Processo nº 0006689-63.2025.4.05.8001
ID: 331242250
Tribunal: TRF5
Órgão: 10ª Vara Federal AL
Classe: PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CíVEL
Nº Processo: 0006689-63.2025.4.05.8001
Data de Disponibilização:
22/07/2025
Polo Ativo:
Polo Passivo:
Advogados:
ADLER RICARDO MARQUES DA SILVA
OAB/AL XXXXXX
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JUSTIÇA FEDERAL DA 5ª REGIÃO Processo Judicial Eletrônico 10ª VARA FEDERAL AL PROCESSO: 0006689-63.2025.4.05.8001 - PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL (436) AUTOR: VERA MARIA DOS SANTOS Advogado …
JUSTIÇA FEDERAL DA 5ª REGIÃO Processo Judicial Eletrônico 10ª VARA FEDERAL AL PROCESSO: 0006689-63.2025.4.05.8001 - PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL (436) AUTOR: VERA MARIA DOS SANTOS Advogado do(a) AUTOR: ADLER RICARDO MARQUES DA SILVA - AL10304 REU: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS SENTENÇA Vistos etc. Combate à litigância predatória. Levantamentos e notas técnicas correlatas expedidas pelo CNJ, Corregedorias, Centros de Inteligência e diversos tribunais do país. Implantação da política judiciária de combate à litigância predatória nas ações previdenciárias, especialmente nas ações de salário-maternidade rural. Caso de litigância predatória identificado. I - RELATÓRIO Embora o relatório seja dispensável (art. 38 da Lei n.º 9.099/95), registro breve narrativa. Trata-se de ação de salário-maternidade rural intentada por VERA MARIA DOS SANTOS, em face do INSS, em razão do nascimento de seu(sua) filho(a) GAEL DOS SANTOS ARAÚJO, ocorrido em 28/05/2024 (ID 67777217). O motivo do indeferimento administrativo foi a “falta de período de carência anterior ao nascimento” (ato impugnado – ID 67777207). Juntou documentos e fotos (ID 79868001). Em juízo, o INSS contestou a ação, pugnando pela improcedência do pedido. No caso dos autos, como a demanda foi identificada como caso de litigância predatória, este juízo considerou desnecessária e inútil a produção de provas orais em audiência, indeferindo-as, passando ao julgamento antecipado da lide (CPC, art. 355, I c/c Tema Repetitivo 437 do STJ). II – FUNDAMENTAÇÃO 1. DAS QUESTÕES PRÉVIAS A) DEVERES DAS PARTES. PROCEDIMENTO PROBATÓRIO. PROVAS PROTELATÓRIAS. INDEFERIMENTO PELO JUIZ (CPC/2015, ARTS. 77 E 370) As partes possuem o dever de não produzir provas inúteis e protelatórias, cabendo ao juiz avaliar a admissibilidade da prova, indeferindo as provas inúteis e desnecessárias. Sobre os deveres das partes, o art. 77, I a III, do CPC/2015 preceitua: “Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo: I - expor os fatos em juízo conforme a verdade; II - não formular pretensão ou de apresentar defesa quando cientes de que são destituídas de fundamento; III - não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito; As partes têm o dever de não produzir provas desnecessárias. Além disso, as provas passam por juízo de admissibilidade. No processo, o procedimento probatório é composto por quatro fases: propositura, admissão, produção e valoração[1]. Indubitavelmente, as provas submetem-se a requisitos de admissibilidade. Nos termos do devido processo legal, a produção de provas possui um procedimento, com pressupostos de admissibilidade e a possibilidade de deferimento ou indeferimento pelo juiz. O art. 370, parágrafo único, do CPC preceitua: “Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito. Parágrafo único. O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias”. Barbosa Moreira explica que, antes da produção, há um juízo de admissibilidade das provas: “O conceito de prova, o objeto da prova, o onus probandi, os meios de prova, suas classificações e requisitos de admissibilidade, os critérios de valoração da prova são temas que pertencem à teoria geral do processo civil [...] tratar-se-á precipuamente do procedimento probatório, isto é, dos atos pelos quais as provas são propostas, deferidas ou indeferidas, determinadas ex officio pelo órgão judicial e produzidas [...] situam-se em regra fora da fase instrutória os atos de proposição de provas e os de deferimento ou indeferimento, ou de determinação ex officio da realização de provas”[2]. Assim, no procedimento probatório, cabe ao juiz efetuar o juízo de admissibilidade da prova, indeferido a produção de provas inúteis, desnecessárias ou protelatórias. B) JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE (CPC/2015, ART. 355, I). AÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. APLICAÇÃO DO TEMA REPETITIVO 437 DO STJ. É possível o julgamento antecipado da lide nas ações previdenciárias, quando as demais provas se revelarem desnecessárias ao deslinde da causa. O art. 355, I, do CPC/2015 dispõe: “Art. 355. O juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo sentença com resolução de mérito, quando: I - não houver necessidade de produção de outras provas”. O STJ já possui orientação firme sobre o tema. Confira: “PROCESSUAL CIVIL. [...] JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. [...] 4. Na forma da jurisprudência deste Superior Tribunal, não configura cerceamento de defesa o julgamento antecipado da lide quando o julgador entende adequadamente instruído o feito, declarando a prescindibilidade da prova testemunhal com base na suficiência da prova documental apresentada (STJ, AgInt no AREsp n. 1.826.494/MT, 1ª Turma, Rel. Min. Sérgio Kukina, DJe de 31/8/2023). STJ, Tema Repetitivo 437: “Não configura cerceamento de defesa o julgamento antecipado da lide, ante os elementos documentais suficientes” (STJ, REsp n. 1.114.398/PR, 2ª Seção, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJ 16/2/2012). No caso dos autos, a demanda foi identificada como hipótese de litigância predatória, razão pela qual este juízo considera desnecessária e inútil a produção de prova oral em audiência. Portanto, é possível o julgamento antecipado da lide quando a prova oral for desnecessária, não havendo cerceamento de defesa (CPC, art. 355, I c/c Tema Repetitivo 437 do STJ). 2. DO MÉRITO A) AS BASES DA SHAM LITIGATION (EUA). NOERR-PENNINTON DOCTRINE (1960) E OS LEADING CASES CALIFORNIA MOTOR (1972) E COLUMBIA PICTURES (1993) A litigância predatória (sham litigation) ganhou notoriedade nos EUA, a partir de precedentes da Suprema Corte americana. O instituto é aplicável no Brasil. Existem 3 precedentes fundamentais para a compreensão do funcionamento do instituto da sham litigation: Noerr-Pennington Doctine (1960), California (1972) e Columbia (1993). Noerr-Pennington Doctrine (década de 1960): em um primeiro momento, a Suprema Corte americana decidiu que, no conflito entre o direito de petição e as regras de proteção à concorrência, prevalece o direito de petição (teoria da imunidade do direito de petição). California Motor Transport Co. v. Trucking Unlimited (1972): em mitigação à imunidade do direito de petição, que não constitui direito absoluto, a Suprema Corte americana decidiu que o surgimento de um padrão de processos infundados e repetitivos é um forte indicador de abuso de direito apto à produção de resultados ilegais (surgimento da ideia de sham litigation). Professional Real Estate Investors, Inc. v. Columbia Pictures Industries, Inc. et. Al (1993): diante da constatação de que a litigância fraudulenta não poderia estar imune à caracterização de ato ilícito, coube à Suprema Corte americana a definição dos pressupostos da sham litigation: (1) requisito objetivo: a demanda deve ser objetivamente desprovida de base, havendo ausência de razoabilidade e de verossimilhança nos fundamentos da demanda e (2) requisito subjetivo: utilização da demanda com a intenção de conseguir objetivo antijurídico (teste PRE). B) SISTEMA COMMON LAW. IDENTIFICAÇÃO DA SHAM LITIGATION. CRITÉRIOS TÉCNICOS OBJETIVOS. OS DOIS TESTES (EUA): TESTE PRE E O TESTE US-POSCO No sistema common law, a investigação da sham litigation ocorre por meio de dois testes (pressupostos técnicos): teste PRE (demanda única) e teste US-POSCO (processos em série). Vejamos a definição dos testes: (a) teste PRE: a partir do caso Columbia (1972), a Suprema Corte americana entendeu que há um