolução Normativa 259/2011 – atual art. 1º, § 1º, I, da Resolução Normativa 566/2022 da ANS). O art. 2º da Resolução Normativa 566/2022 da ANS, por sua vez, dispõe que a operadora deverá garantir o atendimento integral das coberturas no município onde o beneficiário os demandar, desde que seja integrante da área geográfica de abrangência e da área de atuação do produto. Todavia, seria inviável exigir que as operadoras de planos de saúde mantenham, em todos os municípios brasileiros, todas as coberturas de assistência à saúde contratadas por seus beneficiários. Na hipótese de indisponibilidade ou inexistência de prestador no município pertencente à área geográfica de abrangência e à área de atuação do produto, caberá à operadora, no prazo regulamentar, garantir o atendimento em: (a) prestador não integrante da rede assistencial no município de demanda; ou (b) prestador, integrante ou não da rede assistencial, em município limítrofe ao município de demanda; ou (c) prestador, integrante ou não da rede assistencial, em município não limítrofe ao município de demanda, mas integrante da mesma região de saúde deste, garantindo o transporte – ida e volta – do beneficiário; ou (d) prestador, integrante ou não da rede assistencial, em município não integrante da região de saúde do município de demanda, garantindo o transporte – ida e volta – do beneficiário (art. 4º da Resolução Normativa 566/2022 da ANS). (...) No caso em tela, o plano de saúde informou ao requerente que ‘conforme verificado, diante do site oficial da ANS, o plano da beneficiaria não oferece área de atuação para a cidade de alto garças, será impossibilitado da mesma realizar a consulta e solicitar o reembolso pois será negado, sendo assim, a região saúde para a mesma seria a cidade de Rondonópolis, cujo local a mesma já esta realizando a terapia.’. (ID 177078449). Logo, o que se observa é que há prestador integrante da rede assistencial que oferece o serviço demandado no município pertencente a região de saúde, qual seja, Rondonópolis/MT. Neste caso, conforme artigos 4º, 5º, 8º, 9º e 10 da Resolução Normativa 566/2022 supratranscritos, caberá à operadora, no prazo regulamentar, garantir o transporte – ida e volta – do beneficiário. (...) Conclui-se, portanto, que se o requerente é beneficiário de plano de saúde e que se a operadora não dispõe de prestador na rede assistencial no município da demanda, cabe à operadora o transporte do beneficiário para realização do tratamento onde ofereça o serviço ou procedimento demandado e não compelir a operadora a fornecer tratamento no município do requerente. Posto isso, com base na motivação supra, INDEFIRO o pedido de tutela provisória de urgência.” (vide ID. 263272297). Pois bem. De início, imperioso reconhecer que a relação jurídica estabelecida entre as partes é inegavelmente de consumo, conforme dispõe o art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, que inclui expressamente as atividades de natureza securitária no conceito de serviço. Tal entendimento, aliás, encontra-se sedimentado na Súmula n. 608 do Superior Tribunal de Justiça, que estabelece: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão”. Dessa forma, a controvérsia deve ser solucionada à luz do Código de Defesa do Consumidor, considerando-se os princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva e da vulnerabilidade do consumidor, que se encontra em posição de desvantagem técnica, jurídica e fática em relação ao fornecedor. Nesse contexto, é notório que os contratos de planos de saúde são tipicamente contratos de adesão, nos quais as cláusulas são previamente estipuladas pelo fornecedor, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo. Por essa razão, a interpretação das cláusulas contratuais deve ser feita de maneira mais favorável ao consumidor, conforme determina o art. 47 do CDC. Ademais, por força do art. 51, IV, do CDC, são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que colocam o consumidor em desvantagem exagerada, ou que sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade. Além da legislação consumerista, vê-se que o caso em análise demanda a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), bem como dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e da proteção integral da criança e do adolescente (art. 227 da CF). Importante sublinhar que o art. 227 da Constituição Federal estabelece como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, entre outros, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. No mesmo sentido, o art. 4º do ECA reafirma esse dever e acrescenta que a garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Ainda, o art. 7º do ECA estabelece que: “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.” Tais dispositivos legais e constitucionais evidenciam a especial proteção que deve ser conferida às crianças e adolescentes, inclusive no âmbito das relações privadas, como é o caso dos contratos de planos de saúde. Aliado a isso, merece destaque também a Lei n. 12.764/2012, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, reconhecendo a pessoa com transtorno do espectro autista como pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais (art. 1º, § 2º). A referida lei estabelece, em seu art. 2º, III, como diretriz da Política Nacional, “a atenção integral às necessidades de saúde da pessoa com transtorno do espectro autista, objetivando o