caminho a ser percorrido para a identificação da sham litigation, em teste composto de duas fases (two-part): primeiro, verifica-se a presença do requisito objetivo (ação objetivamente sem base) e, estando o elemento objetivo presente, sucessivamente, avalia-se o requisito subjetivo (a intenção de obter objetivo ilegal). É o que se convencionou chamar de teste PRE (demanda única); (b) teste US-POSCO: o 9º circuito da Corte de Apelações dos EUA entendeu que uma série de litígios, mesmo que parte deles possa ter sido julgada procedente, poderia caracterizar a sham litigation pela pattern litigation. É o modelo concebido para verificar a ocorrência da sham litigation não em uma ação individual, mas em relação a processos em série (rede sistêmica). A diferença essencial entre os dois testes é esta: enquanto o teste PRE é adequado para verificação da sham litigation em uma única demanda, o teste US-POSCO destina-se à investigação da sham litigation quanto aos processos em série, ainda que algum seja procedente (rede sistêmica). O teste POSCO é a base para a identificação da litigância predatória sistêmica. C) NEOPROCESSUALISMO E ACESSO À JUSTIÇA: LITIGIOSIDADE EXCESSIVA, ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO E AÇÕES FRÍVOLAS (LITIGÂNCIA PREDATÓRIA) Na fase neoprocessualista, deve haver a redefinição e ressignificação do acesso à justiça, diante dos novos desafios enfrentados no Século XXI: litigiosidade excessiva, abuso do direito de ação e efeitos colaterais causados pelas ações frívolas (litigância predatória). Na perspectiva Processual-Constitucional, a evolução do acesso à justiça apresentou três grandes fases: (a) surgimento; (b) universalização e expansão e (c) redefinição. 1. Surgimento: na primeira fase evolutiva, quando o Estado assumiu o monopólio da justiça, foi assegurado o direito de ação para permitir que as demandas fossem levadas ao Judiciário. Essa fase consagrou o acesso formal à justiça (praxismo e processualismo científico); 2. Universalização e expansão: na segunda fase evolutiva, após a instituição do direito de ação, buscou-se universalizar e ampliar o acesso à justiça com a remoção das barreiras tradicionais de acesso ao Judiciário. Como fruto do Estado Social (Welfare State), o acesso à justiça passou a protagonizar nas principais cartas internacionais, desde a Declaração dos Direitos Humanos (1948). A partir de então, foi consagrado como garantia fundamental nas Constituições de diversos países no mundo. Durante o instrumentalismo, na década de 1970, na Itália, o Projeto de Florença de Mauro Cappelletti e Bryant Garth[3] impulsionou o movimento de acesso à justiça, com a tendência de ampliação do acesso em três grandes ondas renovatórias de acesso à justiça: (1) assistência judiciária gratuita aos necessitados; (2) proteção dos interesses metaindividuais e (3) novo enfoque de acesso à justiça, buscando-se garantir uma maior satisfação do jurisdicionado com a prestação da tutela jurisdicional, bem como a valorização dos sucedâneos da jurisdição - arbitragem, mediação e conciliação. Nessa fase, promoveu-se o acesso à ordem jurídica justa (Kazuo Watanabe), consubstanciado no direito à tutela jurisdicional célere, efetiva e adequada[4]. Essa segunda fase consagrou a garantia universal, expansiva e substancial de acesso à justiça;to interno, buscou-se ampliar o acesso ositivo dos paectiva do direito material. 3. Redefinição: na terceira fase evolutiva, são mantidas todas as conquistas das fases anteriores, mas buscou-se promover a redefinição e ressignificação da cláusula de acesso à justiça, diante os novos desafios contemporâneos vividos no Século XXI decorrentes do excesso de litigiosidade e de diversos outros efeitos colaterais provenientes do abuso do direito de ação por demandas inautênticas e ilegítimas, com padrões anômalos de litigância: litigância predatória stricto sensu, litigância frívola, litigância de bagatela, litigância de má-fé, assédio processual etc. No Século XXI, o acesso à justiça não deve ser visto isoladamente sob o prisma individual, mas sobretudo do ponto de vista holístico, sistêmico ou global (sistema de justiça). Se durante a fase instrumentalista – que vigorou no século passado – a preocupação dos movimentos de acesso à justiça e suas ondas renovatórias era promover a ampliação do acesso ao Judiciário, com a retirada das barreiras e obstáculos tradicionais (custos do processo, falta de reconhecimento de direitos, temor etc.), garantindo-se o acesso universal e ilimitado (Cappelletti e Garth; 3 ondas renovatórias de acesso à justiça), na fase neoprocessualista – em vigor no Século XXI –, surge a necessidade de redefinição e ressignificação da cláusula de acesso à justiça, diante dos desafios decorrentes do excesso de litigiosidade e de diversos outros efeitos colaterais gerados pelo abuso do direito de ação (demandas inautênticas e ilegítimas) com padrões anômalos de litigância: litigância predatória stricto sensu, litigância frívola, litigância de bagatela, litigância de má-fé, assédio processual etc. (uso predatório do sistema de justiça). Portanto, as ações frívolas e abusivas precisam ser objeto de repressão, sob pena de não se conseguir garantir um acesso à justiça mais célere e efetivo para os que realmente necessitam. D) PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO: UM DOS MAIS DEMANDADOS DO MUNDO O Poder Judiciário brasileiro está entre os mais demandados do mundo, havendo uma superutilização do sistema de justiça, afetado por demandas legítimas e ilegítimas. Conforme destacou o Min. Dias Toffoli no STF durante o evento “O que é o Poder”, realizado em 2019, “o judiciário brasileiro é o mais demandado do mundo”[5]. Quando se examinam os dados estatísticos objetivos, percebe-se que a produtividade do Poder Judiciário brasileiro representa uma das justiças mais produtivas do mundo em termos de julgados[6]. Não obstante, o sistema continua sobrecarregado. Ao final do ano de 2023, eram mais de 82 milhões de processos pendentes (em tramitação), segundo levantamento do CNJ nos relatórios Justiça em Números[7]. Eis o paradoxo: se de um lado garante-se amplo acesso ao sistema de justiça, de outro, tem-se o excesso de litigiosidade e a degeneração do acesso à justiça causados pelo abuso do direito de ação: litigância predatória stricto sensu, litigância frívola, litigância de bagatela, litigância de má-fé, assédio processual etc., que revelam o uso predatório do sistema de justiça. E) O VOLUME DE PROCESSOS NA JUSTIÇA FEDERAL: MILHÕES DE PROCESSOS Na Justiça Federal também há elevado volume. No ano de 2022, foram recebidos mais de 4,5 milhões de novos processos, sendo julgados mais de 3,8 milhões, restando pendentes 11,9 milhões de processos. No ano de 2023, foram recebidos mais de 5 milhões de novos processos, sendo julgados mais de 4,4 milhões, restando um saldo de 12,5 milhões de processos pendentes[8]. Nesse contexto, há demandas legítimas e autênticas, bem como demandas ilegítimas e inautênicas, sendo necessário estabelecer filtros para evitar o uso abusivo do sistema judiciário. F) SALÁRIO-MATERNIDADE RURAL – A ALTA TAXA DE IMPROCEDÊNCIA Nas ações previdenciárias de salário-maternidade rural, após monitoramento, foram identificados elementos objetivos de uso predatório do sistema de justiça em Alagoas. Em levantamento feito no Sistema BI, constatou-se uma alta taxa de improcedência nas ações de salário-maternidade rural: aproximadamente 80% das novas ações de salário-maternidade rural distribuídas na subseção não são acolhidas. Conforme a estatística, a grande maioria dos casos de improcedência é motivada pela falta da qualidade de segurado especial, com inspeção judicial negativa e ausência de perfil rural. São os casos de pessoas que não são agricultoras e tentam se passar como tais para receber o benefício – falsos agricultores (fake farmers). G) O FENÔMENO DA LITIGÂNCIA PREDATÓRIA (SHAM LITIGATION) É preciso evitar a banalização e o uso predatório do sistema de justiça, diante do elevado volume de demandas inautênticas e ilegítimas, em manifesto abuso do direito de ação. É chegada a hora de promover um combate mais incisivo do fenômeno da litigância predatória. Origem. No mundo ocidental, a litigância predatória (sham litigation) ganhou notoriedade no direito norte-americano (Common Law), ligada inicialmente a práticas anticoncorrenciais, como demandas abusivas com o objetivo de atingir o adversário e prejudicar a livre concorrência. Em 1972, no célebre caso California Motor Transport Co. v. Trucking Unlimited, 404, U.S. 508, a Suprema Corte americana consignou, pela primeira vez, que o surgimento de um padrão de processos infundados e repetitivos é um forte indicador de abuso de direito com aptidão para a produção de resultados ilegais. O conceito evoluiu para alcançar o abuso do direito de ação na esfera judicial, considerando-se predatória ou fraudulenta a litigância com efeito antijurídico, que seria o uso impróprio dos tribunais para alcançar objetivos ilegais. O fenômeno manifesta-se nos sistemas processuais de outros países, como França, Itália, Alemanha, Espanha, Portugal e Estados Unidos, sendo objeto de estudos recentes, inclusive no Brasil. Assim, é no direito anglo-saxão, a partir dos precedentes dos EUA, que se extrai a fundamentação para coibir o exercício abusivo do direito de ação, proibição que se convencionou chamar de sham litigation. [9] Conceito. Na definição do CNJ, litigância predatória “é a provocação do Poder Judiciário mediante o ajuizamento de demandas massificadas com elementos de abusividade e/ou fraude”.[10] Natureza jurídica. A natureza jurídica da litigância predatória é de ilícito processual, por abuso do direito fundamental de ação (art. 5º, XXXV da CF/88 c/c art. 187 do CC/2002). Enunciado 414, V Jornada de Direito Civil – CJF/STJ: “A cláusula geral do art. 187 do Código Civil tem fundamento constitucional nos princípios da solidariedade, devido processo legal e proteção da confiança, e aplica-se a todos os ramos do direito”. FPPC, Enunciado n.º 378: “A boa-fé processual orienta a interpretação da postulação e da sentença, permite a reprimenda do abuso de direito processual e das condutas dolosas de todos os sujeitos processuais e veda seus comportamentos contraditórios”. A expressão “litigância predatória” é utilizada para designar um padrão anômalo de litigância que gera efeitos deletérios e a afetação do sistema de justiça. Frequentemente, são identificadas demandas que fazem uso do sistema de justiça de forma desvirtuada e abusiva, para veicular pretensões sem fundamento na realidade fática, com elementos de abusividade ou fraude. Pessoas utilizam de forma predatória o acesso ao sistema de justiça com ações frívolas, artificiais, com baixíssima probabilidade de êxito, pela falta de base jurídica ou de mérito legal, tentando a sorte com aventuras irresponsáveis, havendo o uso lotérico do sistema de justiça. Sobre o abuso do direito de ação, há uma série de padrões anômalos de litigância: litigância predatória stricto sensu, litigância frívola, litigância de bagatela, litigância procrastinatória, litigância de má-fé, assédio processual etc., que revelam o uso predatório do sistema de justiça. Nas demandas inautênticas ou ilegítimas, em geral, a litigância predatória (sham litigation) é a provocação do Judiciário com o ajuizamento de ações artificiais ou massificadas com elementos de abusividade ou fraude. Há exercício inadmissível de situação jurídica processual e violação à boa-fé objetiva. Sua responsabilização é objetiva – sendo dispensável o elemento anímico – e independe da prova do dano concreto (in re ipsa). Litigância frívola (frivolous lawsuits) é aquela fundada em ação com falta de base jurídica ou mérito legal (improcedência manifesta). A litigância de bagatela é aquela que veicula pretensões fúteis ou insignificantes, que não justificam a movimentação da máquina judiciária. A litigância procrastinatória é voltada a postergar o resultado previsível de uma relação jurídica material, reduzindo sua eficácia. A litigância de má-fé (improbus litigator) é a má conduta processual animada pela má-fé. Sua responsabilização é subjetiva (má-fé; violação da boa-fé subjetiva) e dispensa prova do dano (in re ipsa). As hipóteses são previstas no art. 80 do CPC, em rol de taxatividade mitigada na dicção do STJ (RESP Repetitivo 1696396). O assédio processual ou judicial (procedural harassment), por sua vez, revela o exercício abusivo do direito de ação pela propositura de ações judiciais com o objetivo de intimidar ou prejudicar uma pessoa, o que pode causar danos à pessoa atingida[11]. Apesar das distinções técnicas, entende-se que, em geral, as diversas formas de abuso do direito de ação podem ser agrupadas sob a rubrica de “litigância predatória em sentido amplo”. A litigância predatória deve ser combatida para preservar a licitude, regularidade, necessidade e legitimidade de acesso ao Judiciário, em prol da racionalização da prestação jurisdicional e da higidez do sistema de justiça, com providências impeditivas do sucesso das condutas abusivas. Apesar da ausência de sistematização legal ou acadêmica, a litigância predatória é incompatível com o sistema jurídico brasileiro. A repressão à litigância predatória possui fundamentos constitucionais e legais. Fundamentos constitucionais: proibição do abuso do direito de ação (CF, art. 5º, XXXV; art. 187 do CC/2002); princípios da moralidade e da eficiência (CF, art. 37); princípio republicano (CF, art. 1º); devido processo legal substancial (CF, art. 5º, LIV) boa-fé objetiva (CF, art. 5º, LIV); cooperação etc. Como fundamentos legais, temos as disposições legais que permitem o juiz agir de ofício com poderes diretivos, fiscalizatórios e de cautela. Embora o instituto da sham litigation tenha origem no direito norte-americano (sistema common law), a prática é proibida no direito brasileiro. H) LITIGÂNCIA PREDATÓRIA NO DIREITO BRASILEIRO. O VOTO DA MIN. NANCY ANDRIGHUI QUE RECONHECEU A APLICAÇÃO DA SHAM LITIGATION NO BRASIL A sham litigation é o abuso do direito de demandar, atraindo a incidência do art. 5º do CPC/2015 art. 187 do CC/2002. A prática é proibida no Brasil, de acordo com o STJ. No RESp 1817845/MS, o STJ decidiu que a ratio decidendi dos precedentes da Suprema Corte americana sobre a sham litigation são aplicáveis ao direito brasileiro para coibir o abuso do direito de demandar. Sobre o tema, vale conferir trecho do voto da Min. Nancy Andrighi do STJ: “[...] a causa é de alegado abuso processual. A figura do abuso de direito é entre nós conhecida e estudada essencialmente na perspectiva do direito material e, sobretudo, no âmbito do direito privado, em razão do que dispõe o art. 187 do CC/2002, segundo o qual “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Isso porque, em virtude das nossas raízes romano-germânicas e de civil law, parece ser sempre necessário que a lei reconheça, prévia e expressamente, a ilicitude do ato abusivo e a possibilidade de puni-lo para que se cogite de examiná-lo nos conflitos que diariamente são submetidos ao Poder Judiciário, como se os deveres da boa-fé, da ética e da probidade não estivessem presentes no tecido social e, consequentemente, como se não fossem ínsitos ao direito. Essa característica fica ainda mais evidente no âmbito do processo judicial. Quando se pensa em um apenamento por conduta que possa se assemelhar ao ato abusivo, imediatamente se remete o intérprete, sem escalas, aos arts. 14 a 18 do CPC/73 (atuais arts. 77 a 81 do CPC/15), como se todas as descomposturas, chicanas e tramoias processuais estivessem ali elencadas ou pudessem ser previstas com antecipação pelo legislador. Ocorre que o ardil, não raro, é camuflado e obscuro, de modo a embaralhar as vistas de quem precisa encontrá-lo. O chicaneiro nunca se apresenta como tal, mas, ao revés, age alegadamente sob o manto dos princípios mais caros, como o acesso à justiça, o devido processo legal e a ampla defesa, para cometer e ocultar as suas vilezas. O abuso se configura não pelo que se revela, mas pelo que se esconde. É por isso que é preciso repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo” (grifos nossos) (STJ, REsp n. 1.817.845/MS, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 