diagnóstico precoce, o atendimento multiprofissional e o acesso a medicamentos e nutrientes”. Ademais, o art. 3º, III, “b”, assegura à pessoa com transtorno do espectro autista o direito ao acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades de saúde, incluindo: o atendimento multiprofissional. Tais disposições normativas evidenciam a proteção especial conferida pelo ordenamento jurídico às pessoas com transtorno do espectro autista, assegurando-lhes o direito ao atendimento multiprofissional e à atenção integral às suas necessidades de saúde. Não se pode olvidar, ainda, que a própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) editou resoluções normativas que ampliaram significativamente a cobertura assistencial para usuários de planos de saúde com Transtorno do Espectro Autista e outros transtornos globais do desenvolvimento. Nesse particular, a Resolução Normativa n. 539/2022 da ANS tornou expressamente obrigatória a cobertura para qualquer método ou técnica indicada pelo médico assistente para o tratamento de pacientes com qualquer transtorno enquadrado como transtorno global do desenvolvimento (CID F84), incluindo o Transtorno do Espectro Autista. Posteriormente, por meio da Resolução Normativa n. 541/2022, aprovada em 11/07/2022, a ANS eliminou o limite de consultas e sessões com psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas para os beneficiários de planos de saúde diagnosticados com qualquer doença ou condição de saúde listada pela Organização Mundial de Saúde. Essas normativas ampliaram consideravelmente o escopo da cobertura obrigatória para tratamentos multidisciplinares, estabelecendo de forma inequívoca o dever de custeio, pela operadora de plano de saúde, de quaisquer métodos ou técnicas indicadas pelo médico assistente, sem limitação de sessões. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente reconhecido a obrigatoriedade de cobertura de sessões ilimitadas para tratamento multidisciplinar, independentemente do método indicado pelo médico assistente. A propósito: “AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL E CONSUMIDOR. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZATÓRIA. PLANO DE SAÚDE. NEGATIVA DE COBERTURA. CRIANÇA COM ENCEFALOPATIA E PARALISIA CEREBRAL ESPÁSTICA. SESSÕES DE TERAPIA MULTIDISCIPLINAR. OBRIGATORIEDADE DE COBERTURA. RECUSA ABUSIVA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. Superveniência de normas regulamentares de regência e de determinações da ANS que tornaram expressamente obrigatória a cobertura de número ilimitado de sessões para tratamento multidisciplinar com psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas para os beneficiários de planos de saúde diagnosticados com qualquer doença ou condição de saúde listada pela Organização Mundial de Saúde, independentemente do método indicado pelo médico assistente (RN-ANS nº 541/2022). 2. No caso, o Tribunal a quo consignou expressamente ser incontroversa a necessidade de a paciente ser submetida ao tratamento multidisciplinar prescrito pelo médico, de modo que a recusa do plano de saúde, na hipótese, se mostra abusiva. 3. Agravo interno desprovido.” (STJ. AgInt no REsp: 1917411 RJ 2021/0017547-6. Relator Min. Raul Araújo, Quarta Turma. Julgamento: 02/10/2023, DJe: 05/10/2023). Perfilhando esse entendimento, em situação absolutamente análoga à presente, este Sodalício assentou em recente julgado: “RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER - PLANO DE SAÚDE – TUTELA CONCEDIDA - MENOR DIAGNOSTICADO COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA - AUSÊNCIA DE PROFISSIONAIS NA REDE CREDENCIADA PARA A REALIZAÇÃO DAS TERAPIAS - ALEGAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DO TRATAMENTO EM COMARCA LIMÍTROFE - INVIABILIDADE - DISTÂNCIA ENTRE AS CIDADES DE 137 KM QUE OBSTACULIZA O TRATAMENTO - CUSTEIO DE FORMA PARTICULAR - EXISTÊNCIA DE PSICÓLOGO ABA NA REDE CONVENIADA - DEMONSTRAÇÃO - DECISÃO REFORMADA - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. A teor de julgamentos recentes do STJ e de normativa da ANS, a operadora de plano de saúde deverá disponibilizar tratamento amplo ao portador de Transtorno do Espectro Autista. A despeito da operadora do plano de saúde insistir que possui os especialistas em sua rede de credenciados disponibilizadas em clínicas na capital mato-grossense, tal circunstância inviabiliza o tratamento do menor que reside em Campo Verde, cidade distante a 137 quilômetros, assim, deve o plano de saúde ser compelido a custear o tratamento na cidade onde o menor reside, preferencialmente, nas clínicas onde já realiza o tratamento. Por outro lado, comprovado pela requerida que possui Psicólogo especialista em ABA em seus quadros de conveniados, a terapia deverá se dar na rede credenciada.” (TJ/MT. RAI 10010919120248110000. Relatora Desa. Marilsen Andrade Addario, Segunda Câmara de Direito Privado. Julgamento: 24/04/2024, DJe: 06/05/2024). Analisando o caso concreto à luz do arcabouço normativo e jurisprudencial acima exposto, constato a presença dos requisitos para a concessão da tutela de urgência, nos termos do art. 300 do CPC. In casu, a probabilidade do direito está evidenciada pelos documentos juntados aos autos, que comprovam: (a) a condição de beneficiário do plano de saúde operado pela Agravada; (b) o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (CID