17/10/2019, trechos do voto da Min. Nancy Andrighi). Durante o seu voto, a Min. Nancy Andrighi mencionou o abuso de demandar no direito anglo-saxão e desenvolveu os precedentes que ensejaram a teoria da sham litigation, com referência expressa ao caso California Motor vs. Trucking Unlimited (1972). Confira: “[...] é no direito anglo-saxão, mais especificamente dos precedentes formados nos Estados Unidos da América, que se extrai fundamentação substancial para coibir o abusivo exercício do direito de peticionar e de demandar, isto é, para a proibição do que se convencionou chamar de sham litigation. Dentre os inúmeros precedentes da Suprema Corte que balizaram o exercício do direito de petição, destaque-se o caso California Motor vs. Trucking, em que se consignou, pela primeira vez, que o surgimento de um padrão de processos infundados e repetitivos é forte indicador de abuso com aptidão para produção de resultados ilegais, razão pela qual essa conduta não está albergada pela imunidade constitucional ao direito de peticionar (California Motor Transport Co. v. Trucking Unlimited, 404 U.S. 508, 1972). A despeito de a doutrina da sham litigation ter se formado e consolidado enfaticamente no âmbito do direito concorrencial, absolutamente nada impede que se extraia, da ratio decidendi daqueles precedentes que a formaram, um mesmo padrão decisório a ser aplicado na repressão aos abusos de direito material e processual, em que o exercício desenfreado, repetitivo e desprovido de fundamentação séria e idônea pode, ainda que em caráter excepcional, configurar abuso do direito de ação [...] o exercício abusivo de direitos de natureza fundamental, quando configurado, deve ser rechaçado com o vigor correspondente à relevância que essa garantia possui no ordenamento jurídico” (grifos nossos) (STJ, REsp n. 1.817.845/MS, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 17/10/2019, voto da Min. Andrighi). A Min. Nancy Andrighi elaborou um voto completo, com alusão ao abuso processual em referência ao art. 187 do CC2002 e aos deveres de agir conforme a boa-fé, a ética, a lealdade e a probidade, além de trabalhar o acesso à justiça, o devido processo legal e a ampla defesa. I) PREVENÇÃO E COMBATE À LITIGÂNCIA PREDATÓRIA: CNJ, STF, STJ, CENTROS DE INTELIGÊNCIA E NOTAS TÉCNICAS. MECANISMOS DE CONTROLE A litigância predatória tem sido objeto de estudos, levantamentos e notas técnicas pelos tribunais, inclusive em relação às ações previdenciárias. O CNJ, o STJ e outros tribunais do país têm integrado uma rede nacional de informações e combate à litigância predatória. O CNJ, ao tratar da rede de informações sobre litigância predatória, enfatizou publicamente: “O fenômeno da litigância predatória tem sido objeto de inúmeros estudos, levantamentos e notas técnicas pelos Tribunais do país. Consiste, normalmente, a litigância predatória na provocação do Poder Judiciário mediante o ajuizamento de demandas massificadas com elementos de abusividade e/ou fraude [...] Com o objetivo de combater esse tipo de prática abusiva de efeitos deletérios para o Poder Judiciário ao sobrecarregar varas e tribunais com demandas artificiais, foi concebida, para o ano de 2023, a Diretriz Estratégica n. 7 para as Corregedorias, a fim de que envidem esforços no sentido de regulamentar e promover práticas e protocolos para o combate à litigância predatória, preferencialmente com a criação de meios eletrônicos para o monitoramento de processos e alimentação de um painel único pela Corregedoria Nacional de Justiça”. [12] O Centro de Inteligência do Poder Judiciário já identificou a necessidade de repressão: “o Poder Judiciário tem o poder-dever – imposto, repita-se, pela Constituição e pela lei – de adequado enfrentamento (prevenção e combate), quer os abusos advenham de ocupantes do polo ativo, quer do polo passivo da relação processual [...] magistrados e tribunais de todo o país têm envidado esforços intensos e diuturnos para enfrentar adequadamente – observando as normas constitucionais e legais, especialmente aquelas que fundamentam e delimitam o poder geral de cautela – as diversas manifestações do abuso do direito de ação (como os focos de litigância predatória em sentido estrito, de litigância fraudulenta, de litigância frívola, de litigância procrastinatória, todos, como esclarecido, inseridos na ideia de litigância predatória em sentido lato)[13]. Sobre a litigância predatória, a Corte Especial do STJ previu a possibilidade de multa: “a litigância frívola, predatória, desenfreada, impensada, irresponsável e inconsequente, que se pretende combater com a fixação rígida (e, por vezes, exorbitante) de honorários advocatícios, pode ser eficazmente sancionada, por exemplo, pela imposição de multa” (STJ, REsp n. 1.906.623/SP, Corte Especial, Rel. Min. Og Fernandes, DJe de 31/5/2022). Combate. A litigância predatória deve ser prevenida, combatida e desestimulada. No direito brasileiro, isso é possível através dos poderes diretivos do processo atribuídos ao juiz (CPC, art. 139) e, também, do poder geral de cautela (CF, art. 5º, XXXV) conferido aos magistrados com densificação constitucional e legal, além das diversas disposições previstas nas leis processuais, para resguardar a licitude, regularidade, necessidade e legitimidade de acesso ao Judiciário. Merecem destaque as seguintes disposições legais: (a) possibilidade de produção de provas em geral ex officio pelo juiz (CPC, art. 370); (b) possibilidade exigência de novos documentos de officio (CPC, art. 421); (c) inspeção judicial ex officio em qualquer fase do processo (CPC, art. 481); (d) fiscalização dos deveres processuais das partes (CPC, art. 77): expor os fatos em juízo conforme a verdade (inc. I); não formular pretensão cientes de que são destituídas de fundamento (inc. III); não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários (inc. III). Como mecanismos processuais de prevenção, combate e dissuasão da litigância predatória, podem ser catalogadas as seguintes ferramentas, em rol não exaustivo: 1. Extinção do processo sem resolução de mérito por falta de interesse processual legítimo (CPC/2015, arts. 17, 330, III e 485, VI) – ações frívolas e predatórias (STF[14]); 2. Exigência de novos documentos em suspeita de litigância predatória (CPC, art. 421); 3. Indeferimento da inicial, por ausência de petição inicial apta, diante da falta de documentos indispensáveis à propositura da ação (CPC/2015, arts. 320 e 321); 4. Sistema de precedentes e improcedência liminar do pedido (CPC, art. 332); 5. Improcedência liminar do pedido em hipótese atípica, antes da citação, como forma de combate às demandas abusivas, nos casos de manifesta improcedência[15]; 6. Tutela da evidência, quando ficar caracterizado o abuso do direito de defesa (CPC, art. 311, I); 7. Exigência de demonstração de perfil rural mínimo nas ações de salário-maternidade rural, com inspeção judicial ex officio antes da audiência (CPC, arts. 139, VI e 481); 8. Indeferimento de provas protelatórias e julgamento antecipado da lide (CPC, arts. 370, parágrafo único[16] e 355, I[17] c/c Tema Repetitivo 437 do STJ[18]); 9. Reconhecimento da litigância de má-fé com as sanções legais (CPC, arts. 79 a 81); 10. Honorários advocatícios recursais (CPC, art. 85, §11); 11. Multa processual (STJ) e cadastros de inadimplentes (CPC, art. 782, §3º[19]); Portanto, há diversos mecanismos processuais para prevenção, combate e dissuasão da litigância predatória, havendo múltiplas ferramentas para controle de abusos processuais. J) OS FOCOS DE LITIGÂNCIA PREDATÓRIA E AS AÇÕES PREVIDENCIÁRIAS De acordo com os estudos e levantamentos realizados, a litigância predatória (sham litigation) tem como um dos focos mais frequentes as ações previdenciárias. Em importante nota técnica, o Centro de Inteligência do Poder Judiciário já constatou: “Qualquer que seja a matéria sobre a qual incidam as práticas predatórias – relações consumeristas, relações entre Estado e servidores públicos, atuação estatal em geral, relações previdenciárias, questões trabalhistas - para mencionar apenas algumas daquelas no tocante às quais os dados jurimétricos até aqui colhidos têm evidenciado mais frequentes focos de abuso do direito de ação, o Poder Judiciário tem o poder-dever – imposto, repita-se, pela Constituição e pela lei – de adequado enfrentamento (prevenção e combate), quer os abusos advenham de ocupantes do polo ativo, quer do polo passivo da relação processual”. [20] Portanto, a partir do monitoramento realizado pelo Centro de Inteligência do Poder Judiciário em nível nacional, as ações previdenciárias foram identificadas como pertencentes ao grupo dos focos mais frequentes de litigância predatória por exercício abusivo do direito de ação. K) SALÁRIO-MATERNIDADE RURAL. LITIGÂNCIA PREDATÓRIA DIFUSA E SISTÊMICA. APLICAÇÃO DO TESTE US-POSCO. REDE SISTÊMICA PREDATÓRIA (AÇÕES EM SÉRIE) Há um extenso quadro de litigância predatória sistêmica e difusa instalado na localidade, pulverizado em centenas de demandas artificiais ajuizadas por diversos advogados e escritórios de advocacia, especificamente em relação às ações de salário-maternidade rural promovidas contra instituição pública (INSS), envolvendo pessoas que, à evidência, não são agricultoras. Fredie Didier Junior explica sobre a litigância predatória sistêmica: “É possível que a ‘sham litigation’ configure-se não por uma demanda isolada da parte, mas por uma série de demandas que, conjuntamente, formam uma rede sistêmica [...] considera-se que, nesse caso, eventual sucesso em uma ou algumas demandas, não descaracterizariam, por si sós, a presença do elemento objetivo [...] deve-se demonstrar que a pluralidade de demandas com conteúdo razoavelmente desprovido de verossimilhança significa, como uma rede, uma unidade de comportamento”[21]. Em levantamento feito a partir do Sistema BI, constatou-se uma alta taxa de improcedência nas ações de salário-maternidade rural: aproximadamente 80% das novas ações de salário-maternidade rural distribuídas na subseção não são acolhidas. Conforme a estatística, a grande maioria dos casos de improcedência é motivada pela falta da qualidade de segurado especial, com inspeção judicial negativa e ausência de perfil rural. São os casos de pessoas que não são agricultoras e tentam obter o benefício em juízo (fake farmers). Foi identificado um padrão de processos frívolos (pattern of frivolous lawsuits), com as mesmas características: petições padronizadas; pessoas jovens sem características corporais mínimas de agricultor; mesma matéria (salário-maternidade rural); mesmo réu; mesma localidade geográfica; pouca importância para o mérito legal; cultura lotérica de tentar a sorte etc., todos com baixíssima taxa de sucesso, a revelar uma rede sistêmica de processos frívolos entabulados na sham litigation. Nesses casos, há recorrentemente um grande número de sentenças de improcedência e também de extinção sem resolução de mérito. Segundo levantamento feito pelo Centro de Inteligência do Poder Judiciário, em outras localidades do país, foram identificados “profissionais que fazem da criação de litigiosidade artificial, do ‘demandismo abusivo’, um verdadeiro modelo de negócio”[22], envolvendo pessoas que, mesmo não tendo o direito, se arriscam a litigar no processo para tentar a sorte, fazendo o uso lotérico do sistema de justiça. Neste juízo, diariamente, são identificadas pessoas de outras atividades tentando se passar por agricultores: faxineiras, domésticas, cozinheiras, donas de casa etc., em abuso do direito de ação. Em suma, na subseção, instaurou-se um extenso quadro generalizado de litigância predatória sistêmica e difusa quanto às ações de salário-maternidade rural. L) SHAM LITIGATION E ARRANJOS SUBJETIVOS MÚLTIPLOS. INDIVÍDUO X LÍDER Quanto aos sujeitos, a litigância predatória pode decorrer de um mesmo indivíduo ou de pessoas diversas contra o mesmo réu, com objetivo ilegal, por influência de um líder. Nesse sentido é o entendimento de Oliveira Bello: “Não se pode perder de vista, ainda, que o assédio judicial pode ser implementado de formas distintas: pelo ajuizamento de múltiplas demandas por pessoas diversas a partir das incitações de um líder; por meio de abusos variados, inclusive por demandas judiciais e/ou administrativas variadas, pelo mesmo indivíduo; dentre outros incontáveis arranjos”[23]. O abuso de demandar pode decorrer de uma mesma pessoa ou da influência de um líder. O papel de líder pode ser assumido por um incitador específico ou mesmo por um escritório de advocacia que promove ações predatórias em massa, muitas vezes com a captação de causas em outras cidades para enquadrar “falsos agricultores” no caso das ações previdenciárias rurais. Portanto, em relação à conduta dos sujeitos, a litigância predatória possui arranjos subjetivos múltiplos, podendo ser praticada de várias formas distintas quanto aos atores envolvidos. N) DESVIRTUAMENTO DA FIGURA DO SEGURADO ESPECIAL E DO BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO DE SALÁRIO-MATERNIDADE RURAL. OS FAKE FARMERS A figura do segurado especial e o benefício de salário-maternidade rural não podem ser desvirtuados para legitimar demandas abusivas de pessoas que não são agricultoras, mas que tentam se passar como tais para receber o benefício – falsos agricultores (fake farmers). Por definição, segurado especial é a pessoa física que exerce individualmente ou em regime de economia familiar a atividade de agricultor, seringueiro, extrativista vegetal, pescador artesanal, em condição considerada indispensável para fins de subsistência. Ou seja, são aquelas pessoas que tiram o seu sustento dessas atividades e que não têm outro meio de vida. O art. 11, VII, da Lei n.º 8.213/91 apresenta a definição legal de segurado especial. No caso dos agricultores, é fundamental que o pequeno trabalhador rural exerça a atividade em regime de economia familiar, sendo a agricultura indispensável à subsistência. O art. 11, §1º, da Lei 8.213/91 preceitua: Art. 11 [...] § 1o Entende-se como regime de economia familiar a atividade em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes. Lazzari lembra de um ponto importante: “para serem considerados segurados especiais, o cônjuge ou companheiro e os filhos ou os a estes equiparados deverão ter participação ativa nas atividades rurais do grupo familiar”[24]. O conceito de segurado especial não pode ser degenerado para “enquadrar” pessoas que não são agricultoras, sendo utilizado de forma desvirtuada para que outros tipos de trabalhadores tentem a sorte em conseguir o benefício em juízo: empregadas domésticas, faxineiras, cozinheiras, serviçais, feirantes, trabalhadoras do comércio, donas de casa etc. Várias pessoas que não são agricultoras tentam se passar como tais para receber o benefício. Com essa situação, são centenas de ações judiciais protocoladas na localidade e milhares nos últimos anos. De outro lado, o benefício de salário-maternidade não pode ser desvirtuado para legitimar centenas de demandas frívolas e aventuras irresponsáveis de pessoas que não são agricultoras e que tentam se passar por segurados especiais, em grave agressão e vulneração ao sistema judiciário do país, que já está bastante sobrecarregado. No Brasil, o salário-maternidade rural é um benefício previdenciário; não tem natureza assistencial, não se prestando à “redistribuição de renda”. Não pode ser tratado como se fosse um benefício análogo ao “bolsa família” para “tentar enquadrar” pessoas de baixa renda que não são agricultoras, o que dependeria de alteração legislativa. O Judiciário não é loteria para arriscar e tentar a sorte. N) DIREITO BRASILEIRO. PREVIDENCIÁRIO. INVESTIGAÇÃO DA SHAM LITIGATION. O TESTE DO PERFIL RURAL MÍNIMO NAS AÇÕES DE SALÁRIO-MATERNIDADE RURAL Na investigação da sham litigation, além dos testes PRE e US-POSCO do direito-norte americano (EUA), no direito brasileiro, deve ser aplicado o teste do perfil rural mínimo quanto às ações de salário-maternidade rural no âmbito dos Juizados Especiais Federais. O teste do perfil rural mínimo é uma idealização deste julgador como ferramenta de prevenção, combate e dissuasão da litigância predatória nas ações de salário-maternidade rural. Teste do PERFIL RURAL