F84.0), Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (CID F90.0) e Transtorno de Ansiedade Generalizada (CID F41.1); (c) a prescrição médica para tratamento multidisciplinar contínuo e intensivo; (d) a inexistência de prestadores credenciados no município de residência do Agravante; (e) a inviabilidade, no caso concreto, do deslocamento diário para a cidade de Rondonópolis/MT, distante 130 km. Como registrado alhures, a jurisprudência consolidada do STJ e a normativa da ANS estabelecem a obrigatoriedade de cobertura, pelas operadoras de planos de saúde, de tratamentos multidisciplinares, sem limitação de sessões, para pessoas com Transtorno do Espectro Autista, não podendo haver restrição quanto ao método indicado pelo médico assistente. Quanto ao argumento da operadora de que não está obrigada a custear tratamento fora da rede credenciada, cabe destacar que, embora a RN n. 566/2022 da ANS realmente estabeleça a possibilidade de direcionamento do beneficiário para prestadores em municípios limítrofes ou da região de saúde, tal normativa deve ser interpretada em consonância com os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção integral da criança e do adolescente e da função social do contrato. No caso concreto, o próprio art. 8º da RN n. 566/2022 determina que a “escolha do meio de transporte fica a critério da operadora de planos privados de assistência à saúde, porém de forma compatível com os cuidados demandados pela condição de saúde do beneficiário”. Ora, no caso de uma criança com Transtorno do Espectro Autista, que apresenta quadros graves de autoagressão e heteroagressão, é evidente que o deslocamento diário a longa distância (270 km, ida e volta) não é compatível com suas necessidades de saúde. No que concerne ao perigo de dano, este se evidencia pela natureza do tratamento prescrito, que exige continuidade e regularidade para sua eficácia, bem como pelos riscos à saúde e ao desenvolvimento do menor caso haja interrupção ou intermitência no tratamento, especialmente considerando que se trata de criança diagnosticada com transtornos que demandam acompanhamento intensivo e contínuo. A par disso, não se ignora que o comprometimento cognitivo severo e os quadros de autoagressão e heteroagressão apresentados pelo menor Agravante tornam o deslocamento diário a longa distância não apenas inviável do ponto de vista prático, mas potencialmente prejudicial à sua saúde física e mental. Com efeito, o argumento utilizado pela Agravada de que o tratamento foi disponibilizado na rede credenciada em Rondonópolis/MT, conforme a área de abrangência contratada, e que tal conduta estaria amparada na RN n. 566/2022 da ANS, não se sustenta diante das particularidades do caso concreto. Tenho que a imposição de deslocamento diário de longa distância a uma criança com Transtorno do Espectro Autista, que apresenta quadros graves de autoagressão e heteroagressão, mostra-se absolutamente incompatível com suas necessidades de saúde, configurando, na prática, verdadeira negativa de cobertura. Outrossim, não merece guarida a alegação de que o rol de procedimentos da ANS é taxativo, dado que, conforme já demonstrado, a própria ANS editou resoluções normativas (RN n. 539/2022 e RN n. 541/2022) que estabelecem expressamente a obrigatoriedade de cobertura de tratamentos multidisciplinares, sem limitação de sessões, para beneficiários com Transtorno do Espectro Autista. Assim sendo, mesmo considerando a natureza taxativa do rol da ANS, no caso específico de beneficiários com transtornos globais do desenvolvimento, a própria Agência Reguladora estabeleceu a obrigatoriedade de cobertura para qualquer método ou técnica indicada pelo médico assistente, sem limitação de sessões. No que tange ao argumento de potencial desequilíbrio econômico-financeiro do plano, cabe destacar que tal alegação é genérica e não foi demonstrada concretamente. Aliás, o equilíbrio econômico-financeiro do contrato deve ser interpretado em consonância com sua função social, que é justamente garantir o acesso efetivo a cuidados de saúde, especialmente em se tratando de beneficiário em situação de extrema vulnerabilidade, como é o caso do Agravante. Em suma, a peculiaridade do caso concreto, caracterizada pela impossibilidade prática de deslocamento diário a longa distância em razão das condições de saúde do menor Agravante, justifica a excepcional determinação de custeio do tratamento fora da rede credenciada, em consonância com os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção integral da criança e do adolescente e da função social do contrato. Por todo o exposto, em consonância ao parecer ministerial, conheço e DOU PROVIMENTO ao Agravo de Instrumento interposto por D. S. R., representado por sua genitora Simone Rodrigues Soares, para reformar a decisão agravada, confirmando-se a tutela antecipada recursal concedida, e determinar que a Agravada disponibilize e custeie o tratamento multidisciplinar do Agravante, conforme prescrito nos relatórios que instruem o processo de origem, a ser realizado em clínica especializada no Município de Alto Garças/MT, onde reside o beneficiário, ainda que fora da rede credenciada do plano de saúde, sob pena de multa diária no importe de R$ 500,00 (quinhentos reais), limitada a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). É como voto. Data da sessão: Cuiabá-MT, 15/04/2025
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