MÍNIMO: consiste na verificação se a pessoa que afirma ser agricultora (segurado especial) apresenta as características corporais mínimas do exercício de atividade rural (CPC, art. 481; inspeção judicial preliminar). O perfil rural exigido é mínimo, concebido como uma exigência de grau menor (início de características corporais rurais). Assim como nas ações previdenciárias rurais em geral exige-se o início de prova material, nas ações de salário-maternidade rural, diante do elevado volume de ações ajuizadas por pessoas que não são agricultoras, mas que tentam se passar como tais para receber o benefício – falsos agricultores (fake farmers), foi instituído o teste do perfil rural mínimo, com base nos arts. 139, VI, 421 e 481 do CPC/2015 para apuração do legítimo interesse processual na admissibilidade da demanda (CPC/2015, art. 17, 330, III, 485, VI), em controle à litigância predatória (sham litigation), evitando-se o abuso do direito de ação (art. 5º do CPC/2015 c/c art. 187 do CC/2002). Para tanto, foi elegido um critério objetivo, não ligado a apenas um agricultor em especial, mas observável em todos os reais agricultores: o exame prévio do perfil rural mínimo. É o que este juízo convencionou chamar de teste do perfil rural mínimo para apuração do legítimo interesse processual, para evitar o abuso do direito de ação por pessoas que não são agricultoras, mas que tentam se passar como tais para receber o benefício (fake farmers). Base jurídica do teste do perfil rural mínimo: as justificativas para a exigência do teste de perfil rural mínimo são de ordem empírica (regras de experiência), de ordem técnica (notas técnicas; combate à sham litigation) e de ordem legal (CPC/2015, arts. 139, VI, 421 e 481). Quanto às regras de experiência, como se sabe, o labor rural é bastante sofrido, desgastante e deixa marcas visíveis pelo corpo: mãos grossas e calejadas; pele queimada do sol; envelhecimento precoce pela exposição solar etc. É de conhecimento público e notório que, já nos primeiros dias de trabalho no campo com a utilização de enxada e outros utensílios, as mãos do agricultor apresentam calosidade expressiva e chegam a estourar, além da pele queimada do sol. Não obstante, em centenas de ações que têm por objeto o benefício de salário-maternidade rural, o que se vê, neste juízo, é que muitas pessoas que se dizem agricultoras sequer demonstram perfil rural mínimo, apresentando mãos lisas, finas e sem calos; pele preservada do sol etc. São centenas de ações ajuizadas todos os meses e milhares de ações protocoladas nos últimos anos no local. E a taxa de improcedência é altíssima. À evidência, não se revela crível que uma pessoa, ao postular benefício salário-maternidade rural afirmando ser agricultora, não carregue consigo nenhuma marca ou desgaste no corpo decorrente do labor rural, apresentando mãos lisas, finas e sem calos; pele preservada do sol; cabelos bem cuidados etc. E as “justificativas” são de toda ordem. Algumas pessoas alegam “usar luvas”, outras dizem que “suas mãos não aparecem calos”, que usam “chapéus e casacos”, que o “esposo faz o trabalho pesado” etc., havendo até quem diga “passar creme nas mãos” para evitar os calos. Some-se a isso a circunstância de a pessoa não apresentar características rurais. Isso acontece em centenas de ações de salário-maternidade rural. Esses são exemplos de elementos de evidência objetiva de falso agricultor (fake farmer). O Centro de Inteligência do Poder Judiciário tem notas técnicas sobre o combate à litigância predatória. Além disso, o CPC/2015 fornece base legal para o teste do perfil rural mínimo: “Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: [...] VI - dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito”. “Art. 481. O juiz, de ofício ou a requerimento da parte, pode, em qualquer fase do processo, inspecionar pessoas ou coisas, a fim de se esclarecer sobre fato que interesse à decisão da causa”. “Art. 421. O juiz pode, de ofício, ordenar à parte a exibição parcial dos livros e dos documentos, extraindo-se deles a suma que interessar ao litígio, bem como reproduções autenticadas”. Portanto, o teste de perfil rural mínimo é uma providência de combate à litigância predatória (sham litigation) para evitar o abuso do direito de ação por pessoas que não são agricultoras, mas que tentam se passar como tais para receber o benefício – falsos agricultores (fake farmers). O) O CASO CONCRETO. PESSOA SEM CARACTERÍSTICAS DE AGRICULTOR. SHAM LITIGATION: TESTE DO PERFIL RURAL MÍNIMO, TESTE PRE E TESTE US-POSCO A investigação litigância predatória (sham litigation) é baseada em três critérios técnicos objetivos: (a) teste do perfil rural mínimo; (b) teste PRE e (c) teste US-POSCO. Passo ao exame do caso concreto. Por haver suspeita de litigância predatória em salário-maternidade rural, antes da citação, foi determinada a intimação da parte autora para apresentação de fotos e/ou vídeos para fins de exame prévio da existência de perfil rural mínimo para a configuração do interesse processual legítimo, com base na providência expressamente prevista no art. 481 do CPC/2015[25]. In casu, a parte autora juntou fotos que mostram seu corpo, rosto e mãos. Analisando-se cuidadosamente as imagens apresentadas, é possível perceber que a parte autora possui mãos lisas, finas e sem calos, além de pele preservada do sol, características corporais incompatíveis com o desgaste típico do labor rural dentro do contexto do exercício de atividade rural em regime de subsistência. Por isso, reputo ausente o perfil rural. Dessa forma, a inspeção judicial foi negativa. Não há sequer perfil rural mínimo, que é um grau de exigência menor no contexto da inspeção judicial em pessoas para aferição das marcas mínimas deixadas pelo labor rural. Assim, em relação ao teste do PERFIL RURAL MÍNIMO, observa-se que o resultado foi negativo, apontando para pessoa que não apresenta sequer as características corporais mínimas do exercício da atividade rural (inexistência de perfil rural mínimo). No tocante ao teste PRE, na ação individual em si, observa-se que a demanda é objetivamente sem base (requisito objetivo), havendo ausência de razoabilidade e de verossimilhança nos fundamentos da demanda, por ser a ação de salário-maternidade rural movida por pessoa que sequer possui as características mínimas de agricultor. Não há verossimilhança quanto à alegação da qualidade de segurado especial. Além disso, vale lembrar que o elemento subjetivo (intenção) não é exigido no direito brasileiro para a sham litigation, tendo em vista que a responsabilidade por abuso de direito processual é objetiva. Quanto ao teste US-POSCO, observa-se que a demanda se encontra inserida no contexto de processos judiciais em série (rede sistêmica) promovidos contra o INSS por pessoas que não são agricultoras reais, mas que tentam se passar como tais para receber o benefício – falsos agricultores (fake farmers), na mesma localidade geográfica. No teste US-POSCO, destaco que a taxa de sucesso dessas demandas promovidas por pessoas sem perfil rural mínimo é baixíssima. Há recorrentemente um grande número de sentenças de improcedência e também de extinção sem resolução de mérito nas ações com essas características. No salário-maternidade rural em si, a taxa de improcedência é de aproximadamente 80%, sendo superior a 90% nos casos em que não há perfil rural mínimo, o que deveria ter sido refreado pelo patrono da causa. Portanto, após investigação, foi identificada a ocorrência de litigância predatória (sham litigation) na presente ação de salário-maternidade rural, tendo em vista o resultado dos três testes (pressupostos técnicos): teste do PERFIL RURAL MÍNIMO, teste PRE e teste US-POSCO. P) RESPONSABILIZAÇÃO POR LITIGÂNCIA PREDATÓRIA. MULTA PROCESSUAL. MICROSSISTEMA DE CONTROLE DOS ATOS ILÍCITOS PROCESSUAIS A ocorrência de litigância predatória gera responsabilidade no campo processual, sendo possível a aplicação de multa ao agente por abuso do direito de demandar. O abuso de direitos processuais vem sendo tratado pela doutrina e jurisprudência nas últimas décadas. O CPC/2015, sob a rubrica da “Responsabilidade das Partes por Dano Processual”, influenciado pelo sistema civil law (tradição romano-germânica), que têm a lei como fonte imediata do direito, disciplinou o instituto da litigância de má-fé (improbus litigation) e suas hipóteses típicas (art. 80), seguindo o modelo adotado em Portugal e no México. Mas existem outros institutos distintos: atos atentatórios à dignidade da justiça (contempt of court) e a litigância predatória (sham litigation), ambos com inspiração no sistema common law. No Brasil, o microssistema de controle dos atos ilícitos processuais é formado por 3 institutos: (1) litigância de má-fé (improbus litigation): é a má conduta processual animada pela má-fé. Exige prova da má-fé (violação à boa-fé subjetiva) e possui hipóteses típicas, sendo regido pelo princípio da tipicidade processual (CPC/2015, art. 80). A responsabilidade é subjetiva (depende prova da má-fé). É um instituto oriundo do sistema civil law (romano-germânico); (2) atos atentatórios à dignidade da justiça (contempt of court): o instituto decorre da violação dos deveres de cumprimento das decisões judiciais e de não criar embaraços à sua efetivação. Possui hipóteses típicas, sendo regido pelo princípio da tipicidade processual (CPC/2015, art. 77, §§ 1º e 2º; art. 161, p. ún.; art. 246, §1º-C; art. 334, §8º; art. 774; art. 777; art. 903, §6º; art. 918, p. ún.). É um instituto oriundo do sistema common law (anglo-saxão); FPPC, Enunciado n.º 533: “Se o executado descumprir ordem judicial, conforme indicado pelo § 3º do art. 536, incidirá a pena por ato atentatório à dignidade da justiça (art. 774, IV), sem prejuízo da sanção por litigância de má-fé”. FPPC, Enunciado n.º 273: “Ao ser citado, o réu deverá ser advertido de que sua ausência injustificada à audiência de conciliação ou mediação configura ato atentatório à dignidade da justiça, punível com a multa do art. 334, § 8º, sob pena de sua inaplicabilidade”. FPPC, Enunciado n.º 678; “É lícita a imposição de multa por ato atentatório à dignidade da justiça, em caso de descumprimento injustificado por terceiro da ordem de informar ao juiz os fatos e as circunstâncias de que tenha conhecimento ou de exibir coisa ou documento que esteja em seu poder”. FPPC, Enunciado n.º 586: “O oferecimento de impugnação manifestamente protelatória é ato atentatório à dignidade da justiça que enseja a aplicação da multa prevista no parágrafo único do art. 774 do CPC”. FPPC, Enunciado n.º 537: “A conduta comissiva ou omissiva caracterizada como atentatória à dignidade da justiça no procedimento da execução fiscal enseja a aplicação da multa do parágrafo único do art. 774 do CPC/15” (3) litigância predatória (sham litigation): é o abuso do direito de demandar. Não possui previsão legal expressa no CPC/2015, mas a vedação pode é extraída do sistema, a partir do princípio da boa-fé objetiva e de outros princípios e regras (art. 5º do CPC/2015 c/c art. 187 do CC/2002 etc.). No Brasil, a responsabilidade é objetiva – independe de dolo ou culpa –, sendo dispensável a prova da má-fé. Não possui hipóteses legais típicas, sendo regido pela cláusula geral da boa-fé objetiva e pelos deveres de ética, lealdade e probidade. É um instituto oriundo do sistema common law (anglo-saxão). O STJ já decidiu que a sham litigation é uma prática proibida no direito brasileiro (REsp 1817845/MS). A Min. Nancy Andrighi assim aduziu: “em virtude das nossas raízes romano-germânicas e de civil law, parece ser sempre necessário que a lei reconheça, prévia e expressamente, a ilicitude do ato abusivo e a possibilidade de puni-lo para que se cogite de examiná-lo nos conflitos que diariamente são submetidos ao Poder Judiciário, como se os deveres da boa-fé, da ética e da probidade não estivessem presentes no tecido social e, consequentemente, como se não fossem ínsitos ao direito. Essa característica fica ainda mais evidente no âmbito do processo judicial. Quando se pensa em um apenamento por conduta que possa se assemelhar ao ato abusivo, imediatamente se remete o intérprete, sem escalas, aos arts. 14 a 18 do CPC/73 (atuais arts. 77 a 81 do CPC/15), como se todas as descomposturas, chicanas e tramoias processuais estivessem ali elencadas ou pudessem ser previstas com antecipação pelo legislador” (Trecho do voto da Min. Nancy Andrighi no STJ, REsp 1817845/MS, 3ª T., DJ 17/10/2019). Na ementa do REsp 1817845/MS, o STJ assim consignou: “Embora não seja da tradição do direito processual civil brasileiro, é admissível o reconhecimento da existência do ato ilícito de abuso processual, tais como o abuso do direito fundamental de ação ou de defesa, não apenas em hipóteses previamente tipificadas na legislação, mas também quando configurada a má utilização dos direitos fundamentais processuais” (STJ, REsp 1817845/MS, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 17/10/2019). A litigância predatória (sham litigation) é um instituto novo que não se confunde com a litigância de má-fé e nem com o comtempt of court, embora possa ocorrer sobreposição entre eles (um fato pode caracterizar os três simultaneamente). Essas situações podem ser reconhecidas ex officio. A responsabilidade processual por litigância predatória (abuso do direito de ação) possui natureza objetiva e independe de prova do dano concreto (dano in re ipsa). O STF possui precedente importante sobre o tema. Confira: “EMENTA [...] ABUSO DE DIREITO. CARACTERIZAÇÃO. ASSÉDIO JUDICIAL [...] “Ainda que observadas as regras processuais, resulta ilegítimo o exercício do direito de ação quando desvirtuada sua finalidade. Traduz abuso de direito o desvio de finalidade da conduta por meio de exercício excessivo, irresponsável e divorciado das finalidades sociais, de todo irrelevante perquirir acerca do elemento subjetivo de dolo ou culpa de cada agente individualmente considerado. O exercício do direito de ação encontra ressonância nos deveres éticos que permeiam a concretização da garantia de acesso à Justiça, não se prestando a estratagema para mascarar a intenção [...] Configurado o abuso do direito de petição, inviável falar em autêntica pretensão dos autores das demandas predatórias na tutela jurisdicional” (STF, Rcl 23899, Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, DJ 30/10/2023). O STJ já decidiu pela possibilidade de fixação de multa nos casos de litigância predatória: “a litigância frívola, predatória, desenfreada, impensada, irresponsável e inconsequente, que se pretende combater com a fixação rígida (e, por vezes, exorbitante) de honorários advocatícios, pode ser eficazmente sancionada, por exemplo, pela imposição de multa” (STJ, REsp n. 1.906.623/SP, Corte Especial, Rel. Min. Og Fernandes, DJe de 31/5/2022). A responsabilização da litigância predatória, em regra, opera-se no campo processual e, excepcionalmente, na órbita criminal. No âmbito processual, a responsabilidade processual é objetiva e independe de prova do dano concreto. Tecnicamente, a responsabilidade objetiva decorre do abuso de direito por violação à boa-fé processual objetiva (treu und glauben). O dano é in re ipsa (independe de prova), diante dos efeitos deletérios causados ao sistema de justiça. Enunciado n.º 37, CJF-STJ, I Jornada de Direito Civil: “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”. Enunciado n.º 01, Jornada de Processo Civil: “A verificação da violação à boa-fé objetiva dispensa a comprovação do animus do sujeito processual”. Enunciado n.º 24, I Jornada de Direito Civil - CJF/STJ: “Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”. Enunciado 414, V Jornada de Direito Civil – CJF/STJ: “A cláusula geral do art. 187 do Código Civil tem fundamento constitucional nos princípios da solidariedade, devido processo legal e proteção da confiança, e aplica-se a todos os ramos do direito”. FPPC, Enunciado n.º 378: “A boa fé processual orienta a interpretação da postulação e da sentença, permite a reprimenda do abuso de direito processual e das condutas dolosas de todos os sujeitos processuais e veda seus comportamentos contraditórios. Enunciado n.º 617, VIII Jornada de Direito Civil - CJF/STJ: “O abuso do direito impede a produção de efeitos do ato abusivo de exercício, na extensão necessária a evitar sua manifesta contrariedade à boa-fé, aos bons costumes, à função econômica ou social do direito exercido. Enunciado 539, VI Jornada de Direito Civil - CJF/STJ: “O abuso de direito é uma categoria jurídica autônoma em relação à responsabilidade civil. Por isso, o exercício abusivo de posições jurídicas desafia controle independentemente de dano”. Excepcionalmente, a litigância predatória poderá gerar responsabilização penal, com a caracterização de ilícitos penais, como a falsificação de documentos (CP, arts. 297 e 298), falsidade ideológica (CP, art. 299) e apropriação indevida de valores de terceiros (CP, art. 168). No caso em tela, pela caracterização de hipótese de litigância predatória, deve ser aplicada à parte autora multa processual no quantum de 5% sobre o valor da causa, com base no que decidido pelo STJ no REsp n. 1.906.623/SP do STJ. In casu, não há indícios de ilícito penal. III – DISPOSITIVO Diante do exposto: (a) indefiro a produção de prova oral em audiência, nos termos do art. 77, I, II e III c/c art. 370, parágrafo único, do CPC/2015, pelas razões anteriormente expostas; (b) julgo totalmente improcedente a pretensão deduzida em juízo, extinguindo o processo com resolução de mérito (CPC/2015, art. 487, I); (c) reconheço a existência de litigância predatória e, em consequência, aplico à parte autora multa de 5% sobre o valor da causa (STJ, REsp n. 1.906.623/SP). Concedo o benefício da justiça gratuita diante da hipossuficiência da parte autora para arcar com as despesas do processo. Sem custas e honorários advocatícios (art. 55 da Lei 9.099/95). Registro que, apesar do reconhecimento de litigância predatória, devem ser mantidos os benefícios da justiça gratuita, diante do que decidido pelo STJ no REsp 1989076/MT[26]. Publique-se, registre-se e intimem-se. Havendo recurso inominado regularmente interposto, após certificação, vista à parte contrária para contrarrazões, no prazo legal; em seguida, à Turma Recursal (Enunciado 34/FONAJEF). Após o trânsito em julgado, não paga a multa no prazo legal, intime-se o INSS para informar se possui interesse em requerer a inclusão do nome da autora em cadastros de inadimplentes (CPC/2015, art. 782, §3º[27]). Oportunamente, arquivem-se os autos. Esta sentença é proferida no contexto de combate à litigância predatória nas ações previdenciárias de salário-maternidade rural, para coibir o uso ilícito do sistema de justiça por pessoas que tentam se passar por agricultores em busca de benefícios rurais (falsos agricultores). Providências necessárias. Arapiraca/AL, data da assinatura eletrônica. PAULO HENRIQUE DA SILVA AGUIAR Juiz Federal Substituto PROPOSTAS DE SÚMULAS: Proposta de súmula 1: para prevenção e controle da litigância predatória nas ações de salário-maternidade rural, antes da citação, é lícita a exigência de demonstração do perfil rural mínimo para verificação do interesse processual legítimo e da justa causa no juízo de admissibilidade da demanda (teste do perfil rural mínimo). Proposta de súmula 2: como forma de combate à litigância predatória nas ações de salário-maternidade rural, após a contestação, é lícita a exigência de demonstração prévia de perfil rural mínimo para a admissibilidade da instrução oral em audiência. Proposta de súmula 3: como forma de combate à litigância predatória nas ações de salário-maternidade rural, ausente o perfil rural mínimo, é lícito ao juiz indeferir a produção de provas orais em audiência, procedendo ao julgamento antecipado da lide com base no art. 355, I, do CPC/2015 c/c Tema Repetitivo 437 do STJ, não havendo cerceamento de defesa. [1] BAPTISTA, Ovídio. Teoria Geral do Processo Civil. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 301-302. [2] MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Processo Civil Brasileiro. 28ª Ed. São Paulo: Forense, 2010, p. 55. [3] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1998. [4] WATANABE, Kazuo. Assistência Judiciária e o Juizado Especial de Pequenas Causas in Juizados Especiais de Pequenas Causas. São Paulo: RT, 1995, p. 163. [5] Disponível em: https://istoe.com.br/toffoli-defende-judiciario-e-diz-que-corporacoes-ocupam-vazio-da-elite-nacional. Acesso em: 13 de março de 2024. [6] Sobre a produtividade do Judiciário brasileiro:
. [7] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números. 2022-2023. Disponível em:
. Acesso em: 12 de março de 2024. [8] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números. 2022-2023. Disponível em:
. Acesso em: 12 de março de 2024. [9] O abuso de direito foi conhecido e estudado inicialmente na perspectiva do direito material. A origem da ideia de abuso de direito é remota e deita raízes no direito romano (aemulatio; temeritas processual). Há referências na jurisprudência francesa, conforme apontam os irmãos Mazeaud. Na Inglaterra, em matéria de lide temerária, a teoria do abuso do direito recebeu consagração legal a partir do Vexation Actions Act (1896) para coibir aqueles que intentassem processos sem motivos legítimos. [10] CNJ. Rede de Informações sobre a Litigância Predatória. Disponível em:
. Acesso em: 12/03/2024. [11] STJ, REsp 1.817.845-MS, 3ª Turma, Rel. p/ ac. Min. Nancy Andrighi, DJe 17/10/2019, Informativo n.º 658, nov-2019. [12] CNJ. Rede de Informações sobre a Litigância Predatória. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/litigancia-predatoria. Acesso em: 12/03/2024. [13] Centro de Inteligência do Poder Judiciário, Nota Técnica no Tema Repetitivo nº 1198 STJ, pág. 10 e 22. [14] STF, Rcl 23899, Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, DJ 30/10/2023. [15] É o entendimento de Fredie Didier Jr.: “parece-nos possível que o juiz julgue liminarmente improcedente o pedido em situações atípicas, de manifesta improcedência [...] trata-se de importante instrumento de combate às demandas abusivas, permitindo a extinção fulminante de processos que muitas vezes funcionam como mecanismos de extorsão processual” (in JUNIOR, Fredie Didier. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 758-759). [16] CPC/2015, art. 370: “Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito. Parágrafo único. O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias”. [17] CPC/2015, art. 355: “O juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo sentença com resolução de mérito, quando: I - não houver necessidade de produção de outras provas”. [18] STJ, Tema Repetitivo 437: “Não configura cerceamento de defesa o julgamento antecipado da lide, ante os elementos documentais suficientes” (STJ, REsp 1.114.398/PR, 2ª Seção, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe de 16/2/2012). [19] CPC/2015, art. 782, §3º: “A requerimento da parte, o juiz pode determinar a inclusão do nome do executado em cadastros de inadimplentes”. [20] Centro de Inteligência do Poder Judiciário, Nota Técnica no Tema Repetitivo nº 1198 STJ, pág. 10. [21] BONFIM, Daniela Santos; JUNIOR, Fredie Didier. Pareceres. Vol. II. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 39. [22] Centro de Inteligência do Poder Judiciário, Nota Técnica no Tema Repetitivo nº 1198 STJ, pág. 17. [23] BELLO, Baldomero Cortada de Oliveira. Sham Litigation. O Abuso do Direito de Demandar no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Londrina: Editora Thoth, 2021, p. 119. [24] CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 26ª Ed. São Paulo: Forense, 2023, p. 136. [25] CPC/2015: “Art. 481. O juiz, de ofício ou a requerimento da parte, pode, em qualquer fase do processo, inspecionar pessoas ou coisas, a fim de se esclarecer sobre fato que interesse à decisão da causa”. [26] STJ: “apesar de reprovável, a conduta desleal, ímproba, de uma parte beneficiária da assistência judiciária gratuita não acarreta, por si só, a revogação do benefício” (STJ, REsp n. 1.989.076/MT, 3ª Turma, Rel. Mini. Nancy Andrighi, DJe de 19/5/2022). [27] CPC/2015, art. 782, §3º: “A requerimento da parte, o juiz pode determinar a inclusão do nome do executado em cadastros de inadimplentes”.
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